GAIA Proc. 9351/15.9T8VNG 2ª Secção Comércio – J1
Sumário:
Em sentido contrário ao dos acs. do TRL de 26/05/2011, 7126/10.0TBSXL.L1-2, do TRL de 24/01/2012, 9694/11.0TBOER.L1.7, do TRG de 13/03/2012, 4551/11.3TBGMR-A.G1, do TRE de 22/11/2012, 411/12.9T2STC.E1, do TRE de 21/02/2013, 2932/12.4TBEVR.E1, do TRC de 12/03/2013, 6540/12.1TBLRA.C1, do TRL de 21/03/2013, 485/13.5TBVFX.L1-6, e do TRP de 07/04/2014, 3527/13.0TBVLG.P1, entende-se, com a maior parte da doutrina e com o ac. do TRL de 17/01/2013, 3435/12.2TJLSB.L1-2, que distinguir, na lista do art. 24, nºs. 1 e 2a) do CIRE, entre documentos essenciais e não essenciais à apreciação da situação do devedor, para efeitos de a ausência daqueles ser e a destes não ser determinante do indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência, choca frontalmente com a letra do art. 27/1b) do CIRE, onde nenhuma distinção é feita pelo legislador. Tanto mais quanto aqueles acórdãos prescindem, inclusive, da justificação razoável, na hipótese de documento ‘não essencial’.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
M apresentou-se à insolvência, alegando entre o mais e com interesse para a apreciação das questões que se discutem neste apenso de recurso, que sempre trabalhou, e trabalha, e conjuntamente com o marido sempre provieram o seu sustento e do seu agregado familiar; em 2012 o marido da requerente ficou desempregado; a requerente exerce a profissão de empregada doméstica e não aufere vencimento mensal pois, actualmente, a mulher do requerente [sic], mantém-se temporariamente incapacitada para o trabalho, por se encontrar a prestar assistência ao filho menor do casal – cfr. docs. 4 e 5 que se juntam [-], não recebendo qualquer valor; a situação de desemprego do seu marido abalou, de forma drástica, a vida quotidiana do casal, causando um sério desequilíbrio económico na vida dos mesmos. Um dos credores do agregado familiar que identifica é a Óptica [sic] cfr. doc. 16 que se junta. Diz ainda que no cumprimento do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 24 do CIRE, o requerente [sic] junta o anexo I com a relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios e dos montantes dos seus créditos. Não dá cumprimento ao exigido na alínea d), uma vez que não se encontra nas situações aí previstas. Informa que o seu marido avançou já com igual pedido de insolvência, a qual foi decretada no âmbito do processo 7921/15.4T8VNG, da 2.ª secção de comércio, J1, Gaia.
Os documentos 4 e 5 são dois certificados de incapacidade temporária para o trabalho; a requerente juntou também um documento em que uma sociedade Lda com carimbo impossível de ler, diz que o marido da requerente lhe deve dinheiro pela compra de dois pares de óculos.
A 09/11/2015, foi proferido o seguinte despacho: “notifique a requerente para no prazo de 5 dias, sob pena de indeferimento liminar do pedido, juntar: o documento comprovativo da concessão do apoio judiciário; certidão de nascimento; os documentos a que se referem as alíneas a), b), c) e e) do n.º 1 do art. 24 do CIRE.”
A 16/11/2015, a requerente requereu a junção do assento de nascimento, bem como do comprovativo de concessão de protecção jurídica e disse o seguinte: “nos termos do art. 24 do CIRE: a alínea a) foi cumprida no art. 29 da p.i. onde se junta o anexo I – lista créditos; a alínea b) foi cumprida no art. 30 da p.i., onde se junta o anexo II – lista execuções; a alínea c) foi cumprida nos arts. 6, 7 e 8 da p.i e com a junção dos docs. 4 e 5; a alínea e) foi cumprida no art. 32 da p.i., no qual a requerente alega não possuir bens referidos nessa alínea. Por cautela juntam-se novamente aqueles anexos.”
No anexo I, sob a verba 4, consta o seguinte: Óptica xxxx, morada: xxxx, montante: 510€. Na verba n.º 5 consta: credor: CGD: montante: €xxxx. Total em débito: €xxxx. Não consta da data do vencimento de qualquer dos seis créditos.
