Procedimento cautelar comum 8140/15.5T8VNG de Gaia

3ª Secção Cível – J3

            Sumário: Não se pode provar o manifesto abuso de direito (art. 334 do CC) de accionar uma garantia bancária à primeira solicitação (não motivada, justificada ou documental) apenas com prova testemunhal, com documentos emitidos apenas pela ordenadora ou com documentos que não provam inequivocamente os pressupostos invocados.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A 23/09/2015, M, SA, com sede em x, intentou um procedimento cautelar comum contra Banco, SA, e K, com sede no estrangeiro, alegando, de forma agora muito sintetizada, que:

         Celebrou com a K vários contratos pelos quais se obrigava a fornecer diverso equipamento e a realizar várias obras para obras que esta estava a realizar; a execução de alguns desses contratos foi objecto de várias garantias bancárias à primeira solicitação, no valor de cerca de 1,6 milhões de euros; ora, diz, a K tem faltado ao cumprimento dos diversos contratos, não pagando cerca de 833 mil euros de trabalhos já realizados (cujas facturas junta, junto com muitos outros documentos), nem cumprindo os prazos das obras, o que não permite à requerente realizar as obras que lhe foram adjudicadas nos prazos estipulados, o que tem causado elevados prejuízos e constrangimentos à requerente, nomeadamente o aumento de custos quer com a manutenção de estaleiros em todas as obras, bem como de mão-de-obra; por tudo isto, a requerente resolveu, com justa causa, os vários contratos garantidos; e agora a K, para a obrigar a continuar a fornecer os bens e a realizar as obras, mesmo depois da resolução do contrato e sem lhe pagar o que lhe deve, ameaça executar todas as garantias bancárias; ora, exigir o pagamento das garantias bancárias de 1,6 milhões de euros quando os contratos garantidos já estão resolvidos por incumprimento da K, para obrigar a requerente a continuar a fornecer os bens e a realizar as obras quando a K já está em dívida por cerca de 833 mil euros, representa uma fraude e um abuso de direito – a utilização das garantias para um fim oposto àquele para o qual elas existem – que a requerente pode invocar mesmo estando em causa este tipo de garantias, para além de não fazer sentido face à resolução dos contratos garantidos (cita, para o reconhecimento desta possibilidade, os acs. do TRL de 16/04/2009, [2722/08.9TVLSB-8], e do TRP de 28/04/2011, [171/11.0TVPRT.P1], e poderá pôr a requerente numa situação financeira muito complicada, pôr em causa a estabilidade financeira do grupo a que pertence e levar a atrasar o pagamento aos seus trabalhadores, fornecedores, segurança social e finanças.

            Por isso, pretendia que fosse decretada a suspensão das garantias bancarias até ao trânsito em julgado da acção definitiva e a intimação do Banco para que se abstivesse de, por efeito daquelas garantias, pagar à K, tudo com dispensa da audiência das requeridas, em virtude de a sua audição colocar em risco o fim da presente providência; apresentou ainda prova testemunhal.

            Por despacho de 13/10/2015 julgou-se, sem produção de prova, manifestamente improcedente o procedimento, com base nas seguintes considerações [depois de se darem como indiciariamente provadas as actividades das três sociedades, os contratos celebrados e uma reunião entre a requerente e a K para obtenção de uma revogação amigável de um dos contratos garantidos; na fundamentação de direito, invoca-se também expressamente a cláusula 7.1 dos contratos de garantia: Funcionamento da Garantia: a ordenadora declara irrevogavelmente autorizar o Banco a efectuar os pagamentos que lhe sejam solicitados pelo beneficiário não tendo de apreciar ou averiguar a justiça do direito deste]:

         (i) o garante autónomo à primeira solicitação (e é disso que se trata face à cláusula 7.1) apenas pode recusar o pagamento quando tenha prova pronta e líquida de que a solicitação do beneficiário se traduz numa fraude ou num abuso de direito manifestos; essa prova pronta e líquida/inequívoca não pode ser prova testemunhal, tem de ser prova documental, de segura e imediata interpretação; e isto vale para a prova da falta de pagamento e do atraso dos trabalhos: ela tem de ser «líquida», ou seja, inquestionável e não com base em facturas e depoimentos de testemunhas, sempre passível de um contraditório potencialmente também forte e que, no caso, não é admissível; embora não se exija uma sentença transitada em julgado, tem de resultar de uma confissão de dívida, ou de outra documentação isenta, realizada por uma entidade externa, um fiscalizador dos trabalhos e com um resultado aceite por ambas as partes, ou se a fraude ou o abuso forem públicos e notórios (ac. do TRL de 11/12/1990, CJXV, tomo V, 134);

         (ii) a autonomia da garantia bancária à primeira solicitação não se coaduna com o deferimento de providências senão em situações excepcionais; seria excessivamente relativizada caso fosse suficiente uma prova meramente sumária ou indiciária, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade; ou seja, deve ser considerado insuficiente um simples fumus bonus iuris, pois só assim se negará ao devedor a possibilidade de obter, por via cautelar, o que o garante não pode obter por via da contestação à solicitação (é a posição de Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, página 337, e do ac. do TRL de 08/09/2015 [74/14.7T8LSB.L1-7]);

         (iii) a requerente não alega nenhum caso de fraude, o que alega é que esta não paga o que a requerente fornece e ainda vai beneficiar das garantias bancárias;

         (iv) o valor em dívida (com base em contratos suportados com garantia bancárias) será apenas de 523.104,26€ e o das garantias bancárias apenas de 708.258,73€;

         (v) por outro lado, ter-se-ia ainda que demonstrar que a requerente por seu turno está a cumprir o objecto da sua obrigação algo que assume que não está ao imputar à 2ª requerida a «culpa» na ocorrência dessa situação;

         (vi) a requerente ao contratar as garantias bancárias à primeira solicitação assumiu os respectivos riscos que são os que estão em causa na situação: a discussão sobre se a requerente não cumpria porque a K também não cumpria, tem de ser feita depois de pagar;

         (vii) da acta (fls. 797 a 799) da reunião de negociações para acordo das partes quanto a um dos contratos e a uma das garantias, não resulta expressamente que a requerente sai da obra e que haja devolução da garantia bancária (embora se admita que, procurando-se obter um consenso relativo a uma ‘rescisão amigável’ desse contrato, seja essa a finalidade); ora, primeiro, esta circunstância de se estar a obter um acordo não é equiparável a ter-se obtido um acordo; segundo, não há qualquer prova documental desse acordo pelo que, face à nossa acima referida exigência desse tipo de prova, não existe prova de acordo; terceiro, se a K procura chegar a acordo com a requerente, pensamos que se torna difícil concluir que aquela age de má-fé, de modo fraudulento, pois há negociações, valores que são discutidos e que ainda podem estar em discussão, logo com possibilidade de uso da garantia em causa que a requerente livremente se dispôs a prestar.

            A requerente interpôs recurso deste despacho, que termina com conclusões idênticas ao corpo das suas alegações e que podem ser assim sintetizadas:

