Proc. 306/14.1TVPRT – Porto – 1ª Secção Cível – J2

            Sumário:

              I – Se apenas se provou que um contrato de arrendamento reduzido a escrito foi celebrado por um dos cônjuges (casado no regime de separação de bens), não há razões para entender que o outro cônjuge também é arrendatário.

              II – A norma aplicável à transmissão de um arrendamento celebrado antes do NRAU, no caso de falecimento do arrendatário depois da entrada em vigor do NRAU, é a do art. 57 do NRAU e não a do art. 1106 do CC.

              III – A norma do art. 57 do NRAU não é inconstitucional.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A herança de C, representada pela cabeça-de-casal S, intentou esta acção contra M pedindo a condenação dela a entregar-lhe imediatamente uma fracção de um prédio, por o arrendamento da mesma ter caducado com a morte (a 14/08/2013) da mãe da ré, mãe a quem o arrendamento já tinha sido transmitido por morte do primitivo arrendatário, e a pagar-lhe 1480€ de prejuízos provocados com a não restituição (= 928€ x 2 meses – 376€ depositados pela ré), acrescida de juros, pelos dois meses decorridos desde a caducidade até à propositura da acção, bem como a importância correspondente ao valor locativo desde a data da propositura desta acção até à entrega efectiva do 2º andar.

            A ré contestou, alegando que sua mãe era casada com o arrendatário, pai da ré, vivendo em plena comunhão de vida de casal, equiparando-se a posição dela à do seu marido J, como arrendatária de pleno direito, apenas não tendo outorgado o contrato de arrendamento por razões estranhas à contratação, sendo certo que teve no arrendado o centro de permanência estável e duradouro até à data do seu decesso; diz ainda que tendo ocorrido o óbito de sua mãe em 14/08/2013, o contrato de arrendamento não caducou nessa data, tendo-se transmitido à ré, dado que nos últimos dez anos coabitava no locado com a sua progenitora em comunhão de mesa e habitação, defendendo, ainda assim, que caso tenha aplicação, no caso vertente, o art. 57 do NRAU, o mesmo, ao introduzir limitações à transmissão do arrendamento a favor dos descendentes, enfermará de vício de inconstitucionalidade por afrontar os princípios da confiança e da igualdade.

            A autora “replicou” – por ter sido notificada para o efeito – e a ré “treplicou”.

            Depois de realizado o julgamento foi proferida sentença condenando a ré a entregar imediatamente o prédio e a pagar à autora a importância correspondente ao valor locativo do mesmo a apurar em incidente de liquidação, desde o dia 15/02/2014 até à entrega efectiva do mesmo.

            A ré recorre desta sentença – para que seja alterada a matéria de facto e revogada a sentença e substituída por outra que a absolva do pedido – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

  1. […A]s questões colocadas ao tribunal consubstanciam-se em saber:

         […] I – Se a mãe da ré assumiu a qualidade de arrendatária do imóvel, não obstante não ter outorgado o contrato de arrendamento por razões estranhas à contratação.

         […]

  1. Alegou a ré que a mãe da ré só não outorgou a contrato de arrendamento com o marido por razões estranhas à contratação, uma vez que ambos viviam em plena comunhão de vida de casal, há muito mais de 40 anos equiparando-se portanto a posição da mulher à do marido, como arrendatários de pleno direito (cfr. arts 2 a 8 da contestação).
  2. De facto, não poderá ser outra a solução, porquanto a interpretação que subjaz ao sentenciado põe em crise, violando frontalmente o disposto no art. 1671 do CC, [o] princípio da igualdade jurídica dos cônjuges que à data já estava em vigor ao abrigo do DL 47344 de 25/11/1966 e por essa via o disposto no art. 36/3, bem como o art. 13 da CRP.
  3. Tanto mais, que o direito anterior à entrada em vigor da CRP apenas se mantém desde que não seja contrário à mesma CRP ou aos princípios nela consignados – art. 290/2 da CRP.
  4. A Igualdade jurídica entre os cônjuges que no plano constitucional se traduz numa igualdade social como igualdade efectiva, real, material, concreta e situada, deve considerar-se imposta pela própria noção de igualdade jurídica e pela necessidade de lhe buscar um conteúdo pleno em sede de aplicação normativa directa, o que se obtém pela aplicação do disposto no art. 18/1 da CRP.
  5. A mulher casada não é incapaz: – é o que resulta do disposto nos arts 1690 e 1735, bem como dos arts 1678/2 e 1680 a 1682, primitiva versão, e do princípio da igualdade de direitos e de deveres dos cônjuges na redacção do DL 496/77in Antunes Varela, RLJ, 114º- 40, nota 1.
  6. Sustentar como o faz a sentença que não obstante a plena comunhão de vida em comum do casal, (mais de 40 anos) a qualidade de primitivo arrendatário era apenas detida pelo marido, pai da ré, está nos antípodas dos preceitos constitucionais, respeitantes aos direitos, liberdades e garantias – art. 36/3 da CRP.
  7. O que de resto vai no sentido da jurisprudência mais recente do STJ como o acórdão proferido no proc. 3/11.0TBOHP. C1.S1 com data de 14/04/2015 disponível in www.dgsi.pt
  8. E nem se argumente, como de resto faz a sentença, com o facto de os cônjuges serem casados no regime da separação, pois, como decorre do supra citado aresto: “… Maria Rita Aranha Gama Lobo Xavier quando afirma: “…mesmo nos regimes de separação de bens na maior parte dos casos, a comunhão de vida acaba por provocar um interpenetração de facto dos bens” ou, como afirma um Autor alemão citado por aquela Autora, a obrigação de comunhão de vida implica que os cônjuges levem a cabo “realizações económicas conjuntas”…
  9. Ainda que os bens sejam próprios de um ou outro dos cônjuges a comunhão de vida em que vivem exige também regras específicas que permitam que um dos cônjuges possa administrar bens do outro ou bens comuns.
  10. A comunhão de vida, de interesses e de bens impõe uma comunhão de administração, administrando até os bens próprios do outro cônjuge, o que acarreta dificuldades em distinguir onde está a administração de um ou outro dos bens e, por isso, uma quase impossibilidade de prestar contas.
  11. Se assim não fosse, a comunidade conjugal, como aliás decorre do preceito constitucional vertido no art. 67/1 da CRP não se distinguiria de uma qualquer sociedade comercial, em que a cada passo seriam necessários os votos para uma deliberação – vide no mesmo sentido, Lopes Cardoso in “ A Administração dos bens”.
  12. A titularidade dos poderes de administração dos bens do casal assenta, no direito vigente, na distinção entre bens próprios e bens comuns, não tendo o regime de bens em causa, em princípio, qualquer influência na definição de tais poderes, constituindo o que os franceses chamam de regime patrimonial primário.
  13. Tal como aconteceu no casamento entre M e J.
  14. O que nos confronta com a questão do mandato tácito, instituto jurídico que de resto tem sido sustentado e defendido quer pela jurisprudência dos tribunais superiores e neste caso a mais recente como o aresto do STJ citado, quer pela mais vasta doutrina.
  15. Alias, tal enquadramento decorre normativamente por força do dever recíproco de cooperação entre os cônjuges plasmado no art. 1674 do CC e da concepção do casamento como a união de “dois numa só carne”, traduzindo a “unity of spouses”.
  16. No caso de mandato tácito os poderes conferidos são de mera administração pelo que poderemos ter um mandato tácito ou aparente, consoante haja ou não uma declaração de vontade desse cônjuge (mandante), no sentido de daí se extrair, com toda a probabilidade, a existência de um mandato.
  17. De facto, estaremos perante um mandato aparente quando, da situação de facto, resultar para o terceiro a aparência da existência de um mandato, sem que o “mandante” tenha declarado qualquer vontade nesse sentido, mas não se tenha oposto a uma actuação de outrem por sua conta.
  18. Assim, no presente caso estamos perante um mandato tácito conferido pela mãe da ré ao marido para a outorga do contrato de arrendamento da casa de morada de família.
  19. Face ao disposto no art. 1682-B do CC, e como resulta dos factos provados na sentença – vide 15 e 16 – o locado em apreço constituía a casa morada de família, pelo que não subsistem dúvidas que a tutela desta norma se estende à casa tomada de arrendamento.
  20. Ora tal tutela constituindo a sua ratio legis, visa em primeiro lugar salvaguardar a estabilidade da habitação familiar no interesse dos cônjuges e dos filhos, no decurso da vida conjugal.
  21. A lei visa proteger cada um dos cônjuges contra actos de disposição sobre a casa de morada da família praticados pelo outro cônjuge e que possam pôr em perigo a estabilidade da habitação familiar fixada de acordo com o art. 1673.
  22. A casa de morada da família só deixará de o ser se os cônjuges acordarem, expressa ou tacitamente, na alteração da sua residência, ou se o tribunal fixar uma nova residência, vide Nuno de Salter Cid, in A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, pp. 110-115 e pp. 170-175, assente sobretudo no princípio constitucional de protecção da família, previsto no art. 67/1 da CRP.
  23. Tendo em conta a protecção constitucional à habitação – art. 65 da CRP temos que o cônjuge marido que outorgou o contrato de arrendamento pode o mais (vincular-se ao arrendamento para si próprio) mas não pode o menos (resolver, opor-se à renovação ou à denuncia do contrato) pois carece sempre do consentimento do outro cônjuge – art. 1682-B do CC, o que representa uma inversão do principio jurídico “a maiori, ad minus” (quem pode o mais, pode o menos).
  24. A rigidez das regras de administração e disposição dos bens do casal é ultrapassada pela necessidade da prática diária de variados negócios jurídicos, pela difusão dos contratos de adesão e pela conclusão de negócios através de meros comportamentos concludentes pelo que aquela autonomia patrimonial dos cônjuges casados em separação de bens acaba por ser afectada em virtude da própria comunhão de vida que o casamento implica.
  25. No caso sub judice, não pode ser outra a solução, porquanto resulta abundantemente da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, que a mãe da ré sempre foi vista como a matriarca da família, tendo um papel preponderante na representação da família, na orientação da vida em comum do casal, nomeadamente na escolha da residência da família, e da casa morada de família.
  26. Mal se compreende, sendo mesmo incongruente que nessa comunidade conjugal mais de 40 anos de vida em comum a mãe da ré não tenha tido intervenção na escolha da casa que serviu, conforme decorre da factualidade dos autos, de casa mãe de toda a família, por 2 gerações, aferido da dimensão adequada, das condições de higiene e conforto, bem como da escolha da localização em função das necessidades básicas da família, proximidade estabelecimentos de ensino, transportes públicos, e proximidade locais de trabalho, etc.
  27. A mãe da ré outorgou o contrato de arrendamento sub judice, fazendo dele parte integrante, tendo por isso adquirido a qualidade de arrendatária.
  28. Pelo que, sendo arrendatária de pleno Direito, não se verificou qualquer transmissão mortis causa do contrato de arrendamento em apreço por morte do marido para a mãe da ré.
  29. A sentença, ao julgar o marido da mãe da ré como arrendatário único no contrato de arrendamento sub judice incorreu em erro de julgamento, fazendo errada interpretação e aplicação do direito, violando, por isso, o disposto no art. 1671 do CC, bem como o disposto nos arts. 36/3 e 13 da CRP.
  30. A sentença recorrida apreciou de forma incorrecta a matéria de facto vertida nos autos, e que ora importa reapreciar nos termos do disposto no art. 662/1 e art. 640 do CPC.

         […]

         Quanto à segunda questão II – Se com o óbito da mãe da ré, caducou o contrato de arrendamento que tinha por objecto o identificado imóvel, carecendo a ré de título que legitime a ocupação que vem dele fazendo.

  1. A ré na sua contestação sustentou que o regime aplicável à transmissão por morte determina-se pela lei em vigor à data em que o decesso ocorreu, critério que tem sido, aplicado uniformemente pela jurisprudência: no regime da transmissão por morte da posição do arrendatário é a lei que está em vigor à data do evento que determina essa transmissão – o óbito do arrendatário – e não a lei que vigorava na data em que foi celebrado o contrato.
  2. Ficou provado na sentença que a mãe da ré faleceu no dia 14/08/2013, no estado de viúva do marido.
  3. Pelo que, por via dessa norma, aplica-se o disposto no art. 1106/1b) do CC, porquanto como decorre dos factos provados na sentença: “Nos últimos dez anos, a ré sempre viveu com a sua mãe no imóvel referido em 3, aí confeccionando e tomando as refeições, pernoitando, recebendo os seus amigos e família, procedendo à limpeza do mesmo, e contribuindo para os gastos com alimentação, higiene, electricidade, água e saneamento.” – vide 16 dos factos provados.
  4. E assim deverá ser porquanto no domínio das relações jurídicas de arrendamento justifica-se a aplicação imediata da nova lei às relações já constituídas, por estar em causa a estruturação básica do sistema jurídico e da ordem social, e por não visarem propriamente o “estatuto contratual” das partes, mas antes o respectivo “estatuto legal”, donde se pode inferir a aplicação da 2.ª parte do n.º 2 do art 12 do CC, e por conseguinte a regulação da situação jurídica abstraindo-se o legislador dos factos que lhe deram origem.
  5. A sentença incorreu em erro de julgamento porque aplica ao caso sub judice o regime transitório dos arts 57 e 58 do NRAU, sendo que tal regime consagra uma norma modificativa, que não deve ser aplicável aos contratos cujo facto que determina a transmissão do arrendamento – o óbito do arrendatário – ocorreu já na vigência da nova Lei (31/2012 de 14/08).
  6. A ré suscitou na sua contestação, que a aplicação do regime vertido nos arts 57 e 58 do NRAU (normas transitórias) ao caso concreto enferma de inconstitucionalidade material.
  7. […N]ão ignorando o acórdão do Tribunal Constitucional 196/2010 de 16/06/2010, o caso em apreço nos autos, reveste materialidade substancialmente diversa daquele outro apreciado em tal aresto.
  8. No caso presente, trata-se como vimos da 1ª transmissão (e única transmissão admissível à luz das normas que regem a transmissão por morte nos contratos de arrendamento) sendo que o facto que está na génese da transmissão do contrato de arrenda-mento para o descendente é a morte do primitivo arrendatário.
  9. A transmissão do arrendamento para os descendentes, sempre foi consentido, quer no âmbito do regime vinculístico (contratos celebrado em data anterior à vigência do RAU e na vigência do RAU) desde logo, através do DL 293/77, de 20/07, do DL 328/81, de 04/12, da Lei 46/85, do DL 321-B/90- RAU, da Lei 135/99, de 28/08, da Lei 7/2001, de 11/05, e finalmente da Lei 6/2001 de 11/05, quer no âmbito no NRAU – art. 1106 do CC.
  10. Ao contrário do ajuizado em tal aresto – acórdão do TC 196/2010 – a aplicação em concreto das normas do regime transitório põe em crise exactamente o núcleo dos direitos fundamentais que as normas constitucionais visam proteger.
  11. Ao não assegurar a transmissão do arrendamento aos descendentes, desmaterializou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-a aos descendentes com dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado.
  12. Tal é caso dos autos, uma vez que a ré, aufere como pensionista do CNP o montante de 256,31€, tem 72 anos de idade, o que na prática inviabiliza o acesso ao mercado de arrendamento ainda que o de carácter “social”, conforme resulta, aliás da alega-ção da ré no seu articulado – arts 35 e 36 da contestação.
  13. Alias, a ré tem de viver com 256,31€ mensais, ou seja pouco mais de metade do valor limiar da taxa de risco de pobreza em Portugal, fixado em cerca de 415€/mês, pertencendo aos 47,80% da população portuguesa que vive em risco de pobreza, vide PORDATA.
  14. O regime transitório dos arts 57 e 58 do NRAU contendo normas modificativas, veio frustrar de modo intolerável as legítimas expectativas da transmissão do arrendamento a favor das pessoas que face ao art. 85 do RAU legitimamente esperavam a materialização desse direito, como a ré.
  15. Pelo que, passando a não permitir a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%, desacautelou-se de forma intolerável os interesses dos descendentes que como no caso dos presentes viviam pelo menos há mais de 10 anos ininterruptamente em economia comum com o primitivo arrendatário.
  16. Tornando imediatamente irrelevante, no plano da manutenção do arrendamento, aquela circunstância, debilitando insuportavelmente a sua situação jurídica.
  17. Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de Direito Democrático contido no art. 2 da CRP, impõem limites que o legislador ordinário tem de respeitar.
  18. Sendo ofendida a protecção da confiança sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar – vide ac. do TC 297/2015 de 07/7/2015 disponível in http://www.dre.pt e publicado em DR, 2ª Serie, nº 130 de 07/07/2015.
  19. São assim, materialmente inconstitucionais as normas constantes dos arts 26 e 57 da Lei 6/2006, de 27/02, por violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de Direito Democrático contido no art. 2 da CRP, quando interpretadas no sentido de serem aplicadas a contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU.

         […]”                    

            A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                      *

            Questões que importa decidir: se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pretendido pela ré e se esta deve ser considerada arrendatária do prédio por transmissão de tal qualidade pela sua mãe, com as consequências inerentes.

                                                      *

            Foram dados como provados os seguintes factos:

  1. C foi casado, em comunhão de adquiridos, com S, tendo falecido em 11/08/2011.
  2. Deixou testamento instituindo herdeira da sua quota disponível sua mulher, sendo que como herdeiros legitimários sucederam-lhe sua mulher e seis filhos – […].
  3. Integra a herança o prédio urbano situado na Rua X, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº xxx – freguesia x, inscrito na matriz no artigo xxxx (actualmente artigo xxxx da união das freguesias x).
  4. Por contrato celebrado em 01/01/1969, que se mostra junto a fls. 27 e 28 dos autos, D e sua irmã, deram de arrendamento o 2º andar do prédio identificado em 3 a J e a L.
  5. Há cerca de 30 anos, L, com autorização dos senhorios, “cedeu a sua posição contratual” a J, que passou a ser o arrendatário único.
  6. J morreu em 17/12/2002, no estado de casado com M, a qual faleceu no dia 14/08/2013, no estado de viúva daquele, tendo os mesmos sido casados no regime de separação de bens.
  7. Por carta datada de 13/09/2013, que se mostra junta a fls. 31 dos autos, a ré comunicou à autora a morte de sua mãe, anexando certidão de óbito e procedimento simplificado de habilitação de herdeiros.
  8. Em resposta, a autora remeteu à ré a carta datada de 30/09/2013, que se mostra junta a fls. 39 e 40 dos autos.
  9. À carta referida em 8, respondeu a ré através da missiva datada de 01/11/2013, nos termos que constam de fls. 43 dos autos.
  10. A ré remeteu à autora a carta que se mostra junta a fls. 44 dos autos.
  11. A autora enviou à ré a carta datada de 26/03/2014, que se mostra junta a fls. 46 dos autos.
  12. A ré vem depositando mensalmente o montante de 188€, equivalente ao montante da renda então em vigor.
  13. O prédio referido em 3 situa-se em x, tendo o xº andar a área de 281,65 m2 e vista para o mar.
  14. O actual valor locativo do prédio identificado em 3º cifra-se em montante mensal concretamente não apurado.
  15. A mãe da ré, até à data do seu óbito, tinha instalado o seu lar e organizada a sua logística doméstica no imóvel referido em 3, aí convivendo com o seu agregado familiar, filhas, genros e netos.
  16. Nos últimos dez anos, a ré sempre viveu com a sua mãe no imóvel referido em 3, aí confeccionando e tomando as refeições, pernoitando, recebendo os seus amigos e família, procedendo à limpeza do mesmo, e contribuindo para os gastos com alimentação, higiene, electricidade, água e saneamento.

                                                      *

                   Da impugnação da decisão da matéria de facto

            […]

                                                      *

            Improcede, assim, totalmente, a impugnação da decisão da matéria de facto.

                                                      *

                            Do recurso sobre matéria de direito

                                                       I

            Nas conclusões 8 a 25 e 31 a 36, a ré, apoiando-se em factos por si alegados, como se estivessem provados – embora só depois se dedique a impugnar a decisão da matéria de facto para que esses factos sejam dados como provados, como até decorre da ordem das conclusões -, invoca, por um lado, o princípio da igualdade dos cônjuges, sem dizer como é que este princípio, só por si, poderia impor que se considerasse que um contrato de arrendamento apenas celebrado/outorgado/assinado pelo marido como arrendatário, também tinha como arrendatária a mulher (mãe da ré).

            E, por outro lado, invoca uma construção jurídica referida no ac. do STJ mencionado nas conclusões 14 e 15, do qual, não decorre, no entanto, seja como for, a defesa de que um contrato celebrado por um dos cônjuges, deva ser considerado como um contrato em que os dois cônjuges sejam parte perante terceiros: este acórdão resolve uma questão de propriedade de bens apenas entre dois ex-cônjuges, através da proibição, por via do abuso do direito, de um deles invocar contra o outro o regime da separação de bens. E, lateralmente, o acórdão invoca uma das construções jurídicas que têm sido feitas pela doutrina e jurisprudência “para possibilitar uma justa divisão do património depois do divórcio” (nas palavras de M. Rita Lobo Xavier, Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Almedina, 2000, pág. 467).

            Construções jurídicas estas que também têm sido feitas para a solução do “problema do modo de liquidação e ‘partilha’ dos interesses patrimoniais dos companheiros no momento da dissolução da sua união de facto”, como se pode ver na anotação de Francisco M. B. Pereira Coelho (autor da passagem acabada de citar) ao acórdão do STJ de 20/03/2014, 2152/095TBBRG.G1.S1, ambos publicados na RLJ 145/3995, Nov/Dez2015, págs. 109 a 125, isto é, também no âmbito de discussões internas entre unidos de facto e não para as discussões dos unidos de facto com terceiros, ou na de Cristina M. A. Dias, Dissolução da união de facto, ao acórdão do TRG de 29/09/2004, processo 1289/04, publicados nos CDP 11, Jul/Set2005, págs. 63 e segs (a autora nas contra-alegações também chama a atenção para esta perspectiva da questão).

            Nas discussões com terceiros, o que se tem visto é antes a invocação pelos terceiros de factos que demonstram que eles tinham razões para considerar que um dos unidos de facto ou dos cônjuges também estavam a contratar (ou que eram eles que estavam a contratar), apesar de o contrato só ter sido celebrado com outro e isso de modo a que também aquele responda perante si (veja-se, por exemplo, Cristina Manuel Araújo Dias, Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges, Coimbra Editora, 2009, págs. 16 e 120, 122, 169, etc., ou Rita Xavier, obra citada, pág. 475, nota 84), normalmente com recurso ao regime da responsabilização por dívidas, dos arts. 1690 a 1697 do CC.

            Por isso, no reverso, se um dos cônjuges – ainda para mais casado no regime de separação de bens – quiser vir invocar contra terceiro um contrato celebrado por escrito apenas pelo outro cônjuge, para que se considere que também o abrange (como e porquê ainda teria que ser visto), apenas o pode fazer se também invocar quaisquer factos no sentido de provar que o terceiro tinha razões para crer que o contrato também tinha sido celebrado com ele e que existem fortes razões de protecção da sua confiança para que assim deva ser considerado.

            Pelo que, se nada se disser quanto a estes pontos, a questão nem sequer se pode colocar (razão pela qual nem sequer se é mais preciso nos §§ anteriores). Como no caso dos autos em que, face ao contrato em causa, nem sequer se pode dizer que o senhorio sabia que o arrendatário era casado e, por isso, não pode haver quaisquer razões para que se considere que o contrato que celebrou com o marido da ré também tinha sido celebrado com a ré ou que a devia, de algum modo, abranger (também neste sentido, vai a autora nas contra-alegações).

            E, verdade seja, também só muito grosso modo é que a ré pode dizer que alguma vez foi isto que quis discutir nos autos – quer a nível de facto quer a nível de direito -, como logo se vê do teor do art. 12 da contestação, pois o que ela defendia é que o direito ao arrendamento se tinha comunicado a ela, cônjuge [do arrendatário que era apenas o seu marido].

            O que, aliás, fazia contra norma expressa que resolvia a questão, qual seja, a da não comunicabilidade do arrendamento nos regimes de separação (que resultava quer do art. 1110/1 do CC, na sua versão original, quer do art. 83 do DL 321-B/90, de 15/10, quer, a contrario, do art. 1068 do CC na actual redacção).

            A ré tem ainda menos razão nas conclusões restantes – 26 a 30 – ao invocar o regime de protecção da casa de morada de família, sem explicar minimamente como é que este regime pode ter influência na questão de saber se a mãe da ré também era arrendatária. Como é que, por exemplo, o facto de o marido, arrendatário, não poder dispor livremente da casa de morada de família, face ao disposto no art. 1682-B do CC, faz com que a mãe da ré seja também tida como arrendatária? Pelo contrário, é por não o ser, que a norma tem de existir.

            Em suma, é manifestamente improcedente a tentativa da ré convencer, para mais apoiando-se em factos que não foram dados como provados, que, mesmo sem ter outorgado o contrato de arrendamento, assumiu a qualidade de arrendatária.

                                                      *

                                                      II

            Diz depois a sentença (com corte de algumas passagens, da responsabilidade deste acórdão do TRP):

         “ Assente, portanto, que o pai da ré era o primitivo arrendatário do imóvel em questão, tendo o mesmo falecido no dia 17/12/ /2002, por mor do disposto no art. 85/1a) do DL 321-B/90, de 15/10 (então em vigor), o arrendamento transmitiu-se à sua mulher, que, por seu turno, veio a falecer no dia 14/08/2013.

         Aqui chegados, cumpre, pois, avançar para a resolução da questão essencial que se coloca no âmbito do presente processo, qual seja a de determinar se com o decesso da mãe da ré caducou o ajuizado contrato de arrendamento.

         Para tal efeito, haverá que convocar as regras transitórias plasmadas na Lei 6/2006, de 27/02, porquanto, em consonância com o nº 1 do seu art. 59, o diploma “aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.

         […] Entre as normas transitórias (de direito material) contam-se, no que ao caso releva, as referentes à transmissão por morte[.] […Q]uanto a essa matéria, o contrato de arrendamento ficará subordinado às regras vertidas nos arts. 57 e 58 (daí que, contrariamente ao entendimento preconizado pela ré, a disciplina constante do art. 1106 do CC apenas se aplicará aos contratos de arrendamento para habitação celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o que não é o caso do contrato em causa nos autos).

         Ora, de acordo com o preceituado no citado art. 57/1, als. d) e e), quando haja filhos, o arrendamento para habitação não caducará por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva “filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior”, ou quando lhe sobreviva “filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%”.

         Destarte, considerando que a ré não reúne as condições estabelecidas nos preceitos transcritos […], os quais, contrariamente ao entendimento sufragado pela ré, não enfermam dos apontados vícios de inconstitucionalidade material, conforme, aliás, tem sido afirmado pela casuística do Tribunal Constitucional (cfr., por todos, ac. do TC 196/2010, publicado no Diário da República, 2.ª série, nº 115, de 16/06/2010, págs. 32909 e seguintes), desde logo porque tem mais de 26 anos de idade e não é deficiente, segue-se, por conseguinte, que com o óbito de sua mãe o ajuizado contrato de arrendamento extinguiu-se por caducidade, nos termos do disposto na al. c) do art. 1051 do CC.”