A 23/11/2015 foi proferido o seguinte despacho [que se transcreve na parte que interessa, com alterações em parenteses rectos]:
“A requerente, notificada para, no prazo de 5 dias, sob pena de indeferimento liminar do pedido, juntar o documento comprovativo da concessão do apoio judiciário, certidão do assento de nascimento e os documentos a que se referem as alíneas a), b), c) e e) do n.º 1 do art. 24 do CIRE, apresentou o requerimento que antecede […], acompanhado dos elementos de fls. 30 e seguintes.
Nos termos do disposto no art. 24/1 do CIRE, com a petição inicial o devedor junta, para além do mais:
[a)] Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, nos termos do art. 49 do mesmo Código;
[…]
[c)]. Documento em que se explicita a actividade ou actividades a que se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que entenda serem as causas da situação em que se encontra;
As relações e os documentos referidos constituem, pois, elementos que devem acompanhar a petição inicial, independentemente da alegação dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência efectuada no requerimento inicial.
Ora, a relação de credores junta não obedece ao disposto na norma legal acima referida, sendo omissa, designadamente, quanto às datas de vencimento dos créditos e, relativamente a alguns credores, quanto à sua completa identificação e até ao montante do crédito.
Por outro lado, não foi apresentado o documento a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 24 do CIRE. O alegado na petição inicial não pode substituir a apresentação em causa e os documentos indicados com os ns.º 4 e 5 também não obedecem ao formalismo legalmente previsto.
Assim, atenta a posição assumida pela requerente, não tendo suprido totalmente as faltas apontadas no anterior despacho e não se podendo considerar justificada a falta, à luz do disposto nos arts. 24/1a) e 27/1b) do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de declaração de insolvência.”
A requerente vem interpor recurso deste despacho, onde alega o seguinte [transcreve-se, na parte que interessa, todo o corpo das alegações, já que na prática não existem conclusões]:
[…]
- Ao contrário do entendimento do tribunal a quo, tais elementos e relações não são, nem devem ser, exigidos por si só e/ou independentemente da alegação dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência efectuada no requerimento inicial;
- De referir que o tribunal a quo começou, no despacho de 09/11/2015, por notificar a requerente para juntar, o que, nos termos de tal despacho, parece não ter sido, de todo, junto pela requerente, ou seja, os elementos das alíneas a), b), c) e e) do nº 1 do citado art. 24;
- Foi, pois, em face de tal despacho que a requerente esclareceu o tribunal que tais elementos constavam e tinham sido juntos ao processo, nos termos expostos no seu requerimento de fls.:
- Sucede que, o tribunal a quo, só em 23/11/2015, ao mesmo tempo que profere a sentença [sic] de indeferimento liminar concretiza e esclarece a requerente dos elementos que, em seu entender, nos termos do aludido art. 24/1, alíneas a) e c), continuam em falta, sem possibilidade de justificação;
- Não obstante, resulta evidente que, ao contrário do solicitado pelo tribunal a quo os elementos referentes às alíneas b) e e) do nº 1 do art. 24, não estavam, como expôs a requerente, em falta e haviam sido juntos com a p.i.:
- Por outro lado, tivesse o tribunal a quo, em 09/11/2015, alertado, e não alertou, a requerente para os elementos em falta das alíneas a) e c) do sobredito artigo, nos termos em que o fez, posteriormente, em sede de sentença [sic] e teria a requerente procurado responder mais cabalmente a tal pedido;
- Na verdade, quando a requerente deu resposta ao tribunal considerou que os elementos já juntos com a p.i. seriam suficientes, não equacionando, sequer, que a alegada falta de junção de elementos respeitasse, como só posteriormente se percebe, a elementos e/ou informação incompletas;
- De referir que, os elementos fornecidos com a p.i, apresentada pela requerente, são, praticamente, os mesmos que o marido desta apresentou, também, no seu processo de insolvência, o qual, como de início se disse, correu no mesmo Juiz e secção Comercial de Gaia;
- Sendo, igual a situação do casal considerada e a considerar nos dois processos;
- Não se alcançando, sequer, que tendo o marido da requerente sido considerado insolvente, com fundamento na análise da situação socioeconómica do agregado familiar no qual se inclui a requerente;
- Esta, requerendo, também, a sua insolvência, praticamente, nos mesmos termos em que o fez o seu marido, com fundamento na mesma situação socioeconómica do mesmo agregado familiar, e bem conhecida do tribunal;
- Tal pedido pudesse vir, e não estamos em crer que viesse, a ser indeferido;
- Acresce que, e em termos objectivos, o pedido de declaração de insolvência da requerente veio a ser liminarmente indeferido com fundamento na falta/insuficiência dos elementos a que aludem as alíneas a) e c) do nº 1 do art. 24 do CIRE;
- Vejamos, pois, se tal insuficiência é, ainda assim e por si só, suficiente para se decidir, como decidiu o tribunal a quo pelo indeferimento liminar do pedido de insolvência apresentado pela requerente;
[…]
- Começando pela alínea c) – entende a requerente que [o] alegado em 6, 7 e 8 da petição inicial, conjuntamente com os docs. 4 e 5 […], preenche, de forma completa e no essencial, o prescrito em tal alínea, desconhecendo que outros documentos poderiam ser juntos, para além dos que juntou já que, como alegado, a requerente é empregada doméstica;
- Relativamente à alínea a) – considera a requerente que tal insufici[ência] apontada [no despacho] não é de molde a considerar, como considerou o tribunal a quo, falta de elemento essencial e/ou configure vicio insanável, enquadrável na previsão da alínea a) nº 1 do art. 27 do CIRE (indeferimento liminar);
- Repetindo, uma vez mais, a requerente que, tais elementos cuja falta/insuficiência o tribunal a quo acusa eram, e estão, ainda assim, cabalmente indicados no processo de insolvência do marido da requerente a correr termos pelo juiz e secção comercial destes autos;
- Na verdade, e mesmo quando a petição careça de elemen tos essenciais e apresente vícios sanáveis, enquadráveis na previsão da alínea a) do nº 1 do art. 27 do CIRE (indeferimento liminar) o tribunal deve proferir despacho de aperfeiçoamento;
- Não se verificando irregularidades com aquelas características e ainda que incumprido despacho liminar, o juiz deve mandar prosseguir o processo.
- Os vícios que podem levar ao convite ao aperfeiçoamento da petição inicial podem referir-se apenas a uma parte dos vários fundamentos que são invocados como determinantes da insolvência e não a todos eles, pelo que, mesmo o não acatamento de tal convite pode não determinar, e não determina no caso dos autos, necessariamente o indeferimento da petição.
- O indeferimento liminar do pedido de declaração de insol vência só deve ter lugar, quando seja evidente a sua improcedência ou ocorram excepções dilatórias, de conhecimento oficioso, que não possam ser supridas, nenhuma das hipóteses se verifica in casu.
- O reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação dos devedores à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão e que implica a declaração imediata da situação de insolvência nos termos do artigo 28º do CIRE.
- Todavia, sendo a confissão um mero meio de prova, ela não exonera os requerentes/devedores da alegação dos factos que integram os pressupostos do pedido de declaração da sua insolvência.
- De harmonia com o disposto no artigo 27/1a) do CIRE, o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência está reservado às hipóteses de manifesta improcedência do pedido e/ou da verificação de excepções dilatórias insupríveis, de que o tribunal deva conhecer oficiosamente.
- O indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência com base apenas na falta de junção dos documentos a que alude o art. 24 do CIRE, após o decurso do prazo de cumprimento do despacho de aperfeiçoamento, só terá lugar nos termos do disposto no art. 27/1b do CIRE, no caso de ocorrer essencialidade dos documentos em causa.
- Daí decorre que, não sendo os documentos em falta essenciais à apreciação da situação do devedor, independentemente de os requerentes darem, ou não cumprimento ao despacho de aperfeiçoamento, há que mandar prosseguir o processo, por não se verificarem os pressupostos do indeferimento liminar fixados na alínea a) do nº 1 do citado artigo 27.
- Centrando-nos no caso dos autos, perece, evidente, que mesmo a considerar, o que por hipótese se concede, faltarem, e não faltam, nos autos os elementos indicados na sentença [sic] recorrida, ainda assim, tais elementos não são estruturalmente condicionantes da apreciação da situação do devedor, pelo que a falta da sua junção, por si só, não justificaria, como não justifica, o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência da requerente podendo, contudo, virem a ser apurados, em momento ulterior.
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Questão que importa decidir: se o pedido de insolvência não devia ter sido liminarmente indeferido.
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Os factos são os que resultam do relatório que antecede.
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O art. 24/1c) do CIRE exige, claramente, a junção de documento onde, entre o mais, se explicite o que o requerente da insolvência entenda serem as causas da situação em que se encontra.
Como dizem Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pág. 220), “é […] com o objectivo de favorecer a melhor ponderação dos credores acerca do caminho a seguir que se explica a exigência a que respeita a al. c) do n.º 1” e “comungam do mesmo objectivo as suas restantes alíneas [… ]”
Desde logo, isto quer dizer que estas alíneas não têm a função de favorecer a melhor apreciação pelo juiz da situação do apresentante à insolvência, mas sim a apreciação pelos credores.
Trata-se pois de dizer aos credores que não têm de estar a fazer a análise das habituais dezenas ou centenas de artigos de uma petição inicial para encontrar, por exemplo, a explicitação das causas da situação em que se encontra o apresentante da insolvência – com o risco, aliás, de tirarem conclusões que depois o apresentante à insolvência pode dizer que estão erradas -, antes as podem encontrar num documento dedicado unicamente a esse ponto (nos termos definidos no art. 26 do CIRE).
Por isso, esta explicitação – explicitar é exprimir ou manifestar-se com clareza, sem deixar lugar a dúvidas (Dicionário da língua portuguesa contemporânea, Academia das ciências de Lisboa, Verbo 2000) – num documento não tem nada a ver com as alegações da requerente no meio do articulado de petição inicial, nem com a junção avulsa de documentos de onde os credores pudessem tirar tais conclusões por sua conta e risco.
E o que antecede tem particular aplicação ao caso dos autos onde, nas poucas linhas que se transcrevem da petição inicial da requerente é notória a falta de clareza das razões que a requerente está a indicar como sendo a causa da sua situação, entre o mais porque, ao que se indicia, o articulado reproduz, mal, o articulado da apresentação à insolvência do marido da requerente. E, por exemplo, nem sequer se consegue perceber se a requerente está ou não a trabalhar, embora não receba um vencimento mensal, sendo que embora ela diga que se encontra temporariamente incapacitada para o trabalho parece que continua a trabalhar como empregada doméstica, o que, por outro lado, não se vê como possa ser impeditivo de receber, como ela diz, um vencimento mensal (que não tem de ser sempre igual). Seja como for, repete-se que não é aos credores que compete estar a tirar essas conclusões de um amontoado de factos articulados na petição inicial, mas sim ao devedor, que o tem de fazer num documento à parte e que não pode satisfazer com a simples junção de documentos que não são o documento em causa, mas sim elementos de prova do que fosse dito em tal documento.
É, por isso, evidente que a requerente não deu cumprimento ao disposto na al. c) do art. 24/1 do CIRE, apresentando o documento aí exigido.
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Por sua vez, o art. 24/1a) do CIRE faz a exigência já transcrita acima, que a requerente não cumpre, entre o mais, não indicando as datas de venci mento de todos os créditos, nem o valor de um deles, nem a morada de um dos devedores, devedor que também não identifica devidamente. Ou seja, não juntou um documento em conformidade com a exigência do art. 24/1a do CIRE.
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Não há dúvida, pelo que antecede, que a requerente não cumpriu com algumas das normas do art. 24/1 do CIRE indicadas no despacho de 09/11/2015.
A requerente diz que o tribunal recorrido indicou ainda outras normas e que essas estavam cumpridas.
Só que isso não evita que aquelas continuem por cumprir e que bastasse a leitura delas para que a requerente soubesse o que tinha que fazer.
E não vale sugerir que o tribunal podia ser mais claro no despacho de aperfeiçoamento – até podia -, pois que tal nem acrescentaria ao que já decorria claramente da lei (e percebe-se a saturação de um tribunal na repetição diária daquilo que decorre claramente da lei) nem evitaria a incompreensão da requerente que, mesmo depois do despacho de indeferimento liminar do pedido – desta vez com aquelas repetições -, continua a entender que cumpriu o que tinha de cumprir, quando claramente não cumpriu.
Nem vale também sugerir que no processo paralelo do marido da requerente também faltam os elementos em causa e que o tribunal aí admitiu a petição, pois que, desde logo, se trata de uma sugestão que não está devidamente comprovada – a requerente até diz que o que é exigido pelo art. 24/1a) está lá -, mas também porque, mesmo que assim fosse, o facto de se ter cometido um erro num processo não impõe que o mesmo erro seja cometido num outro.
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O art. 24/2b) do CIRE diz que o devedor deve ainda justificar a não apresentação ou a não conformidade de algum dos documentos exigidos no n.º 1.
E como o art. 27/1b) do CIRE impõe o despacho de aperfeiçoamento em caso de omissões supríveis ou sanáveis, tem-se entendido, com o que se concorda, que essa justificação pode ser apresentada depois desse despacho de aperfeiçoamento; despacho de aperfeiçoamento que foi proferido pelo tribunal recorrido, sendo que, como se vê no despacho de indeferimento, o tribunal aceitaria, como não podia deixar de aceitar, a possibilidade de a requerente justificar – se fosse justificável – a não apresentação ou a não conformidade.
Só que a requerente, em vez de completar a relação de créditos ou de apresentar o documento com a explicitação das causas da sua situação, disse que já tinha dado cumprimento às exigências legais, quando, como se viu, não tinha.
Pretende ela agora que, como existe um processo de insolvência do seu marido com a relação de créditos, não o tem que fazer aqui.
Mas é evidente que não é assim: primeiro, porque o que consta de um processo não é o que consta de um outro e mesmo que os processos tenham sido atribuídos ao mesmo juiz, o juiz em causa não é obrigado a conhecer – não lhe é exigível que conheça – tudo o que consta nos inúmeros processos que lhe são distribuídos; segundo, porque a constar daquele processo – o que não é certo – os elementos em falta, é a ela que lhe caberia ir consultar esse processo e completar depois a relação de créditos em conformidade com a exigência legal; aliás, se os elementos em falta constam, de facto, do outro processo, é inconcebível que a requerente não o tenha ido consultar para completar aquilo que falta neste (nem que fosse em cumprimento do mais elementar dever de colaboração); e por isso mesmo o tribunal recorrido não teria razões para crer que no outro processo constassem tais elementos, o que seria mais uma razão para não ser o tribunal a fazer essa averiguação (a outra decorre do que já foi dito: o tribunal não deve gastar recursos públicos em substituição do que a parte deve fazer e que só não faz porque não quer).
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Não tendo, pois, a requerente, juntado a relação nos termos exigidos pelo art. 24/1a) do CIRE, nem o documento a explicitar as causas da sua situação, nos termos da parte final do art. 24/1c) do CIRE, relação e documento que tinham que instruir a petição, nem justificado a desconformidade e a não apresentação mesmo depois do despacho de aperfeiçoamento sob pena de indeferimento, ao tribunal não restava outra solução que não o indeferimento liminar da petição, por força do art. 27/1b) do CIRE.
Neste sentido, por exemplo, Carvalho Fernandes e João Labareda (obra citada, págs. 218/219 e 228/229, que ainda invocam para o efeito os arts. 27/2 e 30/2 do CIRE e a posição de Raposo Subtil e outros, ob. citada, pág. 105, e Menezes Leitão, CI, 6ª edição, pág.74, sem deixarem de lembrar a posição contrária de alguma jurisprudência: acs. do TRL de 24/01/2012, 9694/11.0TBOER.L1.7 e do TRG de 13/03/2012, proc. 4551/11.3TBGMR-A.G1), bem como Alexandre de Soveral Martins (Um curso de direito de insolvência, Almedina, 2015, págs. 76 a 78, embora lembrando a posição contrária também do ac. do TRL de 21/03/2013, proc. 485/13.5tbvfx.l1-6) e o ac. do TRL de 17/01/2013, 3435/12.2TJLSB.L1-2: I. Proferido despacho, nos quadros do art. 27/1b) do CIRE, convidando o requerente/devedor a suprir a falta de documentos que a lei – art. 24 do mesmo CIRE – determina deverem ser juntos com a petição, se aquele não corresponder nem justificar a não apresentação, impõe-se o cominado indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência. II – Não cumprindo, nessa circunstância, fazer qualquer distinção entre a natureza dos documentos a juntar, para efeitos de tal indeferimento – este acórdão lembra que, para além de outro, o ac. do TRL de 26/05/2011, processo 7126/10.0TBSXL.L1-2, tem posição contrária). Em sentido contrário, veja-se Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (CIRE anotado, Almedina, 2013, págs. 98/99, sem razões, dizendo simplesmente que lhes parece mais razoável a solução defendida nos acs. do TRE de 21/02/2013, proc. 2932/12.4TBEVR.E1, e de 22/11/2012, proc. 411/12.9T2 STC.E1) e, para além dos já referidos, ainda, por exemplo, o ac. do TRC de 12/03/2013, 6540/12.1TBLRA.C1, e o do TRP de 07/04/2014, 3527/13.0 TBVLG.P1.
Por isso não tem a mínima razão a requerente quando pretende distinguir documentos que sejam essenciais ou não essenciais, com o apoio dos acórdãos que não cita mas que estão subjacentes à sua argumentação (e que são os supra referidos). Tanto mais que, como já se viu, ao contrário do que estes acórdãos pressupõem, tais documentos, não se destinam ao juiz mas aos credores. Para além de que tais acórdãos, se baseiam nas considerações que Carvalho Fernandes e João Labareda tecem sobre o que seria melhor a lei ter acolhido e não sobre a efectiva solução legal.