  1. O tribunal não faz qualquer referência à carta enviada pela requerente à K a rescindir os contratos celebrados entre ambas por falta de pagamento das facturas vencidas, e por falta de andamento nas obras, o que seria fundamental para se aferir da má-fé da K bem como do perigo iminente que a requerente corre, pois se por um lado a K tem agido com um total desrespeito pelas suas obrigações assumidas, só exigindo que a requerente execute as obras, por outro lado, a carta coloca na iminência a execução infundada de todas as garantias, o que implicaria a nulidade da sentença, nos termos do art. 651/1d) do CPC.
  2. O tribunal não faz qualquer referência ao reiterado incumprimento por parte da K, o que era fundamental para se aferir da actuação dolosa por parte desta bem como demonstrar a sua manifesta má-fé, o que implicaria a nulidade da sentença, nos termos do art. 651/1d) do CPC.
  3. O tribunal devia ter considerado como facto relevante o valor da dívida da K para com a requerente.
  4. O tribunal erra quando afirma que o valor em dívida da K é de 523.104,26€ e os valores das garantias prestadas é de 708.258,73€, porquanto os valores correctos são os indicados pela requerente.
  5. A documentação junta aos autos é idónea para provar o crédito da requerente; além das facturas juntas existem também os autos de medição assinado por ambas as partes; logo, a K sempre aceitou e reconheceu os montantes em dívida.
  6. O tribunal considerou, erradamente, que o depoimento das testemunhas não é suficiente para provar o não pagamento; a prova testemunhal sempre foi uma prova aceite em qualquer caso, não sendo de excluir neste caso em particular; assim, deveria ter ordenado toda a produção de prova; aliás como refere o ac. do TRL [de 25/10/2012] com o n.º 1482/12.3TVLSB-B.L1-6, a prova líquida e inequívoca são as legalmente previstas, designadamente documental e testemunhal; ao não permitir a prova testemunhal o tribunal decidiu mal.
  7. Não se pode aceitar o argumento do tribunal quando afirma que a requerente não alega nenhum caso de fraude; a K ao não pagar as facturas já há muito vencidas, e continuando-se a refugiar nas garantias bancarias para obrigar a requerente a continuar a prestar os seus serviços, age com claro abuso de direito; a K tem direito a executar as garantias bancarias mas não o pode fazer de forma indiscriminada: exige-se que a sua actuação seja fundada, o que no caso não se verifica, porquanto a requerente cumpriu pontualmente com todas as suas obrigações para com a K.
  8. As garantias foram prestadas como garantes de uma boa-execução de contrato e não como garante de um pagamento por um serviço prestado, distinção que é fundamental para o caso; pelo que não se pode concordar e aceitar quando o tribunal afirma: “pagar primeiro e discutir depois”.

              Ainda não foi ordenado o contraditório, pelo que não houve lugar a contra-alegações.

                                                      *

            No dia 30/11/2015, já depois de elaborado o projecto de acórdão, a requerente apresentou prova de que, entretanto, o Banco estrangeiro tinha accionado as contra-garantias [de que já se falará] junto do Banco, o que confirmaria o justo receio de que isso viesse a acontecer, o que, como decorre do que se segue, não tem relevo pois que existência desse risco não estava em causa.

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            Questão que importa decidir: se se deve deixar seguir o procedimento para produção de prova testemunhal.

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            Acrescente-se, ainda, aos factos [referidos imediatamente antes da síntese das razões do despacho recorrido feita acima] o seguinte (que resulta dos próprios contratos em causa):

        Nas garantias bancárias prestadas pelo Banco constam as seguintes cláusulas: “[…] nous […] contre-garantissons irrévocablement et inconditionnellement […] la bonne exécution [pela requerente] de ses obligations contractuelles et a défaut, le remboursement des sommes dues au titre de ladite contre-garantie. En conséquence, nous paierons sans délai à Banco estrangeiro à première demande de celle-ci sans pouvoir recourir à une quelconque formalité et sans pouvoir lui opposer le motif de notre chef ou du chef de notre donneur d’ordre, le montante intégral de […] ou tout autre montante restant dû au titre de cette contra-garantie […]. Nous renonçons expressément à nous prévaloir d’une quelconque exception tirée do contrat liant K e requerente pour autant que Banco estrangeiro justifie par swift authentifié que K a mis en jeu la garantie.”

            Posto isto,

            A requerente contratou a mais forte das garantias que podia ter celebrado (aquela que, nas palavras de um artigo de Galvão Telles já citado nos autos [Garantia Bancária Autónoma, O Direito, ano 120, 1988, II-IV, pág. 283] corresponde a colocar o credor numa “situação tão segura como a que lhe adviria de um depósito feito nas suas mãos”). E o Banco prestou-a (como contragarantia) ao beneficiário nos termos contratados (apenas exigindo a prova do accionamento da garantia pela K). Mesmo dentro das garantias bancárias à primeira solicitação, em vez da que celebrou, a requerente podia ter antes contratado uma à primeira solicitação motivada, ou uma à primeira solicitação justificada, ou mesmo uma documental (quanto a estes quatro tipos, veja-se, por exemplo, o ac. do TRL de 08/09/2015). Não o tendo feito, colocou-se nas mãos da K, dando-lhe a possibilidade de as accionar mesmo que esta não tivesse razões válidas para o efeito. Aceitou, pois, correr este risco, risco que, agora, só poderia evitar se demonstrasse, de forma inequívoca que, para além do mais, os contratos base foram resolvidos com [comprovada] justa causa sem que o K tivesse já, antes da resolução, direito a accionar as garantias, ou que este accionamento, em qualquer caso, representaria um abuso de direito [art. 334 do CC]

              [neste sentido, apenas por exemplo e para além de todos os já citados nos autos e dos que se vão citar a seguir, veja-se o ac. do TRL de 08/09/2015, citado pelo despacho recorrido: “para que aquela providência lograsse sucesso, teriam as requerentes que possuir prova pronta e líquida de que a pretensão do beneficiário era manifestamente abusiva (cfr. no mesmo sentido, o ac. do STJ de 14/10/04, CJXII, tomo III, 55, onde vem citado Francisco Cortez, A Garantia Bancária Autónoma, in ROA, Ano 52, II, Julho, 1992, págs. 513 a 609)”].

            Essa demonstração, de forma inequívoca, do abuso de direito de accionar as garantias, que poderia levar à suspensão do mesmo pretendida pela requerente, representando pois uma solução contrária àquela que as partes (presumivelmente de forma livre; se assim não tiver sido, a requerente tinha que o alegar; note-se, para além do mais, que no caso não está perante nenhuma parte contratual especialmente desprotegida) tiveram em vista com as garantias bancárias em causa, tem sido feita equivaler à demonstração da situação abusiva através de documentos inequívocos, que não deixem margem para dúvidas.

            [neste sentido, por exemplo, o ac. do STJ de 21/04/2010, 458/09.2YFLSB: A  fraude ostensiva, clamorosa e evidente do beneficiário (abuso de direito), resultante da ausência de direito do beneficiário, pode ser invocada pelo garante que dela tiver prova líquida (documental) para recusar o pagamento que lhe é exigido […]. Este acórdão do STJ invoca no mesmo sentido: Fátima Gomes, Garantia Bancária Autónoma à Primeira Solicitação, Direito e Justiça, vol. VIII, tomo 2, 1994, págs. 180-181 – que referindo-se à prática e orientação internacional praticamente unânimes, diz “A prova líquida é, sobretudo, associada à prova documental, mas chega-se a admitir a invocabilidade de prova resultante de uma decisão judicial transitada em julgado ou de uma decisão arbitral […]” -; Galvão Telles, obra citada, págs. 289-290, – “Não basta que o banco alegue a má fé. Torna-se necessário que ela seja patente, não oferecendo a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do banco”; o que já era dito por este Prof. no seu estudo original de 1982/1983, na FDUL, Direito Privado II, Garantia Bancária Autónoma, sumários, pág. 35 -; Almeida Costa e Pinto Monteiro, O contrato de garantia à primeira solicitação, CJ1986, tomo V, págs. 20/21 – que salientam que “não basta a suspeita de fraude ou de abuso para impedir a entrega da garantia, logo que solicitada (…). Só é legítima a recusa de pagamento do Banco se – no momento em que o pagamento da garantia lhe for solicitado – o banco possuir prova inequívoca do abuso ou da fraude manifestas do beneficiário”; mais à frente, pág. 27, 2ª coluna, estes autores acrescentam: “não há abuso ou fraude manifestos […] se se mostra necessário, para estabelecer a má fé do beneficiário, requerer a produção de provas suplementares, proceder a medidas de instrução ou chamar terceiros à causa”; Calvão da Silva, Garantias acessórias e garantias autónomas, consulta, in Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1996, págs. 343-344 – “todas as cautelas são poucas, e por isso se exige ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental”; em nota, 26, o autor repete para vários autores estrangeiros, incluindo um que à prova documental equipara o facto notório; mais à frente, pág. 345, o autor refere, como exemplos de prova líquida, recibo de quitação ou outro documento comprovativo da exceptio adimpleti contratus); Mónica Jardim, op. cit, pág. 293 – prova documental de segura e imediata interpretação, pois esta prova satisfaz plenamente a exigência de prova pronta (pré-constituída) e líquida (inequívoca) ” -; no mesmo sentido, ainda, veja-se o ac. do TRL de 08/09/2015: “não há abuso ou fraude manifestos se houver necessidade, para estabelecer a má fé do beneficiário, de proceder a medidas de instrução.  Na verdade, a prova é pronta quando não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares e é líquida quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso, tornando-os óbvios (cfr. Mónica Jardim, ob. cit., pág. 292). A doutrina maioritária entende que a fraude ou o abuso de direito não têm de resultar de sentença transitada em julgado, mas que também não pode ser feita com qualquer dos meios legalmente admissíveis, antes havendo que exigir prova documental, de segura e imediata interpretação […]. No caso de o abuso decorrer de factos que não possam ser confirmados com um simples documento, então, segundo a mesma autora, ob. cit., pág. 293, será de exigir laudo arbitral ou sentença judicial transitada em julgado, […]”).

              Ou seja, uma demonstração que não é compatível, pela própria natureza das coisas, com um simples juízo de probabilidade, isto é, com uma simples prova sumária (arts. 365/1 e 368/1, ambos do CPC): se a situação tem de ser manifesta (art. 334 do CC), não pode ser, ao mesmo tempo, apenas provável. Ou seja, a providência cautelar pode ser pedida e decretada, mas a prova não pode ser a que é exigida normalmente nas providências cautelares (neste sentido, veja-se, por exemplo, a consulta já citada de Calvão da Silva, nota 31 da pág. 345: “A exigência de prova líquida da excussão abusiva ou fraudulenta pretendida pelo beneficiário, a mais da sumaria cognitio da probabilidade séria ou verosimilhança da sua existência (arts. 400 e 401 do CPC [= arts. 365/1 e 368/1 do CPC depois da reforma de 2013], justifica-se em nome da segurança e da certeza visadas com a cláusula de pagamento à primeira solicitação ou outra equivalente.”; e o ac. do TRP de 2011 citado pelo próprio requerente: III – Todavia, nesses casos excepcionais, serão insuficientes a summaria cognitio e o fumus boni iuris, normalmente ligados à fixação dos factos relativos à existência do direito do requerente e ao periculum in mora, sob pena de violação do princípio da autonomia da garantia bancária, reforçado nas situações em que é fixada a cláusula “à primeira solicitação”]).

            Esta exigência de prova documental inequívoca, não resulta, como se vê, da posição isolada de um artigo doutrinário ou de um acórdão, representa antes a posição quase unânime da doutrina e da jurisprudência nacional e não só, o que no caso é relevante porque a situação é conexa com várias ordens jurídicas (em sentido contrário, encontra-se apenas a posição em abstracto assumida pelo ac. do TRL de 25/10/2012, citado pela requerente, quanto à legalidade de se ter ouvido, no caso, prova testemunhal, mas com resultado prático idêntico a todos os outros casos citados nestes autos, pois que também nela não se concedeu a suspensão das garantias).

            A demonstração do abuso de direito não pode, por isso, ser feita através da prova testemunhal ou através de documentos que representem apenas a posição da própria requerente e apenas quanto a algum dos pressupostos da situação desenhada (como no caso, em que os relatórios em que se imputa a culpa dos atrasos à K, são feitos pela requerente, tal como são suas, sem qualquer participação da K, as facturas emitidas).

            “Solução diversa”, como diz o ac. do STJ de 21/04/2010, “poderia pôr seriamente em causa a função deste tipo negocial, consabidamente criado pela prática para permitir uma satisfação rápida e sem controvérsia do interesse do beneficiário […]; cfr., […] o ac. deste STJ de 12/09/ /2006, 06A2211, que frisa a necessidade de não “se frustrar o escopo das garantias à primeira solicitação, que só viriam a ser pagas após longas e demoradas controvérsias.” [Almeida costa e Pinto Monteiro já em 1986 diziam o mesmo, no parecer citado, pág. 21, 1ª coluna: “[…] se bastasse ao banco alegar o abuso ou a fraude do beneficiário, fazendo-se depender a sua prova de diligências ulteriores, frustrar-se-ia, afinal, o objectivo das garantias à primeira solicitação, acabando por virem a ser pagas só depois de largas discussões e controvérsias, quando o seu escopo é precisamente evitar essa situação. O ponto é pacífico.”]

            Não pode, por isso, obter-se a suspensão cautelar do direito de accionar as garantias bancárias automáticas através da discussão, com prova testemunhal, se foi a K que não cumpriu os prazos contratuais, se foi por causa disso que a requerente deixou de cumprir a sua prestação, se a requerente não deve nada à K, e se a K, no âmbito dos contratos garantidos e de outros não garantidos, está a dever, por fornecimentos de bens e realização de obras, à requerente, uma determinada quantia.

            Tudo isto concorda, como se pode ver, com os argumentos aduzidos pelo despacho recorrido em (i – embora acima também se tenha feito referência às cláusulas que dizem respeito à prestação da [contra-]garantia pelo Banco à beneficiária), (ii), (v), (vi) e com a primeira parte de (vii) sendo irrelevante a parte final; quanto a (iii) não se concorda, pois que a argumentação da requerente, se correspondesse a factos inequivocamente provados, poderia ser configurada com abuso de direito, mas como não corresponde é irrelevante a discordância quanto ao despacho recorrido; quanto a (iv) o despacho recorrido não terá, na perspectiva acabada de referir, razão em restringir a dívida aos contratos suportados com garantia bancárias, pois que a configuração da situação como abuso de direito poderia incluir também a dívida pelos outros, mas a discordância é de novo irrelevante pois que não há prova inequívoca do valor da dívida (e por isso é também irrelevante o valor correcto das garantias bancárias).

            E tudo isto afasta os argumentos da requerente, mas sempre se dirá ainda o seguinte quanto a eles (excepto quanto a 5, já que tudo o que antecede lhe diz especialmente respeito):

  1. A carta de rescisão do contrato, pela requerente, é irrelevante, pois que estaria dependente da prova dos pressupostos da resolução por justa causa, que já se disse não decorrer de prova documental inequívoca feita nos autos e não poder ser feita por testemunhas. De outro modo ainda, a requerente não pode fazer prova dos pressupostos da resolução dos contratos com justa causa com a própria carta em que os resolve. E dar-se como provado o envio da carta e o seu conteúdo, sem prova do mesmo, é irrelevante.
  2. O incumprimento por parte da K não está provado por prova documental inequívoca e não o pode ser através da prova testemunhal.
  3. Vale o mesmo quanto ao alegado valor da dívida. Quanto ao valor correcto das garantias prestadas já foi dito que é irrelevante estar a discutir a questão.
  4. Vale o que já foi dito, mas acrescente-se, em relação aos autos de medição, que estes, só por si, não podem provar o valor de uma dívida: poderão, quando muito, provar a realização de trabalhos.
  5. Já se disse que se concorda que, realmente, a configuração da situação, no seu conjunto, pela requerente corresponde a um abuso de direito por parte da K (e que, por isso, nessa parte, se discorda do despacho recorrido). Mas tal é irrelevante, porque falta a prova líquida e inequívoca da mesma.
  6. A distinção proposta é irrelevante para o caso (a requerente não tenta sequer demonstrar a distinção e reflexos da mesma para a decisão).

            Em suma, o despacho recorrido deve ser confirmado, precisando-se apenas o seguinte: não se trata da improcedência do pedido cautelar, mas de um indeferimento liminar baseado na manifesta improcedência do pedido (art. 590/1 do CPC).

            Não se deixa, entretanto, de dizer que a pretensão da requerente não tinha por objecto as garantias que beneficiam a K, mas sim as contra-garantias que o Banco prestou a um terceiro (ao Banco estrangeiro), pelo que as garantias que a K podia accionar não eram as que estão em causa neste autos…, questão de que o tribunal recorrido também se apercebeu. A K poderia, assim, accionar as garantias de que beneficia perante o Banco estrangeiro, que as poderia pagar visto que não era parte nesta providência, mas depois não poderia accionar o Banco para reaver o que tivesse pago. Pelo que seria o Banco estrangeiro prejudicado com esta providência, sem que a requerente a tivesse dirigido contra ele, o que é um contra-senso. Mas, face ao resultado final, a questão acaba por ser irrelevante.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pela requerente.

            Porto, 03/12/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto