Processo 390/09.0TBBAO – Penafiel – Secção Cível – J4
Sumário
I – Os encargos periódicos de manutenção da casa, que são despesas normais e correntes próprias de quem vive, ainda que informalmente, uma comunhão de vida (união de facto), não podem fundar, por regra, uma pretensão de enriquecimento sem causa.
II – Esta conclusão já não vale em relação aos bens que subsistem depois da cessação da união de facto.
III – Sendo os pagamentos (para a aquisição desses bens) feitos no âmbito de uma união de facto, quando esta deixa de existir deixa de haver a causa que os justificava, presumindo-se por isso, daqueles factos, que eles foram feitos na pressuposição da manutenção vida em comum [há pois “uma presunção (natural) de “não definitividade” da atribuição (indirectamente) realizada pelo autor em favor da ré – uma presunção (natural) de condicionamento, no sentido em que a dita atribuição é querida como condicionada à própria subsistência da relação convivencial de união de facto (ainda que essa condição não seja explicitada)”].
IV – Caso se considerasse necessário provar a afirmação de que os pagamentos tinham sido feitos na pressuposição da manutenção da união de facto, como essa afirmação tinha sido feita pelo autor na petição inicial, embora não tivesse sido objecto de instrução, nunca poderia ser proferida uma sentença de absolvição do pedido com base na falta de prova dessa afirmação.
V – O juiz, quando se desse conta da falta de instrução sobre aquela afirmação, ou durante o julgamento ou aquando da elaboração da sentença, teria de aditar esse tema de prova e possibilitar às partes a produção de prova sobre a mesma.
VI – O empobrecido só pode pedir a restituição do valor quando não for possível a restituição em espécie (art. 479/1 do CC). Se pedir a restituição em valor sem provar que a restituição em espécie não é possível, a pretensão tem de improceder nessa parte.
VII – Não se pode exigir que o empobrecido use a acessão industrial imobiliária ou o regime das benfeitorias, em vez do enriquecimento sem causa, se o que ele fez foi pagar os custos de construção de uma casa e dependências e melhoramentos num logradouro e quintal, se a casa foi construída em terreno da enriquecida e outros e se encontra registada em nome daquela e outros (incluindo o registo do prédio ainda a casa de um terceiro).
VIII – A enriquecida podia conseguir o desconto da sua contribuição para a construção do imóvel, mesmo que não se traduzisse numa contribuição monetária, mas para isso teria que alegar os factos que permitissem concluir por essa contribuição, não sendo suficiente que esteja provado que fez as lides domésticas.
IX – Não há que descontar, no valor do enriquecimento, o valor de uso que o empobrecido fez da casa de habitação que ele próprio pagou em exclusivo e onde ambos viviam.
X – O valor a restituir é o valor do bem (com todas as dependências, obras e melhoramentos feitos) à data da cessação da união de facto (a liquidar posteriormente se não tiver sido apurado até então) e não o valor que o empobrecido foi gastando na construção; os juros são devidos pelo menos desde a data da citação para a acção.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
Em 08/09/2009, J propôs esta acção contra a sua ex-companheira de facto, M, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 124.079,12€ [ou aquela que entretanto se vier a apurar ter sido por ele despendida – conforme “alteração” entretanto feita ao pedido na sequência da contestação da ré], correspondente ao valor por ele despendido na legalização, construção e aquisição de todos os bens imóveis, móveis e dinheiro que identifica, acrescidos dos juros vencidos.
Alega para tanto, em síntese, que ambos viviam numa união de facto que o autor sempre pensou e quis que fosse para toda a vida, tendo a intenção de, mais cedo ou mais tarde, virem a contrair matrimónio, relação esta que acabou em 2008; durante todo o tempo que durou tal união de facto, sempre o autor exerceu uma profissão remunerada, enquanto a ré nunca auferiu qualquer rendimento ou vencimento, limitando-se a cuidar das respectivas lides domésticas, sendo que ela, até lá, também sempre foi considerada pobre e sem recursos económicos; foi o autor que proveio ao sustento e ao pagamento de todas as despesas do inerente agregado fami-liar, inclusive de uma filha da ré fruto de um casamento anterior; em meados de 1998, autor e ré começaram a materializar a ideia da sua futura casa de família, abeirando-se dos pais da ré, que, contentes, se prontificaram a doar-lhes metade indivisa de um prédio rústico ainda em nome de outrem, registado depois, o prédio, em nome da ré e do seu irmão, tendo sido o autor a pagar todos os custos da legalização e registo, tal como, depois, do inerente projecto e da construção da residência familiar e dos posteriores acrescentos e benfeitorias; e foi também o autor que comprou e liquidou todo o recheio daquela casa e demais dependências, bem como, em 2001, comprou e pagou o preço de 6000€ de um automóvel que se encontra registado em nome da ré; a ré, por ocasião da separação, apoderou-se de 4700€ que, não obstante pertencer ao autor, a mesma havia depositado numa conta bancária aberta apenas em nome dela; o autor fez todos estes pagamentos no pressuposto de que a união e o entendimento que vinha mantendo com a ré se manteriam de uma forma estável e duradoura; agora que a ré rompeu com a dita relação e se gorou aquela expectativa, encontra-se o mesmo sem bens e sem poupanças; ao invés, a ré que, antes da união nada tinha e que, se não fosse o autor teria de ter arranjado trabalho para se sustentar a si própria e à sua filha, o que não é tarefa fácil, principalmente para quem, como ela, não tem grandes habilitações literárias, ficou, na sequência de uma causa que deixou de existir (a dita união de facto em condições análogas à dos cônjuges e a consequente comunhão de vida), injustificadamente enriquecida no seu património, correlativamente ao empobrecimento do autor; a casa encontra-se inscrita a favor da ré na matriz urbana e está incluída no prédio descrito na conservatória sob o nº xxx/19990322 englobando também a fracção H, dtª, daquele artigo, registado em comum e partes iguais, apenas em nome da ré e no de seu irmão; da circunstância de se encontrar na posse exclusiva, quer dessa vivenda e dos aludidos anexos, quintal e logradouro, quer de todo o recheio e da viatura se encontrar na sua mão e registada a seu favor e da vantagem da mencionada quantia de 4700€ apenas por si poder ser movimentada, a ré que, recentemente trocou todas as fechaduras e chaves das portas e portões daquela vivenda, não só retirou ao autor a possibilidade de poder aceder a todos os referidos bens e dinheiro, como se vem vangloriando, publicamente e de alta voz, que é sua única e exclusiva proprietária. O autor pretende lançar mão do instituto do enriquecimento sem causa, previsto no art. 473 do Código Civil, e, consequentemente, obter a recuperação daquilo que é, efectivamente, seu e que, malgrado nunca ter tido a intenção de doar à peticionada, esta, sem motivo justificado, se locupletou; a restituição em espécie é aqui praticamente impossível, já que, embora aquela edificação constitua, na prática, uma casa distinta da do irmão da ré, a verdade é que, na ausência da constituição de propriedade horizontal, as mesmas continuam a integrar, legal e formalmente, um único todo e consequentemente, não podem ser transmitidas separadamente; e no que respeita a móveis, fora daquela moradia, os mesmos perdem a sua utilidade, além de que, neste momento o autor não precisa deles e não tem sequer aonde os meter; e relativamente ao automóvel, por virtude do seu uso e gozo pela ré, o mesmo já não vale o preço que o autor pagou por ele; de acordo, com o art. 479 do CC deve o autor ser antes ressarcido da quantia por si desembolsada, o que, neste momento até fica aquém do real enriquecimento da ré uma vez que o valor actual daqueles bens é superior.
Ou, subsidiariamente, pede que a ré seja condenada a ceder e a entregar ao autor, gratuita e completamente livre de pessoas, os direitos e a quota (metade indivisa) que, do prédio descrito na Conservatória sob o número xxx, se encontra registada a favor dela, bem assim como todos os referidos móveis e dinheiros; pedido de que entretanto desistiu, por o ter substituído por este (o que foi admitido sem oposição da ré): subsidiariamente, e em caso de não se conseguir fazer prova das quantias que o autor efectivamente despendeu nas obras e bens em causa nesta demanda, ser a ré condenada a reconhecer que, como a própria confessa, pelo menos ele custeou na mesma proporção que ela, devendo, por isso, a mesma ser condenada a pagar-lhe metade da importância que se vier a considerar como tendo sido gasta/suportada na legalização, construção e aquisição de todos os bens (imóveis, móveis e veículo automóvel), atrás identificados e ainda dos 4700€ de que ré ilegitimamente, se apropriou, acrescida dos juros vencidos e dos vincendos.
A ré contestou, dizendo, no essencial, que é falso que, durante o tempo em que durou a união de facto, ela nunca tenha auferido quaisquer rendimentos, sendo pois falso que só o autor tenha provido ao sustento e ao pagamento de todas as despesas do agregado familiar e tenha pago todos os bens utilizados e usufruídos pelo “casal”; ela, com os rendimentos do seu trabalho, pagou todas as despesas na mesma proporção que o autor; a doação do terreno, pelos seus pais, foi só a si e não também ao autor; a ré também contribuiu para o pagamento da construção da moradia e acrescentos, com o produto do seu trabalho e com doações, dinheiros e empréstimos e o autor também beneficiou de outros empréstimos para o efeito que ainda não pagou; dos bens móveis uns não existem, outros já eram da ré, outros foram pagos pelo autor e pela ré, outros são parte integrante do imóvel, outros são do autor e a ré está na disposição de lhos entregar, outros o autor já levou apesar de alguns deles serem de ambos e outros foram doados à ré ou à filha pelo autor; o dinheiro existente era de apenas 100€; concluiu pela improcedência da presente acção.
O autor replicou impugnando grande parte do alegado pela ré e concluindo como na petição inicial.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.
O autor recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª. Ao dar-se como provado nesta acção que, antes de iniciar a união de facto com o autor, a ré não dispunha de recursos económicos e que, finda essa união, ficou com uma casa, várias construções e melhoramentos, diversas mobílias e um veículo automóvel, logo se terá de concluir que ela então ficou enriquecida;
2ª. Se é certo que os montantes suportados pelo autor no sustento e demais encargos do seu agregado familiar não são restituíveis por se enquadrarem no âmbito do seu contributo para uma vida em família com a ré, do mesmo modo, o trabalho doméstico por esta prestado deve ser considerado como a sua contribuição para essa comunhão de vida, baseada no espírito de entreajuda e na partilha de recursos;
3ª. Por outras palavras, ambas as referidas prestações (e não só a do autor) devem ser entendidas como cumprimento espontâneo de uma obrigação natural e por isso insusceptível de ser repetido (arts 402 e 403 do CC);
4ª. Já o mesmo não se pode dizer dos montantes que o autor despendeu na construção da moradia, melhoramentos, móveis e viatura em epígrafe tanto mais que, quer da factualidade alegada, quer do sentido e da posição por ele assumida ao longo da acção como, inclusive, dos factos que neste [recurso] vi[e]rem a ser considerados provados, resulta claramente que o mesmo efectuou tais dispêndios na convicção de que a união não teria fim e que, por isso, também iria pessoalmente e como dono usufruir de todo esse património enquanto fosse vivo;
5ª. Ao invés, em nenhum momento do processo ficou demonstrado que o autor tivesse gasto esse seu dinheiro com o mero intuito de o doar ou fazer uma «franqueza» à ré, nem tal liberalidade foi sequer alegada e muito menos, se presume;
6ª. Independentemente disso, das próprias regras da experiência, do entendimento do homem médio e da percepção do senso comum não seria expectável e muito menos crível que um mero trabalhador da construção civil, pobre e sem recursos, gastasse mais de 100.000€ (quantia demasiado avultada para a generalidade dos portugueses), ganhos com o seu trabalho, na construção de uma moradia e na aquisição de determinados bens prevendo que, de um momento para outro, iria ficar privado deles;
7ª. Ao invés, também ninguém de normal discernimento e inteligência ficaria convencido de que aquele comportamento do autor poderia criar a confiança na ré de que ele não iria no futuro, em caso da cessação da união, pedir-lhe a restituição do que pagou;
8ª. Perante o exposto, logo se terá de concluir que ao pagar todas essas obras e bens (que, no fim da união, ficaram na pertença exclusiva da ré), o mesmo ficou, efectivamente, empobrecido na mesma proporção em que ela ficou enriquecida;
9ª. E se, como se disse, o autor gastou todo aquele dinheiro não porque quis fazer qualquer doação ou outra generosidade à ré mas antes porque estava plenamente convencido de que ao investir na união também estava a tratar da sua própria vida e do seu património pessoal, a partir do momento em que cessou a união, aquela deslocação patrimonial deixou de fazer qualquer sentido, isto é, deixou de ter causa justificativa;
10ª. Pelo que, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida, estão aqui preenchidos todos os pressupostos de que o art. 473 do CC faz depender a existência e aplicação do instituto do enriquecimento sem causa;
11ª. Embora a acção de enriquecimento sem causa tenha natureza subsidiária, não se enquadrando a pretensão do autor numa situação dependente de uma nulidade, anulação ou resolução de um contrato ou negócio jurídico, nem numa situação a resolver no âmbito da responsabilidade civil, o autor agiu bem, ao lançar mão daquele instituto, para pedir a restituição daquilo que havia gasto;
12ª. Em bom rigor, não se pode dizer que o autor tenha construído em terreno alheio, uma vez que os documentos juntos aos autos, nomeadamente o alvará de licença de construção e de utilização daquela moradia, se encontram emitidos pela entidade competente (Câmara Municipal de X) em nome da ré e de seu irmão;
13ª. Ademais, sendo a acessão uma forma de aquisição do direito de propriedade, a verdade é que, como qualquer outro direito real, também aquele, só pode incidir sobre coisas certas e determinadas, o que não acontece com a casa que o autor financiou já que ela se encontra implantada num prédio rústico que pertence em comum à ré e irmão e que nunca chegou a ser entre eles dividido, loteado ou desanexado, muito menos, nos termos exigidos pela legislação e regulamentos municipais aplicáveis;
14ª. Pelo que, mais uma vez, o Sr. juiz a quo fez uma má interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente, do disposto no art. 1340 do CC;
15ª. Também o direito a benfeitorias úteis e necessárias previstas no artigo 1273 do CC, implica que quem as faça seja possuidor e mesmo que, no caso, o autor fosse considerado possuidor, dado que os melhoramentos por si custeados não podem ser levantados sem detrimento da coisa, sempre ele haveria de receber o seu valor, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (nº 2, do sobredito art. 1273 do CC);
16ª. O CPC actualmente em vigor privilegia o mérito e a substância sobre a forma e reforça os poderes de direcção, agilização e adequação processual do juiz no sentido da obtenção da verdade material e da prossecução de uma justiça efectiva;
17ª. No âmbito desse reforço de poderes e a entender que a matéria fáctica alegada pelo autor era insuficiente para fazer vingar a sua pretensão, nada proibia aquele magistrado, antes pelo contrário, de depois de ouvidas as partes e sempre no estrito respeito do princípio do contraditório, de completar e integrar os factos provados, com novos factos instrumentais e complementares, nomeadamente, com aqueles que a sua colega decidiu não levar à base instrutória;
18ª. E poderia e deveria ter também endereçado ao autor o convite para aperfeiçoar, completar e concretizar a sua alegação caso o julgasse necessário;
19ª. Sendo que ao não utilizar nenhum daqueles poderes/ /deveres, o Sr. juiz cometeu pois uma nulidade processual que aqui expressamente se invoca (nºs 3 e 4 do art. 590 do CPC);
20ª. E proferiu uma decisão que para além de profundamente injusta, é avessa não só às já citadas disposições legais, (arts 402, 403, 473, 1273, 1340 todos do CC e 5/2, e 590 do CPC) como ainda a alguns dos princípios mais importantes do nosso ordenamento jurídico e estado de direito democrático, nomeadamente, o da igualdade das partes e de acesso ao direito, também previstos nos arts 13 e 20 da Constituição da República Portuguesa;
21ª. Pelo que, em primeira linha e a título principal, deve tal sentença ser revogada e substituída por outra que considere a acção procedente e condene a ré a entregar ao autor não a quantia por ele mencionada na sua petição, mas antes, a que ficou demonstrada em julgamento ter sido por ele desembolsada na moradia, melhoramentos, móveis e veículo automóvel em causa no processo (e que se o mesmo não se enganou nos seus cálculos totaliza agora 106 515,25€), acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento;
22ª. Na eventualidade de se vir a entender que da matéria de facto alegada pelo autor, a que foi levada a julgamento, não é efectivamente suficiente para fundamentar e justificar a acção de enriquecimento sem causa por ele intentada, mas a que ficou de fora, apesar de alegada, já o é, deve aquela decisão ser anulada determinando-se a ampliação dessa matéria de facto (art. 662, nºs 2 e 3c) do CPC);
23ª. Por último, caso se entenda que a causa de pedir apresentada pelo autor, peca por incompletude e insuficiência de alegação, deve aquela decisão ser considerada nula pelo facto do juiz não ter cumprido uma formalidade que a lei sobre ele fazia impender que era a de convidar o autor ao suprimento desses vícios e omissões e consequentemente, ser agora endereçado ao autor esse mesmo convite, com todas as consequências legais daí advenientes.
A ré não contra-alegou.
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Questões a decidir: se no caso se verificam os pressupostos do pedido de restituição do enriquecimento sem causa.
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Para a decisão destas questões importam os seguintes factos dados como provados:
A) O autor viveu com a ré, desde os inícios de Maio de 1997, até aos princípios de Março de 2008.
B) Partilhando a mesma mesa e habitação.
C) Passeando, saindo juntos e auxiliando-se reciprocamente, no seu dia-a-dia.
D) Relacionando-se afectiva e sexualmente.
E) Dessa união nasceu em 18/12/1997 o filho de ambos, C, que criaram e educaram.
F) Vivendo como se fossem marido e mulher e assim sendo reconhecidos e tratados, principalmente pelas pessoas com quem mais se relacionavam.
G) Assim sucedeu ininterruptamente até ao momento em que a ré abandonou a habitação que partilhavam.
H) Durante todo o tempo em que viveram juntos sempre o autor exerceu uma profissão remunerada, em regra a de ferrageiro, no ramo da construção civil.
I) Por escritura denominada justificação e compra e venda, datada de 22/01/1999, celebrada no Cartório Notarial de X, D e E declararam: “que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio rústico – x – mato, com a área de 6300m2, sito no lugar de x, freguesia de x, concelho de x, (…) omisso na Conservatória do Registo Predial de x; inscrito na matriz respectiva em nome do justificante varão sob o artigo 562, com o valor patrimonial de 852$ e o atribuído de 1.100.000$. Que, em data imprecisa de 1974, este prédio lhes foi doado, verbalmente, por F e mulher, G, (…) não tendo sido outorgada a respectiva escritura de doação, nem a podendo outorgar agora por terem falecido os doadores. Assim, não têm título suficiente da sua aquisição. Que, porém, há mais de 20 anos de forma pública, pacífica, contínua e de boa fé, ou seja, com o conhecimento de toda a gente, sem violência nem oposição de ninguém, reiterada e ininterruptamente, na convicção de não lesarem quaisquer direitos de outrem e ainda convencidos de serem titulares do respectivo direito de propriedade e assim o julgando as demais pessoas têm possuído aquele prédio roçando o mato, fazendo benfeitorias, pagando os impostos ao Estado; pelo que tendo em consideração as referidas características de tal posse o adquiriram por usucapião; estando, por isso, impossibilitados de comprovar a referida aquisição pelos meios extrajudiciais normais.”
J) As declarações referidas em I) foram confirmadas por H, J e L.
K) Na mesma escritura os outorgantes referidos em I) declararam ainda que “pelo preço de 1.100.000$, que já receberam, vendem à 3ª e ao 4º outorgantes, em comum e partes iguais o retro identificado prédio”, que a ré, M, e N declararam aceitar.
L) Na CRP de x encontra-se descrito sob o n.º x/19990322 um prédio urbano, sito no lugar de x, da freguesia de x, com área total de 6300 m2, sendo a coberta de 251 m2 e a descoberta de 6049 m2, inscrito na matriz respectiva sob o artigo x provisório, composto de edifício de rés-do-chão com logradouro.
M) Pela apresentação n.º de 2 de 1999/03/22 foi registada a favor de M, N e O, a aquisição do prédio referido em L), por compra a D e E.
N) Na repartição de Finanças de X encontra-se inscrito em nome de M e N um prédio urbano, sito na freguesia de X, com o artigo matricial x provisório.
O) No dia 29/12/1998, na repartição de Finanças de x foi emitido termo de declaração do qual consta que N, por si em como gestor de negócios de M declarou “que pretende pagar a sisa que que for devida com referência a 1.100.000$, preço por que contratou comprar a D e E (…), o seguinte: Prédio rústico denominado x do x, também conhecido por x do x ou x, sito nos limites do Lugar de x, sitio dos x, freguesia de x, deste concelho, inscrito na matriz sob o artigo x (…)”.
P) Na sequência da declaração referida em O) foi liquidada sisa no valor de 88.000$.
Q) O CN de x cobrou pela realização da escritura referida em I) a K) o valor de 49.730$.
R) O registo do prédio identificado em I na CRP a favor da ré e de N importou em 51,25 €.
S) O custo do projecto (que abrangeu também a casa/fracção, de igual configuração, de N) ascendeu a 500€.
T) No prédio referido em I) foi construída, em 2001, uma casa de habitação de rés-do-chão com garagem ao lado, com uma superfície coberta total de 125,50 m2.
U) A licença camarária de construção da moradia referida em T) importou em 454,25 €.
V) Tal construção esteve a cargo do empreiteiro P, com sede no lugar de x, freguesia de x, x.
W) E o respectivo custo ascendeu a 10.900.000$ (= 54.368€).
X) Em meados de 2007 foi colocada no prédio referido em T) uma marquise em alumínio e um portão, em ferro, cujo custo ascendeu a 3660€.
Y) Desde 1998 foram efectuadas, no mesmo prédio, obras e melhoramentos no logradouro e quintal, nomeadamente, por volta de 2002, uma segunda garagem, com a área aproximada de 28 m2, de um só pavimento, cimentado e «afagado» no chão e coberto por uma placa em cimento, com as paredes em blocos de cimento, areadas e pintadas exteriormente e com portas de ferro, no valor calculado a preços actuais em 6000€;
Z) …e a edificação de uma «cozinha de lenha», de rés-do-chão, com cerca de 28 m2, com uma porta e uma janela em alumínio, em placa e paredes em blocos de cimento, areadas e pintadas, de ambos os lados e no interior, junto à banca da louça e do fogão, bem assim como no pavimento, ainda revestidos a azulejo e tijoleira;
AA) …e o levantamento de um armazém agrícola, com um lagar, com uma parede em blocos de cimento e as restantes, tal como a sua cobertura, em chapas de zinco, onduladas;
AB) …e a construção, em 2004, no prolongamento da garagem e da cozinha referidas em Y) e Z), de uma casa de banho exterior, com placa em cimento e paredes em tijolo, areadas e pintadas no exterior e revestidas a tijoleira no interior e chãos, com poliban e acessórios;
AC) …e o levantamento de um muro de suporte, em betão, com as dimensões aproximadas de 27 metros de comprimento, 1,50 metros de altura e 0,40 metros de largura;
AD) …e a edificação de um outro muro, com cerca de 20 metros de comprimento, 1,5 metros de altura e 0,40 metros de largura, também em betão;
AE) …E a abertura, em Agosto de 2005, de um furo artesiano vertical, com a colocação de electrobomba, no valor global de 2400€;
AF) …e a concretização de um segundo furo artesiano, em Novembro de 2005, e respectiva electrobomba, no valor total de 2.295 €;
AG) …e a terraplanagem, em Dezembro de 1998, de mais de 2200m2 de terreno;
AH) …e a execução de quatro ramadas em bancas de cimento, ligadas por cinco fiadas de arame e a plantação das respectivas videiras (mais de 100);
AI) …e a feitura de uma vinha de 11 bardos, cada um com seis metros de comprimento, três pilares de cimento e três fios de arame e respectivas videiras, no valor de 500 €;
AJ) …e a comparticipação com N, na construção de uma calçada, em paralelo, de acesso às casas, com as dimensões aproximadas de 4,5 metros de largura e o comprimento de 30 metros, no valor de 1000€;
AK) …e a construção de um tanque, em blocos de cimento, isolado e areado, com cerca de 4 metros de comprimento, 3 metros de largura e 1 metro de altura;
AL) Na casa que autor e ré habitaram existiam os seguintes bens: uma mobília de sala comum, composta de um sofá cama e dois sofás individuais, em tecido, uma mesa de centro, oito cadeiras, um móvel de sala, uma arca, um móvel em forma de globo, tudo em madeira, no valor global de 1500€;
AM) Um candelabro de tecto, um relógio de sala (de pé), um aparelho de música e uma estatueta em barro, tudo no valor de 1.250€;
AN) Uma mobília de cozinha, feita por Móveis x, constituída por um móvel de parede em forma de «L», com o comprimento aproximado de 5 metros, a altura de 0,90 metros e a largura de 0,50 metros, em madeira de castanho;
AO) …um balcão, com a mesma forma e dimensão, em madeira de castanho, com tampo em granito;
AP) …um móvel, em madeira de castanho, com 1 metro de comprimento, 0.90 metros de altura e 0,50 metros de largura, com tampo em granito;
AQ) … e uma mesa com o tamanho de 1,90 metros de comprimento por 0.80 metros de largura, em madeira de castanho e com tampo em granito.
AR) Oito cadeirões em madeira de castanho, com almofada em pele, no valor de 1000€, pagos integralmente com dinheiro do autor.
AS) Um frigorífico (combinado), um fogão (placa), uma televisão a cores, uma banca de lavar louça, em inox, um exaustor e um esquentador inteligente, no valor total de 1750 €.
AT) Dois tachos e uma panela em ferro fundido e outra louça e cutelaria diversa, um microondas, três garrafas de gás, no valor de 1000€.
AU) Uma mobília de cozinha (de lenha), composta de uma mesa com a estrutura em ferro e tampo em madeira, com o comprimento de 2,5 metros e a largura de 0,80 metros e com dois bancos, em madeira, do mesmo comprimento;
AV) … outra mesa, circular, em fórmica branca com quatro cadeiras, no mesmo material;
AW) …tudo (AU) e AV)) no valor de 500€;
AX) … um móvel de parede e um balcão, igualmente em fórmica branca, no valor de 250€;
AY) …um fogão a gás, de cinco bocas, uma televisão a cores, uma máquina de lavar louça e uma banca de lavar louça em inox;
AZ) Uma mobília de quatro composta de cama de casal, duas mesinhas de cabeceira, uma cómoda, uma cadeira almofadada em tecido, um roupeiro, dois candeeiros de mesa e um de tecto, uma televisão a cores, um aparelho de música e um vídeo, tudo no valor de 2100€;
AAA) O aparelho de música e o vídeo, referidos em AZ) foram adquiridos, exclusivamente, com dinheiro do autor.
AAB) Uma mobília de quarto de casal constituída por uma cama, duas mesinhas de cabeceira, um guarda-fatos, uma cadeira, dois candeeiros de mesa e outro de tecto e uma televisão a cores, tudo importando em 1200€, adquiridos exclusivamente com dinheiro do autor;
AAC) Uma outra mobília de quarto composta, pelo menos, por uma cama, uma secretária e uma televisão a cores;
AAD) Um computador, respectivo monitor e impressora e dois candeeiros, no montante total de 500€;
AAE) Uma máquina de costura eléctrica e outra de lavar roupa, esta instalada na casa de banho exterior, no valor de 600€.
AAF) Uma garrafeira para 108 garrafões, em estrutura de ferro, e outra para 300 garrafas em inox;
AAG) Duas cubas em inox, com a capacidade de 550 litros cada, no valor de 650€.
AAH) Um ralador de uvas eléctrico, uma prensa para espremer uvas, várias enxadas e outras alfaias agrícolas, na importância global de 500€.
AAI) O veículo de matrícula xx-xx-xx, marca Fiat, modelo Punto, foi, pela apresentação n.º 000xx, de 08/03/2001, registado na Conservatória do Registo Automóvel a favor da ré.
AAJ) Tal veículo foi adquirido pelo preço de 6000€.
AAK) À data em que autor e ré se separaram, esta era titular única de uma conta bancária sediada na agência de X da Caixa Geral de Depósitos.
AAL) Pese embora o teor das declarações proferidas em K), o preço declarado na escritura a que se alude em I) foi pago por Q e R que, com tal acto, pretenderam transmitir, gratuitamente e por mera liberalidade tal prédio, pelo menos, a M e N.
- Antes de viverem juntos a ré não dispunha de recursos económicos.
- Durante o tempo em que viveram juntos a ré não auferiu qualquer rendimento durante os anos de 1999, 2000 e 2002;
– durante todo o ano de 1997 auferiu o montante total de 1979,73€ do Município de x, acrescido de 525,48€ da Caixa Geral de Aposentações,
– durante todo o ano de 1998 auferiu o montante total de 1072,42€ de xxx, acrescido de 546,43€ da CGA,
– durante todo o ano de 2001 auferiu o montante total de 4014,03€ do Município de x,
– durante todo o ano de 2003 auferiu o montante total de 940€ da xxx, Lda, e 676,48€ da CGA,
– durante todo o ano de 2004 auferiu o montante total de 703,50€ da CGA,
– durante todo o ano de 2005 auferiu o montante total de 703,50€ da CGA,
– durante todo o ano de 2006 auferiu o montante total de 736,96€ da CGA,
– durante todo o ano de 2007 auferiu o montante total de 736,96€ da CGA,
– durante todo o ano de 2008 auferiu o montante total de 3210,45€ da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da X e 773,50€ da CGA
[os valores recebidos da CGA são rendimentos de categoria H do IRS e os outros valores são rendimentos da categoria A do IRS].
3…limitando-se a cuidar das lides domésticas durante os anos de 1999, 2000 e 2002, e cuidando das lides domésticas durante os anos de 1998, 2001, 2003, 2004, 2005, 2006 e 2007, durante 1997 desde o mês de Maio[,] e até princípio de Março de 2008.
- Foi o autor quem proveu ao sustento e ao pagamento de todas as despesas do seu agregado familiar durante os anos de 1999, 2000 e 2002 e de todas as despesas do agregado familiar superiores a €220 por mês desde Maio até ao final de 1997, a €92 por mês durante todo o ano de 1998, a €342 por mês durante todo o ano de 2001, a €142 por mês durante todo o ano de 2003, a €67 por mês durante os anos de 2004, 2005, 2006 e 2007 e a €400 nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2008.
5…usando, para tanto, o dinheiro que recebia do seu trabalho.
- Foi o autor quem pagou a metade dos valores referidos em P), Q), R) e U) que cabia à ré.
- Foi o autor quem pagou, com dinheiro seu, o custo do projecto referido em S).
- O preço da construção da moradia referido em W) foi integralmente pago com dinheiro do autor.
- Foi o autor quem liquidou, com o seu dinheiro, o custo da marquise referido em X).
- Foi o autor quem liquidou, com o seu dinheiro, o custo da construção da garagem referido em Y).
11/12. A edificação da cozinha de lenha referida em Z) importou em 4700€, e foi integralmente paga com dinheiro do autor.
13/14. O levantamento do armazém agrícola aludido em AA) ascendeu a 6400€ e foi integralmente pago com dinheiro do autor.
15/16. A construção da casa de banho exterior referida em AB) importou em 1650€ e foi integralmente paga com dinheiro do autor.
17/18. O levantamento do muro de suporte aludido em AC) ascendeu a 760€ e foi integralmente suportado com dinheiro do autor.
19/20. A edificação do muro mencionado em AD) importou em 280€ e foi integralmente paga com dinheiro do autor.
- O custo da abertura do furo artesiano referido em AE) foi integralmente suportado com dinheiro do autor.
- O valor despendido com a concretização do furo artesiano aludido em AF) foi-o exclusivamente com dinheiro do autor.
23/24. O custo da terraplanagem a que se alude em AG) foi de 950€, que apenas o autor desembolsou.
- O preço da feitura da vinha, mencionado em AI), foi integralmente custeado com dinheiro do autor.
- A comparticipação na calçada a que se alude em AJ) foi paga, em exclusivo, com dinheiro do autor.
29/30. A construção do tanque referido em AK) importou em 450€ que o autor pagou com dinheiro seu.
- Foi o autor quem adquiriu, com dinheiro seu, os móveis descritos em AL) e AM).
- O móvel de parede aludido em AN) tem o valor de 875€.
- O balcão referido em AO) tem o valor de 975€.
- O móvel aludido em AP) tem o valor de 190€.
- Foi o autor quem adquiriu, com dinheiro seu, os bens referidos em AN), AO), AP), AS), AT), AU), AV) e AX).
37/38. Os bens referidos em AY) têm o valor de 920€ e foram adquiridos exclusivamente com dinheiro do autor.
- …o mesmo sucedendo com os bens descritos em AZ), excepcionando o aparelho de música e o vídeo.
39-A. A mobília referida em AAC) é composta, ainda, de duas mesinhas de cabeceira, um guarda-fatos, uma cómoda, uma arca, uma cadeira que, juntamente com os demais elementos referidos em AAC), totalizam 1300€.
- Foi o autor quem adquiriu, com dinheiro seu, os bens referidos em AAC), 39 e AAD).
- A garrafeira a que se alude em AAF) tem o valor global de 100€.
- Os bens descritos em AAH) foram pagos, exclusivamente, com dinheiro do autor.
45..… e o veículo aludido em AAI).
- O autor transmitiu gratuitamente à filha da ré, por mera liberalidade, o computador e a secretária aludidos em AAC) e AAD).
- O autor ofereceu à ré como presente de aniversário a máquina de costura eléctrica referida em AAE).
*
Das razões da sentença
A sentença recorrida, que adere ao ac. do STJ de 20/03/2014, 2152/09.5TBBRG.G1.S1, depois de referir, com recurso a ele, que “os pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa – art. 473 do CC – são a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a falta de causa justificativa para ele”, considera que nenhum deles se verifica no caso.
Da (in)existência de um enriquecimento da ré à custa do autor
Quanto a estes dois pressupostos, a sentença recorrida transcreve a posição assumida por aquele ac. do STJ, que diz que:
“porque a união de facto é uma forma de estar em famí-lia que em si mesma implica o contributo de cada um dos seus elementos, deve entender-se que tudo o que sejam as despesas normais e correntes próprias de quem vive, embora “informalmente”, a plena comunhão de vida de que fala o art. 1577 do CC, não é repetível, finda a relação, mediante a aplicação do regime do art. 476 do CC; e isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve. Isto significa que as despesas pagas”, quase exclusivamente, “pelo autor” com o sustento do agregado familiar, “não são restituíveis, não devendo relativamente a elas equacionar-se, logicamente, a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.”
E depois, continuando a transcrever o acórdão, diz que “É certo que resultou ainda provado que o autor pagou integralmente com o seu dinheiro” a casa, as obras e melhoramentos no prédio, a quase totalidade do recheio e o automóvel, mas, ainda com recurso a transcrições daquele ac. do STJ, diz:
“Aplicam-se a estes pagamentos, com as necessárias adaptações e sem prejuízo do que segue, as precedentes considerações. Assim, e em primeiro lugar, tem de levar-se em conta que também o autor, e não apenas a ré, residiu no imóvel enquanto a união de facto subsistiu; este facto há-de ser necessariamente “contabilizado”, se assim nos podemos exprimir, quando está em questão apurar a existência e a medida de um alegado enriquecimento, no sentido acima exposto.”
Ao que acresce – sempre seguindo o ac. do STJ – que:
“nos cerca de onze anos consecutivos em que a união de facto perdurou, a ré cuidou das lides domésticas, exclusivamente ou em acumulação com o trabalho remunerado que se deu como provado; ora o autor teria poupado o montante equivalente a essa contribuição, que podia ser calculada tomando por base um horário de três horas diárias em seis dias por semana e fazendo uso do seguinte facto “do conhecimento geral, e nessa exacta medida dispensado de alegação e de prova (art. 514 CPC): no contrato de serviço doméstico no nosso país a remuneração da hora de trabalho oscila actualmente entre os 5 e os 7€”.
A sentença chama, de seguida, a atenção, citando França Pitão, para que muitas vezes,
“os bens serão adquiridos apenas em nome de um deles, sendo certo que ambos contribuíram para a sua aquisição, ou através de participação directa no pagamento do preço, ou pelo menos com a contribuição prestada ao casal através do seu trabalho doméstico, naqueles casos em que não tenha uma profissão remunerada fora do lar” (Uniões de Facto e Economia Comum, 3ª ed., Almedina 2011, pag. 158).
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Análise dessas razões
Vendo bem esta fundamentação, constata-se o seguinte: a primeira parte da mesma afinal não diz respeito aos dois primeiros pressupostos, mas ao terceiro (falta de causa justificativa).
Para além disso, essa parte tem razão de ser apenas relativamente às despesas que se vão fazendo durante a vivência conjunta e não com os bens que, finda esta, subsistem. E quanto àquelas despesas há que recordar, como diz o autor no recurso, que ele, concordando com essa fundamentação, não pediu, na acção, a restituição do valor das mesmas, pelo que não valia a pena perder tempo com elas.
Quanto à parte restante da fundamentação, que tem a ver com os bens que subsistiram finda a convivência, diz-se nela que valem quanto a estes bens aquelas considerações sobre as despesas, mas não se demonstra a afirmação e, por outro lado, o que se diz a seguir não tem a ver com a lógica daquelas considerações mas sim com a contabilização das vantagens retiradas pelo empobrecido e das contribuições do outro companheiro de facto, no caso a ré, para os bens que subsistiram, pressupondo-se, pois, o enriquecimento, embora se diga que ele não existe.
Em suma, a fundamentação da sentença recorrida e do acórdão de que se serve não convence. Aliás, o referido acórdão do STJ vai contra toda a doutrina e jurisprudência anterior que têm vindo a reconhecer aos companheiros de facto a possibilidade de exigirem o enriquecimento de que o outro beneficiou em seu detrimento finda a convivência entre ambos. O que é demonstrado na anotação crítica ao mesmo acórdão do STJ feita por Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, publicada, tal como o acórdão, na RLJ 145/3995, págs. 109 e segs, tal como já resultaria da anotação de Cristina M. A. Dias ao ac. do TRG de 29/09/2004, processo 1289/04, publicado nos Cadernos de Direito Privado, n.º 11, Jul/Set2005, págs. 63 e segs.
Da jurisprudência em sentido contrário
O autor, nas alegações de recurso e já antes na petição inicial, tinha indicado alguma dessa jurisprudência (no sentido de negar a compropriedade dos bens e de legitimar o uso da acção de restituição do enriquecimento sem causa em situações similares – em que um dos companheiros fica com a casa e o outro é que a pagou no todo ou em parte [transcreve-se essa jurisprudência, sendo que o que consta em parenteses rectos foi colocado por este ac. do TRP]):
Ac. do STJ de 08/05/1997, publicado na CJSTJ97II, págs. 81/82
[(= 96B690 do IGFEJ, mas aqui só com sumário): I – Não se pode falar em compropriedade quando a mulher que vive em união de facto não interveio na escritura de compra e venda do imóvel, sendo este só adquirido pelo outro membro da união. II – Mas, verifica-se enriquecimento sem causa quando aquela aquisição ocorreu com proventos comuns dos dois, numa economia comum de facto. III – Para se saber a medida de empobrecimento e de enriquecimento dos viventes em união de facto há que determinar o quanto cada um deles contribuiu para a aquisição do imóvel.]
Ac. do TRL de 21/01/1999, CJ1999, tomo I, págs. 83 e segs
[= 0064512 do IGFEJ mas aqui só sumário): I – Tendo A e B acordado viver em união de facto, em economia comum, contribuindo ambos para tal com os rendimentos do seu trabalho, a importância paga por A a título de sinal e princípio de pagamento para compra de casa para ambos viverem, que veio a ser adquirida apenas por B, pressupôs por parte do A que o imóvel adquirido passaria a constituir património do agregado familiar, formado por A e B. II – Destruída a união familiar aquela importância paga por A foi a causa de deslocação patrimonial indirecta da empobrecida a favor do B, o enriquecido.]
Ac. [do STJ de 12/03/2002, 01A4373, que recaiu sobre um do] TRE de 05/07/2001, processo 962/01: “No que toca ao regime de bens entre os unidos de facto, dependerá da vontade deles regular o uso e fruição desses bens. Na falta de regulamentação voluntária, temos que sobre os patrimónios de cada um, o outro nada tem …).
Ac. do TRE de 10/04/2003, CJ, tomo II, págs. 242/244:“[…] a vantagem obtida pelo réu, tornando-se comproprietário de um bem que não pagou, integra, indubitavelmente, um aumento injustificado do seu património à custa do património da autora”, “…não podendo entender-se que o enriquecimento assim obtido encontre justificação na circunstância de autora e réu terem vivido em união de facto e economia comum…”
Ac. do TRP de 19/02/2004
[0325347 – diz-se, entre o mais, que “a alegada contribuição pecuniária do autor para a aquisição dos veículos e do imóvel que a ré veio a inscrever em seu nome no registo automóvel e predial, poderá fundamentar eventual pedido com base no enriquecimento sem causa ou numa situação de compropriedade. Não podem, porém, como pretende o autor, considerar-se aplicáveis as regras que regem as relações patrimoniais entre os cônjuges e, com base nelas, serem considerados comuns e proceder-se á partilha dos bens adquiridos por um ou ambos durante a vigência da união de facto.”]
Ac do TRL 03/07/2012
[4521/10.9TBOER.L1-1: “dúvidas não existem que in casu, aquando da “vigência” da união de facto estabelecida entre autor e ré, veio esta última a obter uma vantagem de carácter patrimonial [aumentando o seu activo patrimonial através da aquisição […] de uma fracção autónoma para habitação […], sendo que, para o efeito, e em parte, tal só lhe foi possível à custa do património do autor, pois que foi este último que suportou o dispêndio de uma quantia total de x relacionada com a aquisição do imóvel. Manifestamente, portanto, descortina-se ter ocorrido uma deslocação patrimonial (do autor para a ré) que proporcionou o enriquecimento do património da ré em detrimento do património do autor. Do mesmo modo, inquestionável se nos afigura outrossim que a supra identificada deslocação patrimonial, a partir do momento em que cessou a “união de facto”, deixou de assentar em causa “ jurídica justificativa“, pois que o incremento consciente (pelo autor) do património da ré baseou-se seguramente em “pressuposto” (a união de facto) que posteriormente desapareceu/cessou (condictio ob causam finitam), não sem-do de resto de todo crível (em razão das regras “normais” da experiência) que a contribuição (com o seu dinheiro) do autor para a aquisição pela ré de um imóvel não tenha resultado da convicção do primeiro de que a união de facto se manteria.” [este acórdão tem um voto de vencido]]”
E ac. do STJ de 29/04/2014, proc. 1071/10.7TBABT.E1.S1: (embora a propósito da cessação de um casamento em regime imperativo de separação de bens que o autor entende em tudo idêntico a uma situação de união de facto), explica que “… num casamento celebrado em regime da separação, tendo um dos cônjuges contribuído com dinheiro para a edificação, em terreno que constitui bem próprio do outro cônjuge, deve tal deslocação patrimonial injustificada ser reparada em função do regime do enriquecimento sem causa, definido no art. 473 e segs. do CC…”.
No mesmo sentido, Rita Lobo Xavier lembra:
O ac. do TRC de 05/03/1998 – CJ98, tomo II, págs. 190 e segs:
Há enriquecimento sem causa justificativa se, fazendo autor e ré vida em comum como se casados fossem e tendo decidido comprar um apartamento para sua habitação, de que ficariam donos em partes iguais, a ré recebeu para o efeito, do autor, a parte que a este competia pagar mas adquiriu o apartamento só para si.
E Cristina M. A. Dias lembra ainda:
O ac. do STJ de 15/11/1995, BMJ. 451, págs. 387/394 (= proc. 087127):
I – A contribuição pecuniária de cada um dos membros da “união de facto” para a aquisição de bens de que um deles veio a beneficiar inscrevendo-a em seu nome no registo predial, deve ser avaliada à luz das regras do enriquecimento sem causa, na ausência de contrato determinante da transferência patrimonial. II – O enriquecimento deve corresponder à diferença, calculada equitativamente, entre a situação real e actual do beneficiado confrontada com a situação hipotética em que ele se encontraria se não tivesse ocorrido a participação do empobrecido. III – O momento relevante para o início da prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa surge quando cessa a união de facto e, por via disso, a fruição em comum dos bens adquiridos com participação de ambos os membros.
O ac. do STJ de 09/03/2004, CJSTJ2004, 1, pág. 112, ou 04B111 na base de dados do IGFEJ, com o seguinte sumário:
Cessada a união de facto, a liquidação do património comum (adquirido pelo esforço comum) pode fazer-se – verificados os respectivos pressupostos – ou de acordo com os princípios das sociedades de facto, ou com invocação do instituto do enriquecimento sem causa – mas neste caso considerou-se que não havia qualquer património comum e por isso a acção improcedeu na primeira instância, que o ac. do STJ repristinou.
Isto para além do ac. do TRG de 29/09/2004, processo 1289/04, por ela anotado.
Neste acórdão podem lembrar-se ainda os seguintes:
Ac. do STJ de 01/07/1993, proc. 083655 (só sumário, com indicação de um voto de vencido)
II – Os bens adquiridos pelo casal durante a vigência da união de facto podem ser próprios ou comuns, consoante tiverem sido adquiridos só por um ou por ambos os partícipes na união, cumprindo àquele em cujo património se radicou um bem imóvel ressarcir o outro na medida do seu contributo para a aquisição do mesmo bem. III – As quantias despendidas por cada um dos partícipes com gastos normais e correntes de manutenção da vida em comum não são restituíveis, finda que seja a união de facto.
O ac. do TRC de 11/05/2004 (712/04):
- Pagando com o seu dinheiro metade do preço da casa onde a autora vivia com o réu e os respectivos actos notariais e de registo, agindo na convicção de que a união de facto entre ambos se manteria e de que, assim, contribuía para a formação de um património comum, ocorreu uma causa de deslocação patrimonial constitutiva do pressuposto do enriquecimento sem causa. 2. O enriquecimento é injusto, não apresentando causa justificativa, quando não está de harmonia com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, em virtude de determinado valor se achar no património do beneficiado, quando o seu lugar era no património do prejudicado. 3. A ruptura da união de facto, motivada por vontade unilateral de um dos seus membros, que expulsando o outro, continua a viver, sozinho, no apartamento, após aquele, com vista a adquirir a sua co-titularidade para servir como casa de morada de família de ambos, lhe ter entregado dinheiro para pagar metade do preço da compra e respectivas despesas de escritura e registo, determinou o desaparecimento subsequente da causa da deslocação patrimonial, constituindo um caso especial da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa. […]
Ac. do TRL 14/04/2005, CJ2005, 2, pág. 92/95:
I – O conceito legal de enriquecimento sem causa deve ser interpretado como a vantagem patrimonial (reservada ao titular do direito segundo o conteúdo da destinação desse direito), obtida com meios ou instrumentos pertencentes a outrem. II – Tendo o autor contribuído com dinheiro seu, durante 22 anos, para a compra do imóvel que apenas foi adquirido pela ré, pressupôs que a união de facto se manteria (até porque da mesma existe um filho), integrando assim a fracção […] o património do agregado familiar. III – Da ruptura dessa relação resulta uma vantagem patrimonial da ré, obtida com instrumentos do autor, assumindo tutela no âmbito do enriquecimento sem causa”. Diz-se no texto do acórdão: A causa justificativa da deslocação patrimonial do autor para a ré “materializada no valor do imóvel cuja compra foi projectada e decidida em comum” deixou de subsistir com a ruptura dessa relação.
Ac. do TRL de 14/11/2006, proc. 8533/2006-7
I – Na união de facto não há património comum do casal. II – Por isso, os bens adquiridos, durante a união de facto, ficam sujeitos ao regime geral da compropriedade ou da propriedade singular sendo esta última situação a que se verifica com veículo automóvel cuja propriedade se mostra registada em nome da companheira. III – Para efeito de determinação do enriquecimento do proprietário do bem à custa do companheiro, que importa para se determinar a medida da obrigação de restituir, deve atender-se ao valor de uso do veículo à data em que ocorreu a separação (arts 479 e 480/b do CC); tal valor de uso, na falta de critério legal e por ausência de objectividade, não deve corresponder a metade da quantia até então despendida com o veículo, mas à quantia correspondente à proporção da contribuição efectuada por cada uma das partes até àquela data (tendo sido pago um total de 10.729,94€ e pagos pelo autor desse total 7481,97€, a parte proporcional do autor é de 69,72% e, por conseguinte, o valor de uso fixa-se em 5216€).
O ac. do STJ de 09/03/2010, 680/09.1YFLSB:
- I) O instituto do enriquecimento sem causa visa evitar que alguém avantaje o seu património à custa de outrem, sem motivo que o justifique, sendo que, a relação entre o enriquecimento e o correspectivo empobrecimento, tem de assentar em vantagens exclusivamente de carácter patrimonial, que não em relações espirituais, morais, ou afectivas. II) Tendo o autor, durante o seu processo de divórcio e na vigência de união de facto com a ré, concordado que, em nome desta seria contraído um empréstimo para aquisição e remodelação de um imóvel onde iriam viver, assumindo o autor o compromisso de satisfazer todos os encargos com esse negócio, com a condição de findo o divórcio, a ré transferir para ele a propriedade do imóvel – que entretanto foi registado em nome dela – existe enriquecimento sem causa, por parte da ré, quando, cessada a união de facto e decretado o divórcio do autor, a ré, que em termos materiais nada contribuiu para a aquisição do imóvel nem comparticipou nas despesas que tiveram de ser feitas, se recusa a honrar o compromisso assumido, porque, entretanto, ocorreu ruptura na união de facto. III) O enriquecimento implica vantagem material, excluindo-se do conceito legal, quaisquer vantagens que não tenham essa natureza, pelo que a ré não pode contrapor com vantagens de índole não patrimonial proporcionadas ao autor, alegando o seu contributo pessoal para a união de facto e a expectativa de uma relação duradoura, para daí afirmar que existe relação entre o enriquecimento e o empobrecimento. IV) O autor, ao pretender que a ré restitua as quantias por si exclusivamente despendidas com a aquisição e realização de obras no imóvel, face à violação do compromisso assumido pela ré, não actua com abuso do direito ao desconsiderar qualquer “compensação” dada pela ré “pelo contributo para a vida quotidiana da economia conjunta de ambos”. V) -Se se tivesse provado que o autor, de alguma forma, tinha incutido na ré, com a sua actuação, que não pretendia reaver aquilo que despendeu e que agora, quiçá pela desavença amorosa, retaliava com a exigência da transferência da propriedade, aí haveria violação da regra da boa-fé e do princípio da confiança a evidenciar claro venire contra factum proprium.
O ac. do STJ de 13/04/2010 de 6025/05.2TBSXL.L1.S1:
I – Considerando que o património do réu se enriqueceu através do empobrecimento do património da autora, traduzido na deslocação de bens deste para aquele, bens esses destinados a ser aplicados na construção da casa de morada de família, a qual foi objecto de registo, em momento posterior ao divórcio de ambos, na exclusiva titularidade do réu, o que constitui causa de restituição do enriquecimento por aquele último obtido através das atribuições patrimoniais efectuadas pela autora, situação esta enquadrável na denominada condictio ob causam finitam (art. 473 do CC), cumpre determinar o valor em que deve ser computado o enriquecimento sem causa obtido pelo réu (art. 479/1 do CC). II – Provado que, quer a autora, quer o réu, efectuaram poupanças de valor global não superior a 500.000$, resultantes dos rendimentos mensais do respectivo trabalho, que aplicaram no pagamento do preço do lote de terreno onde foi edificada a casa de morada de família; que, entre 1990 e 1995, a autora enviou ao réu, de Itália onde se encontrava a trabalhar, a quantia de 5.366.000$, destinada ao pagamento do preço do aludido lote de terreno e da futura construção da referida habitação; que, durante a vida em comum da autora e do réu, que decorreu entre 1985 e 1990, ano em que aquela foi trabalhar para Itália, e entre 1995, data do seu regresso definitivo, e 1996, impendeu sobre a autora a realização das tarefas domésticas, actividade que redunda numa manifesta poupança relativamente às despesas que necessariamente teriam de ser efectuadas pelo casal; que o réu, exercendo a profissão de pedreiro, procedeu à edificação da habitação em causa (ignorando-se se só, se com a ajuda de outros colegas da mesma arte) e sendo do conhecimento público que a mão-de-obra aplicada em qualquer construção constitui um dos factores que maioritariamente onera o preço final da mesma, cumpre concluir que a contribuição patrimonial do réu para a edificação da casa de morada de família sobreleva a prestada pela autora para o mesmo fim, mostrando-se equilibrada, por equitativa, a quantificação do enriquecimento do réu e do consequente empobrecimento da autora em um terço do valor actual do imóvel.
[o casal tinha vivido em união de facto de 1985 a 1992. Considerou-se a contribuição da autora, quer através de dinheiro seu, quer através do seu trabalho doméstico (valorado pecuniariamente) para a compra do imóvel que foi depois registado unicamente pelo réu. Note-se que as tarefas domésticas da autora, valoradas para o efeito, foram quer as realizadas durante a união de facto quer durante o casamento. O fundamento é que “o exercício de tal actividade redunda, inquestionavelmente, numa manifesta poupança relativamente às despesas que necessariamente teriam de ser efectuadas pelo casal.”]
O ac. do STJ de 31/05/2011, proc. 122/09.2TBVFC-A.L1.S1:
Reitera-se o entendimento segundo o qual, face ao disposto no art. 482 do CC, o momento relevante para o início do prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa surge quando cessa a união de facto e, por via disso, cessa a fruição em comum dos bens adquiridos durante a união de facto com a participação de ambos os membros da união.
O ac. do STJ de 13/09/2011 – 2903/05.7TBCSC.L1.S1:
Trata-se de uma acção declarativa proposta pela companheira de facto contra os herdeiros do seu ex-companheiro, pedindo que seja declarada comproprietária da casa, adquirida pelos dois, mas de cuja escritura só consta o falecido, tal como é só em nome deste que está registada a casa. A autora alega que no contexto da economia comum que partilhava com o de cujus suportou metade do valor das prestações bancárias emergentes do empréstimo contraído para aquisição do citado imóvel. Uma das filhas impugna e reconvenciona reivindicando a casa. A acção improcede e a reconvenção procede. O TRL e o STJ confirmam. No ac. do TRL diz-se: A tutela do direito da apelante relativamente à sua comparticipação na aquisição do imóvel deverá ser feita no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, demonstrados os respectivos pressupostos, se nada tiver sido convencionado entre as partes. E o ac. do STJ diz: a procedência da reconvenção, nos termos em que foi decretada, não parece constituir impedimento a que a autora futuramente exija da herança do seu falecido companheiro, com base no instituto do enriquecimento sem causa, as importâncias correspondentes, pelo menos, à parte que pagou do preço da fracção (adquirida, segundo se provou, por decisão de ambos, e sua casa de morada de família até ao falecimento do companheiro).
Ac. do STJ de 27/09/2011 – 3149/06.2TBCSC.L1.S1:
O autor pede, com base no enriquecimento sem causa, o valor de uma casa comprada por ele mas registada em nome da sua ex-companheira; esta, depois da cessação da união de facto só lhe tinha entregado metade daquilo que achou que seria o valor da casa; para o caso da procedência da acção, a ré reconvém pedindo metade das despesas da vida em comum e que foi só ela a suportar; a acção acaba por ser julgada procedente e a reconvenção improcedente (tem na sua base o ac. do TRL de 18/01/2011 – 3149/06.2TBCSC.L1-7. Na 1ª instância, o autor tinha sido condenado – na prática – a pagar à ré metade das despesas comuns.
Ac. do TRL de 15/11/2011, 2880/05.4TBMTJ.L1-7:
I – Não se tendo seguido o processo de liquidação judicial de património da sociedade de facto, há que atender às regras do enriquecimento sem causa. II – Este pressupõe que haja um enriquecimento, que o mesmo careça de causa justificativa e que tenha sido obtido à custa de quem requereu a restituição. III – Cabe àquele que pretende beneficiar do instituto do enriquecimento sem causa a prova dos factos, positivos ou negativos, que integram tal instituto. IV – No caso, a restituição não representa um venire contra factum proprium, já que não se provou que a ré tenha sido induzida em legítima expectativa de confiar que jamais o autor lhe exigiria a restituição. V – Assim, a ré tem a obrigação de restituir ao autor o montante de 50.000€ e, ainda, os respectivos juros legais, a contar da data em que ela teve conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento, ou seja, 15/01/2004 (arts. 479 e 480 do CC).
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Da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa
Finda a convivência de 11 anos entre eles, a ré ficou, grosso modo, com uma casa de 125m2 registada em seu nome (e com a posse da mesma) e o autor ficou sem nada. No entanto, foi ele unicamente quem pagou tudo o necessário à construção daquela casa com o rendimento do seu trabalho.
Ora, tendo sido o autor a pagar tudo o necessário à construção da mesma, a casa devia ser dele. E se não é dele, mas da ré, e não há nenhuma razão para ser da ré, estão verificados os três pressupostos do enriquecimento sem causa exigidos pelo art. 473 do CC.
E quanto a esta casa não vale a ideia de que é uma contribuição para as despesas inerentes à convivência entre o autor e a ré precisamente porque a casa subsiste depois dessa convivência e vai continuar a poder ser usada e fruída por ela.
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Da (falta de) causa justificativa para o enriquecimento
Mas, continuando a transcrição do ac. do STJ de 20/03/2015, diz-se a seguir na sentença:
“Contudo, mesmo que se entenda estar demonstrada a existência dum enriquecimento da ré e do correspondente empobrecimento do autor, terá sempre de se concluir pela não verificação do pressuposto fundamental deste instituto, que é a ausência de causa justificativa do enriquecimento. Na verdade, e como resulta de tudo quanto se disse, a cessação da união de facto não preenche, por si só, o requisito em questão: é preciso que o autor da acção de enriquecimento prove que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência, querida por ambos os unidos de facto, da vida do casal em condições análogas às dos cônjuges. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm defendido uniformemente que na acção de enriquecimento cabe ao autor o ónus da prova da falta de causa da prestação efectuada, não bastando que no final do processo não resulte provada qualquer causa (cfr. os acórdãos do STJ de 02/02/2010, 17/10/2006 e 02/05/2012, todos acessíveis em http://www.dgsi.pt, nos processos 1761/06.97PRT.S1, 06A2741 e 6814/03.2TBCSC.L1.S1, os dois últimos desta conferência).”
Bem como (em síntese):
“estando provado que autor e ré viveram em união de facto ininterruptamente até ao momento em que a ré abandonou a habitação que partilhavam, tendo todas as despesas do autor sido no âmbito dessa relação de união de facto com a ré impõe-se considerar que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido: essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve [ou seja, foi-se buscar, de novo, a transcrição do ac. do STJ sublinhada acima].
E ainda:
“E assim, impõe-se a conclusão de que o autor não logrou provar, positivamente, a falta de causa das prestações.”
E depois a sentença segue, desta vez com a transcrição do ac. do TRL de 18/12/2012, proc. 8762/08.0TBCSC.L1-7:
“Cessada a união de facto […], tais despesas, necessárias e inerentes à convivência típica de um envolvimento familiar e íntimo, não são exigíveis em termos da sua repetição.
Tal como acontece no âmbito das obrigações naturais – art. 403/1 do CC – […] também aqui as despesas realizadas no desenrolar da vida de casal, e que constituem a base económica imprescindível para a sua concreta subsistência, não são exigíveis da parte de quem as (livre e voluntariamente) realizou.
No mesmo sentido, tal pretensão não pode ancorar-se no instituto do enriquecimento sem causa, previsto no art. 473 do CC, uma vez que lhe falha, desde logo, um dos seus requisitos essenciais: a inexistência de causa para a deslocação patrimonial invocada.
Com efeito, no âmbito de uma vivência em comum, em moldes familiares, as despesas livre e espontaneamente realizadas entre os membros dessa união têm uma causa justificativa: a própria subsistência do relacionamento, análogo ao dos cônjuges, que é desejado e querido por parte de quem presta e de quem beneficia dos actos de deslocação patrimonial.
Tais gastos foram efectuados espontaneamente, em estreita conformidade com a natureza da comunhão de interesses e afectos que liga quem os concede e quem os recebe, enquadrando-se numa multiplicidade de actos e compensações, insusceptíveis de determinar, muitos anos após, qualquer formal e discriminado sistema de deve e haver.”
Só que este acórdão do TRL conduz precisamente ao resultado contrário da sentença recorrida.
Veja-se: no caso deste acórdão uma companheira tinha sido condenada pelo facto de ter desrespeitado o compromisso conscientemente assumido perante o seu então companheiro de transferir para ele o direito de propriedade do imóvel que adquiria (formalmente) em seu nome.
Ou seja, foi dado como provado que o companheiro cumpriu aquilo que acordou, custeando todas as despesas com o empréstimo bancário, compra e manutenção (obras) da casa.
Não obstante este acordo, aquela companheira, ciente de toda a particular situação que envolvia a aquisição do imóvel, finda a relação amorosa recusou-se a transferir a propriedade do imóvel para o companheiro assenhorando-se da fracção, mudando inclusive a respectiva fechadura e impedindo o respectivo acesso ao seu ex-companheiro (que a havia custeado integralmente).
Foram estes os factos que estiveram na base da condenação daquela companheira, conforme resulta do seguinte trecho do aresto do ac. do STJ de 09/03/2010 [já transcrito acima]: “a ré sabe que violou um acordo e que essa violação é a causa directa do seu enriquecimento e do empobrecimento do autor – do património deste não fará parte a casa – e, por sua vez, a ré, sem nada ter despendido, ficou proprietária de um imóvel, repete-se, apenas e tão só porque não honrou o acordo que estabeleceu com o autor, não se podendo falar em contitularidade do imóvel por via do estatuto da união de facto. Não há, assim, uma causa para a deslocação de um bem que deveria ser património do autor para o património da ré. A ré deve, pois, restituir aquilo que obteve à custa do autor.”
Ora, esta companheira, depois desta condenação, intentou a acção que deu origem ao ac. do TRL, em que exigia a atribuição de uma compensação pelos gastos pretensamente suportados no desenrolar da vivência em comum que manteve com o companheiro, durante alguns anos. Trata-se de despesas de alimentação, tratamento de roupa e alojamento (ao réu e ao seu filho) na habitação que era utilizada pelo casal.
E foi quanto a estas despesas – gastos suportados no desenrolar da vivência em comum – e apenas quanto a elas que o ac. do TRL proferiu o acórdão com o sumário transcrito acima pela sentença recorrida.
Ou seja, neste caso a situação final foi que a companheira foi con-denada a restituir o valor da casa ao companheiro, sendo-lhe negado o direito às despesas que suportou durante a convivência em comum.
Posto isto, vê-se que, nesta parte, a sentença recorrida limita-se a repetir o argumento da irrepetibilidade das despesas tidas durante a convivência em comum, o que não tem qualquer relevo para a questão dos bens que subsistem depois da cessação da convivência.
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Em que é que consiste a falta de causa – da pressuposição…
A tese do STJ não era, no entanto, esta, mas sim que o terceiro pressuposto – a ausência de causa justificativa do enriquecimento – não se preenche com a simples cessação da união de facto: seria preciso que se provasse que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência, querida por ambos os unidos de facto, da vida do casal em condições análogas às dos cônjuges.
No entanto, o que normalmente se tem entendido nos casos jurisprudenciais supra citados é que tendo os pagamentos sido feitos no âmbito de uma união de facto, quando esta deixa de existir, deixa de haver a causa que os justificava (assim, apenas por exemplo, nos acs. do STJ de 15/11/1995, do STJ de 08/05/1997, do TRC de 05/03/1998, do TRL de 21/01/1999, do TRG de 29/09/2004 – a que Cristina M. A. Dias adere na nota 52 da sua anotação: “mesmo que se entenda que a união de facto, e um eventual princípio de colaboração entre os conviventes, possa ser a causa da transferência patrimonial, tal causa cessará sempre no momento da dissolução desta, como, aliás, referiu o TRG” -, do TRL de 14/11/2006 e do TRL de 03/07/2012), falando-se na pressuposição da manutenção vida em comum, mesmo sem haver factos expressamente dados como provados nesse sentido – trata-se de uma conclusão que se extrai do facto de os pagamentos terem sido feitos durante a vida em comum (como se pode ver na formulação dos acs. do TRL de 1999 e 2012).
Neste mesmo sentido, diz F.M.B. Pereira Coelho, págs. 120, 122 e 123 daquela anotação:
[…] é nosso juízo que, nesta hipótese específica de pagamentos realizados no âmbito de uma relação convivencial, do conjunto de factos em presença, e do significado normal desses pagamentos em relações “convivenciais” deste tipo, se pode tirar uma presunção natural de que não houve, por parte do autor, qualquer propósito de operar uma transferência de valor definitiva para a ré, fosse a que título fosse.
[…] na realidade, […] o que é normal, quando um dos companheiros toma, logo no início da sua união, a iniciativa de comprar um apartamento e pagar o respectivo preço – apartamento destinado, justamente, a servir de casa de morada comum -, ficando todavia esse apartamento por qualquer razão em nome da companheira, o que é normal, dizíamos, não é certamente que aquele pretenda realizar uma doação em favor desta, ou uma espécie de doação remuneratória pelos encargos que esta virá a suportar durante uma relação que só agora se inicia e cuja duração, por conseguinte, para já é insusceptível de previsão exacta. O que é normal, bem pelo contrário, é que, insistimos, o companheiro queira, para já, apenas adquirir a casa que vai servir de morada comum; e, procedendo ele ao pagamento do respectivo preço, que pretenda assumir definitivamente a respectiva propriedade, ou pelo menos que pretenda ser compensado ou restituído pelo preço que pagou em vão, se e quando sobrevier a necessidade de, em resultado de uma eventual ruptura, se realizar uma liquidação e “partilha” dos bens do “casal”. Se o imóvel ficou agora em nome da companheira, isso dever-se-á a qualquer circunstância pontual […]; e será, em qualquer caso, um pormenor a que os companheiros no momento não atribuirão grande significado, dada a relação de informalidade, “despreocupação” e plena confiança que entre eles se estabeleceu. Concluímos pois que, em lugar de valer aqui uma presunção de doação como a que o presente aresto afirma ou pressupõe, o específico quadro de circunstâncias (uma relação convivencial análoga à relação interconjugal) aqui em presença aponta, pelo contrário, para uma presunção (natural) de “não definitividade” da atribuição (indirectamente) realizada pelo autor em favor da ré – uma presunção (natural) de condicionamento, no sentido em que a dita atribuição é querida como condicionada à própria subsistência da relação convivencial de união de facto (52), pelo que julgamos estar aqui provada a “pressuposição” cuja prova o acórdão, pelo contrario, entendeu não haver sido feita pelo autor.”
E acrescenta em nota: (52) Ainda que essa condição não seja explicitada – está pois aqui em causa o conceito de “base negocial”
No mesmo sentido diz o autor:
“Como diz Antunes Varela na obra atrás citada, a causa justificativa do enriquecimento constitui “… um dos conceitos mais controvertidos entre os autores e dos mais difíceis de precisar, pela extrema variedade das situações a que tem de aplicar-se. A lei civil não o definiu, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, com meros subsídios, auxiliarem a sua formulação pela doutrina e pela jurisprudência”. Segundo este mestre “…o enriquecimento é injusto porque, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro. E esta é a directriz que importa seguir em todos os casos, para saber se o enriquecimento criado por determinados factos assenta ou não numa causa justificativa. Trata-se de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correta ordenação à luz do Direito vigente. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.».
Ora, com atrás se disse, da matéria alegada pelo autor resulta claramente que os sobreditos «investimentos» por ele efectuados tiveram como propósito último a construção de uma moradia e a feitura de vários melhoramentos para poder utilizar e usufruir enquanto fosse vivo e como seu verdadeiro dono. E o mesmo se diga da aquisição dos vários móveis e do veículo automóvel que registou em nome da ré. A bem ou a mal, o mesmo acreditou que a união iria durar eternamente e que funcionava como um casamento (e é isso que normalmente pensam as pessoas em idênticas circunstâncias) e que ao gastar dinheiro num prédio que era da ré, estava a investir numa coisa que também passava a ser dele e que, como tal, poderia usufruir ad eternum.
Na verdade, malgrado a Srª juiz que proferiu aquele despacho saneador não tenha considerado importante para a correta decisão do pleito alguma factualidade articulada pelo autor (a que se atrás se fez referência) e que agora o Sr. juiz que proferiu a decisão tudo indica que consideraria importante (é o mal do julgamento ter sido feito por pessoa diversa), o certo é que dos factos dados como provados e da forma como o autor apresentou e orientou a sua pretensão ao longo de todo o processado, se retira inequivocamente que o mesmo não desembolsaria qualquer quantia sabendo ou simplesmente pressentindo que, mais tarde ou mais cedo, poderia ficar sem nada.
E ao invés, também ninguém de normal entendimento e diligência, como é o caso da ré, ficaria convencido de que aquele comportamento do autor poderia criar a confiança de que ele não iria no futuro, em caso da cessação da união, pedir-lhe a restituição do que pagou.
Ademais, estando nós no domínio do enriquecimento por prestação, ou seja numa situação em que, no entendimento de Meneses Leitão (in Direito das Obrigações «está em causa um incremento consciente e finalisticamente orientado do património alheio» e em que é manifesto ter ocorrido uma deslocação patrimonial que proporcionou o enriquecimento do património da ré em detrimento do património do autor, inquestionável é também a conclusão de que, a partir do momento em que cessou a união de facto, tal deslocação patrimonial deixou de assentar em causa «jurídica justificativa», pois que o incremento consciente (pelo autor) do património da ré baseou-se seguramente no pressuposto de que a união de facto se manteria e que entretanto veio a desaparecer/cessar, ainda para mais, por motivos alheios à sua vontade (veja-se no mesmo sentido, de entre outros, o ac. do STJ de 27/09/2011, proc. 3149/06.2TBCSC.L1.S1, […] o ac. do TRL de 03/07/2012 […] e o ac. do TRP de 17/12/2014, proc. 8184/11.6TBMAI.P1, que, a propósito da cessação de um casamento em regime imperativo de separação de bens (no entender do autor em tudo idêntica a uma situação de união de facto) ensina que «… o pagamento de obras feito por um dos cônjuges (casado sob o regime imperativo de separação de bens) em casa que que já era então compropriedade do outro cônjuge e dos filhos deste e que funcionava como casa de morada de família daqueles, gerou enriquecimento do património destes (cônjuge demandada e seus filhos» e teve causa justificativa na pendência do matrimónio e no facto do imóvel ser a morada de família; tal causa justificativa desapareceu, no entanto com a propositura de acção de divórcio pela aqui ré e subsequente dissolução do casamento (no caso sub judice, dissolução da união) com o autor, por divórcio» … ).
[…]
Acrescentando-se ao que vem sido dito que não se compreende muito bem que aquele Sr. juiz tenha, neste caso concreto, considerado a subsistência da união de facto como causa justificativa das despesas normais e correntes suportadas pelo autor e ao invés, já não considere que a cessação dessa união, implique também o fim dessa causa justificativa para efeitos de restituição ao autor de tudo aquilo que ele gastou em função dela, em obras, melhoramentos e móveis que, para além de nada terem a ver com os encargos normais de uma família, passaram a ser propriedade exclusiva da ré que, sem que neles tenha despendido qualquer montante, os poderá, no entanto, alienar livremente e em seu único proveito. Retirando-se, de tudo quanto acaba de ser dito, que o enriquecimento da ré para além de ser profundamente injusto, não tem causa justificativa, porquanto a correspondente deslocação patrimonial da esfera jurídica patrimonial do autor para idêntica esfera da ré não está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo nosso ordenamento jurídico o qual impõe que, desaparecida a causa de tal deslocação – no caso dos autos a cessação da vivência da união de facto entre o autor e a ré – passe a impender sobre esta última ao abrigo do disposto no artigo 473/22 do CC, a obrigação de restituir ao património do alegante tudo quanto deste tenha recebido.”
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Da necessidade da prova sobre estes factos
Diz de seguida o autor:
A presente acção foi intentada já em 08/09/2009, isto é, em data em que não só não havia sido proferido o ac. do STJ invocado pelo julgador desta demanda, como ainda se encontrava em vigor o CPC aprovado pelo Dec. Lei 44 129 de 28 de Dezembro de 1961.
Ora, com a reforma entretanto operada a este diploma em 1995/1996, a partir de Janeiro de 1997, deixou de poder sustentar-se que, na decisão da causa, o juiz continuava, como até então, limitado aos factos originariamente alegados pelas partes para vir a proferir uma decisão de mérito, isto é, aquela que assegurasse a justa composição do litígio e adequação da sentença à realidade extra processual.
Assim, em face do disposto no seu artigo 264 e sem que isso pudesse corresponder à diminuição do rigor da alegação, desde que a matéria alegada garantisse a identificação do tipo legal de que a parte pretendia valer-se, qualquer insuficiência, imperícia ou inexactidão podia e devia ser sanada no normal decurso da instância.
Findos os articulados, se o juiz entendesse que se estava perante uma imperfeição fáctica que, a manter-se, fosse susceptível de pôr em risco a pretensão deduzida, o caminho era o convite ao aperfeiçoamento feito nos termos do nº 3 do seu art. 508 e se aquele não o fizesse sempre ficaria então aberta a possibilidade de eventuais imprecisões ou insuficiências de alegação virem a ser colmatadas em face da prova produzida.
Sucede que, na situação aqui em análise, a Srª juiz que geriu o processo até à sua fase final não só não proferiu semelhante tipo de despacho, como até entendeu não levar à base instrutória determinados factos alegados pelo autor. Por outras palavras, a mesma decidiu que não só a petição inicial não pecava de qualquer incompletude como os factos levados a julgamento seriam, uma vez aí provados, mais que suficientes para o vencimento da pretensão do recorrente.
Sem embargo disso, convenhamos que entretanto, mais precisamente em 01/09/2013, entrou em vigor o novo CPC que, nos termos do nº 5 da Lei 41/2013, passou a ser aplicável à presente causa.
Na respectiva «exposição dos motivos» lê-se que «mantém-se e reforça-se o poder de direcção do processo pelo juiz e o princípio do inquisitório (de particular relevo … no activo suprimento da generalidade da falta dos pressupostos processuais)» e … «ainda em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, toda a actividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença …».
Acresce que se é verdade que de acordo com os seus artigos 664 e 264 o código revisto continha já a regra de que, para além dos factos oportunamente alegados pelas partes o juiz podia considerar na sua decisão os factos instrumentais (estes mesmo oficiosamente) e ainda os factos essenciais à procedência da acção que complementassem ou concretizassem os que foram tempestivamente alegados e resultassem da instrução e discussão da causa verificado o condicionalismo previsto na parte final do nº 3 do art. 264, a verdade é que no novo código, à parte apenas incumbe o ónus de alegar ao factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 5/2), passando a impender sobre o juiz o poder/dever de considerar não só esses, como todos aqueles que resultem da instrução da causa, quer sejam instrumentais, quer sejam complementares ou concretização dos alegados.
Dito de outra forma, este segundo código não só se encontra mais preocupado com a busca da verdade material e efectiva e com a justeza das decisões do que o estava o antecessor, como concede ao Juiz um poder muito mais interventivo e responsável no domínio do escrutínio dos factos tendentes a que o Direito consiga realmente atingir os seus fins, nomeadamente, o da garantia da igualdade das partes e da equidade na composição dos litígios.
Pelo que, malgrado se afigure ao autor, tal como se afigurou àquela 1ª juiz, que da conjugação dos factos dados efectivamente como provados, com a postura e orientação por ele manifestada nos seus articulados, resultaria o vencimento da sua pretensão, ao não entender assim, o julgador desta causa também poderia muito bem ter concretizado e completado os factos essenciais aduzidos pelo recorrente, tanto mais que para tal concretização seria bastante submeter a instrução aqueles factos instrumentais que, embora alegados, a sua colega julgou desnecessários para a procedência desta acção.
Ademais, mesmo que aquele senhor magistrado que decidiu este processo entendesse que a causa de pedir formulada pelo autor pecasse de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, em vez de julgar imediatamente a causa improcedente, deveria antes ter dirigido o convite ao recorrente para que este procedesse ao respectivo suprimento (nºs 4 e 5 do art. 590 do CPC vigente). Ao não o fazer cometeu pois uma nulidade processual que também aqui se argui e que ainda está em tempo de ser apreciada conforme, aliás foi o entendimento manifestado no ac. do TRP de 26/02/2015, proc. 5807/13.6TBMTS.P1, onde se refere que “…se a conclusão da insuficiência só for tirada pelo tribunal da relação, a relação deve, mesmo oficiosamente, fazer esse convite… porque caso contrário ocorreria uma nulidade processual (ou, noutra perspectiva, o acórdão seria nulo».
Dizendo de outro modo: se se considerasse, como a sentença recorrida considerou, seguindo o acórdão do STJ de 20/03/2014, que o autor teria de fazer prova de que fez os pagamentos em causa na pressuposição da manutenção para sempre da união de facto, então o juiz, ao proferir a sentença, apercebendo-se que esses factos não tinham sido objecto de prova, apesar de terem sido alegados (como o foram de facto), devia ter reaberto a audiência de julgamento para produzir prova sobre eles [arts. 602/2e) e 607/1 do CPC, que podem funcionar como equivalente ao regime do aditamento de quesitos no art. 651 do CPC antes da reforma de 2013].
É esta a solução que desde a reforma de 95/96 do CPC se vem defendendo e que não pode deixar de se considerar que continua a ser possível adoptar no novo regime: quando a falta de factos para a solução de direito na sentença derivava da falta de quesitação de factos alegados, o que se impunha era a reabertura da instrução para resposta a quesitos adicionais, quanto à parte que não fosse possível decidir desde logo (neste sentido, sem se referir, no entanto, à parte final, veja-se Paula Costa e Silva, no seu estudo sobre Saneamento e Condensação no Processo Civil, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, ed. Lex, 1997, pág. 252: “admite-se expressamente uma ampliação da base instrutória por iniciativa do tribunal do julgamento […] nada se dispôs quanto à possibilidade de ampliação por iniciativa do juiz da sentença […] não nos parece admissível a solução que permita ao juiz o proferimento de uma decisão idêntica àquela que ele proferirá quando as partes não cumpriram o ónus de prova. Deverá antes admitir-se que o juiz possa reabrir a instrução, ampliando a base instrutória de modo a que esta abranja os factos necessários ao enquadramento jurídico da causa”, com o aparente beneplácito de Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, Almedina, 1997, pág. 149, nota). Traduzir-se-ia tudo o resto numa decisão injusta, a provocar eventualmente, nos casos com possibilidade de recurso, todo um processado inútil (recurso para o T. da Relação que anularia a sentença e mandaria aditar um quesito – agora, e no caso, um tema de prova sobre o pressuposição com que foram feitos os pagamentos pelo autor – e proceder a julgamento para resposta ao quesito).
E este TRP, se achasse que tais factos tinham importância para a decisão da causa, teria de determinar que fosse produzida prova sobre eles, ao abrigo do art. 662/2c), parte final, do CPC [: “A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: […] Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando […] considere indispensável a ampliação d[a matéria de facto].”
O que o tribunal não pode fazer é dizer que o autor devia fazer prova de determinados factos e absolver a ré do pedido com o fundamento de que o autor não produziu essa prova, quando o autor alegou os factos e os mesmos não foram objecto de instrução por o tribunal não os ter considerado como objecto de prova.
Mas como se entende que não são necessários tais factos, não há que determinar essa produção de prova, sem prejuízo de, no caso de este acórdão ser revogado, por se entender que esses factos eram relevantes para a decisão da causa, se ter então de produzir prova sobre eles.
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Da (falta da) intenção de doar
A construção do acórdão do STJ de 20/03/2014, seguida pela sentença recorrida, acaba por conduzir à presunção da intenção de doar os pagamentos feitos, como aliás a sentença acaba por dizer expressamente:
“[A]quando do pagamento do projecto e da construção da casa o autor sabia perfeitamente que o prédio onde a moradia iria ser construída era num prédio da compropriedade da ré e do seu irmão e, no entanto, não se absteve de proceder ao pagamento das obras da construção da aludida moradia sem sequer ter exigido qualquer tipo de salvaguarda ou garantia perante a ré quanto aos gastos por si efectuados.
E o mesmo se diga quanto ao veículo automóvel comprado e registado exclusivamente em nome da ré, não deixando de transparecer nessas condutas do autor um animuns donandi tipíco da efectuação de despesas familiares ou em prol da família que são efectuadas por um dos membros da família apenas tendo como objectivo exclusivamente o bem-estar do agregado familiar e do casal, sem equacionar se dessa forma fica empobrecido e em contrapartida se a mulher com quem vive em condições análogas às dos cônjuges ou os filhos do casal ficam correspondentemente enriquecidos.
Sobretudo quando, como no presente caso, as despesas foram efectuadas numa altura em que ainda não se perspectivava a ruptura do casal.”
O autor contra isto diz:
“não se diga que ao dispor de mais de 100.000€ a favor da ré que o mesmo o fez a título de mera contribuição para a vida em comum e no âmbito do estrito cumprimento dos deveres morais de entreajuda e de partilha de recursos.
É que, para além de resultar claramente da factualidade e do teor da pretensão por si aduzida, que o mesmo sempre gastou tal dinheiro na firme convicção de que a união não teria fim e de que, por isso, também ele próprio iria gozar e beneficiar dos respectivos bens e objectos enquanto fosse vivo, ao invés, em nenhum momento do processo e da prova nele produzida, resulta demonstrado tão grande e lato espírito de liberalidade que igualmente não se presume.
Aliás, das próprias regras normais da experiência e do entendimento do homem médio se retira que não seria minimamente crível que um pobre e mero trabalhador da construção civil como é o apelante, gastasse alguns dos melhores anos da sua vida, na construção de uma casa e em vários melhoramentos e móveis sem ter praticamente a certeza de que todo esse património também seria seu.
E mais à frente:
“[…] entende-se que, só subvertendo a factualidade alegada pelo autor e o sentido para que aponta a dada como provada, é que se poderá chegar à conclusão de que ele suportou tão enormes dispêndios tão-somente tendo em vista a sua contribuição para a vida em comum com a ré e com um animus donandi típico da efectuação de despesas familiares ou em prol da família e apenas tendo como o objectivo o bem estar familiar e do casal e sem nunca pensar no seu próprio enriquecimento.”
O que é coincidente com a anotação de FMB Pereira Coelho, já acima citada e que aqui se repete parcialmente:
“[…] em lugar de valer aqui uma presunção de doação como a que o presente aresto afirma ou pressupõe, o específico quadro de circunstâncias (uma relação convivencial análoga à relação interconjugal) aqui em presença aponta, pelo contrário, para uma presunção (natural) de “não definitividade” da atribuição (indirectamente) realizada pelo autor em favor da ré – uma presunção (natural) de condicionamento, no sentido em que a dita atribuição é querida como condicionada à própria subsistência da relação convivencial de união de facto [ainda que essa condição não seja explicitada] […].”
*
Do património comum
Por último, a sentença ainda diz:
“The last but not the least, para que possa reaver a parte por si investida na medida do enriquecimento sem causa do outro, nos termos do art. 473 do CC, necessário será como salientam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora 2008, pág. 80) que o membro da união de facto que se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, prove que há um património comum resultante da união de facto, ao contrário do que acontece na união conjugal, em que, no regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimónio se consideram comuns independentemente de qualquer prova.
E a esse propósito, o autor não logrou provar que existisse qualquer património comum resultante da sua união de facto com a ré, apenas tendo o autor provado que na pendência da convivência em comum, o autor custeou a construção da moradia, as obras e melhoramentos efectuados no logradouro e quintal, e a aquisição dos móveis e electrodomésticos, inexistindo qualquer presunção de comunicabilidade de tais bens.”
Trata-se de um evidente equívoco da sentença.
Na passagem transcrita da obra de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, estes autores estão-se a referir ao património comum de facto e não de direito. Património comum, em termos jurídicos, não existe na união de facto, não há dúvida, ninguém o discute (pode haver compropriedade, mas não património comum). A liquidação que se está a discutir é a do património comum de facto não de direito. É isso que resulta do que aqueles autores antes tinham dito sobre o assunto e também do facto de eles remeterem para os casos dos acs. do STJ de 09/03/2004, CJ2004I, pág. 112 (que fala do património adquirido pelo esforço) do TRE de 10/04/2003, CJ2003II, pág. 242, e do TRL de 14/04/2005, CJ2005II, pág. 92.
Aliás, em grande parte dos casos nem existe património comum de facto. O que existe é um bem que é juridicamente de um dos conviventes mas cujo pagamento foi suportado na prática pelo outro.
Ou seja, o que se passa é que o problema seria melhor qualificado como o “do modo de liquidação e ‘partilha’ dos interesses patrimoniais dos companheiros no momento da dissolução da sua união de facto” (nas palavras de FMB Pereira Coelho, anotação citada, pág. 115).
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Da subsidiariedade do enriquecimento sem causa
Diz a sentença, por fim, que:
“A acção sempre teria de improceder por não se verificar in casu ainda um outro pressuposto exigido pelo instituto do enriquecimento sem causa: não haver qualquer outro meio jurídico de reacção contra o enriquecimento (cfr. art. 474 do CC).
Isto porque,
“Relativamente às despesas que fez com a construção da moradia e demais obras sempre o autor podia lançar mão do instituto da acessão industrial imobiliária, intentando a correspondente acção nos termos do disposto nos arts 1325, 1326 e 1340, todos do CC.
O mesmo se diga quanto aos gastos do autor com os melhoramentos no logradouro e quintal relativamente aos quais o autor podia lançar mão da correspondente acção referente a benfeitorias úteis e necessárias nos termos previstos nos arts 1272 e 1273, ambos do Código Civil.
E relativamente a todos os bens móveis e electrodomésticos que o autor custeou, face à inexistência de qualquer presunção de comunicabilidade de tais bens, sempre o autor deveria lançar mão da correspondente acção de revindicação, por efectivamente ser ele o dono e proprietário de tais bens por os mesmos terem sido adquiridos exclusivamente com o seu dinheiro.
Com efeito, relativamente a tais bens móveis e electro-domésticos, inexiste qualquer crédito a reembolsar ao autor quanto a tais bens, mas tão só a devolução de tais bens por si adquiridos e que ainda se encontram na posse da ré.
Do entendimento restrito da subsidiariedade
Contra isto diz o autor:
“[…] Júlio Gomes, na sua obra (O conceito do enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa [Porto, UCP, 1998]) escreve que apenas numa situação deverá o enriquecimento sem causa ceder perante os outros institutos, será a hipótese em que o outro instituto permita atingir o resultado idêntico ao permitido pelo enriquecimento sem causa e quando o mesmo não seja mais oneroso. [esta síntese baseia-se em passagens das págs. 421 e 422 daquela obra – acrescento deste acórdão]
Para Meneses Leitão, a razão da consagração expressa no art. 474 da natureza subsidiária do enriquecimento em causa deve-se ao facto dos pressupostos deste serem de tal forma amplos e genéricos que não seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada de uma cláusula geral, colocando em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo (Direito das Obrigações, [9ª edição, 2010, Almedina] pág. 428). Para este autor a acção de enriquecimento sem causa pode concorrer com a acção de reivindicação e com a acção de responsabilidade civil, o que o leva a concluir que a regra da subsidiariedade não tem carácter absoluto.
Pereira Coelho interpreta o preceituado no art. 474 no sentido de ser possível ao interessado lançar mão do enriquecimento sem causa em virtude de um obstáculo legal ou de um obstáculo de facto.
Vaz Serra chega a negar a necessidade do carácter subsidiário da acção de enriquecimento, pois, no seu entender, muitas vezes não haverá lugar à acção de enriquecimento sem causa não pela sua natureza subsidiária, mas sim por, no caso concreto, não se verificarem os pressupostos de que aquela depende; por outro lado, mesmo concorrendo a acção de enriquecimento com outra, a ele não se afigura que a primeira (desde que preenchidos os requisitos do instituto) deva ceder perante a segunda.
Perante tantas e díspares opiniões sobre esta matéria, também não é de admirar que relativamente ao enriquecimento sem causa, a jurisprudência igualmente não seja unânime quanto à aplicação de tal instituto.
No entanto, o entendimento doutrinário que mais tem vingado no âmbito da subsidiariedade do enriquecimento sem causa é o perfilhado por Antunes Varela e que aponta no sentido de que quanto à declaração de nulidade, de anulação e de resolução, esta impede a acção de enriquecimento; relativamente às situações que geram responsabilidade civil, embora os dois institutos possam ser aplicados, se deve dar primazia à acção de responsabilidade civil; nas situações em que há intromissão nos bens ou direitos alheios, mas dessa intromissão não há danos, há aplicação do enriquecimento sem causa e que, numa situação concreta em que seja também aplicável o instituto da responsabilidade civil, só há acção de enriquecimento quando já não seja possível a acção de indemnização.
E essa tem sido também a posição dominante e maioritariamente seguida nos nossos tribunais.
Pelo que, assim sendo, não vemos qualquer razão para que neste processo o autor tivesse de lançar mão de outro instituto para conseguir o reembolso dos montantes por si desembolsados, nomeadamente o da acessão relativamente à casa e obras, o de benfeitorias, no que respeita a melhoramentos e o de reivindicação no que concerne a móveis.
Na verdade, para além de tal direito de restituição não depender nem ter como causa uma situação de nulidade, anulação ou de resolução de negócio, também não estamos aqui confrontados com uma situação que deva ser dirimida ao abrigo do instituto da responsabilidade civil.
Sendo que, no que à acessão diz respeito, temos que o art. 1340 do CC preceitua que: 1 – Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio e o valor que as obras tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras. 2 – Se o valor for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação. 3 – Se o valor acrescentado for menor, as obras pertencem ao dono do terreno, com a obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação. 4 – Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
Ora, no presente caso, desde logo se esclareça que dos factos dados como provados não resulta que o autor tenha construído propriamente em terreno alheio.
Ao invés, o que ficou demonstrado nos autos é que o mesmo pagou tais obras, mas já não que esteve na posse do respectivo terreno e agiu como se fosse seu dono. Ademais o [que] se retira dos documentos juntos ao petitório é que a sobredita casa foi edificada pela ré e seu irmão, já que foi em nome destes que a Câmara Municipal de X emitiu, primeiro, o respectivo alvará de licença de construção e mais tarde, o correspondente alvará de licença de utilização.
Sendo que em tal sentido (embora relativamente a uma situação de casamento), aponta o ac. do TRC datado de 05/02/2013, proc. 17/09.0TBVIS.C1, que “…a contribuição de um cônjuge, casado em regime de separação de bens para a construção de uma casa edificada em terreno pertencente ao outro cônjuge não se reconduz à acessão industrial imobiliária, mas a um crédito … cuja indemnização é calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa, tratando-se do chamado enriquecimento por incremento de valor em coisa alheia ou enriquecimento forçado”.
Acresce que, podendo da acessão resultar a aquisição de um direito de propriedade, a verdade é que este só pode incidir sobre coisas certas e determinadas, o que não acontece com a casa, obras e melhoramentos que o autor pagou já que elas se encontram inseridas num prédio rústico que pertence em comum à ré e irmão e que nunca chegou a ser entre eles dividido, loteado ou desanexado.
Aliás, essa é também a orientação perfilhada no ac. do STJ de 01/06/2010, proc. 113/1994.L1.S1, onde se lê que “ …a constituição de direitos reais só pode incidir sobre coisas individualizadas e autonomizadas, autonomização que, no que respeita ao fraccionamento de parcelas de um prédio rústico, nomeadamente na sua vertente da divisão do mesmo em lotes obedece à observância das normas legalmente estabelecidas para a ocorrência de tal separação e subsequente constituição de um novo prédio, normas essas que impõem a sujeição da efectivação de tal divisão, sob pena de nulidade da mesma, a prévio licenciamento municipal…”
E no que concerne a uma eventual acção por benfeitorias úteis nos termos previstos nos arts 1272 e 1273 do CC, desde logo se diga, que para isso ser possível é preciso que aquele que as faça actue como possuidor, o que não aconteceu no caso sub judice, já que dos factos provados apenas se retira que o autor pagou os melhoramentos em causa nos autos.
Como diz o acórdão do STJ de 09/02/2012, proc. 45/1999.L1.S1, “ …para que surja o direito à indemnização por benfeitorias em terreno alheio torna-se necessário que aquele que as realize aja na qualidade de possuidor. Não existindo qualquer vínculo possessório entre o benfeitor e a coisa onde os melhoramentos foram efectuados, … o autor da incorporação não tem direito a ser indemnizado pela obra que haja realizado… rege para o efeito o art. 1341 do CC que faculta ao dono do terreno onde foi feito o implante uma de duas opções: a) exigir que a obra seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor dela; b) exercer o direito de aquisição da obra pelo valor fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”
Tudo isto, sem prejuízo de que mesmo que fosse efectivo possuidor, a verdade é que os melhoramentos suportados pelo autor nunca poderiam ser levantados sem detrimento da coisa o que obrigaria a ré a ter de satisfazer àquele o valor deles, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (nº 2 do dito art. 1273).
E no que respeita à aconselhada acção de reivindicação relativamente aos móveis, também se dirá que Júlio Gomes defende que não é satisfatório que perante a subsidiariedade da acção de enriquecimento esta ceda perante uma acção de reivindicação, já que não existe sempre uma perfeita identidade entre o que se pode reaver através da acção de reivindicação (por exemplo uma jóia deteriorada e no nosso caso, móveis usados) e o que se pode reaver graças à acção de restituição baseada no enriquecimento sem causa.
Pelo que, de tudo o que acaba de ser dito e tal como se referiu no início desta motivação, o autor continua a entender que, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, a sua opção pela acção do enriquecimento sem causa foi uma decisão acertada e porventura a única que tinha para conseguir os seus intentos.”
Nesta parte há que distinguir:
Quanto aos móveis não registáveis
Em relação aos bens móveis não registáveis, comprados com o dinheiro do autor, não se verifica a situação que existe em relação ao imóvel e ao veículo automóvel, isto é, o registo dos bens como sendo da ré, pelo que não há razão para dizer que os móveis são juridicamente da ré.
Assim sendo, o autor podia reivindicá-los (art. 1311 do CC) e, por isso, se se aceitar o entendimento tradicional do princípio da subsidiariedade, não poderia optar pelo enriquecimento sem causa (art. 474 do CC).
O autor invoca, no entanto, doutrina suficiente (a posição de Menezes Leitão citada pelo autor é desenvolvida na obra O enriquecimento sem causa no direito civil, CCTF, 1996, págs. 941 a 951) para pôr em causa o entendimento amplo que se tem tido do princípio da subsidiariedade e que ainda hoje se pode dizer consagrado na jurisprudência, como por exemplo no recente acórdão do STJ de 22/10/2015, 6553/12.3TBCSC.L1.S1, que invoca muitos outros no mesmo sentido.
E seria dificilmente compreensível que, finda uma acção em que o autor pede a restituição daquilo com que a ré se enriqueceu, 6 anos depois de ela ter sido iniciada e depois da produção da prova, se julgasse a mesma parcialmente improcedente com o argumento de que ele tinha ao seu dispor o meio mais fácil e expedito de reivindicar os bens móveis.
Só que, no caso, há especificidades.
É que o autor começou a acção por pedir a restituição dos bens móveis não registáveis, embora subsidiariamente.
Só que, mais tarde, o autor veio desistir do pedido de restituição, em espécie, substituindo-o por outro, também de enriquecimento sem causa em valor, embora subsidiário do primeiro.
E neste momento o que existe são apenas dois pedidos, ambos de restituição em valor do enriquecimento em que a ré está devido à retenção dos bens móveis em seu poder.
Ora, o art. 479/1 do C, diz que a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quando se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Ou seja, o autor só pode pedir a restituição em valor se a restituição em espécie não for possível.
No caso, e perante as alegações do autor, na petição inicial, vê-se que não havia nenhuma impossibilidade na restituição em espécie dos bens móveis, mas um simples desinteresse do autor nessa restituição: o autor não queria os bens de volta (não lhe serviam para nada fora da habitação e não tinha onde os guardar), queria sim o seu valor.
Pelo que o que se passa é que não se pode verificar um dos pressupostos do direito exercido pelo autor, isto é, o de obter a restituição em valor, pressuposto esse que é o da impossibilidade da restituição em espécie.
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Quanto aos bens registados em nome da ré (e de terceiro)
Quanto ao automóvel, estando ele registado em nome da ré, e não se provando que existe qualquer invalidade no acto jurídico aquisitivo registado, o autor não pode discutir a titularidade do bem, pelo que, juridicamente o mesmo é da ré e ao autor não restava outra solução que não pedir a restituição do enriquecimento que o seu valor representa para a ré.
O mesmo é válido em relação ao imóvel (e dependências), não sendo possível, ao autor, pedir a acessão industrial imobiliária: a casa construída com o dinheiro do autor está incluída (junto com outra) num prédio que está registado em nome da ré e de outrem e foi construída num terreno que não foi vendido nem doado ao autor. Pelo que ele não pode fazer funcionar a acessão a seu favor (art. 1340 do CC).
Quanto aos melhoramentos no logradouro e quintal: tendo o autor direito à restituição do valor da casa, sem terreno, cuja valorização terá de ter em conta tudo o que foi construído e feito nela ou no terreno anexo para melhoramento das condições de uso da mesma, reportada ao momento da cessação da separação, não faz sentido impor uma avaliação em separado desses melhoramentos, para a sua restituição através do regime das benfeitorias, que, aliás, teria de ser feita através do regime do enriquecimento sem causa, como diz o autor (art. 1273/2 do CC).
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Dos factores que contribuem ou diminuem o enriquecimento
Antes de mais esclareça-se que no enriquecimento sem causa, cabe logicamente ao que invoca o enriquecimento, para pedir a sua restituição, a invocação dos factores que têm o efeito de o aumentar e, àquele que quer restituir menos, a invocação dos factores que o diminuem. Pelo que se este, no caso a ré, não alega factores que contribuam para a diminuição do enriquecimento, ou não os prova, a consequência disso corre contra ela e não contra o autor.
Da contribuição do companheiro que nada pagou formalmente
Na sentença recorrida, seguindo-se o ac. do STJ de 20/03/2014, invocam-se três razões para dizer que não há enriquecimento que são antes três factores que poderiam contribuir para a diminuição do montante a restituir.
Alterando a ordem pela qual foram invocados, o primeiro deles será a da eventual contribuição da ré para o pagamento da casa, obras e melhoramentos, o que a sentença fez através da citação da passagem de França Pitão.
A situação que mais vezes se verifica a este nível é a de a companheira exercer, tal como o companheiro, uma actividade profissional remunerada mas, para possibilitar a este o exercício mais lucrativo da actividade do mesmo e ao mesmo tempo poupar despesas com o cuidado dos filhos e a lide da casa, resolve deixar a sua actividade profissional e ficar em casa.
Nestas situações, embora seja o companheiro formalmente o único a receber um rendimento da sua actividade profissional e, por isso, o único a pagar a casa, é notório que, material ou substancialmente, essa contribuição é dos dois.
Aliás, esta perspectiva das coisas surge normalmente em situações inversas da dos autos, ou seja, nos casos “de plena coincidência entre o sujeito proprietário e o sujeito pagador […] em que a pretensão restitutória […] centra-se normalmente na circunstância de, apesar de o preço ser efectivamente pago por aquele que fica sendo o proprietário do imóvel, todavia haver um outro tipo de contributo prestado (à economia ou genericamente à vida em comum do casal) pelo outro membro da união [em nota: … ou seja, de a companheira haver prestado durante largos anos os comuns trabalhos ‘domésticos, pelos quais pretende agora ser compensada], o qual deveria ser objecto de consideração no momento da liquidação final das contas da união” (FMB Pereira Coelho, pág. 115 – como é o caso, por exemplo, do ac. do TRG anotado por Cristina M. A. Dias, tal como refere aquele autor).
O que aliás tem um afloramento, que para o caso tem de ser entendido com as necessárias adaptações, no actual regime do art. 1676, n.ºs 2 e 3 do CC (na redacção da Lei 61/2008, de 31/10), atribuindo um direito de compensação ao cônjuge se a contribuição dele para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes (sendo que este direito de crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação).
Ou seja, é sem dúvida de aceitar a contabilização desta contribuição. Desde que ela exista.
Só que, isto tem de ser objecto de alegação pela parte interessada, não podendo a falta dessa alegação ser suprida pelo tribunal. O tribunal por regra não julga segundo a equidade (a justiça do caso concreto), mas segundo a lei (art. 4 do CC) e os factos essenciais invocados pelas partes (art. 5 do CPC), pelo que não pode inventar uma contribuição da ré para a construção da casa que não foi por ela invocada. A ré é que sabe de que forma é que contribuiu, se contribuiu, para essa construção, e essa contribuição tem de estar provada, não podendo a sua falta de alegação e prova ser suprida pelo tribunal. Ora, no caso, a única contribuição da ré alegada por ela para a construção da casa – a contribuição monetária – não se provou.
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Da realização das lides domésticas
Embora estas sejam invocadas pela sentença como um factor à parte do anterior, trata-se exactamente da mesma ideia de contabilizar o trabalho que (normalmente) a companheira presta em casa para poupar despesas e possibilitar um maior lucro à actividade profissional do companheiro.
Nesta medida, a existir – o que terá de ser alegado e provado – seria de contabilizar (descontando no enriquecimento invocado pelo autor).
Mas a simples realização de lides domésticas, sem mais nada, isto é, sem a alegação daqueles outros factos, não deve ser contabilizada.
Tendo isto presente e neste preciso pressuposto, aceita-se aquilo que o autor diz (com o apoio de alguns acórdãos) sobre as despesas domésticas no seu recurso:
“[…] quanto ao trabalho prestado pela ré nas lides domésticas do agregado familiar, diga-se antes de mais, que se é verdade que a própria não alega e muito menos peticiona o seu pagamento na sua contestação, também não é assim tão garantido, nem do conhecimento geral que no contrato de serviço doméstico no nosso país, a remuneração da hora de trabalho oscile actualmente entre os 5 e os 7€. Se calhar, ainda é mais notório o facto de continuarem a existir muitos locais deste lindo Portugal, como é aquele onde se situava a residência do extinto «casal» em que uma doméstica a dias aufere a remuneração diária de 25€ e até de 20€.
De qualquer das formas, se como atrás se referiu se entende como razoável que autor não deva ser ressarcido daquilo que pagou a título de sustento e despesas com o seu agregado familiar, também não seria justo que se exigisse que o mesmo tivesse de pagar à ré o sobredito trabalho.
Aliás e precisamente nesse mesmo sentido aponta o acórdão do STJ de 06/07/2001, proc. 3084/07.7BPTM.E1-S1 que de entre o mais refere “… o trabalho da autora era a sua contribuição para a vida em comum… tal contribuição, envolvendo necessariamente um dispêndio de energias e de força de trabalho – os serviços domésticos – mais não é, afinal, que o cumprimento de uma obrigação natural – a de contribuir para a comunhão de vida e para a economia comum baseada na entre ajuda ou partilha de recursos…”; “… nos termos do art. 402 do CC a obrigação diz-se natural quando se funda num mero dever de ordem moral e social cujo cumprimento não é judicialmente exigível mas corresponde a um dever de justiça. É o caso da contribuição para a economia comum na união de facto, desde que assente a ausência de vínculos juridicamente relevantes entre os seus membros, designadamente os deveres de coabitação, cooperação e assistência enunciados no art. 1672 do CC, sobretudo estes dois últimos, na modalidade de socorro e auxílio mútuos e de assunção conjunta das responsabilidades da vida familiar (art. 1674 do CC) e na de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar de harmonia com as possibilidades de cada um através da afectação dos seus recursos àqueles encargos e do trabalho despendido no lar (arts 1675/1 e 1676/1 do CC). Ora não pode ser repetido o que foi prestado espontaneamente – isto é, livre de toda a coacção (art. 403 do CC) – no cumprimento de uma obrigação natural. Não sendo o trabalho despendido no lar judicialmente exigível no âmbito da união de facto, a sua prestação como contribuição para a economia comum configura-se como cumprimento espontâneo de obrigação natural, insusceptível de ser repetido, pelo que falece à autora o direito à restituição do respectivo valor».
Ora, se é certo que o autor não podia exigir que a ré lhe prestasse o mencionado trabalho, também esta não poderá ter direito à repetição daquilo que prestou espontânea e livremente, tanto mais que as importâncias que o autor gastou no sustento e demais despesas familiares (e que, isso sim, é notório que não se limitaram aos montantes dados como provados pelo Sr. juiz de 1ª instância), se calhar, até foram de valor superior ao dito serviço doméstico efectuado pela ré.
Isto, sem prejuízo de que a ré nem teve assim de perder tanto tempo a tratar pessoalmente do autor, uma vez que, como já atrás se referiu, este esteve muitas vezes ausente do país, designadamente na Espanha, França e Alemanha.”
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Do uso da habitação pelo autor
O terceiro factor utilizado pela sentença recorrido e pelo ac. do STJ de 20/03/2014 para diminuir o enriquecimento (e chegar à conclusão de que ele não existiu) foi o facto de o autor ter vivido no imóvel.
Mas não se vê como é que esse facto pode servir para o efeito, desde logo porque a ré também viveu no imóvel e por isso os companheiros estariam, quando muito, em igualdades de condições (quando muito, diz-se, porque afinal de contas foi o autor que estava a pagar a casa onde ambos viviam).
Neste sentido, como diz o autor no recurso, “sendo certo que o autor, usou de facto a moradia em questão durante cerca de 7 anos (2001 – data da sua construção até à inícios de 2008), convenhamos que a ré também nela residiu nesse período, por sinal ainda durante mais tempo e com mais assiduidade, pois, como resulta dos depoimentos testemunhais citados pelo Sr. juiz a quo, no decurso da união, o autor andou, frequentemente, emigrado. Assim, por aí, estariam ambos «empatados», ou dito de outra forma, também a ré estaria obrigada a compensar o autor pela aludida utilização, se calhar até em maior medida do que ele.”
De qualquer modo, ainda se falará mais à frente do valor do uso da habitação.
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Do cálculo do enriquecimento
O valor a restituir é o valor do bem à data da cessação da união de facto (Março de 2008). Não é o valor que o autor foi gastando na construção da casa (com todas as dependências e obras feitas). É o que resulta de se ter considerado que a questão do enriquecimento sem causa só se coloca em relação aos bens que subsistem depois da cessação da união de facto e não quanto às despesas que foram sendo feitas ao longo da convivência (incluindo as necessárias à legalização, construção ou registo dos bens).
Como esse valor não foi apurado nestes autos – já que ele não é necessariamente igual ao que foi gasto, podendo ser maior, igual ou menor -, ele tem de ser liquidado posteriormente (art. 609/2 do CPC).
Esse valor não inclui o terreno onde a casa foi construída, visto que quanto a ele não se provou que a venda ou doação tivesse sido também ao autor.
Os juros são devidos a partir da citação para a acção (art. 480 do CC).
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Do (não) desconto do valor normal do uso da habitação
Na anotação já referida, F.M.B. Pereira Coelho, diz que o entendimento que segue diz respeito aos valores despendidos na aquisição da casa na medida em que excedam o valor normal do uso da habitação (pág. 125). E antes tinha dito que “as prestações pagas pelo autor [num caso de compra de um apartamento com recurso a crédito bancário] são também encargos da vida em comum, na medida em que visam custear a habitação do casal. Nessa medida – na medida, digamos, do valor normal da habitação (o valor correspondente às rendas que normalmente seriam pagas durante o período de convivência) – concedemos que se tratará de encargos da vida em comum, sendo, por conseguinte, irrestituíveis. Mas, sendo também isso, tais prestações são mais do que isso. Para lá disso – para lá, como dissemos, do valor normal da habitação, – trata-se já de parcelas do preço da propriedade do apartamento. Parece portanto inquestionável que há, objectivamente, e nesta precisa medida, um enriquecimento da ré à custa do autor” (pág. 118).
Mas, nesta parte, não se segue este autor. Desde logo, se fosse de descontar ao valor do imóvel o valor normal do uso da habitação (o que é igual a só considerar o excesso relativamente a este), tal levaria quase sempre à quase inexistência de valor a restituir, porque o valor normal do uso da habitação corresponde, mais ou menos, ao valor que se paga pelo mesmo.
Depois, porque o imóvel, depois da cessação da união, continua a existir e não tem razão de ser que o mesmo fique para o ex-companheiro que nada pagou por ele, e não para quem o pagou, sendo esse o efeito prático de tal desconto.
Por fim, porque as prestações mensais correspondentes ao valor de uso da habitação serviram para pagar o uso dessa habitação durante a vivência conjugal, beneficiando os dois companheiros, não se vendo porque é que depois teriam que ser descontadas no valor da casa, que subsistiu depois da cessação da união. Aliás, fazer-se esse desconto teria o efeito de valorar como contribuição do ex-companheiro que nada pagou aquilo que foi pago pelo outro.
Aquilo que há que descontar, sim, é apenas aquilo que excede o valor do bem à data da cessação da união, isto é, a parte que corresponde ao pagamento de outros valores, como por exemplo, os juros de um emprés-timo bancário e a desvalorização de uma casa usada.
Assim, por exemplo, se se esteve a pagar uma amortização mensal de 600€ durante 20 anos por um empréstimo bancário pela compra da habitação (= 144.000€), sendo 500€ de capital e 100€ de juros, provavelmente a casa valerá, ao fim desse tempo (igual, por exemplo, ao tempo da união de facto) 120.000€ ou 100.000€, que será o valor que o companheiro que pagou terá direito a receber a título de restituição do enriquecimento; já não terá direito ao valor superior que de facto pagou (144.000€).
Mas, para isso não há que fazer qualquer desconto, basta calcular o enriquecimento como se disse acima, isto é, com base no valor da casa ao tempo da cessação da união, valor esse que logicamente não incluirá os juros nem a desvalorização, nem – no caso dos autos – aquilo que se pagou a mais por se ter feito a obra em partes e ao longo do tempo.
Descontar, para além disso, o valor normal do uso da habitação, por exemplo, no caso simulado, de 500€ mensais, equivaleria a negar a existência de enriquecimento, e portanto o companheiro que nada pagou nada teria que restituir ao outro, apesar de aquele ficar com a casa e este sem nada.
Por fim, nunca a jurisprudência (vejam-se ao acórdãos referidos acima) fez este desconto.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, condenando-se agora a ré a restituir ao autor o valor da casa referida em T), calculado com referência a princípios de Março de 2008, com as dependências, obras e melhoramentos efectuados nela ou no seu logradouro e quintal, mencionadas nos factos X) a AK) mas sem o terreno onde foi construída, bem como o valor do veículo referido em AAI), calculado com referência à mesma data, ambos os valores a liquidar e com juros a partir da data da citação para esta acção (15/01/2011) e absolvendo-a do demais que foi pedido.
Custas da acção e do recurso pelo autor e pela ré, em partes iguais, provisoriamente, ficando a fixação da proporção definitiva dependente do resultado da liquidação, tudo sem prejuízo dos apoios judiciários concedidos.
Porto, 04/02/2016
Pedro Martins
1º adjunto
2º adjunto