Neste sentido veja-se o já citado ac. do TRL de 17/01/2013: distinguir, na lista do art. 24º/1 e 2a) do CIRE, entre documentos essenciais e não essenciais à apreciação da situação do devedor, para efeitos de a ausência daqueles ser e a destes não ser determinante do indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência, choca frontalmente com a letra do art. 27/1b) do CIRE, onde nenhuma distinção é feita pelo legislador. E, tanto mais quanto se prescinde, inclusive, da justificação razoável, na hipótese de documento “não essencial”, acórdão que ainda lembra que o art. 36/1f) do CIRE [que é invocado noutros acórdãos para sustentar a posição contrária] contempla a junção de documentos cuja não apresentação com o requerimento de insolvência haja sido justificada ou não haja sido detectada anteriormente.
Com tal distinção, afinal sempre haveria forma de considerar que nenhum dos documentos em causa no art. 24, nº.s 1 e 2a), do CIRE é essencial à apreciação da situação do devedor pelo juiz, pelo que todos eles acabariam por ser dispensáveis e a norma não teria qualquer sentido e o tribunal deveria sempre mandar seguir o processo fosse como fosse – apesar da clara letra da lei em sentido contrário -, frustrando-se assim entre outros objectivos a intenção da lei de facultar aos credores a consulta na secretaria (art. 26 do CIRE) de documentos de leitura fácil em que se encontre, por exemplo, a explicitação das causas da situação do devedor, sem mistura com outras alegações, acabando por se pôr a cargo dos credores a descoberta, no meio de artigos da petição inicial que podem ir até às centenas, das causas que haverá para tal situação, que o devedor, mais tarde poderá dizer que não foram bem entendidas pelos credores, entre o mais porque não repararam no que foi dito nos artigos 52, 157 e 361…
Nada disto prejudica que se aceite a tese de uma boa margem de discricionariedade (ou da tolerância) do juiz quanto à aceitação da justificação que o devedor possa apresentar para o facto de não fazer a junção, defendida por Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, págs. 219 e 228/229, que aliás resolverá quase todas as situações em que a questão se coloque aos devedores. Ponto é que estes se dignem justificar a não apresentação ou a desconformidade, em vez de se porem a discutir a necessidade de o fazerem ou o facto de já o terem feito quando não o fizeram, ou de exigirem que o processo prossiga sem necessidade de o fazerem, apoiados na posição defendida pela maioria dos acórdãos, como o fez a requerente destes autos.
Por fim, no caso dos autos, mesmo que se seguisse a tese contrária da maioria da jurisprudência (mas nunca sem o acrescento da justificação razoável), a mesma não teria aplicação, pois que, como se referiu, em relação à al. c) do art. 24/1 do CIRE nem se consegue perceber quais são as verdadeiras causas da sua situação segundo a requerente e, em relação à al. a) do art. 24/1 do CIRE, a falta de indicação correcta de um dos credores (e da sua sede e do valor de um dos créditos) não pode deixar de ser essencial, como decorre do lugar paralelo do art. 30/2 do CIRE (invocado, como já se viu, por Carvalho Fernandes de João Labareda) em que a oposição do devedor não será recebida se ele não juntar (nem depois do despacho de aperfeiçoamento…) a lista dos cinco maiores credores com indicação do seu domicílio.
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Entretanto, porque a interposição de recurso, no caso, dificilmente se compreende se não se souber que a requerente beneficia de apoio judiciário e que, por isso, há a ideia que de a sua atitude não tem consequências, lembre-se que a falta de colaboração do devedor, poderá ser levada em conta nos termos do art. 186/2i) do CIRE (Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 219), para além de que o facto de o pedido ser indeferido constituirá o devedor no incumprimento do dever de apresentação (autores, obra e local acabados de citar), sendo, no entanto, certo que a requerente terá ainda a oportunidade de uso da faculdade de apresentar nova petição nos termos do art. 560 do CIRE, aplicável por força dos arts. 590/1 do CPC e 17 do CIRE (neste sentido, autores e obra acabados de citar, págs. 219 e 230, e Jorge Carvalho e Ana Prata e Rui Simões, obra citada, pág. 105).
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela requerente (sem prejuízo do apoio judiciário).
Porto, 04/02/2016
Pedro Martins
1º adjunto
2º adjunto