Acção 1618/14.0TBVFR, Gondomar, Secção Cível – J1
Sumário:
I – Se a seguradora não prova que o valor real do veículo (com extras) à data do sinistro é inferior ao valor pelo qual ele (com extras) está segurado, não se põe a questão do sobresseguro e do princípio indemnizatório (arts. 128 e 132 da LCS).
II – Se a seguradora se obriga, no caso do tomador do seguro escolher uma oficina da rede convencionada da ré, a atribuir um veículo de substituição, a definir pela oficina, pelo período de imobilização do veículo seguro, mesmo que no contrato não esteja subscrita a cobertura de veículo de substituição, essa obrigação existe até que seja paga a indemnização no caso de perda total; e, no caso de não ser cumprida, o tomador tem direito a uma indemnização por equivalente.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A…, Lda, intentou a presente acção contra a Companhia de Seguros…, SA, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe 31.268,92€, acrescidos de juros legais até integral pagamento.
Alegou para o efeito, em síntese, que: era proprietária de um Mercedes; segurou os riscos de danos próprios na ré, pelo valor de 50.856€ em caso de perda total, incluindo esse valor os dos extras de 10.000€ que o veículo dispunha; no dia 22/08/2013, o veículo sofreu um choque que a autora participou à ré no dia seguinte; o veículo foi transportado para oficina recomendada pela ré; as consequências do choque implicaram a sua perda total, do que a ré informou a autora através de carta datada de 11/09/2013, mas não se responsabilizou pelo pagamento da indemnização correspondente, limitando-se a dizer, por variadíssimas vezes, durante mais de 5 meses, que se encontrava em “instrução”; a autora foi notificada pela oficina para proceder ao pagamento da viatura de cortesia/substituição, mais parqueamento da viatura sinistrada; a autora contactou a ré pedindo que esta regularizasse esta situação, a fim de não ter mais custos, para além do facto de não ter carro, nem indemnização, mas, para evitar mais complicações pagou os 4618,92€ que a oficina lhe pedia, a título de aluguer de viatura por um período de 69 dias [de 30/08 a 06/11/2013]; em 11/02/2014, a ré pagou à autora, pela perda do veículo, 22.706€, ficando a autora com os salvados no valor de 18.550€; faltam, por isso, 9650€ [ou melhor: 9600€] para perfazer o valor pelo qual a viatura se encontrava segurada na ré; entre a data do sinistro e o pagamento parcial da indemnização, decorreram 170 dias (excedendo em muito os previstos 30 dias), devendo a autora ser ressarcida da quantia equivalente ao aluguer de uma viatura de idênticas características da sua, cujo valor diário nunca será inferior a 100€ (ou seja, 17.000€ a título de danos resultantes da privação do uso/imobilização da viatura); o que dá o total pedido [= a 4618,92€ + 9650€ + 17.000€].
A ré contestou, dizendo, em síntese, que: assumiu o compromisso de regularizar o sinistro por e-mail enviado a 17/01/2014; tinha o direito de, até tal data, averiguar as circunstancias e até a própria dinâmica do acidente que lhe foi participado; o valor comercial da viatura segura, à data do sinistro, foi avaliado (resultando da consulta a entidades devidamente certificadas e avalizadas para o efeito) em 41.856€; assim sendo, a ré constatou que o capital pelo qual a viatura se encontrava seguro na apólice, indicado pela autora, de 50.856€, não era o valor real do mesmo, encontrando-se em situação de sobresseguro, o que, nos termos do DL 72/2008, de 16/04, arts. 128 e 132, determina que o contrato seja automaticamente considerado inválido na parte excedente (50.856,00 – 41.856,00 = 9000€) – acs. do STJ de 24/04/2012, 32/10.0T2AVR.C1.S1, e do TRL de 18/04/2013, 2212/09.2 TBACB.L1-2; tendo em conta, por força do art. 41/3 do DL 291/2007, de 21/08, o valor dos salvados (18.550€), e a franquia contratada (600€), a ré só tinha de pagar aquilo que pagou: 22.706€; a ré rectificou o valor do capital seguro e, em simultâneo, emitiu o estorno do prémio correspondente ao excesso do valor pago pela autora, tendo-lhe sido realizada a devida comunicação a 24/01/2014; o valor indemnizatório de 22.706€, proposto à autora, foi aceite e recebido, que deu quitação total; a autora não levantou qualquer objecção e/ou reserva ao teor de tal comunicação/valor, ficando com o dinheiro enviado pela ré; a actuação da autora, peticionando montante indemnizatório superior ao que efectivamente terá direito, e sabendo perfeitamente dessa desconformidade de valores, consubstancia abuso de direito e mesmo má-fé processual, devendo, por conseguinte, ser condenada exemplarmente em quantia a fixar nunca em montante inferior a 5000€, a reverter para os cofres do Estado; os outros dois valores representam uma duplicação de pedidos, uma vez que o alegado aluguer do veículo pelos 69 dias estará, necessariamente, compreendido dentro do período dos 170 dias; todavia, a ré não é obrigada no valor solicitado, uma vez que decorre do teor da apólice, doc. nº 1, que a haver lugar a tal indemnização, a mesma nunca poderia exceder o valor máximo de 25€; não se encontrando, sequer, contratado na apólice nenhuma verba a título de despesas havidas com hipotéticas viaturas de substituição; todavia, no presente caso e atento o teor da apólice contratada pela autora junto da ré (ponto 1.8, art. 1) não há lugar a qualquer pagamento ao abrigo desta cobertura, em caso de perda total”; para além de que a actual jurisprudência – ac. do STJ de 05/07/2007 (07B2138) – entende que “a privação do uso do veículo automóvel não basta para fundar a obrigação de indemnizar, se não se alegarem e provarem danos por ela causados.”; impugna uma série de factos e de documentos por [lhe] serem desconhecidos e/ou contrários à realidade; concluiu no sentido da improcedência da acção. Como não se transcreveu na íntegra a contestação, importa esclarecer que a ré não qualificou como tal as excepções deduzidas e que não diz uma única palavra sobre os extras da viatura.
A autora impugnou os factos que estão na base das excepções deduzidas pela ré.
[…]
Realizado o julgamento foi proferida sentença que condenou a ré a pagar à autora 4618,92€ acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do resto do pedido.
A autora (ou melhor, o seu ex-único sócio, já que a sociedade foi entretanto liquidada – por facilidade continuará a falar-se da autora) e a ré recorrem da sentença, ambas pretendendo que seja alterada a matéria de facto, e depois, a autora, para que a acção seja julgada procedente e a ré improcedente, com base em considerações que serão oportunamente analisadas, sendo estas as questões a decidir.
Nenhuma das partes contra-alegou no recurso da outra.
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Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
- A autora, à data de 22/08/2013, era proprietária do veículo de marca Mercedes – Benz, modelo E350, coupé, com a matrícula xx-xx-xx.
- A ré celebrou com a autora, o acordo denominado contrato de seguro de R C Viação, Pacote 5 – DP Mais, referente a essa viatura, titulado pela apólice n.º xxxxxxxx, cujas condições gerais, particulares e especiais se mostram juntas a fls. 73 a 132 dadas por reproduzidas
[entre o mais, nas condições de contrato celebrado que a ré enviou ao autor e apresentou em tribunal, consta o seguinte, na pág. 4, fls. 76: danos próprios, choque, colisão e capotamento: 50.856€; franquia: 600€**(** valor fora da rede convencionada de oficinas. Na rede convencionada a franquia é de 480€);
Depois consta, com a referência de ‘oficinas reparadoras’, o seguinte: o tomador poderá escolher a oficina na qual pretende a reparação dos danos no veículo seguro. Quando for escolhida uma oficina da rede convencionada da ré, ao tomador será atribuído veículo de substituição, a definir pela oficina, pelo período de imobilização do veículo seguro, mesmo que no presente contrato não esteja subscrita a cobertura de veículo de substituição.
Na pág. 5 de 60, fls. 77, consta: Cláusulas Descrição dos acessórios incluídos, no valor de 10.000€:
No ponto 1.8. do capítulo II das condições particulares, do ponto 1 referente a coberturas do seguro, diz-se, sob o art. 1/Garantias: Ficam abrangidos pela cobertura os prejuízos decorrentes da privação de uso da viatura segura. Quer essa privação seja devida a reparação em consequência de danos emergentes de acidentes de viação ocorridos com a mesma e que originem a sua paralisação temporária, ainda que ocorridos durante o período em que o seu possuidor se encontre desapossado dela em consequência de furto ou roubo desde que, em qualquer dos casos, seja simultaneamente accionada a cobertura de choque, colisão e capotamento, incêndio, raio e explosão, furto ou roubo e cataclismos naturais, queda de aeronaves, greves, tumultos, comoções civis, vandalismo e actos de terrorismo. O valor diário contratado será pago ao segurado após reparação do veículo seguro, não havendo lugar a qualquer pagamento ao abrigo desta cobertura, todavia, em caso de perda total. (pág. 54 de 82, fls. 105 dos au-tos) – esta transcrição foi feita por este acórdão do TRP]
- Na mencionada data de 22/08/2013, cerca das 21h30, quando o veículo da autora, seguia na estrada que liga Pedorido à Lomba, aproximando-se de uma curva, e sem que nada o fizesse prever, entrou numa valeta, tendo entrado em despiste.
- Fruto de ter entrado em despiste, o veículo da autora, subiu um morro de terra e posteriormente embateu numa árvore.
- O condutor do veículo da autora saiu com alguma dificuldade da viatura, porém, não teve qualquer ferimento.
- Fruto desse despiste a viatura ficou imobilizada no local do sinistro, tendo sido necessário recorrer ao serviço de reboque para retirar o veículo da autora do local do sinistro.
- O reboque transportou o veículo da autora para a oficina recomendada pela ré – Soc. C…, Lda.
- Quando o acidente ocorreu já era de noite.
- Mercê do acidente relatado, a viatura da autora apresentava danos estruturais profundos, bem como amolgadelas praticamente em toda a viatura.
- Tais danos eram particularmente visíveis na frente, lateral direita, interior, e tejadilho.
- A autora participou à ré o acidente no dia 23/08/2013.
- A ré após vistoria conclui pela perda total da viatura, o que informou através de carta data[da] de 11/09/2013.
- O representante legal da autora e o mediador pelo menos três vezes questionaram a ré acerca do estado do processo, em 30/10/2013, 22/11/2013 e 12/12/2013 – cfr. docs. de fls. 26 a 28 dados por reproduzidos.
- A ré respondeu que o processo se encontrava em “instrução”, nada mais dizendo – cfr. docs. de fls. 29 e 30 dados por reproduzidos.
- A autora comunicou por carta registada ao Instituto de Seguros de Portugal o atraso da seguradora, dando conhecimento à ré dessa comunicação – cfr. docs. de fls. 31 e 32 dados por reproduzidos. [na carta à ré, diz “[…] desde essa comunicação [a da perda total], apenas consigo obter de Vª Exas a resposta de que o processo se encontra em fase de instrução. Como é lógico, não posso estar privado do meu veículo, apesar de, entretanto, me deslocar de carro alugado, boleia de colegas – cujos recibos não deixarei de vos apresentar. Assim, tal indefinição da vossa parte (que se arrasta há mais de um mês), sem assunção da responsabilidade do pagamento da indemnização, não pode continuar. Deste modo e de acordo com a lei, venho exigir-vos a indemnização a que tenho direito pelo facto de terem deixado passar mais de 30 dias sem se pronunciarem. Assim, contabilizando-se a partir da data em que terminava o prazo legal obrigatório para darem uma resposta, até à resolução do processo, considero que me devem a quantia de 100€ por dia até que tomem a decisão de me indemnizar. Uma cópia desta carta será enviada ao Instituto de Seguros de Portugal.” – esta transcrição foi feita por este acórdão do TRP]
- A Soc. C… enviou à autora a factura com o nº xxxxxx, com data de 26/11/2013, no valor de 4618,92€, respeitante à viatura modelo B 180 CDI Man, disponível por 69 dias (desde 30/08/2013 a 06/11/2013), a um custo diário de 53,66€ + IVA, acrescido do valor de 64,80€ de gasóleo que a viatura dispunha [a redacção deste ponto resulta da alteração determinada neste acórdão]
- A autora contactou a ré pedindo que esta regularizasse a situação, a fim de não ter mais custos, para além do facto de não ter carro, nem indemnização.
- A autora devolveu a carta à oficina reparadora, mas foi novamente contactada para regularizar a situação, sob pena de ser intentada acção judicial contra si.
- A autora pagou 4618,92€ à SCCS, a título de aluguer de viatura por um período de 69 dias.
- A ré considerou ser de fixar a título indemnizatório à autora, deduzido o valor do salvado – que fixou em 18.550€ – a quantia de 22.706€.
- A ré pagou à autora 22.706€ em 11/02/2014.
- O montante assegurado pela ré incluía os extras que o veículo da autora dispunha.
- A ré disse ter avaliado o valor comercial da viatura, à data do sinistro, em 41.856€, e o salvado em 18.550€ [a redacção deste ponto resulta da alteração determinada neste acórdão].
- [este ponto foi eliminado por determinação deste acórdão].
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
[…]
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Do recurso sobre matéria de direito
Do sobresseguro (do recurso da autora)
O risco da perda total do veículo (com os extras) foi segurado por 50.856€.
A ré, a pretexto de que o veículo só valia 41.856€ (ou por não haver extras ou por eles já estarem incluídos naquele valor…) só pagou a indemnização com base neste valor (descontando o valor dos salvados, 18.550€, que a autora não pôs em causa, e a franquia de 600€). Invocou para tanto o princípio indemnizatório, consagrado nos arts. 128 e 132 da Lei do contrato de seguro e o regime do art. 43 do regime do seguro obrigatório (DL 291/2007) para a questão do desconto do valor dos salvados.
A sentença recorrida, aceitando as afirmações de facto feitas pela ré, considerou que o valor indemnizatório pela perda total do veículo era o atribuído e já pago pela ré: 22.706€, seguindo a construção jurídica feita pela ré.
Contra isto, a autora veio dizer: o valor pelo qual foi contratado o seguro foi acordado entre autora e ré e esse valor nem sequer tinha sido indicado pela autora; a ré podia ter solicitado uma auditoria ao veículo e só depois celebrar o contrato; a ré recebeu o prémio do seguro pelo valor contratado; a ré não pode, sob pena de abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade do venire contra factum proprium, opor ao tomador um eventual valor real inferior do veículo, apurado depois do sinistro ter ocorrido, para evitar pagar uma indemnização superior ao valor real, se antes de celebrar o contrato nada fez para apurar esse valor real, com o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de poder ter apurado esse valor real com facilidade (como no caso foi explicado pela testemunha que representa a empresa que fez a peritagem do tribunal), se tivesse actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhe impunha (art. 227 do CC) – ac. do tribunal da relação de Lisboa de 04/04/2013, processo nº 2212/09.2TBACB.L1-2; de qualquer modo, era à ré que cabia provar que a viatura se encontrava segura por um valor superior ao valor real, e em que medida é que esse valor é ultrapassado (neste sentido, veja-se o ac. do TRG de 04/04/2013, processo 35/11.8TCGMR.G1), ora, mediante a alteração da matéria de facto (afastados os pontos 23 e 24 da matéria de facto), deixa de haver sustento para a tese de sobresseguro.
Realmente, tendo ficado afastada a prova de que o valor real do veículo fosse inferior ao valor pelo qual foi segurado (prova que cabia à ré, como, por exemplo, diz o ac. do TRG citado pela autora), fica prejudicada a questão jurídica colocada por essa discrepância. Isto é, não tendo a ré, como lhe competia, provado que o veículo seguro valia aquilo que ela, só depois do sinistro, dizia que ele valia, deixa de se colocar a questão de saber se era apenas por este último valor que ela tinha de responder.
Assim, sendo o valor segurado de 50.856€, valendo os salvados (que ficaram para a autora) 18.550€, e havendo uma franquia de 480€ (e não 600€ já que a oficina era da rede convencionada), a indemnização a pagar pela verificação do risco coberto da perda total era de 31.826€. Tendo a ré pago 22.706€, falta pagar 9120€.
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Indemnização pelos 4618,92€ pagos pela autora à SCCS (do recurso da ré)
Tendo em conta, entre outros, o ponto 16 (na anterior versão, antes de alterada por este acórdão) e o ponto 19 dos factos provados, ou seja, e em síntese, tendo em conta que a autora foi notificada pela SCCS para proceder ao pagamento da viatura de cortesia/substituição e parqueamento da viatura da autora sinistrada, e que a autora acabou por pagar esse valor à Soc. C… a título de aluguer de viatura por um período de 69 dias, a sentença recorrida condenou a ré a reembolsar a autora desse valor, dizendo:
“A autora não pode ser onerada com os custos do aparcamento de uma viatura na oficina no âmbito de um sinistro em que a ré não só não declinou, como aceitou a sua responsabilidade, e cuja resolução se arrastou durante meses, sem sequer curar de dar uma explicação à autora, nem sequer de a autorizar a levantar os salvados.
A demora na regularização do sinistro apenas à ré é imputável, pelo que os custos de tal demora apenas a esta podem ser imputados, tanto mais que sobre tal assunto não reza o contrato.”
A ré impugnou a decisão da matéria de facto quanto a 16 e 19 e foi-lhe dada razão parcial à impugnação, mas isso apenas conduziu ao esclarecimento de que a factura se reportava ao aluguer de uma viatura por um período de tempo (de 30/08/2013 a 06/11/2013) e não ao parqueamento da viatura.
A ré, partindo parcialmente do pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto, vem recorrer da sentença na parte em que concedeu a indemnização dos 4618,29€, dizendo o seguinte como fundamento desta parte do recurso (sempre em síntese deste TRP, mas com a construção da ré):
Os pedidos realizados pelo autor na sua petição inicial contra a ré traduziram-se na solicitação da condenação ao pagamento de 31.268,92€ respeitantes a: (i) 4618,92€ pelo contrato de aluguer de uma viatura por 69 dias realizado na Soc. C… – doc. 18 da p.i. (fls. 34) – art. 30 da p.i.;(ii) 9650€ pela diferença do valor indemnizado e o que deveria ter sido indemnizado face ao capital seguro – art. 36 da p.i.; (iii) 17.000€ pela privação de uso resultante de 170 dias a um valor diário de 100€; Ou seja: nenhum montante foi solicitado à ré e concretizado em qualquer quantia a título do aparcamento gasto pela autora, razão pela qual a condenação realizada pela sentença foi muito mais para além do pedido.
[…]
Mesmo que tivesse sido produzida prova de qualquer valor cobrado e pago pela autora a título de aparcamento, o que não se concebe nem concede face às razões de facto supra expostas, […] tal indemnização não pode ser cobrada como devida à autora pela ré, por não constar das coberturas contratadas pela autora no contrato de seguro em análise.
[…]
Das coberturas contratadas e discriminadas nas condições particulares como pacote 5 dp mais (fls. 73 a 132) não consta nenhum valor diário e/ou outro contratado pela autora à ré a titulo de aparcamento! Assim sendo, obviamente que não tendo sido contratado, não tem a autora direito a ser indemnizada a esse título pela ré.
[…]
A sentença recorrida ao condenar a ré ao pagamento da quantia de 4618,92€ a título de aparcamento, violou, inequívoca-mente, o disposto nos arts 14, 43, 47, 48 e 49/3, todos do DL 72/2008, bem como os arts 236 a 238, 405 e 406 e 762, todos do Código Civil. Ou seja, o tribunal a quo baseou-se em nada para presumir que, no caso concreto, tal cobertura existisse, tivesse sido contratada! Daí que a sentença recorrida tenha violado o disposto nos arts 349 a 351do CC e o art. 607/4 do CPC.
De acordo com o preceituado no art. 238 do CC, nos negócios formais, como é o caso, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. E acontece que do texto do contrato nada refere expressamente que aquela cobertura esteja contratada. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. E sendo o negócio formal, vale de com a vontade expressa no texto do contrato, sendo certo que, no caso sub judice, esta é inequívoca. Sem esquecer que as partes (seguradora e tomadora do seguro, neste caso) assim o quiseram convencionar, ao abrigo do disposto no art 405 do CC e que a sua vontade deverá ser respeitada (art. 406 do CC) e o contratado, cumprido nos exactos termos em que pelas partes foi consignado.
Tratando-se de seguros de responsabilidade civil facultativos, estabelece o art. 49/3 da LCS, que as partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador. Por outro lado, o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato – art. 43/1 da LCS. Por fim, no que concerne ao conteúdo, as condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado, sendo certo que o contrato de seguro pode excluir a cobertura dos riscos derivados de várias causas desde que legitimas em face da lei (art. 47 do DL 72/2008).
A cobertura de choque, colisão e capotamento contratada pela autora, explanada nas fls. 73 a 132 dos presentes autos, não retira a finalidade/utilidade do contrato titulado por esta apólice. Antes pelo contrário, a decisão impugnada é que contraria a própria finalidade do contrato que as partes (sobretudo o tomador/segurado) tiveram em vista na decisão de contratar, pois considerar que existiu um dano para a autora a do pagamento de um alegado valor a título de aparcamento, que não ficou provado nem por prova documental nem por prova testemunhal, e que tal cobertura está contratada e vertida na apólice, com os (inexistentes) fundamentos em que o fez, constitui um total desvirtuamento do carácter aleatório típico dos contratos de seguro, mormente dos contratos de seguro facultativos.
Nesta parte, a sentença tem os fundamentos de facto em oposição com a decisão, sendo certo que padece de ambiguidades e aleatoriedade que a tornam ininteligível, lançando mão de arbitrariedades judiciais sem qualquer base factual na matéria provada, sendo, consequentemente, nula, porquanto os referidos fundamentos da matéria de facto dada como assente em conjugação com o teor dos documentos também assentes (designada-mente os de fls. 33, 34, 171, 172 e de 73 a 132) estão em oposição com a decisão encontrada – art. 615/1c) do CPC.
Sem prescindir de que, “como corolário do princípio do dispositivo (art. 264), a sentença deve conter-se dentro dos limites definidos pela pretensão do autor, bem como da reconvenção, nos casos em que é deduzida pelo réu (art. 661/1 do CPC). II. A violação deste limite, ou seja, a não coincidência da decisão por excesso de pronúncia determina a nulidade da sentença, como decorre do art. 668/1e) do CPC. (…). IV. De acordo com o disposto no art. 664.º do CPC, o juiz “(…) só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264” V. Não tendo sido alegados nem provados factos que permitissem concluir (….) sendo a sentença nula por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 661/1 e 668/1e) do CPC, por não coincidir com o pedido formulado a título principal” – ac. do TRL de 03/05/2012, 211/09.3TBRQ.L1-6.
Decidindo:
Aquilo que a autora quer é ser indemnizada – reembolsada – do valor que pagou contra a factura que a Soc. C… lhe enviou, por a autora entender que esse valor corresponde a um custo que tinha que ser suportado pela ré, como sua seguradora. Referiu para o efeito, na petição inicial, que tinha notificada pela oficina para proceder ao pagamento da viatura de cortesia/substituição, mais parqueamento da viatura sinistrada e que tinha contactou a ré pedindo que esta regularizasse esta situação, a fim de não ter mais custos, para além do facto de não ter carro, nem indemnização; mas, acrescenta, para evitar mais complicações pagou os 4618,92€ que a oficina lhe pedia, a título de aluguer de viatura por um período de 69 dias [de 30/08 a 06/11/2013]… Ou seja, há um excesso, algo contraditório (na parte que se refere ao parqueamento), na formulação da causa de pedir, que se repercutiu na fundamentação da sentença, mas não há confusão nenhuma naquilo que a autora quer e em que factos se baseia: ser paga do que pagou em lugar da seguradora, sendo que esse pagamento foi, segundo ela, pelo aluguer de uma viatura de substituição. Ora, como vem dizendo o STJ, o que importa não é qualificação jurídica da pretensões deduzidas pelas partes, mas os efeitos prático-jurídicos que elas realmente visam [neste sentido vejam-se os dois acórdãos do STJ relatados por Lopes do Rego, um de 05/11/2009, publicado sob o nº. 308/1999.C1.S1: 2. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, e outro de 25/02/2010, publicado sob o nº. 399/1999.C1.S1: a qualificação jurídica que a parte realiza quanto à pretensão de tutela processual que deduz não impede que o tribunal possa reconfigurar adequadamente tal pretensão, dando-lhe a adequada configuração jurídico-normativa, suprindo ou corrigindo o erro de direito da parte na formulação jurídica do pedido que deduz: como temos sustentado (veja-se o ac. do STJ de 05/11/2009 […]): o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo este fenómeno que permite compreender, por exemplo, que seja lícito ao tribunal convolar de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração de ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado (cfr, por exemplo, o acórdão uniformizador 3/2001, de 23/1/2001)].
Assim, por um lado, a ré tem razão ao dizer que a sentença não podia ter condenado no valor do parqueamento: porque este facto não estava provado e porque o risco de tal parqueamento não estava coberto pelo seguro contratado. Mas trata-se de um erro de julgamento (erro de julgamento do facto 16, já corrigido acima, e erro de fundamentação da condenação, por considerar que a autora tem direito aos 4618,92€ a título do aparcamento) e não de qualquer nulidade da sentença (os 4618,92€ tinham sido pedidos e a sentença tinha que conhecer deste pedido).
Mas não tem razão em dizer que o valor dos 4618,92€ não deve ser indemnizado. Se a autora tiver direito a essa indemnização, basta corrigir a fundamentação da sentença – o erro de julgamento em que ela incorreu.
Ora, para defender que a autora não tem direito àquele valor, a ré esquece a cláusula contratual constante da pág. 4 da apólice, fls. 76 dos autos, ao lado da menção “oficinas reparadoras”: “o tomador poderá escolher a oficina na qual pretende a reparação dos danos no veículo seguro. Quando for escolhida uma oficina da rede convencionada da ré, ao tomador será atribuído veículo de substituição, a definir pela oficina, pelo período de imobilização do veículo seguro, mesmo que no presente contrato não esteja subscrita a cobertura de veículo de substituição.”
Note-se (apenas para que não se diga o contrário) que, o veículo era a definir pela oficina, mas, obviamente, a atribuição era encargo da seguradora (a que se estava a obrigar) e não da oficina….
Ou seja, nesta situação concreta (que é a que se verificava tendo em conta o que resulta dos factos 7 e 16 a 19) a autora tinha direito, por força do contrato que celebrou com a ré, à atribuição de uma viatura de substituição, mesmo que no contrato tal cobertura não tivesse sido subscrita. Portanto, nesta hipótese, não interessa para nada o art. 1 do ponto 1.8. do capítulo II das coberturas do seguro e a exclusão incluída quase no fim de artigo e num contexto inesperado [exclusão que, de qualquer modo, teria de ser interpretada no mesmo sentido que se vai seguir abaixo, sob pena de absurdo – note-se que é isto mesmo que a testemunha invocada pela seguradora diz ser o comum acontecer, espontaneamente, a perguntas da seguradora e não da autora: Ad. da ré: Eu não lhe perguntei de quem era a responsabilidade. Eu perguntei-lhe se na [..] é comum em casos de perda total a companhia ainda assim pagar o veículo de substituição ao… Testemunha: Até indemnizar o cliente é. É comum.]
E tal direito existia pelo período de imobilização do veículo sinistrado, sendo que esse período, logicamente, no caso de perda total, se verifica até que a seguradora – tendo assumido a responsabilidade do sinistro – pague a indemnização pela perda total, pondo o sinistrado em condições de poder comprar um outro veículo, passando pois a estar em condições de se poder, novamente, locomover.
Ou seja, nos casos de perda total, o período de imobilização cessa quando se verifica o pagamento da indemnização por equivalente, possibilitando ao sinistrado a aquisição de uma viatura que lhe permita passar novamente a circular.
É isto que sempre tem sido dito nos casos paralelos de perda total no regime de seguro obrigatório, como decorre, apenas por exemplo e por facilidade, dos acórdãos citados pela autora, referidos abaixo (A privação de uso, que no caso normal de reconstituição natural, ocorrerá até ao momento em que esta se efective, com a entrega ao lesado do veículo reparado; no caso da restituição por equivalente, a privação verificar-se-á também objectivamente e deve entender-se que subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente. Só neste momento, com efeito, é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado”). E é o que também decorre, com ex-trema clareza, do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 42 do regime de seguro obrigatório (que se está aqui a invocar, como caso paralelo e apenas para esclarecimento do significado da expressão ‘período de imobilização’): 1 – Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores. 2 – No caso de perda total do veículo imobilizado, nos termos e condições do artigo anterior, a obrigação mencionada no número anterior cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização.
Qualquer outra interpretação da expressão ‘período de imobilização’ corresponderia a um absurdo – apesar da situação ser mais grave do que a que se verificaria com um veículo reparável, o lesado, no caso de perda total, não teria direito a um veículo de substituição; e se entretanto lhe tivesse sido fornecido, teria que ser ele a suportar o custo a partir do momento em que a seguradora decidisse que se tratava de uma perda total – que não tem qualquer suporte no contrato de seguro, sendo que entre estas duas interpretações deve prevalecer – segundo o ponto 3.2.b) da parte III, questões de carácter geral, das condições contratuais da (pág. 56 de 60, da apólice) – aquela que tem o sentido mais favorável ao tomador do seguro e/ou ao segurado.
Nem se diga que tal cláusula só vale quando o veículo fosse colocado na oficina para reparação, pois que quando o veículo é colocado na oficina não se sabe se o veículo está em perda total ou não; e a partir do momento em que se sabe que há uma perda total não se justifica que tal direito à atribuição de um veículo de substituição cesse (ou desapareça retroactivamente), como já se explicou acima, sem que a seguradora pague a indemnização pela perda total, tanto mais que a cláusula não contém qualquer exclusão e não seria essa a leitura objectiva daquela norma que qualquer declaratário em circunstâncias idênticas faria. E qualquer seguradora que actue de boa-fé e em cumprimento dos deveres legais não será prejudicada, pois que a partir do momento em que se decida pela perda total tem apenas oito dias para pagar, prazo que só usará se quiser [é significativo, aliás, do acerto desta leitura, aquilo que foi dito pela testemunha da oficina da rede convencionada da ré (com o especial grau de confiança que daqui resulta para a ré), espontaneamente e a perguntas da advogada da ré, com a ‘autoridade’ que lhe dá o facto de conhecer a prática/costume relativamente à questão em causa: “Advogada da ré. Eu não lhe perguntei de quem era a responsabilidade. Eu perguntei-lhe se na [..] é comum em casos de perda total a companhia ainda assim pagar o veículo de substituição ao… Testemunha. Até indemnizar o cliente é. É comum.”]
Assim, não tem razão a sentença recorrida quando, a outro propósito e invocando o art. 1 do ponto 1.8., diz, seguida pela seguradora, que não tem “cabimento compensar alguém pelo não uso de algo que já não existe.” (tal como tinha sido dito pela testemunha do contencioso da ré). Pelo contrário, tem todo o cabimento, primeiro porque não poder usar algo que deixou de existir é, a todas as luzes, um dano; segundo porque o risco de tal acontecer – não poder usar algo por ter deixado de existir – foi assumido pela seguradora no contrato celebrado com a autora, como resulta claramente da parte já transcrita (que se refere às oficinas reparadoras) no ponto 2 dos factos provados.
Pelo que, cabendo à ré suportar tal despesa, por força do contrato de seguro celebrado com a autora, e tendo sido esta que a suportou, cabe agora à ré reembolsá-lo do mesmo, pelo que, a solução final da sentença, nesta parte, está correcta e não deve ser revogada.
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Os 100€ diários pelos 170 dias até ao pagamento da indemnização (ainda do recurso da autora)
A autora pedia que a ré fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização pelo período decorrido entre a data do sinistro (22/08/2013) e o pagamento parcial da indemnização (11/02/2014), período esse que diz ser de 170 dias, acrescentando que tal excede em muito os previstos 30 dias, e diz que o valor da indemnização deve ser o equivalente ao aluguer de uma viatura de idênticas características da sua, cujo valor diário nunca será inferior a 100€, e depois diz que estes 17.000€ devem ser pagos a título de danos resultantes da privação do uso/imobilização da viatura.
A sentença recorrida viu neste pedido a invocação do dano da privação do uso [tal como também a ré o fez, como já se viu acima, no início do seu recurso] e disse quanto ao mesmo:
“[…] importa recordar que não estamos perante um quadro de responsabilidade civil extracontratual, mas sim contratual.
Ou seja, a seguradora não se está a substituir a um terceiro lesante que esteja obrigado a reparar todos os danos causados por um sinistro.
A ré está obrigada apenas a cumprir aquilo que contratou.
E o que contratou foi o seguinte: [a sentença invoca o art. 1 do ponto 1.8 do contrato consignado no ponto 2 dos factos prova-dos: «Ficam abrangidos pela cobertura os prejuízos decorrentes da privação de uso da viatura segura. […] não havendo lugar a qualquer pagamento ao abrigo desta cobertura, todavia, em caso de perda total.»]
O que aliás decorre com evidência do facto de não ter cabimento compensar alguém pelo não uso de algo que já não existe. Mutatis mutandis, quanto ao pagamento de uma viatura de substituição, que aliás a autora nem alega nem prova alguma vez ter usado ou sequer pedido, assim como não pôs em causa a dita cláusula.”
A sentença recorrida, mais à frente, a propósito de outro assunto, acrescenta:
“A autora não pode ser onerada com os custos do aparcamento de uma viatura na oficina no âmbito de um sinistro em que a ré não só não declinou, como aceitou a sua responsabilidade, e cuja resolução se arrastou durante meses, sem sequer curar de dar uma explicação à autora, nem sequer de a autorizar a levantar os salvados.
A demora na regularização do sinistro apenas à ré é imputável, pelo que os custos de tal demora apenas a esta podem ser imputados, tanto mais que sobre tal assunto não reza o contrato.”
Diz agora a autora no recurso [sempre em síntese deste TRP, mas com utilização da construção da autora]:
O tribunal a quo considera que não está em causa o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – DL 291/2007, de 21/08, por força da exclusão prevista no respectivo art. 14, mas o art. 92 do DL 291/2007, com a epí-grafe de “danos próprios”, diz o seguinte: O regime previsto nos artigos 32, 33, 35 a 40, 43 a 46 e 86 a 89 aplica-se aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros, desde que tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento.
Portanto, a ré estava obrigada ao cumprimento dos prazos previstos no art. 36 do DL 291/2007, o qual nos diz no seu n.º 1, alínea e), que a companhia de seguros tem 30 dias para assumir ou não a responsabilidade pelo sinistro. Não o fez, e até ao 170 dia, nem o tinha feito parcialmente.
Ora, o n.º 2 do art. 40 também aplicável por remissão do referido art. 92, diz-nos que, incumprindo a seguradora nos deveres de comunicar a assunção ou não assunção atempadamente, ou porventura não fundamente o atraso para não o fazer, constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de 200€ por cada dia de atraso, portanto, os 100€ peticionados pela autora estão dentro do valor referência da própria legislação.
O regime regra do nosso Código Civil é a reconstituição natural, porém, quando tal não se afigura como possível, recorre-se à indemnização correspondente, a qual permite ao segurado um mínimo de compensação, ou quiçá, a substituição do veículo, porém, até ao pagamento da indemnização, não cessa (cita neste sentido, António Jorge Rebelo, Acidentes de viação, a regularização de danos pelo seguro, Coimbra Editora, pag. 33, e os acs. do TRP de 05/02/2004, CJ, I, p. 179 [já transcrito acima], do STJ de 28/09/2011, 2511/07.8TACSC.L2.S1, e do TRP de 17/03/2011, 530/09.9TBPVZ.P1).
Seguindo a mesma linha de raciocínio seguida pelo tribunal a quo no que se refere à condenação da ré a pagar os custos com aparcamento que a autora teve que suportar, a autora esteve impedida de usar/fruir do seu veículo; bem sabemos que o veículo estava em estado tal que não lhe seria possibilitado circular, mas é exactamente para esses casos que existe a correspondente indemnização, visando não só compensar o tomador do seguro, no caso a autora, da sua perda, como possibilitar-lhe a substituição do veículo por um de idênticas características.
Decidindo:
Antes de mais, diga-se que na parte do recurso da ré já se chegou à conclusão de que a autora tinha direito contratual à atribuição, pela seguradora, de um veículo de substituição – a definir pela oficina – até ao dia em que lhe fosse paga a indemnização pela perda total do veículo
E não cumprindo a seguradora este dever, cabe-lhe naturalmente pagar uma indemnização por equivalente, como se tem dito para o caso paralelo do regime do seguro obrigatório (art. 42 do DL 291/2007).
Assim, por exemplo, o ac. do TRP de 08/10/2015 (1597/12.8 TBOAZ – não publicado): Salvo se se provar o contrário, a falta por um certo período de tempo de um veículo que se adquiriu para usar e se estava a usar, traduz-se num dano de privação do seu uso, que deve ser reparado pelas seguradoras com a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição (de características semelhantes) ou, caso essa obrigação não seja cumprida, pela atribuição, pelo menos tendencialmente, de um valor que parta do custo de aluguer diário desse veículo.
A indemnização por equivalente resulta, no caso, da violação do cumprimento do dever de atribuição do veículo de substituição (ou seja, da violação da cláusula contratual já referida).
Mas, para o caso de se entender que não basta essa violação, acrescente-se que, no caso, se verificam, sem dúvida, os pressupostos do direito à indemnização do dano da privação do uso do veículo sinistrado.
É certo que parte da jurisprudência defende a tese de que a privação da possibilidade de uso de um bem não é em si um dano (um dos pressupostos da responsabilidade civil), mas apenas a ilicitude da conduta (um dos outros pressupostos daquela responsabilidade) imputada ao agente. Pelo que não bastaria a verificação daquela privação (abstracta), teria ainda de se provar um dano (concreto). E isto, em termos gerais, é correcto. Se A ocupa parte de um terreno improdutivo de B situado fora de uma cidade, ao qual ninguém vai há mais de 10 anos, A pratica um acto ilícito que põe em causa o direito de propriedade de B, mas daqui não decorre qualquer prejuízo patrimonial para B (o terreno nem para estacionamento ou depósito de materiais lucrativo serviria para B, pelo que é escusado falar na perda de rendimentos que seria possível retirar do terreno).
Só que não é esta a situação que se verifica no caso dos autos, nem é ela que se verifica normalmente quando se está perante um proprietário de um veículo automóvel que o comprou para usar e que é vítima de um acidente de viação quando estava em circulação com ele (demonstrando o uso efectivo do veículo) e que a partir daí deixa de poder circular com ele até ao momento em que o veículo seja reparado ou substituído por outro que faça as suas vezes. Nos casos assim configuráveis, a doutrina (principalmente a posição de Júlio Gomes, com o artigo sobre a questão publicado na RDE de 1986, páginas 169 e segs: O dano da privação do uso) e a jurisprudência, com formulações alternativas (inúmeros acórdãos de todas as diversas teses e variantes podem ver-se na comunicação de 2012 da Abrantes Geraldes, de novo sobre o tema, publicada nos CDP número especial 02, págs. 137 e segs), acabam quase sempre por aceitar que se prova o dano da privação do uso e que o mesmo deve ser indemnizado.
A posição de Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, pág. 592) é reveladora de tudo isto: defende a tese inicial referida acima e crítica a tese de que baste a privação da possibilidade do uso para se ter um dano, mas também esclarece que se deve presumir uma vontade e possibilidade de utilização hipotética de bens de uso corrente. Pelo que, nestes casos, cabe ao lesante pro-var que o lesado não teria a possibilidade ou a vontade de utilizar a coisa. Ou seja, nestes casos, não é o lesado que tem de provar a possibilidade ou a vontade de utilizar a coisa, o que equivale a não considerar que a verificação de um dano indemnizável passe pela prova destes factos (segundo informa Júlio Gomes, na Alemanha atende-se à vontade de utilização do bem por parte do lesado e à possibilidade concreta dessa utilização, mas o ónus de alegação e prova da falta de vontade de utilização do bem no período em apreço por parte do seu titular cabe à lesante e não ao lesado: obra citada, págs. 180 e 187). Também neste sentido, agora, veja-se Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil, temas especiais, Universidade Católica Portuguesa, Setembro de 2015, págs. 57 a 68, especialmente pág. 62: “Em síntese, é tendencialmente maioritária a jurisprudência que tem vindo a decidir em sentido negativo a questão da indemnização por simples privação do uso da viatura, mas, simultaneamente, tem-se vindo a simplificar a prova dos danos concretos por parte do lesado a ponto de os resulta-dos práticos não se revelarem muito diferentes de uma posição favorável à reparabilidade da simples privação.” E mais à frente, pág. 64: “entendemos que a certeza e a segurança do direito são adequadamente alcançadas através da via intermédia supra exposta: presunção da existência de danos concretos a partir da prova do uso regular da viatura [que, na maior parte das situações, não será um uso diário]”.
Ora, que tudo isto é assim, foi o que veio a ser claramente esclarecido pela entrada em vigor, a partir de fins de 2006, do DL 83/2006, de 03/05, que introduziu o art. 20-J no DL 522/85, de 31/12, regime depois substituído por um igual no Dec.-Lei 291/2007, de 21/08, actualmente em vigor, que, pelo seu artigo 42, obriga as seguradoras, verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, a pôr à disposição do lesado um veículo de substituição (de características semelhantes) a partir da data em que assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente (chamando a atenção para esta norma, veja-se, também, Maria da Graça Trigo, obra citada, págs. 62/63, que comenta: “se a seguradora não cumprir esta obrigação ocorre como que uma segunda privação de uso”).
Repare-se que o único pressuposto do direito é a imobilização do veículo sinistrado, não se exigindo ao lesado que alegue e prove que tinha possibilidade ou a vontade de continuar a utilizar o veículo sinistrado (neste sentido, mas sem referência a este regime específico, vejam-se, por exemplo, os acs. do TRP de 24/01/2008, 07B3557, e de 19/03/2009, 3986/06.8TBVFR.P1).
E como o que de tal norma (do art. 42 do DL 291/2007, ou da cláusula contratual citada) decorre é a obrigação da seguradora fornecer o veículo desde que a responsabilidade seja dela seguradora, não se diga que a seguradora não tem obrigação de indemnizar pelo período anterior à assunção de responsabilidade, o que seria um contra-senso que o n.º 5 do art. 42 logo afasta, ao dizer que o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição. Neste sentido, veja-se Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 568/569, nota 1639, com referência ao art. 20-J já referido acima: “O que resulta das regras gerais sobre a indemnização é, porém, que o lesado tem direito à reconstituição natural logo após a privação do uso do veículo, não devendo entender-se que, quando a seguradora não reconheça logo a sua responsabilidade, mas esta venha posteriormente a apurar-se, fique prejudicado também o direito à compensação dos custos do aluguer de uma viatura pelo próprio lesado. Tal aluguer pelo lesado, em lugar do recurso a outros meios de transporte, não configura, só por si, um agravamento dos danos que conduza à exclusão da indemnização nos termos gerais do art. 570/1, ficando, aliás, a dever-se ao não reconhecimento imediato pela seguradora de uma responsabilidade que depois se veio a apurar.”
Ora, este regime previsto no âmbito do procedimento de regularização de sinistros é o reconhecimento implícito do regime substantivo geral (dos arts. 483 e 562 a 566 do CC) do direito à reparação do dano da privação do veículo sem dependência de quaisquer outros pressupostos para além do da existência da imobilização do veículo sinistrado, baseado na presunção natural de que a imobilização forçada de qualquer veículo que estava a ser usado pelo seu proprietário representa um dano.
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Pelo que antecede, a questão está já, no essencial, resolvida, importando apenas fazer uma série de precisões.
(i) embora a autora tenha misturado uma série de fundamentos para sustento do seu pedido de indemnização de 17.000€, o que ela quer é ser indemnizada por este dano que faz equivaler ao valor de um veículo de substituição, por todo o tempo que se verificou a privação do uso do veículo sinistrado, isto é, deste o sinistro até ao pagamento (parcial) da indemnização. Quer a sentença quer a ré também consideraram que o que estava em causa neste pedido era o dano da privação do uso da viatura, sendo que este dano se indemniza, normalmente, pela atribuição de um veículo de substituição, ou, se tal não tiver acontecido, pelo valor equivalente. Ou seja, o que está aqui em causa é apenas este dano e nenhum outro.
(ii) A autora tem razão quanto à aplicação de partes do regime anexo ao DL 291/2007, ou seja, do seguro obrigatório, como decorre expressamente do art. 92 do mesmo, por ela citado. Só que a aplicação de partes desse regime, ou seja, na parte que interessa ao caso, das regras relativas à diligência e prontidão da empresa de seguros, das propostas razoáveis e das consequências da inobservância dos deveres respectivos, não tem a ver com a indemnização do dano da privação do uso ou com a atribuição de veículos de substituição, aquela (privação do uso) não prevista expressamente em tal regime (mas pressuposta por esta atribuição de veículo de substituição) e esta (substituição) prevista no art. 42 do regime cuja aplicação está afastada pela inexistência da remissão do art. 92 para o art. 42.
(iii) Em consequência, a sentença recorrida tem razão em considerar que o dano da privação do uso do veículo não é coberto pelo regime do seguro obrigatório, ou seja, este regime não atribui ao segurado da ré um direito que o contrato de seguro celebrado entre ambos não atribua, limita-se a reger para a regularização das indemnizações que sejam devidas em virtude de tal contrato.
(iv) Mas a sentença não tem razão em entender que este dano não estava previsto contratualmente, pois que, como se viu, estava.
(v) A autora tem razão, por outro lado, em invocar o atraso da ré na regularização das consequências do sinistro, e a autora teria direito à indemnização dos danos resultantes desse atraso, autonomamente do dano da privação do uso, nos termos que resultariam dos arts. 36/1, 38/1, 2 e 3 e 43/1 e 3, aplicáveis devido à remissão do art. 92, todos do DL 291/2007.
(vi) A autora já não teria direito, no entanto, à indemnização prevista no art. 40/2 do DL 291/2007, ao contrário do que defende, pois que esta disposição se refere à violação do dever previsto no art. 40/1 do mesmo DL, ou seja, ao atraso na comunicação da não assunção da responsabilidade, pressuposto que não se verifica porque, como se viu, a ré assumiu a responsabilidade.
(vii) A ré violou ainda outra regra, que tem a ver com o dever de diligência e prontidão, consagrado no art. 36 do regime de seguro obrigatório, ou seja, a prevista no art. 36/7, que diz que, sem prejuízo do disposto nos n.ºs anteriores, a empresa de seguros deve proporcionar ao tomador do seguro ou ao segurado e ao terceiro lesado, informação regular sobre o andamento do processo de regularização do sinistro, o que ela manifestamente não cumpriu, limitando-se a dizer que o processo se encontrava em instrução, nomeadamente quanto ao valor da viatura, ou que estava a ultimar a instrução do processo, o que em nada esclarecia a autora. Mas esta violação, para os efeitos que estão em causa nos autos, estaria consumida pelas outras já referidas.
(viii) como a autora tinha direito a que a ré lhe atribuísse um veículo de substituição, a definir pela oficina, e houve um período em que de facto esse veículo de substituição foi fornecido, tendo ele o valor de 53,66€ diário é esse o valor da indemnização por equivalente.
(ix) os 4618,92€ pelos quais a ré já foi condenada incluem o valor desse custo diário do veículo de substituição durante o período de 30/08/2013 a 06/11/2013, pelo que esse período não pode ser de novo indemnizado, sob pena de duplicação de valores.
(x) Assim, a autora tem direito à indemnização pelos períodos em que não lhe foi atribuído um veículo de substituição – de 23/08/2013 a 29/08/2013 e de 07/11/2013 a 10/02/2014, com o valor diário de 53,66€, o que dá 5526,98 (= 103 dias a 53,66€).
(xi) Sobre os valores achados recaem juros de mora a partir da citação, à taxa de 4% ao ano (arts. 805/1, 806/1 e 2, 559/1 do CC e Portaria 291/03, de 08/04).
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Pelo exposto, julga-se o recurso da autora parcialmente procedente e improcedente o da ré, aditando à condenação da ré (de 4618,92€, contida na sentença recorrida e mantida por este acórdão, nos seus precisos termos) ainda o seguinte:
a) A pagar à autora (ou melhor, ao seu ex-único sócio) 9120€ como parte em falta da indemnização pela perda total do veículo;
b) mais 5526,98€ como indemnização pela falta de atribuição de veículo de substituição;
c) sobre todos os valores em dívida, recaem juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, vencidos desde 03/07/2014 e vincendos até integral pagamento.
Custas da acção pela autora (ou melhor, pelo seu ex-único sócio) em 38,39% e pela ré em 61,61%.
Custas do recurso da autora por esta (ou melhor, pelo seu ex-único sócio) em 45,04% e pela ré em 54,96% (valor do recurso: 26.650€)
Custas do recurso da ré pela ré (valor do recurso: 4618,92€).
Porto, 21/01/2016.
Pedro Martins
1º adjunto
2º adjunto