            A ré, nas conclusões 53 a 57, põe isto em causa, insistindo que as regras aplicáveis são as do art. 1106, n.ºs 1b) e 2, do CC (na redacção da Lei 31/2012), em vigor na data do óbito, dizendo que é isso que a jurisprudência tem entendido de modo uniforme, mas sem invocar, em concreto, um único acórdão que defenda esse entendimento (na aplicação à situação em causa, isto é, de falecimento do arrendatário já depois da entrada em vigor da Lei 6/2006 e relativamente a contratos anteriores à mesma).

            A autora reforça a sentença dizendo que:

         “a Lei 6/2006 de 27/02 […] muito embora tenha estabelecido, como regra geral, a aplicação do novo regime do arrendamento urbano “aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como as relações contratuais constituídas que subsistam nessa data” excepcionou regras transitórias aplicáveis aos arrendamentos mais antigos. Essas regras vêm referidas nos arts. 26 e ss., do NRAU, decorrendo da conjugação dos seus arts. 26/2 e 27 que, aos contratos habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do RAU e em matéria de transmissão por morte, se aplica o disposto no artigo 57 daquele diploma. […]”

            E a verdade é que tem sido este o entendimento, por força das disposições conjugadas dos arts. 59/1, 27, 28/1, 26/2 da Lei 6/2006, quer da doutrina, quer da jurisprudência, não se conhecendo sequer posições contrárias. Neste mesmo sentido, por últimos e apenas por exemplo, vejam-se os seguintes acórdãos e a doutrina referida neles, do TRL de 14/02/2014, 2106/11.1TVLSB.L1-7, de 18/06/2015, 1187/12.5TBALM.L1-6, de 12/11/2015, 894-13.0TVLSB.L1-6, de 19/11/2015, 745/14.8TVLSB.L1-2, de 26/11/2005, 1894/13.5TBCSC.L1-2, de 09/12/2015, 396/14.7TVLSB-A.L1-2, e do TRE de 21/06/2012, 653/07.9TBTVR.E1, bem como, pressupondo que é este o regime aplicável, os acs do TC de 196/2010, de 12/05/2010, 346/2011, de 07/07/2011, que seguiu o primeiro, e 581/11, de 29/11/2011 (que também seguiu o primeiro).

                                                      *

            A ré, nas conclusões 58 a 71 defende a inconstitucionalidade das norma do art. 57 (aplicável por força do art. 26), ambos do NRAU, com o sentido que lhe foi dado na sentença recorrida e confirmado aqui, e isso, no essencial, com base na violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.

            A autora diz, entre o mais, que:

         O art. 57 não é inconstitucional – o que foi confirmado por todos os acórdãos do TC que sobre o tema se pronunciaram: para além do citado na sentença recorrida – 196/10 – os acórdãos 580/11 [está-se a referir a 581] e 364/11 [está-se a referir a 346]; ao contrário do defendido pela ré, o facto que está na génese desta acção não “reveste materialidade substancialmente diversa da” do ac. 196/10, desde logo “porque neste estava em causa alguém que vivia no locado com a mãe (inquilina) e que abdicou da sua actividade profissional para dela cuidar em exclusivo”, pelo que, “a haver situação socialmente mais relevante era sem dúvida a desse aresto; por outro lado: nada demonstra que a ré tenha apenas o rendimento que aufere – sendo certo que, como resulta do próprio requerimento de apoio judiciário formulado pela autora, ela é proprietária de património imobiliário.”; e ainda: “o legislador entendeu, não proteger as pessoas financeiramente carenciadas em sede de transmissão por morte (tal como o fez com os menores e os deficientes) e entendeu bem: não faz sentido que os senhorios – que pagam impostos tal como os outros cidadãos – sejam sobrecarregados com funções de assistência social que, naturalmente, competem ao Estado, o que aliás aconteceu durante toda a época do vinculismo e, em parte, ainda continua a acontecer.” Bem como que “apenas tendo ocorrido em 2013 o óbito da mãe da ré – sete anos após a entrada em vigor do NRAU – as expectativas desta, a existirem, não tinham qualquer consistência nem necessariamente protecção legal e/ou constitucional; acentuando: a ré desde 2006 sabia – ou tinha obrigação de saber – que não seria beneficiária da transmissão do arrendamento por morte de sua mãe.”

            Quanto aos factos invocados pela ré nas conclusões agora em causa e que não foram dados como provados, o objecto do recurso – definido pela ré -, não os englobou pelo que eles não podem ser considerados. De qualquer modo, eles não teriam relevo para a questão até porque a inconstitucionalidade das normas tem de ser apreciada em abstracto e não com base nas particularidades do caso; de resto, a fundamentação dos acs. do TC, invocados pela sentença recorrido e pela autora, afastam a procedência de tais razões:

         “Efectivamente, como acima se verificou, o RAU (artigo 85) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, para os descendentes que vivessem com este em economia comum há mais de um ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.

         O NRAU (artigo 57) alterou este regime, passando a não permitir, nos con­tratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%.

         Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-a somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento.

         Como neste caso a morte da arrendatária ocorreu em 29/11/2007, ou seja posteriormente à data da entrada em vigor do NRAU, em 27/06/2006, a decisão recorrida, socorrendo-se do critério que a transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário é regulada pela lei vigente à data da morte, aplicou o disposto no artigo 57 deste diploma, não reconhecendo ao Réu, filho da arrendatária, mas maior de 26 anos e sem qualquer inca-pacidade, o direito a ingressar na posição contratual da sua mãe, apesar deste alegar que vivia com ela há mais de um ano, em economia comum.

         Tem sido entendido que os preceitos que desde o princípio do século XX esta­belecem as regras do arrendamento de prédios urbanos, vêm consagrando um regime de severas limitações à liberdade contratual, impondo importantes restrições e vínculos à autonomia da vontade privada, de modo a assegurar uma política de justiça social. Neste domínio as partes não são encaradas pela lei como contraentes, mas enquanto membros de uma determinado grupo social (inquilinos e senhorios), cujos interesses, pela sua relevância na dinâmica da sociedade, importa reger em abstracto, independentemente do acto que deu origem à situação em concreto. É este carácter público e de forte incidência político-social da legislação sobre o contrato de arrendamento que exige que também ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede perante os interesses comunitários, sendo por isso a lei nova de aplicação imediata aos contratos pré-existen­tes.

         Nesta linha e tendo ainda presente que os interessados na transmissão do arrendamento não intervieram na outorga do respectivo contrato, tem sido aplicado uniformemente pela jurisprudência o critério de que o regime da transmissão por morte da posição do arrendatário é o definido pela lei que está em vigor à data do evento que determina essa transmissão – o óbito do arrendatário – e não pela lei que vigorava na data em que foi celebrado o contrato.

         O recorrente fundamenta a existência das expectativas que teriam sido afec­tadas pela aplicação do regime previsto no artigo 57, do NRAU, no facto da lei que estava em vigor quando ele vivia no arrendado com a mãe lhe assegurar a transmissão do arrendamento, caso a sua mãe viesse a falecer, o que, inclusive, teria pesado na sua decisão de permanecer no arrendado.

         O Tribunal Constitucional tem dito que a afectação de expectativas legítimas resultantes duma alteração legislativa só é inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, não sendo a mesma ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.

         Nesta situação, a incerteza do momento da morte, aliada ao facto das condi­ções exigidas pelo RAU se reportarem a esse momento (convivência com o arrendatário no ano anterior à sua morte) não permite de modo algum que se reconheça como legí­tima qualquer expectativa de transmissão do arrendamento alicerçada apenas num juízo de prognose que tem por base a manutenção hipotética de todos os dados de facto e de direito até à data da morte do arrendatário.

         Na verdade, só nesse momento é que era possível constatar se estavam ou não preenchidos os requisitos da transmissibilidade, pelo que não tem fundamento a constituição anterior de qualquer posição de confiança merecedora de protecção.

         Na época em que o Recorrente viveu com a mãe no arrendado, durante a vigência do RAU, a ordem jurídica não lhe permitiu, num juízo de razoabilidade, a forma­ção de qualquer expectativa legítima de que ele iria suceder na posição de arrendatário que pudesse limitar a aplica­ção de qualquer alteração legislativa nesse domínio, ocorrida antes do óbito da mãe, no sentido de não admitir essa sucessão.

         O recorrente podia depositar esperanças ou até expectativas de natureza política, de que nunca tendo o legislador limitado a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário no período anterior à sua morte, nomeadamente em função da idade ou do grau de incapacidade, essa orientação legisla­tiva não viesse a ser tomada. Mas esses sentimentos ou convicções não têm relevância jurídica e não podem pesar na delimitação da área de liberdade de conformação do legislador.

         Daí que também não se mostre violado pela interpretação normativa sindi­cada o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.” [do ac. 196/10].

  *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pela ré, sem prejuízo do apoio judiciário.

            Porto, 04/02/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto