Acção ordinária 310/10.9TVPRT do Porto, 1ª Secção Cível, J4

            Sumário:

              I – A simulação é fraudulenta quando há o intuito de contornar qualquer norma da lei, como no caso em que se visou a frustração das limitações legais das operações de destaque.

              II – As nulidades só podem ser invocadas por quem tem uma relação jurídica cuja consistência prática, económica ou jurídica dependa da declaração da nulidade (como decorre do art. 286 do CC).

              III – Se quem invocar a nulidade não tinha legitimidade para o fazer, não pode depois recorrer da decisão que se tenha pronunciado sobre ela.

              IV – O réu é responsável pelas custas relativas à reconvenção, sempre que o tribunal não venha a tomar conhecimento dessa reconvenção por não se preencher a condição (procedência da acção) da qual depende a sua apreciação.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            S e mulher, C, A e N, na qualidade de 1.ºs autores; e AA e mulher, e Maria Alice Ascensão Silva, na qualidade de 2.ºs autores; intentaram contra BB, viúva, por si e na qualidade de herdeira de seu marido LL, como 1ªré; L e mulher M, e D e marido T, na qualidade de 2ºs réus; e Urfic – indústria de ferragens, na qualidade de 3ªré, a presente acção na qual alegaram o seguinte (em síntese deste tribunal da relação do Porto, mas mantendo a construção dos autores):

            O 2º autor era arrendatário de uma casa com 72m2 e 165m2 de logradouro, embora a mesma fizesse parte de um prédio com 679m2, dos quais 607m2 eram logradouro; em 1997 quis comprar aquela casa, com os 165m2 de logradouro, o que foi aceite pelos proprietários (o casal da 1ª ré – de quem os 2ºs réus são filhos; o marido e pai faleceu em 1999 [a 1ª ré também faleceu entretanto, tendo sido habilitados como seus herdeiros aqueles filhos), pensando os autores que os proprietários já teriam vendido os outros 442m2 à U como se tinham obrigado a fazer por um contrato-promessa de 1996 (estando esta a ocupá-los desde antes de 1990); por isso, em Março de 1997, celebraram um contrato-promessa em que o casal da 1ªré disse ser proprietário daquela casa de 72m2 e logradouro de 165m2; uns dias antes da escritura da venda ficaram a saber, no entanto, que, por dificuldades registais na desanexação dos 442m2 (que a U estava a tentar fazer), o prédio ainda constava como tendo a área de 679m2, pelo que a compra (pelos 1ºs autores a nua propriedade e pelos 2º autores o usufruto) teve de ser feita como se fosse de todo o prédio, embora estando no seu espírito apenas a compra da casa com 72m2 e logradouro com 165m2; e, por isso, os autores fizeram uma contradeclaração exigida pelo casal da 1ªré, mas com a qual concordaram por corresponder à sua vontade, no sentido de que, apesar de estarem a comprar um prédio com um logradouro de 607m2, o objecto do contrato eram apenas os 165m2; bem como onde declaravam que respeitavam aquela promessa da venda dos 442m2 à U; tendo os autores condicionado (condição resolutiva) essa declaração à possibilidade da separação do logradouro em duas partes autónomas; ora, como não é, nem nunca foi possível, essa desanexação, entendem, por um lado, que aquela contradeclaração perdeu eficácia retroactivamente e, por outro lado, que o contrato-promessa de 1996 (entre o casal da 1ªré e a U) é nulo e por isso a U deixa de ter título para a ocupação dos 442m2 e, em consequência, o objecto da compra feita pelos autores alarga-se a toda a área do prédio, estando os autores obrigados a pagar o preço que constava daquela promessa de 1996 (entre a U e o casal da 1ªré) e a U obrigada a restituir os 442m2 ocupados.

            Em consequência, pedem que seja declarada a nulidade, por impossibilidade legal do seu objecto, do contrato-promessa de 1996, bem como a propriedade dos autores sobre a totalidade do prédio, devendo os autores, como correspectivo, pagar à 1ªré e aos 2ºs réus aquele preço; e que a U seja condenada a restituir aos autores os 442m2 que ocupa, bem como a demolir o prédio que aí edificou, sob a ameaça do pagamento de 200€ por cada dia de atraso nessa restituição a contar da data do trânsito em julgado da sentença.

            A U contestou, impugnando, no essencial, (i) os factos alegados relativos à impossibilidade do contrato-promessa de 1996, pois que os 442m2 só ficariam encravados se fossem destinados à constituição de um prédio autónomo, não se fossem destinados, como foram, a arredondamento de estremas e consequente ampliação do logradouro de um prédio contíguo da U; (ii) a suposta convicção dos autores, até poucos dias antes da escritura de venda, de que os 442m2 já teriam sido desanexados; e (iii) a segunda metade do último parágrafo da contra-declaração (a alegada condição), que foi aposta pelos autores sem o acordo do casal da 1ªré; conclui no sentido da improcedência da acção e reconvenciona a condenação dos autores a reconhecer que: (i) os 442m2 não são dos autores, com a consequente rectificação do registo predial do prédio deles; e (ii) a validade do contrato-promessa de 1996, condenando-se os autores a praticar os actos notariais, matriciais e registrais necessários à rectificação dos registos, através da transmissão definitiva para a U dos 442m2, para arredondamento de estremas, com a sua integração no logradouro do prédio da U; esta última pretensão baseia-se no seguinte: o casal da 1ªré e os autores a partir do contrato-promessa de 1996 passaram a considerar a U a verdadeira proprietária dos 442m2, pelo que os mesmos devem ser integrados no prédio desta.

            A 1ªré e os 2ºs réus contestaram, tendo, para além de excepcionarem a ilegitimidade dos cônjuges destes últimos, impugnado nos mesmos termos que a U, com as seguintes diferenças: não concordam com a qualificação de contradeclaração para os §§ apostos na escritura de venda de Abril de 1997; consideram que os autores e casal da 1ªré efectuaram – nesta escritura – de comum acordo declarações divergentes com a vontade real – que era comprarem só a casa com os 165m2 de logradouro – com a única intenção de conseguirem obter a formalização do negócio jurídico; consideraram que a alegada condição resolutiva da declaração dos autores é ineficaz e inválida por não ter sido acordada com o casal da 1ªré, para além de ser impossível, porque os autores sabiam que o facto futuro era certo, e ilícita, por ser contraditória com a outra parte da declaração, devendo assim ter-se por não escrita (art. 271/2 do Código Civil); consideram que é escandaloso os autores pretenderem ficar com os 442m2 pagando apenas o preço pago pela U, pelo que, a proceder tal pedido, o preço teria de ser determinado em liquidação da sentença; também reconvêm, pedindo a condenação dos autores a cumprir o acordado com o casal da 1ªré, reconhecendo a validade do contrato-promessa celebrado entre o casal da 1ªré e a U e a praticar os actos notariais e registrais necessários à concretização do negócio que se obrigaram a respeitar.

            Nas réplicas os autores impugnaram o alegado fim que presidiu à celebração do contrato-promessa de 1996 celebrado entre o casal da 1ªré e a U, vendo na alegação do mesmo uma excepção; impugnaram também a possibilidade de serem condenados na prática dos actos necessários à concretização desse contrato-promessa; e excepcionaram, dizendo, entre o mais, que a decisão final, prolatada no âmbito da acção declarativa ordinária que correu termos na 1ª secção do 8º Juízo Cível do Porto com o registo n.º 353/99 e que culminou com a improcedência da reconvenção e absolvição dos autores dos pedidos reconvencionais deduzidos, constituiu caso julgado material relativamente à reconvenção deduzida pela U e também relativamente à reconvenção deduzida pelos outros réus; invocaram ainda a nulidade do alegado nos arts. 58 a 63 da contestação apresentada pela 1ªré e pelos 2ºs réus, por alegada violação do segredo profissional.

            Foram apresentadas tréplicas em que se puseram em causa as réplicas dos autores, se impugnou a base da excepção do caso julgado e se respondeu à nulidade invocada.

            No despacho saneador julgou-se procedente a excepção da ilegitimidade dos cônjuges dos filhos do casal da 1ªré, que foram absolvidos da instância, e do caso julgado, o que determinou a absolvição da instância dos autores quanto ao pedido reconvencional deduzido pela U mas não quanto à reconvenção deduzida pelos outros réus.

            Realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando improcedente, por não provada, a acção e declarando oficiosamente a nulidade por simulação do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública de 30/04/1997, bem como a nulidade do concreto negócio dissimulado; consequentemente, ordenou-se o cancelamento dos registos a que correspondem as apresentações 54 de 06/05/1997; e condenou-se os autores a restituírem aos 2ºs réus o prédio que compraram e estes a restituírem aos autores a quantia que deles receberam a título de pagamento do preço estipulado no contrato, ou seja, o valor de 99.759,58€, a que acrescem os juros legais, como frutos civis, a contar do trânsito em julgado desta sentença; considerou-se, por fim, prejudicada, ao abrigo do disposto no art. 266/6 do CPC a apreciação do pedido reconvencional deduzido pela 1ªré e pelos 2ºs réus. As custas da acção e da reconvenção foram postas a cargo dos autores.

            Os autores interpuseram recurso desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que julgue válido o contrato de 30/04/1997 e nulo o contrato-promessa de 1996 -, impugnando (i) a decisão da matéria de facto quanto aos pontos 57 e 61; (ii) a declaração de nulidade por simulação (não haveria divergência entre a vontade real e o declarado, nem intuito de enganar ou prejudicar terceiros e o Estado, na veste de legislador, não seria terceiro para estes efeitos; de resto, nem tal intuito estaria alegado nem provado pelo que não podia ter sido tido em consideração pela sentença recorrida; a questão da simulação já estaria decidida noutro processo com trânsito em julgado); (iii) as consequências que da nulidade foram tiradas (devia ter sido ressalvado, pelo menos, o arrendamento do prédio pelo 2º autor); (iv) o valor do preço a restituir (seria um outro – referido no contrato-promessa – e deveria ter sido actualizado); (v) a validade do contrato-promessa de 1996 e a ilegitimidade para a arguir por parte dos autores; (vi) a repartição de custas quanto à acção e à reconvenção.

            Os 2ºs réus e a U contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso; e requereram, ainda, a título subsidiário, para o caso da procedência das questões suscitadas pelos autores, a ampliação do âmbito do recurso à impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao quesito 21.

            Os 2ºs réus também recorreram mas apenas para que fosse alterado o valor do preço a restituir, que era apenas 49.879,79€ e não 99.759,58€, já que a sentença teria incorrido no lapso de confundir o preço do contrato da venda de 30/04/1997 (entre os autores e o casal da 1ªré), com o preço do contrato-promessa de 1996 (entre o casal da 1ª ré e a U).

            Os autores contra-alegaram, reconhecendo a existência do erro, aliás também já referido por eles, mas reafirmando que, no caso da improcedência do seu recurso, o valor a restituir é o preço referido no contrato-promessa de 14/03/1997, de 119.711,49€ acrescido de juros desde a data do contrato de 30/04/1997, e do reembolso das benfeitorias realizadas nos prédios.

            Os autores vieram, depois, responder ao requerimento de ampliação do recurso, defendendo a improcedência da impugnação, para além de aproveitarem para reafirmar a sua posição quanto à falta de legitimidade da U para invocar a simulação, simulação que não teria sido invocada antes pelos 2ºs réus e não o poderiam fazer agora em contra-alegações de recurso, nem a poderiam provar com recurso a testemunhas, nem, por fim, poderiam pretender restituir apenas 49.879,78€ quando devem saber que os vendedores receberam 119.711,49€ (pagos com os cheques visados de que os autores juntam cópia).

            A isto vieram os 2ºs réus dizer, para além do mais, que os autores não podiam ter aproveitado a resposta ao requerimento de ampliação de recurso nos termos em que o fizeram, incluindo quanto à junção de documentos (que os 2ºs réus impugnam à cautela) – quando muito podiam-no ter feito nas contra-alegações ao recurso dos 2ºs réus.

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            Questões que importa decidir: se os autores não podiam ter aproveitado, nos termos em que o fizeram, a resposta ao requerimento de ampliação do âmbito do recurso, incluindo a junção de documentos; se deve ser alterada a decisão quanto aos factos 57 e 61 (e eventualmente quanto ao quesito 21); se não devia ter sido considerada verificada nem declarada a simulação; as consequências da nulidade; o valor do preço a restituir; a actualização do mesmo; a legitimidade para a invocação da nulidade do contrato-promessa de 1996 e, concluindo-se pela legitimidade, a nulidade do contrato-promessa; por fim, a responsabilidade pelas custas.

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                                           Questão prévia

            Os autores não podem, na resposta ao requerimento de ampliação do recurso, aproveitar para alargar a matéria das suas contra-alegações ao recurso dos 2ºs réus ou juntar documentos com esse fim, ou para alargar as alegações do seu recurso ou fundamentá-lo melhor ou com outras questões. Pelo que, da resposta dos autores ao requerimento de ampliação feito pelos réus apenas pode ser aproveitada a matéria de resposta à impugnação da decisão relativa ao quesito 21, devendo ser desentranhados os documentos juntos pelos autores com esta resposta, que, por isso, não serão considerados agora.

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            Para apreciação das questões a decidir interessam os seguintes factos provados que se deixam desde já consignados: (os nº.s 1 a 52 [sem 32 por não existir] vêm dos factos assentes; os outros vêm da resposta aos quesitos; os pontos 55, 58 e 62 não são reproduzidos por não terem conteúdo útil, pois que se limitam expressamente a dar como provado apenas o que consta doutros pontos; os factos 1 a 6, por serem posteriores a quase todos os outros, são relegados para o final):

7. Por contrato de arrendamento escrito celebrado em 01/06/1967, LL e a 1ªré cederam o gozo temporário, mediante retribuição, ao 2º autor, do prédio urbano composto por casa de dois pisos, com a área coberta de 72m2 e logradouro de 165m2, sita na Rua X, n.º 14, no Porto, inscrita na matriz predial respectiva sob o art. xxxx e descrita na X.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 00xxx/210590 [o contrato escrito apenas faz referência ao prédio urbano sito na rua xxx, n.º 14, Porto – aliás, o n.º do registo predial é de 21/05/1990, pelo que não podia constar do contrato… – e não está datado, embora conste dele que o começo de um ano é em 01/06/1967; e os contraentes mencionados são só LL e AA; dele também não consta qualquer referência a logradouro ou às áreas ou inscrição matricial; consta, em OBS., que faz parte do presente contrato a construção de uma garagem, cuja renda mensal será de 200$, que o inquilino se compromete a pagar com direito a sublocar – estas precisões foram feitas por este acórdão do TRP apenas para dar a conhecer o real conteúdo do documento que formalizou o contrato descrito, que não foi impugnado].

8. O arrendamento supra mencionado destinava-se a habitação do 2º autor e do seu agregado familiar.

9. Por escritura pública de 18/12/1964, LL e a 1ªré compraram a LA uma parcela de terreno com a área de 442m2, contíguo ao prédio descrito em 7.

10. Nessa mesma data de 18/12/1964 e pela mesma escritura pública, o mesmo LA vendeu a FS e mulher, proprietários de um prédio urbano confinante com o prédio de LL e da 1ªré, identificado em 7, uma parcela de terreno com a área de 99m2, destinado a arredondamento do prédio daquele FS constituído por casa e logradouro.

11. Após a compra desta parcela de terreno, com a área de 99m2, foi a mesma anexada ao prédio do comprador FS.

12. As parcelas de terreno com as áreas de 99m2 e 442m2, esta última que LL e a 1ªré compraram, integravam o prédio à época descrito sob o n.º xxxx na Conservatória do Registo Predial do Porto, com saída para a Rua xxx, n.º 495, no Porto.

13. Após a compra desta parcela de terreno de 442m2 por LL e 1ªré foi a mesma anexada ao prédio urbano identificado em 7, passando este prédio a ser composto por casa de 2 pisos, com a área coberta de 72 m2 e a área descoberta de 607m2, num total de 679 m2 (melhor identificada com as letras A e B na fotografia que constitui o doc. n.º4 junto à petição).

14. Apesar da anexação, a parcela de terreno com a área de 442m2 manteve-se fisicamente separada do prédio urbano referido em 7, por um muro de pedra já existente aquando da compra da citada parcela de terreno.

15. Quando as referidas parcelas de terreno foram compradas por LL e 1ªré e FS e mulher – 18/12/1964 – encontravam-se as mesmas arrendadas a terceiro, pelo que aqueles compradores não puderam ocupar as mesmas após a sua compra.

16. Encontra-se edificada na parcela de terreno com a área de 442m2 uma pequena casa composta por dois pisos, sendo que, no piso superior, residia o mencionado arrendatário.

17. Com a morte deste arrendatário, supõe-se que ocorrida em 1989, LL e a 1ªré e FS e mulher reclamaram da U, que entretanto ocupara indevidamente as referidas duas parcelas de terreno, a restituição das mesmas.

18. A U ocupava as referidas parcelas de terreno pelo facto de ter adquirido por escritura pública de 10/05/1990, após contrato de locação financeira imobiliária por esta celebrado na qualidade de locatária, o prédio então descrito na Xª Conservatória do Registo Predial sob o n.º xxxx (que posteriormente deu lugar ao prédio n.º xxxx/20040915), contíguo às duas referidas parcelas de terreno (melhor identificada com a letra E na fotografia que constitui o doc. n.º 4 junto à petição inicial).

19. Não tendo a U restituído voluntariamente as duas parcelas de terreno que ocupou, LL e a 1ªré e FS e mulher propuseram contra a U uma acção de reivindicação de propriedade, a qual culminou com sentença confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/06/1993 e por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 04/10/1994, que reconheceu o direito de propriedade sobre a aludidas parcelas de terreno a LL e à 1ªré e a FS e condenou a U a restituí-las a estes.

20. Já durante a acção executiva para entrega de coisa certa, que LL e a 1ªré e FS e mulher foram forçados a requerer contra a U, foi por ambas as partes acordado pôr termo ao litígio, tendo sido convencionado entre as partes celebrar um contrato-promessa de compra venda daquelas parcelas de terreno.

21. Foi o referido contrato-promessa de compra e venda celebrado em 02/04/1996, no qual intervieram como promitentes vendedores FS e mulher, e LL e a 1ªré e como promitente compradora a U (doc. n.º 8).

22. No aludido contrato-promessa, FS e mulher prometeram vender à U a parcela de terreno com a área de 99m2, pertença daqueles – melhor identificada com a letra D na fotografia que constitui o doc. n.º 4.

23. Por ser turno, LL e a 1ªré prometeram vender à U, pelo preço de 20.000.000$ (= 99.759,58€), a parcela de terreno com a área de 442m2 que, àquela data, integrava o prédio urbano descrito na Xª Conservatória Predial do Porto sob o n.º 00xxx/210590, melhor identificada com a letra B na fotografia que constitui o doc. n.º 4 (doc. 8 junto à petição).

24. Tendo a U pago a LL e à 1ªré o preço de 20.000.000$ que estes receberam.

25. Aquele prédio urbano do qual faz parte a parcela de terreno com a área de 442m2 prometida vender tem a área global de 679m2, correspondendo 72m2 a área coberta e 607m2 a área descoberta.

26. Do referido contrato-promessa consta o seguinte:

         – Cláusula 3ª: «Por sua vez, os 1ºs outorgantes LL e esposa compraram pela mesma escritura àquele LA, destacada daquele mesmo terreno sito na freguesia de x, uma parcela com a área de 442m2, destinada a arredondamento do seu prédio constituído por casa e logradouro, inscrito este na matriz sob o artigo 2727 e ora descrito na X Conservatória do Registo Predial do Porto com o n.º 00xxxx/210590» (Doc. n.º 8).

         – Cláusula 4ª: «Também estes 1ºs outorgantes […], após a compra e desanexação da parcela comprada, procederam à sua anexação ao seu prédio, como consta da actual descrição registal 00xxxx/210590» (doc. n.º8).

         – Cláusula 8ª: «Por sua vez, os 1ºs outorgantes […] prometem vender à U, livre de quaisquer ónus ou encargos, desanexando-a daquele seu prédio actualmente descrito na X CRP sob o n.º 00xxx/210590, aquela sua parcela de terreno com a área de 442m2, tal como é definida na clª 3ª, pelo preço de 20.000.000$ que já receberam».

         – cláusula 9ª [que neste acórdão se adita por estar provada pelo mesmo documento não impugnado e por ser objecto de referência pelos autores no seu recurso]: «As parcelas que os 1ºs outorgantes, prometem vender à U, destinam-se a arredondamento do prédio confinante, descrito na Xª CRP sob o n.º xxxx, B-10 e acima melhor identificado na cláusula 6ª, pois que fisicamente, nele estão – e sempre estiveram – integradas, tal como nessa cláusula se descreve.”

         – Cláusula 12ª: «Obrigam-se os 1ºs a fazer entrega à U, no acto da assinatura do presente contrato, de procuração por eles passada com poderes irrevogáveis para venda das parcelas que ora prometem vender, à U».

27. Após a celebração do contrato-promessa, a U continuou a ocupar a parcela de terreno com a área de 442m2, desta feita legitimada pelo aludido contrato-promessa que envolveu a traditio rei da parcela de terreno em benefício daquela.

28. Antes da celebração do referido contrato-promessa, a U começou a edificar na aludida parcela de terreno prometida vender por LL e a 1ªré um armazém com paredes em alvenaria de tijolo.

29. Em 1997 o 2ºautor propôs a LL comprar o prédio arrendado, composto por casa de dois pisos, com a área coberta de 72m2 e logradouro de 165m2, sita na Rua xxxxx, n.º 14, no Porto.

30. Concordando em vender o referido prédio urbano, LL e a 1ªré anuíram na venda do mesmo, tendo sido celebrado com os autores, em 14/03/1997, um contrato-promessa de compra e venda do mesmo.

31. No referido contrato-promessa a 1ªré declara, por si e em representação do seu marido, LL, serem «donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de casa de 2 pavimentos, destinada à habitação, com a área de 72m2 e logradouro de 165m2, sito na Rua xxxxx, 14, na freguesia de Lordelo do Ouro, na cidade do Porto, inscrito na respectiva matriz sob o art. xxxx, descrito na Xª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º xxx» (doc. n.º 9).

33. Pelo contrato-promessa supra mencionado a 1ªré por si e na qualidade de representante de LL prometeu vender a raiz da propriedade do prédio supra identificado aos 1ºs autores e o usufruto do mesmo aos 2ºs autores, os quais reciprocamente prometeram comprar.

34. Mais acordaram que a prometida escritura pública seria outorgada até ao dia 30/04/1997.

35. Obrigando-se a 1ªré a entregar aos promitentes-compra-dores, até 5 dias antes da realização da prometida escritura «fotocópia dos documentos de identificação, instrumentos de representação, licença de habitabilidade, certidão da CRP e caderneta predial urbana actualizados».

36. No espírito dos contraentes sempre esteve, porém, a celebração de um contrato de compra e venda relativo ao prédio urbano composto por casa de dois pisos, com a área coberta de 72m2 e logradouro de 165m2, sito na xxxx, n.º 14, no Porto, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo xxxx e descrita na Xª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 00xxx/210590 (melhor identificada com a letra A na fotografia que constitui o doc. n.º 4).

37. A 1ªré e LL exigiram dos autores, com vista a acautelar a sua posição, que estes redigissem uma declaração na qual os autores declarassem que, apesar comprarem um prédio cujo logradouro tinha a área de 607m2, o logradouro do prédio objecto do contrato de compra e venda apenas tinha a área de 165m2 não constituindo este facto fundamento para os autores anularem o contrato de compra e venda, ou para reduzirem o preço acordado ou pedirem qualquer indemnização.

38. Tal declaração correspondia exactamente à vontade dos promitentes, razão porque os autores não viram qualquer inconve-niente na mesma.

39. Aquando da elaboração da supra citada contra-declaração foi, no mesmo dia de 30/04/1997, celebrada no X.º CN do Porto a escritura pública de compra e venda, pela qual a 1ªré por si, e em representação do seu marido LL, declarou que na qualidade de donos e legítimos possuidores do prédio sito na Rua xxxx, n. 14, freguesia de x, Porto, descrito na Xª CRP do Porto, sob o n.º xxx e inscrito na matriz sob o artigo xxxx, pelo preço já recebido de 3.000.000$ vendem aos 2ºs autores o usufruto simultâneo e sucessivo, e pelo preço já recebido de 7.000.000$, vendem aos 1ºs autores em comum e partes iguais a raiz ou a nua propriedade do referido prédio, tendo os autores declarado aceitar tais vendas (doc. n.º 11).

40. Por via da referida escritura pública de compra e venda, os autores adquiriram a nua propriedade e o usufruto de um prédio urbano descrito na Xª CRP do Porto sob o n.º xxx/210590, com a área total de 679m2, sendo a área coberta de 72m2 e descoberta de 607m2, sito na Rua xxx, n.º 14, freguesia de x, no Porto, inscrita na matriz sob o artigo xxxx (doc.s n.s 11 e 7).

41. Encontrando-se a nua propriedade daquele prédio inscrita a favor dos 1ºs autores, mediante a apresentação xx de 1997/05/06 (doc n.º7).

42. E, encontrando-se a aquisição do direito de usufruto do mesmo prédio registado a favor dos 2ºs autores, mediante a apresentação xx de 1997/05/06 (doc n.º 7).

43. Mantendo-se a U nessa data de 30/04/1997, como se mantém hoje, a ocupar a parcela de terreno com a área de 442m2 que a 1ª ré e LL lhe prometera vender.

44. Antes de completar um ano após da compra do prédio supra identificado, os autores, por requerimento de 09/03/1998 dirigido à Câmara Municipal do Porto solicitaram informação sobre a viabilidade do fraccionamento do logradouro, seja através de loteamento, de destaque ou de outra operação urbanística, ficando uma parte do mesmo com a área de 165m2 a fazer parte do prédio inscrito na matriz sob o artigo xxxx, descrito sob o n.º xxx/210590, sito na Rua xxx, 14, no Porto (doct.12).

45. E, ficando a outra parte, com a área de 442m2 a constituir uma parcela autónoma daquele prédio urbano.

46. Sobre este requerimento pronunciou-se a CMP, em 04/05/1998, considerando inviável o fraccionamento do logradouro em duas parcelas autónomas (doc.12).

47. Do despacho camarário consta o seguinte: «A solicitação formulada através do reqtº. em epígrafe configura a divisão de uma propriedade em duas parcelas autónomas. Contudo, de acordo com a proposta apresentada, uma das parcelas resultantes não é dotada de acessos, isto é, não confina com a rede pública viária, pelo que, à luz da legislação em vigor, não tem qualquer viabilidade da concretização» (doc. n.º12).

48. Em Outubro de 2009 os autores solicitaram nova informação à CMP, constando do respectivo requerimento o seguinte: «Conforme consta da certidão da CRP, está inscrito a favor do 1.º Outorgante e dos representados do 2.º Outorgante, identificados pelas alíneas a), b) e c), a nua propriedade do prédio urbano, composto de casa de 2 pavimentos, com as seguintes áreas: coberta de 72m2 e logradouro de 607m2, inscrito na matriz sob o art. xxxx, descrito sob o n.º 00xxx/210590, sito na Rua xxxx, n.º 14, freguesia x, cidade do Porto. Sobre o mesmo prédio está inscrito o usufruto vitalício a favor do 2.º outorgante e da representada do 2.º Outorgante identificada pela alínea d). Pretendem os requerentes saber sobre a viabilidade do fraccionamento ou divisão desse logradouro de 607m2 em duas parcelas autónomas, ficando uma parcela, a sombreada a azul na planta anexa, de 165m2 a fazer parte, na mesma qualidade de logradouro, do referido prédio urbano, e a outra parcela, a sombreada a vermelho na mesma planta anexa, de 442m2, a constituir uma parcela autónoma daquele prédio urbano, seja tal divisão de propriedade realizada através de loteamento, seja através de destaque, nos termos da legislação em vigor aplicável, designadamente a referente aos licenciamentos de operações de loteamento e de urbanização»

49. Sobre este requerimento pronunciou-se a CMP, em 16/11/2009, informando que «em conformidade com o solicitado deverá ser certificado que não é possível proceder ao destaque da parcela nos termos propostos no requerimento x/0x/CMP»

50. A posição da CMP fundamentou-se no facto de a parcela com a área de 442m2 não confrontar com o arruamento público.

51. Até à presente data não foi realizada qualquer operação de loteamento, destaque ou outra que permita autonomizar juridicamente a parcela prometida vender pela 1ªré e LL à U do logradouro que integra o prédio urbano descrito na Xª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º xxx/210590.

52. Por escritura celebrada em 30/07/2004, FS e mulher venderam à U a parcela de 99m2 “a destacar da área descoberta do prédio urbano sito na Rua xxx, freguesia x, concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo xxx, descrito na Xª CRP do Porto sob o nº xxx e registado a favor dos vendedores, […], parcela que se destina a arredondamento de estremas e consequente ampliação de logradouro do prédio urbano da sociedade compradora” (cfr. doc de fls. 214 a 216)).

53. No dia da celebração da escritura pública de 30/04/1997 os autores AA e mulher, por si e como procuradores de A e N, M, C e marido M, S e mulher S, declararam o seguinte:

         “Os supra identificados declaram ter comprado a LL e esposa, por escritura pública de 30/04/1997, lavrada no Xº CN do Porto, no que respeita ao logradouro, apenas 165m2 e não os 607m2 que constam na descrição nº 00xxx/210590 da CRP do Porto, pelo que, este facto não constitui fundamento para anulação ou invalidade do negócio, para redução do preço ou para qualquer indemnização.

         Mais declaram que respeitam as promessas de venda efectuadas anteriormente por LL e esposa, relativamente à parte excedente do logradouro, ou seja, a 442m2, caso e quando o fraccionamento da área actual desse logradouro seja administrativamente autorizada por forma a transformá-la em duas partes distintas, sendo uma de 165m2 e outra com 442m2.”

54. Os autores sabiam e sabem que a U iniciou a edificação de armazém com paredes em alvenaria de tijolo logo que ocupou a parcela de terreno com a área de 442m2 em 1990.

56. Através do contrato promessa a que aludem os factos 20 a 23 e através da escritura pública de compra e venda a que alude o facto 54 a parcela de 99m2 voltou a fazer parte integrante do prédio actualmente pertencente à U.

57. À data da celebração do contrato promessa de 14/03/1997 a que alude o facto 30 e à data da celebração da escritura pública de 30/04/1997 os autores sabiam que a parcela de terreno de 442m2 nunca chegou a ser integrada fisicamente no prédio prometido vender e aceitaram esse facto, sem que daí pudesse resultar, nomeadamente, qualquer redução de preço, fundamento para a resolução do contrato promessa e do contrato prometido, ou motivo para exigência de indemnização ao vendedor [a redacção deste ponto já está alterada de acordo com o decidido quanto à impugnação da decisão da matéria de facto].

59. Aquando da celebração da compra e venda de 30/04/1997 os outorgantes compradores conheciam a situação registal do prédio.

60. Os autores e réus outorgantes da escritura pública de 30/04/1997 efectuaram de comum acordo declarações divergentes da vontade real, que era a de comprar e vender, respectivamente, apenas, o prédio urbano sito na Rua xxxx, nº 14, no Porto, composto por casa de dois pavimentos, com a área coberta de 72 m2 e por logradouro de 165 m2, com a única intenção de formalizarem o negócio pretendido.

61. Ao tempo da celebração da escritura de compra e venda de 30/04/1997 e da declaração feita em 30/04/1997 os declarantes que outorgaram na qualidade de compradores sabiam que a CMP não daria autorização para a criação/transformação da área de logradouro de 442m2 em artigo autónomo.

1. Os autores propuseram, em Março de 1999, contra a U uma acção judicial de reivindicação da propriedade, na qual concluíram pedindo que a U fosse «condenada a reconhecer o direito de propriedade dos autores, sendo o da nua propriedade para os 1.ºs e o usufruto para os 2.ºs, sobre o prédio […] xxx/210590, com a área total de 679m2, […] e a restituir aos autores a parte do logradouro desse prédio, com a área de 442m2, que actualmente ocupa.

2. A referida acção correu os seus termos pela 1.ª secção do 8.º Juízo Cível do Porto com o registo n.º 353/99, tendo, posterior-mente, sido redistribuída à 2.ª secção da 6.ª Vara Cível do Porto, com o registo n.º 2371/07.9TVPRT.

3. Na contestação apresentada a U reconveio peticionando: a) a condenação dos autores a reconhecer que aquela parcela com a área de 442m2 que faz parte da descrição daquele prédio xxx não é sua propriedade por não a terem adquirido a LL e mulher pela escritura de 30/04/97, mas sim apenas uma casa de 2 pisos com um logradouro com 165m2; b) a condenação dos autores a reconhecer a validade do contrato-promessa celebrado entre a U e o casal da 1ª ré, pelo qual estes prometeram vender àquela uma parcela com a área de 442m2; c) que o registo descrito sob o n.º xxx fosse rectificado de modo a que dele fique excluída aquela referida área de 442m2.

4. Posteriormente a U veio requerer a ampliação do pedido reconvencional, acrescentando, na parte correspondente à rectificação do registo da descrição predial, o seguinte: «provada que seja a impossibilidade da sua formalização legal, devem os autores reconvindos ser condenados a praticar os actos notariais e registais necessários à rectificação do registo, através da transmissão definitiva para a U daquela parcela de terreno com a área de 442m2 para arredondamento de estremas, com a sua integração no logradouro do prédio urbano descrito naquela Conservatória sob o actual n.º xxx/20040915, que sucedeu ao anterior n.º xxx, a fls. 60 v-B-10 (Doc. n.º 3).

5. Entretanto os autores desistiram do pedido, desistência que foi homologada por sentença de 28/09/2006, já transitada em julgado.

6. Por seu turno, por sentença de 24/07/2007, já transitada em julgado, foi julgado improcedente a reconvenção e, em consequência, os autores absolvidos dos pedidos reconvencionais contra si deduzidos.

                                                      *

                   Da impugnação da decisão da matéria de facto

           […]

                                                                 *

                                 Do recurso sobre matéria de direito

A fundamentação da sentença recorrida

            A sentença recorrida declarou oficiosamente a nulidade do contrato de 30/04/1997 (por simulação: art. 240/2 do CC) e do contrato dissimulado atrás daquele (por violação de normas legais imperativas: art. 294 do CC – as que proíbem o destaque, sem licenciamento, de uma parcela de terreno, em perímetro urbano, que fique sem acesso à via pública, tal como resulta, a contrario, e em síntese, do art. 5/1a) do DL 448/91, de 29/11, na versão em vigor à data, e do art. 6/4 do DL 555/99, de 16/12, na versão actualmente em vigor, o que a sentença fundamentou devidamente e nenhuma das partes põe em causa, nesta parte), com base na seguinte construção, que seguiu muito de perto um parecer jurídico (da Prof. Doutora e da Mestre) apresentado pela U emitido antes da resposta aos quesitos (em síntese deste TRP):

         Apesar de a simulação não ter sido invocada pelas partes a mesma mostra-se substanciada nos factos apurados e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. Os factos demonstram que autores e vendedores emitiram, de comum acordo, declarações (o objecto do contrato é um prédio com 679mm2) em divergência com a vontade real (o objecto do contrato é só a casa de 72m2 e 165m2 do logradouro desse prédio), porque sabiam que não podiam celebrar o contrato tendo por objecto só a casa e os 165m2, já que ficariam de fora 442m2, o que seria um destaque ilegal (não permitido legalmente) por estes 442m2 não terem acesso à via pública. O contrato simulado é nulo e o contrato dissimulado também o é, nem que mais não seja porque, para além do que antecede, os contraentes visaram contornar aquelas normas legais (o que consubstancia o prejuízo de terceiros).

            Desenvolvendo a questão da divergência entre a vontade e o declarado, sempre seguindo de perto o referido parecer, diz a sentença recorrida (em síntese e com simplificações deste acórdão do TRP):

         No caso dos autos, os autores, por via da escritura de compra e venda de 30/04/1997, adquiriram o prédio urbano descrito na CRP sob o n.º xxx com a área total de 679m2, sendo a área coberta de 72m2 e descoberta de 607m2. Conforme resulta dos factos 29 a 42 as partes outorgantes desse negócio de compra e venda sempre quiseram que o objecto do negócio fosse somente a área coberta de 72m2 e 165m2 do logradouro do referido prédio.

         Essa intenção das partes resulta clara, por um lado, do facto do 2ª autor ter proposto ao marido da 1ªré “apenas” a compra do prédio arrendado, composto por casa de dois pisos, com a área coberta de 72m2 e logradouro de 165m2, e de a 1ªré e marido terem anuído na venda do mesmo, tendo sido celebrado com os autores, em 14/03/1997, um contrato-promessa de compra e venda do mesmo. Também resulta, por outro lado, do conteúdo do contrato-promessa através do qual aqueles prometeram transmitir a propriedade do prédio aos autores, pois que o prédio era identificado como composto de casa de 2 pavimentos, destinada à habitação, com a área de 72m2 e logradouro de 165m2. Aliás, os factos 36 a 39 não deixam dúvidas sobre a vontade de todos os outorgantes na escritura pública de 30/04/1997. De resto, são os próprios autores que no art. 66 da P.I não se coíbem de manifestar o conteúdo da vontade deles: “Reitera-se, porém que a vontade dos autores foi, tão-só e nos termos do contrato-promessa celebrado com LL e 1ªré, comprar o prédio urbano sito na Rua xxxx, nº14, no Porto, composto de casa de dois pavimentos, com a área coberta de 72m2 e por logradouro de 165m2”. E, tal como referimos, o facto 36 (o qual reproduz o art. 55 da P.I), reforça o entendimento de que a vontade dos autores foi, tão, só e nos termos do contrato-promessa celebrado com LL e a 1ªré, comprar o prédio urbano sito na Rua xxxx, nº14, no Porto, composto de casa de dois pavimentos, com a área coberta de 72m2 e por logradouro de 165m2”.

         Todavia, à data da celebração do contrato-promessa o contrato pretendido não podia ser celebrado, porquanto o mesmo implicava a autonomização da parcela de 442m2, a qual, passaria a ser prédio encravado e, portanto, tal contrato violaria as normas urbanísticas por gerar um desanexação ilegal, por não ser permitida legalmente.

         De facto, o contrato pretendido só poderia ser celebrado quando a parcela de 442m2 prometida vender à U deixasse de ser parte componente do prédio e fosse anexada ao prédio da U, o que, não tinha ocorrido nem ocorreu ainda.

                                                      *

                                 Da inexistência de simulação

            Dizem os autores (em síntese deste TRP):

         – quando foi definitivamente titulada a transmissão do prédio, a indiscutível vontade real de todos, sem que se vislumbre simulação alguma, foi a de que fossem formalizadas, no único contrato de compra e venda, feito aos autores – e nos termos permitidos por lei -, as duas anteriores promessas de alienação efectuadas pelos vendedores (uma à U e a outra aos autores) uma vez que não era possível fazer dois contratos autónomos de compra e venda. É manifesto que o contrato definitivo e a declaração emitida pelos autores, do facto 53, pretendeu cumprir as duas citadas promessas.         

         – invocando um parecer (do Prof. no Dep. de Direito da Universidade) apresentado por eles, autores, também dado antes da resposta aos quesitos, dizem que o logradouro do prédio tinha necessariamente de ter a área de 607m2 – como foi realmente querido – a fim de que a parcela de 442m2 pudesse vir a ser futuramente desanexada e transmitida à U; se a vontade real dos outorgantes não tivesse sido a de vender e a de comprar o dito prédio com o logradouro de 607m2 – ou seja, englobando a parcela de 442m2 – como poderia depois esta ser desanexada do prédio e transmitida (caso e quando tal fosse legalmente possível) à U? Os autores só poderiam respeitar a promessa de venda da parcela feita à U pelos vendedores (quando legalmente possível) se a tivessem adquirido, isto é, se fossem donos dela. E os vendedores aquando da escritura de venda, também só poderiam ter exigido que os compradores assinassem a declaração na qual estes se obrigavam a respeitar a anterior promessa de venda dessa parcela à U – “caso e quando o fraccionamento da área actual desse logradouro seja administrativamente autorizada” – se nessa altura (da escritura) a tivessem querido transmitir (como transmitiram) àqueles compradores.

         – diferentemente, no contrato-promessa não há dúvida de que a vontade real dos promitentes-compradores e dos promitentes vendedores era celebrar um contrato prometido de compra e venda tendo por objecto uma casa composta por dois pisos com a área de 72m2 e logradouro de 165m2.

         – a sentença não fez a necessária distinção entre a vontade real dos contraentes na fase negocial e a vontade real dos contraentes no momento em que celebraram a escritura pública de compra e venda em 30/04/1997.

         – em reforço do que vai alegado, recorda-se que o n.º 2 do art. 236 do CC, regulador da interpretação da declaração negocial, estabelece o seguinte: «Sempre que o declaratário conheça a vontade real, é de acordo com ela que vale a declaração emitida». Assim a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, sempre que o declaratário a conheça.

         – o problema da interpretação do contrato tem precedência sobre o da divergência entre a vontade e a declaração; antes de mais é preciso apurar o sentido do contrato, saber o que significa a declaração; resolvido este surge-nos então o outro problema, caso o sentido apurado esteja em desacordo com a vontade real do declarante, o que manifestamente não sucede in casu.

         – ora, do que vai exposto não subsistem quaisquer dúvidas quanto à vontade real das partes no preciso momento em que celebraram a escritura pública de compra e venda, sendo óbvio que ambas as partes, reciprocamente, conheciam a vontade da contraparte; fica, deste modo, claramente demonstrado, à saciedade, não ter existido no momento da celebração da escritura-pública de compra e venda qualquer divergência entre o elemento interno e o elemento externo das declarações negociais por parte dos contraentes, pelo que inexistiu, no caso sob análise, qualquer simulação.

            Decidindo

            Posto isto, diga-se que a construção feita pelos autores – distinção entre as vontades do contrato-definitivo e a do contrato-promessa, obtidas por interpretação das mesmas – não convence. Desde logo, porque eles foram absolutamente claros, na petição inicial, em esclarecer que a sua vontade, no momento dos dois contratos, foi sempre a mesma, ou seja, a de comprar apenas a casa com os 165m2 de logradouro e não todo o prédio. O que afirmaram por várias vezes (entre elas nos arts. 55 e 66 da PI, sendo que, neste último, referem-se à sua vontade no contrato-definitivo como sendo a sua vontade “nos termos do contrato-promessa”). Aliás, na primeira parte da declaração transcrita no facto 53, os autores dizem, expressamente, “ter comprado, no que respeita ao logradouro, apenas 165m2 e não os 607m2 que constam na descrição nº xxx”. Ou seja, por um lado existem as declarações na escritura de compra e venda de 30/04/1997 e depois aquilo que os próprios autores qualificaram como de contra-declaração, que punha a nu a vontade real de todos (já que feita pelos autores mas a pedido do casal da 1ª ré). Por fim, no facto 60, não impugnado pelos autores, diz-se expressamente que “autores e réus outorgantes da escritura pública de 30/04/1997 efectuaram de comum acordo declarações divergentes da vontade real, que era a de comprar e vender, respectivamente, apenas, o prédio urbano sito na Rua xxx, nº 14, no Porto, composto por casa de dois pavimentos, com a área coberta de 72 m2 e por logradouro de 165 m2, com a única intenção de formalizarem o negócio pretendido.” Como outro óbice à interpretação feita pelos autores, pode ainda referir-se que a compra e venda tem como seu elemento essencial a existência de um preço (embora não a sua determinação) – arts. 874 e 879/c do CC; ora, é evidente que não existe qualquer preço para a alegada [agora, pelos autores] compra dos 442m2 pelos autores. O preço que existe diz respeito só à compra da casa com 165m2. 

            Assim, não há razão para pôr em causa a divergência entre as declarações negociais e as vontades reais dos outorgantes na escritura de 30/04/1997. Os autores nunca quiseram comprar os restantes 442m2 do logradouro.

                                                      *

Falta de alegação de factos…

            Dizem, então, os autores (sempre em síntese deste TRP):

         – ainda que considere ter existido divergência entre a vontade e a declaração, sempre se dirá não proceder in casu a declarada nulidade fundamentada na simulação.

         – com efeito, o art. 240 do CC exige três requisitos para que haja simulação. São eles: (i) divergência entre a vontade real e a vontade declarada; (ii) acordo simulatório; (iii) intuito de enganar terceiros.

         – por força dos n.ºs 3 e 4 do art. 607 do CPC que o juiz deve discriminar os factos que considera provados; e após deverá o juiz proceder ao seu enquadramento jurídico, o que deve fazer, limitando-se, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a apreciar as questões que tenham sido suscitadas pelas partes. Ora, segundo Abrantes Geraldes, a nulidade contratual quando emergir de vícios materiais ou substanciais (v.g. simulação contratual), não dispensará de modo algum a prévia alegação e a posterior demonstração dos factos pertinentes (in Sentença Cível, Janeiro 2014, pág. 25, http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/Processo-Civil/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf); ora, nos factos considerados provados, não se encontra uma única referência ao intuito de enganar terceiros por parte dos contraentes, o que se compreende porquanto tal nunca foi alegado por qualquer das partes (que aliás também nunca invocaram a simulação e, muito menos, arguíram a nulidade do contrato de 30/04/1997, nem também no decurso da acção alguma vez o tribunal se referiu a essa matéria ou ouviu as partes sobre ela), e no facto 60 diz-se que a única intenção das partes foi a de formalizarem o negócio pretendido, o que até confirma que as partes não quiseram simular o contrato).

         – em parte alguma da discriminação dos factos julgados provados decorre, directa ou indirectamente, ter existido qualquer acto, circunstância, episódio, motivação ou intenção em enganar ou prejudicar terceiros ou em frustrar preceitos legais imperativos; pelo contrário, foi expressa a vontade das partes em proceder à desanexação da parcela de 442m2 apenas quando se obtivesse o devido licenciamento administrativo, ou seja, quando tal fosse “legalmente possível”;

         – o tribunal a quo invocou na fundamentação de direito, sem o poder fazer, factos que não constam quer da matéria assente quer da resposta à matéria da base instrutória, nem tão pouco foram admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito; a única base em que a decisão se pretende ancorar é o parecer jurídico junto pelos réus, dizendo a sentença que «Logo, tal como refere o parecer […] urge concluir que houve, de acordo com o afirmado por todas as partes, divergência intencional entre a vontade e a declaração, com vista a frustrar as limitações legais de carácter urbanístico às operações de destaque, desanexação, fraccionamento, embora na mesma página da sentença se afirme que «os promitentes-compradores e os promitentes vendedores da promessa de 14/03/1997 celebraram a escritura pública de compra e venda de 30/04/1997 e efectuaram de comum acordo declarações divergentes com a vontade real (…) com a única intenção de conseguirem obter a formalização do negócio pretendido», donde inquestionavelmente resulta não ter existido (nem sequer poder ter existido) das partes qualquer intenção de enganar terceiros ou de frustrar as limitações legais de carácter urbanístico.

         – para que nos deparemos com a figura da simulação, terão de se verificar cumulativamente aqueles três requisitos supra discriminados. Como afirma o ac. do TRL de 07/05/2009 “se bastasse a mera produção de ilusão para fazer emergir a figura, dir-se-ia não fazer sentido a exigência constante do n.º 1 do art. 240 do CC, já que sempre surgiria tal encenação enganadora de terceiros e sempre a mesma teria que ser imputada à vontade das partes no negócio simulado que não poderiam, em condições ao menos comuns e prefiguráveis, deixar de conhecer estarem a lançar um sinal falso á comunidade jurídica circundante e, logo, susceptível de nela produzir logro».” Constando do sumário do referido acórdão: “II – Para a exigência “enganar terceiros” ter significado, é necessário que o engano seja relevante, ou seja, que produza efeitos ao nível dos interesses englobados na esfera jurídica de terceiro. III – Não há que cominar com nulidade o negócio simulado, quando a simulação funcionou, como mero vínculo interno de protecção do proprietário relativamente à efectiva transmissão do direito de propriedade e sem saliência na esfera jurídica de terceiros.” (in http://www.dgsi.pt).

         – mais, o documento particular exigido pelos vendedores, a fls. 104, foi elaborado (contendo o reconhecimento das assinaturas) no próprio Cartório Notarial onde, momentos depois, se celebrou o contrato de compra e venda, com o conhecimento da U, e à vista de todos; como refere a “aclaração” ao parecer (apresentado pelos autores), torna-se inquestionável que as partes e até todas as pessoas e entidades que intervieram – compradores, vendedores, a U e a própria CMP – sempre souberam de tudo o que se passava, de tal modo que todos os factos, circunstâncias e dificuldades também sempre foram claros e transparentes. Pode seguramente afirmar-se que, sobretudo os compradores e vendedores que, aliás, nada faz presumir que não fossem pessoas sérias, honestas e verdadeiras – como sói dizer-se e no caso é manifesto -, nunca quiseram enganar “nada nem ninguém”.”

            Sobre o intuito de enganar terceiros, a sentença tinha dito:

         “[…]

         Entre os terceiros inclui-se, pelo menos, o Estado, quando os contraentes visarem contornar a proibição legal [para efeitos de simulação, o terceiro abrange “quaisquer pessoas, titulares de uma relação, jurídica ou praticamente afectada pelo negócio simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (depois da morte do de cujus) – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed., 481; Manuel de Andrade, ob. vol. [II] cit. 198: “São terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam simuladores, nem seus herdeiros (ou legatários) a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas”, no intuito de enganar, pelo menos, o Estado, ao assim visarem contornar a proibição legal de venda de lotes não licenciados].

         Como julgou o ac. do STJ de 30/05/1995, CJSTJ1995, t.II, pág. 118, a simulação identifica-se com o propósito de “criar uma aparência” e é nesse “fingimento” que se situa “o desígnio de provocar uma ilusão normalmente destinada a enganar terceiros”.

         […]

         No caso de simulação relativa, a intenção de enganar terceiros resulta evidenciada pelo propósito das partes de criar uma aparência que não corresponde à realidade, celebrando um negócio aparente que dissimula o oculto ou encoberto.

         […]

         […] as normas que impõem a sujeição a licenciamento municipal das operações de loteamento têm em vista garantir a correcta e ordenada expansão dos núcleos urbanos, o ordenamento do território e de transformação urbanística de iniciativa dos particulares ou assegurar a defesa do interesse público e o respeito da legislação em vigor, designadamente em matéria de urbanismo e de protecção do ambiente, pelo que se hão-de considerar de interesse e ordem pública, de natureza indisponíveis e logo prevalentes sobre os institutos de natureza privada.

         […]

         […] Logo, urge concluir que houve, de acordo com o afirmado por todas as partes, divergência intencional entre a vontade e a declaração, com vista a frustrar as limitações legais de carácter urbanístico às operações de destaque, desanexação, fraccionamento.

         No caso, a concretização da vontade real (compra e venda da casa com os 165m2 de logradouro) estava dependente da autonomização como prédio da parcela de terreno que os autores quiseram comprar e que a 1ªré e seu falecido marido quiseram vender aos autores.

         E foi por causa dessa proibição legal que os promitentes-compradores e os promitentes vendedores da promessa de 14/03/1997 celebraram a escritura pública de compra e venda de 30/04/1997 e efectuaram de comum acordo declarações divergentes com a vontade real (esta correspondia aquela vontade a que se refere o art. 66 da P.I.) com a única intenção de conseguirem obter a formalização do negócio pretendido.

         E recorta-se também da factualidade apurada que os outorgantes da escritura pública de compra e venda celebrada a 30/04/1997 tiveram a intenção de enganar terceiros, na medida em que esta intenção de enganar terceiros inclui a simulação inocente e fraudulenta, bem como engloba, como é o caso dos autos, actuações fraudatórias de preceitos legais imperativos (assim resulta na explicação e proposta de definição legal de simulação por Rui de Alarcão, “Simulação. Anteprojecto para o Novo Código Civil”, Boletim do Ministério da Justiça, nº84, 1959, pp. 20-21), como são as regras de edificação e urbanização.

         Como explicado no ac. do STJ de 30/5/95, o intuito de enganar terceiros identifica-se com a intenção de criar uma aparência: intenção essa, adita-se, necessariamente revelada pela divergência entre a vontade real e a declarada e pelo acordo que tal determina.

         Concertadamente criada aparência não conforme com a realidade, tanto basta para que tenha de julgar-se outrossim revelado ou manifestado – tornado, mesmo, sem margem para tergiversação, evidente – o intuito ou propósito de enganar terceiros.

         […]

         E, por fim, todo o acordado foi-o com o intuito de enganar terceiros, pelo menos, o Estado, por forma a tornear uma proibição legal.

         Isto, porque as partes sabiam que não podiam celebrar o negócio que verdadeiramente pretendiam sem que a parcela de 442m2 tivesse deixado de fazer parte componente do prédio xxx.

         […]”

            E a U e os 2ºs réus reforçam, no mesmo sentido do ac. do STJ de 1995, com o ac. do STJ de 11/02/2003 (03B2536 – http://www.dgsi.pt):

         “VIII. – Identificado o intuito de enganar terceiros com a intenção de criar uma aparência, essa intenção é necessariamente revelada pela divergência entre a vontade real e a declarada e pelo acordo que tal determina, de tal modo que assim concertadamente criada aparência não conforme com a realidade, tanto basta para que tenha de julgar-se evidenciado o intuito ou propósito de enganar terceiros.” Sendo que, ao longo do acórdão, refere-se “Ainda quando não tenha havido intenção fraudulenta, isto é, de prejudicar terceiros (animus nocendi) – caso mais frequente – haverá simulação se existir o intuito ou propósito de enganar terceiro (animus decipiendi).” E ainda: no caso de simulação relativa, a intenção de enganar terceiros resulta evidenciada pelo propósito das partes de criar uma aparência que não corresponde à realidade, celebrando um negócio aparente que dissimula o oculto ou encoberto.”

            Decidindo:

            É certo que, grosso modo, o juiz só se pode servir dos factos essenciais/principais que tenham sido alegados pelas partes (art. 5/1a) e 2c) do CPC na redacção da reforma de 2013 [sendo o último alvo actual de interpretações contrárias] ≈ arts. 264/1 e 664 do CPC na redacção anterior) e o intuito de enganar terceiros é um facto essencial/principal para a conclusão da existência da simulação. Mas se esse intuito de enganar terceiros decorrer de forma necessária dos factos alegados pelas partes, não se pode dizer que ele não tenha sido alegado.

            Ora, estando provada a existência de uma vontade real (de comprar e vender só a casa com 165m2 de logradouro) divergente da declarada (comprar e vender o prédio todo), divergência resultante de um acordo dos compradores e vendedores, com a única intenção de formalizarem o negócio pretendido, o que revela que sabiam que só com aquela divergência é que poderiam formalizar o negócio, ou seja, que de outro modo não poderiam fazer, é evidente o intuito de enganar terceiros, desde logo a autoridade pública que elaborou a escritura, que se não fosse aquela divergência não poderia aceitar fazer a escritura (da compra e venda da casa com 165m2 de logradouro), por ela conduzir a resultados proibidos por lei (autonomização de uma parcela de 442m2 encravados).

            Ou seja, está-se perante uma simulação fraudulenta, a qual decorre dos factos provados, sendo que todos eles estavam alegados. Não há, por isso, violação do art. 607/3 e 4 do CPC, porque na fundamentação de direito da sentença só se utilizaram factos provados.

            Repare-se que se utilizou a frase alegada pela U (mas também pelos outros réus, como se vê na parte final do art. 68 da contestação) “com a única intenção de formalizarem o negócio pretendido”, porque está provada (vem da resposta aos quesitos) e simplifica a questão. Mas a construção feita pela sentença recorrida não precisava de utilizar tal frase, nem a utilizou o parecer apresentado pela U (em fase em que ainda não havia a resposta aos quesitos). Se se celebra uma escritura de compra e venda de todo um prédio apenas se querendo vender e comprar parte dele porque não se a pode celebrar apenas por esta parte, como é explicitado em contradeclaração, é evidente que se está a fazer aquela escritura porque não pode fazer esta e que se o faz para se evitar a proibição de se o fazer como se queria. E repare-se que também não é utilizado, nesta argumentação, o facto 61 (que, no entanto, foi alegado por todos os réus – quanto aos 2ºs réus, veja-se o art. 96 da sua contestação). O facto decorre de outros embora também tenha sido provado autonomamente.

            Por fim, sobre o que se passou no Cartório Notarial nada consta dos factos provados, pelo que do invocado agora pelos autores não se podem retirar as conclusões por eles referidas no último § transcrito acima.

                                                      *

                                   O Estado não é terceiro…

            Dizem, depois, os autores:

         – na sentença também se fala no intuito de enganar terceiros, pelo menos, o Estado, por forma a tornear uma proibição legal, invocando-se uma passagem de um estudo de Rui Alarcão, que se reporta ao anteprojecto para o novo código civil, sendo que o texto da disposição legal referente à noção da simulação foi, na versão final do art. 240 do CC, expurgado da expressão “frustrar a aplicação de algum preceito legal” (cfr. BMJ, ano 84, pág. 305 e sgs. in “Simulação. Anteprojecto para o Novo Código Civil”).

         – por outro lado, desde sempre tem a jurisprudência vindo a entender que só existe simulação quando, para além dos demais requisitos, se pretende enganar um sujeito de direito privado e não o Estado enquanto titular do poder legislativo. A esse respeito, veja-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes acs.: do TRL de 26/11/1987: «O Estado formula a lei para ser observada, tendo em conta os seus objectivos, mas não se pode dizer que a violação da lei visa enganar o Estado. Este só indirectamente é atingido pela violação da lei. A simulação tem um sentido específico que não se confunde, pois, com a fraude à lei, pelo que falta no caso dos autos a existência de um terceiro que o negócio visasse enganar no sentido pretendido pelo art. 240 do CC. O terceiro visado pelo engano é um sujeito de direito privado e não o Estado enquanto titular do poder legislativo, em veste, portanto, de ente público, exercendo um poder de soberania. … Não havendo terceiro que o negócio tenha em vista enganar não há simulação, pelo que o contrato de fls. 4 não pode ser declarado nulo com esse fundamento» (CJ1987, t.5, pág.130); e do STJ de 17/01/1989 [076735]: “IX – Na simulação, o terceiro visado pelo engano é um sujeito de direito privado e não o Estado enquanto titular do poder legislativo.”

         – tão pouco existiu in casu qualquer fraude à lei, sendo que a Srª juíza a quo não concretiza que norma ou normas as partes pretenderam violar, quedando-se por referências genéricas, limitando-se a afirmar que as partes pretenderam «frustrar as limitações legais de carácter urbanístico às operações de destaque, desanexação, fraccionamento», sem contudo individualizar que ou quais as disposições legais que as partes teriam querido frustrar, sendo certo que as partes quiseram exactamente o contrário: isto é, só transmitir a parcela à “U” quando tal fosse “legalmente possível”; como ensina Castro Mendes «na fraude à lei, as partes querem os efeitos jurídicos declarados, porque com esses efeitos pretendem conseguir um resultado ilícito» (in Direito Civil, vol. III, 1979, pág. 370); ora, as partes outorgantes aquando da escritura pública de 30/04/1997, tiveram o cuidado de acordar entre si, que os autores respeitavam o contrato-promessa celebrado entre os vendedores e a U, relativo à parcela do logradouro de 442 m2, e que o mesmo seria transmitido à U logo que fosse legalmente possível; do que resulta que sempre foi intenção das partes proceder ao fraccionamento do logradouro logo que o mesmo fosse legalmente possível. Isto é, nunca pretenderam as partes defraudar a Lei e, muito menos violá-la; vale dizer, nunca esteve no espírito das partes conseguir para si (ou para terceiro) um qualquer proveito ou resultado ilícito; pois que nunca houve, nem há, violação de qualquer regra, e muito menos de lei imperativa, ou sequer o intuito de a contornar.

         – aliás, e como consta da contestação apresentada pela 1ªré e 2ºs réus, houve, pelo contrário, o cuidado de informar previamente a U da intenção de celebrar o contrato de compra e venda de 30/04/1997, não tendo esta deduzido qualquer oposição à mesma [intenção] (cfr. arts. 60 e 61 da contestação da 1ªré e dos 2ºs réus, a fls. 198); o que retira, diga-se, independentemente da U ser, ou não, terceira em face deste contrato, qualquer legitimidade à U, para arguir a nulidade do negócio com fundamento em simulação.

            Já resulta do decidido atrás que a simulação fraudulenta, pode visar também a frustração de normas legais, sendo aliás um dos exemplos típicos dela.

            Neste sentido, por exemplo, Manuel de Andrade, TGRL, vol. II, 4ª reimpressão, 1974, Almedina, págs. 180/181, refere que a simulação fraudulenta constitui o processo mais frequentemente usado para contornar as proibições legais e depois de ter explicado (págs. 171/172) que a simulação podia assumir duas formas, a inocente e a fraudulenta, sendo esta a que “foi feita com o intuito não só de enganar mas também de prejudicar terceiros (de modo ilícito) ou de contravir a qualquer disposição legal (animus nocendi)”.

            E Mota Pinto, TGDI, 4ª edição por Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, Coimbra Editora, pág. 466, diz: “A simulação é […] fraudulenta, se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei (animus nocendi)”.

            Em sentido contrário ao dos acs. citados pelos autores, veja-se o ac. do STJ invocado pelos 2ºs réus, de 26/01/2012, CJSTJ2012, t.I, págs. 59 a 65: “É nulo, por simulação, o negócio jurídico em que as partes declararam a compra e venda de avos indivisos de prédio rústico para dar cobertura à alienação de uma parcela física autonomizada do mesmo prédio, com uma moradia nela edificada, não licenciada, no intuito de enganar o Estado, contornando a proibição legal da venda de lotes não licenciados.”

            Assim, a expurgação, na versão final do art. 240 do CC, da expressão “frustrar a aplicação de algum preceito legal”, não tem o sentido que lhe é dado pelos autores, pois que se tem continuado a entender que um dos intuitos típicos da simulação fraudulenta é o de contornar qualquer norma da lei.

            Os dois acórdãos invocados pelos autores, de 1987 e 1989 [e são os únicos acórdãos publicados na base de dados do IGFEJ neste sentido; um outro, em que a questão foi levantada nas alegações de recurso, nem deu relevo ao argumento (: ac. do STJ de 28/05/2012, 02B1299)] reportam-se a situações em que está em causa o regime de propriedade das farmácias, porque se teria chegado à conclusão de que a farmácia não estava a ser explorada pela farmacêutica (no primeiro deles, do segundo não se tem conhecimento do conteúdo). A questão de facto era duvidosa, porque tinha sido formulado um quesito sobre a intenção das partes, que tinha tido resposta de não provado e, por isso, o acórdão não perde muito tempo com a questão e toma posição sem invocar qualquer doutrina ou jurisprudência no sentido que defende.

            Aliás, a aclaração do parecer apresentado pelos autores também admite a simulação fraudulenta como, numa das hipóteses, o propósito de ilicitamente contornar uma norma imperativa.

            Quanto ao não estarem preenchidos os pressupostos da “fraude à lei” – porque nesta as partes querem os efeitos jurídicos declarados, o que não é o caso dos autos – não evita que se verifique a simulação fraudulenta, como já se viu.

            Por fim, a referência à ilegitimidade da arguição da simulação pela U, não procede por quatro razões: desde logo, porque a argumentação dos autores se serve, para o efeito, de factos não provados; depois, porque embora o facto “com a única intenção de formalizarem o negócio pretendido” tenha sido realmente alegada pela U (mas foi-o também pelos outros réus, como se viu) e esteja a ser utilizada para se concluir pela intenção de enganar terceiros, a verdade é que, como já se viu, à mesma conclusão se chegaria sem o mesmo; terceiro, sendo o contrato-promessa de 1996 (entre o casal da 1ªré e a U) posto em risco com a venda de todo o prédio aos autores, é evidente a legitimidade da U em arguir a simulação do mesmo (ou melhor, no caso, dos factos que consubstanciam a simulação); quatro, a simulação foi declarada oficiosamente com base em factos que, como se viu, não foram só alegados pela U.

            Entretanto, note-se que é totalmente contraditória com esta argumentação dos autores, quanto à legitimidade para a arguição da simulação do contrato de compra e venda de 1997, com a posição por eles assumida quanto à sua legitimidade para invocarem a nulidade do contrato-promessa de 1996.

                                                      *

                Da eventual falta da intenção de enganar terceiros

            Diz a sentença:

        De resto, mesmo que se recusasse a verificação no caso sub judice da “intenção de enganar terceiros”, o contrato celebrado a 30/04/1997, pelo qual se transmitiu a propriedade e se constituiu um direito de usufruto nos termos aí referidos, a simulação verificada poderia encontrar solução em tema de interpretação do negócio jurídico. A divergência bilateral e consensual entre a vontade e a declaração é uma questão que encontra solução jurídica no artigo 236/2, do CC, do qual, resulta que se ambas as partes declararam algo diferente do que verdadeiramente queriam e se estão de acordo quanto ao conteúdo negocial verdadeiramente querido, o negócio vale de acordo com a sua vontade real. Logo, no caso dos autos em que se verifica uma simulação relativa chegar-se-ia ao chamado negócio dissimulado através da interpretação. As regras dos arts 240 a 243 do CC só são aplicáveis quando, interpretado o negócio, se apure que houve intencionalidade na divergência, que houve por parte dos autores do negócio intenção de criar uma aparência jurídica diferente da realidade negocial, com a intenção de enganar terceiros (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, pp. 681 e ss.)

            Ou seja, mesmo que não se verificasse a intenção de enganar terceiros, o contrato simulado desapareceria por via da interpretação negocial. E o negócio jurídico dissimulado, do qual resultou uma parcela autónoma de 442m2 em violação das normas jurídicas urbanísticas imperativas, seria inválido (art. 294 do CC), nulidade que seria também de conhecimento oficioso (art. 286 do CC).

            Ora, contra esta fundamentação, que está certa e que conduz ao mesmo resultado que a primeira via de fundamentação da sentença recorrida, os autores não dizem, directamente, uma linha que seja, o que, só por si, levaria à improcedência do recurso nesta parte.

                                          *

          “Da autoridade do caso julgado”

            Dizem os autores (em síntese e com simplificações deste TRP):

         “No caso de assim se não entender sempre estaria o tribunal a quo impedido de declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 30/04/1997 com fundamento em simulação.

         Como consta dos factos 1 a 6 os autores propuseram, em Março de 1999, contra a U, uma primeira acção judicial, na qual foi deduzida reconvenção.

         Por sentença proferida em 24/07/2007, já transitada em julgado, foi julgado improcedente a reconvenção e, em consequência, os autores absolvidos dos pedidos reconvencionais contra si deduzidos.

         Aquela sentença refere, expressamente:

         ‘Os factos constantes das als. g) e l) a q) dos factos provados demonstram que os autores (adquirentes) e os respectivos transmitentes, na escritura pública de transmissão, efectuaram de comum acordo declarações divergentes com as respectivas vontades reais (que eram, outrossim, as referidas na al. p) dos factos provados). Não o fizeram, porém, com a intenção de enganar terceiros, mas sim com a intenção de conseguir obter a formalização do negócio em causa, uma vez que a não conseguiriam se declarassem as suas vontades reais, acima referidas.

         Essa impossibilidade (de outorgar a escritura pública nos termos referidos na al. p) dos factos provados) deveu-se ao facto de a parcela de terreno em causa não se encontrar previamente autonomizada como prédio, nem ser então possível demonstrar ao respectivo notário a admissibilidade legal da sua autonomização (da criação de um novo prédio). Isto porque os transmitentes não dispunham então da respectiva autorização administrativa para a criação de um novo prédio correspondente ao referido logradouro de 442 m2 (através de loteamento), autorização essa, aliás que continua ainda hoje a não existir (…).’

         A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga – art. 621/1, primeira parte, do CPC. Estão compreendidas na expressão “precisos limites e termos em que julga” todas as questões solucionadas na sentença, conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.

         A orientação doutrinal e jurisprudencial actual tem vindo a considerar que, embora o caso julgado esteja restrito à parte dispositiva do julgamento, deverá alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha necessidade de resolver como premissa da conclusão formada.

         Isto é, sem alargar a força de caso julgado a todos os motivos objectos da sentença, reconhece-se todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.

         Quer isto significar que embora as premissas da decisão não adquiram, em regra, força de caso julgado, deve reconhecer-se-lhes essa natureza, quer quando a parte decisória a elas se referir de modo expresso, quer quando constituírem um antecedente lógico, necessário e imprescindível, da decisão final.

         Neste sentido, veja-se Rodrigues Bastos (in Notas ao CPC, 3.ª ed., pág. 201) e, a título de exemplo, o ac. do STJ de 12/07/2011 [129/07.4TBPST.S1].

         A sentença proferida naquele primeiro processo refere-se ao thema decidendum, caracterizando-a da seguinte forma:

         «A U pretende que se reconheça que a parcela de terreno em causa não faz parte da descrição do prédio dos autores (n.º 00xxx/210590) e que se proceda à rectificação dessa descrição predial em conformidade (de modo a excluir aquela parcela de terreno) ou que se condene os autores a praticar os actos para tanto necessários» (cfr. fls. 79).

         Até alcançar a decisão final de improcedência do pedido reconvencional, o tribunal da comarca do Porto julgou diversas questões preliminares que configuraram pressupostos lógicos e necessários à prolação da parte dispositiva da sentença.

         Para o efeito, o tribunal apreciou as questões preliminares que ordenou da seguinte forma

         i. Inadmissibilidade processual da apreciação do âmbito da aquisição feita pelos autores (cfr. fls. 79); ii. Inadmissibilidade legal de atender à vontade real dos contraentes (cfr. fls. 80); iii. Impossibilidade de obter judicialmente um resultado tipicamente negocial (cfr. fls. 81).

         E foi no âmbito deste caminho trilhado pelo tribunal da comarca do Porto que o mesmo, debruçando-se sobre a segunda questão, apreciando a vontade real dos contraentes declarou o que já foi transcrito acima.

         Como é evidente se o tribunal tivesse julgado de forma diversa, considerando que os contraentes actuaram com o intuito de enganar terceiros, declararia oficiosamente a nulidade do contrato com fundamento em simulação.

         Não o fez, porém, por ter expressamente julgado não existir intuito de enganar terceiros, entendendo, incluindo por essa razão, não existir in casu simulação. E, por ter entendido não existir intenção de enganar terceiros (e consequentemente simulação), passou a apreciar a terceira questão supra mencionada.

         Vale dizer, a apreciação da existência do intuito de enganar terceiros representou uma questão preliminar que constituiu um antecedente lógico e indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.

         Ora, em face da autoridade do caso julgado nos termos supra explanados, não pode nos presentes autos, o tribunal a quo declarar a nulidade do citado contrato de compra e venda, com fundamento na simulação do mesmo (e consequente intuito de enganar terceiros) sem que ocorra ofensa de autoridade do caso julgado formado na acção anterior.

            Decidindo:

            Pegando no ac. do STJ invocado pelos autores – “[…] se essa autoridade vem a ser posteriormente colocada numa situação de incerteza, pelas mesmas partes, seja em processos diferentes, seja no mesmo processo, então será possível ocorrer ofensa do caso julgado formado na acção anterior” – é evidente que eles não têm razão.

            Mesmo dando de barato que no caso se pode invocar o caso julgado – até porque o tribunal recorrido já o julgou verificado em relação à reconvenção deduzida pela U – a verdade é que o caso julgado vale entre as partes, não contra terceiros que não tiveram ocasião de se pronunciar sobre a questão (neste sentido, vão também as contra-alegações dos réus, sendo que a U invoca ainda o ac. do TRC de 12/06/2012, processo 765/11.4TBCTB.C1 e o facto de o tribunal do processo de 1999 nem sequer se dever ter pronunciado sobre a simulação, numa acção em que um dos outorgantes do contrato não era parte; ora, realmente, tendo o tribunal do processo de 1999, logo quanto à primeira questão que os autores referem sobre (i), considerado que, por não ser parte na causa o casal da 1ª ré, transmitentes no negócio do qual resultou a aquisição pelos autores dos seus direitos sobre o prédio, não podia discutir-se esse negócio, não devia ter-se pronunciado sobre o mesmo, o que, aliás, só vez subsidiariamente (: “ainda que não se entendesse como se expôs, há que considerar o seguinte: (ii)”)).

            E, portanto, também não vale contra o tribunal, que, num processo com outras partes, face aos factos alegados e apurados nesta outra acção (mesmo sem considerar os factos alegados pela U), chegou oficiosamente à conclusão da existência da simulação, por mais que tal revele um entendimento doutrinário diferente daquele a que chegou o primeiro tribunal, já que no nosso sistema jurídico não existem “precedentes”.

                                                      *

                            Das consequências das nulidades declaradas

            A sentença, nesta parte, aplicou a solução adoptada no assento n.º 4/95, do STJ, publicado no DR Iª, de 17/05/1995, e no BMJ, 445º, pág. 67 [= 085202 da base de dados do IGFEJ], hoje com força de acórdão uniformizador de jurisprudência: – Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, devem as partes outorgantes serem condenados na restituição do recebido com fundamento no n. 1 do art. 289 do CC.

            Dizem os autores:

         O tribunal a quo condenou, sem mais, os autores na restituição aos réus do prédio que lhes compraram em 30/04/1997.

         Terá o tribunal a quo olvidado que os autores antes da comprarem o prédio, eram, desde 1967, arrendatários do mesmo (cfr. doc. n.º 5 junto com a p.i. a fls. 85), tendo o contrato de arrendamento cessado os seus efeitos por confusão após a compra do prédio pelos arrendatários.

         Ao declarar a nulidade do contrato de compra e venda, sempre deveria o tribunal a quo declarar que se mantinha então em vigor o contrato de arrendamento que vigorava entre as partes à data da celebração do contrato de compra e venda.

         Pelo que nunca os autores deveriam ter sido condenados a restituir o prédio urbano, como se o tivessem comprado sem antes serem arrendatários do mesmo.

         Destarte, teria sempre que ser revogada a sentença recorrida no que concerne à obrigação de restituição do prédio comprado, mantendo-se os autores no gozo daquele, desta feita na qualidade de seus arrendatários.

            Nenhum dos réus se pronuncia quanto à questão.

            Decidindo:

            Os autores não têm razão em argumentar com os factos que alegam para chegarem à conclusão da cessação do arrendamento por confusão. E isso porque os factos em causa não foram dados como provados. A casa e uma garagem estavam ocupados antes da compra e venda da mesma com 165m2 de logradouro, mas não se sabe se estavam ocupados até à compra e venda, ou seja, se o contrato de arrendamento só cessou pela confusão de situações jurídicas (o 2º autor não podia ser, simultaneamente, usufrutuário e arrendatário).

            Mas, no essencial, têm razão: a acção dos autos não é uma reconvenção de reivindicação, em que os autores se tivessem que defender (ou se tivessem podido defender), sob pena de preclusão, invocando títulos que legitimassem a sua detenção do prédio (art. 1311 do CC). Pelo que a questão não foi discutida.

            Ou seja, a restituição do prédio não foi ordenada depois da discussão sobre eventuais títulos que os autores pudessem ter sobre parte dele (casa com 72m2 e 165m2 de logradouro), pelo que não parte da certeza jurídica da inexistência deles.

            Dito de outro modo, no caso não existia a fixação dos necessários factos materiais de que fala o acórdão 4/95 para se poderem tirar as consequências das nulidades declaradas.

            De resto, ver-se-á já de seguida que há uma série de outras questões que as partes deveriam poder discutir – como a existência de benfeitorias, por parte dos autores, a valorização (para mais ou menos) do prédio na parte da casa e dos 165m2 do logradouro, o valor das rendas para eventual compensação com juros do preço, o valor do preço efectivamente pago no contrato dissimulado, etc., – e não o puderam fazer nos autos, pelo que a restituição das prestações recíprocas (preço e prédio) não deve ser ordenada.

            No entanto, há que fazer uma distinção: foram declaradas duas nulidades, a do contrato simulado, por simulação (art. 240/2 do CC), e a do contrato dissimulado, por violação de lei imperativa (art. 294 do CC).

            Ora, em relação ao contrato simulado, sabe-se que os autores não pagaram qualquer preço pela parcela de 442m2, da qual só formalmente são donos (por a aquisição do mesmo estar registada a seu favor), nem entraram na posse ou detenção dela, pelo que a restituição que fica por discutir e que não se conhece destes autos é apenas a que respeita à casa com os 165m2 de logradouro e ao preço pago por ela. Quanto ao mais nada havia a restituir (por nem haver preço nem posse ou detenção).

                                                      *

                            Do valor a restituir pelos outros réus

            Diz a sentença:

        A nulidade tem efeito retroactivo e tem como consequência a restituição pelos contraentes de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (arts 220, 285, 286 e 289/1 do CC). Esta obrigação de repor as coisas no estado anterior à celebração do contrato resulta do disposto no art. 289/1 do CC.

         […]

         In casu, […] os autores tem de restituir aos segundos réus o prédio que compraram a estes e estes, por sua vez, estão obrigados a restituir àqueles as quantias que deles receberam a título de pagamento do preço estipulado no contrato. À restituição da quantia paga a título de preço acrescem os juros legais, como frutos civis (arts. 289/3, 1270/1 e 212, nºs 1 e 2, do CC).

         […] a contar do trânsito em julgado desta decisão [esta frase consta depois do § seguinte, mas por evidente lapso – parêntesis recto da responsabilidade deste acórdão].

         A eventual vantagem económica obtida pelos autores com a ocupação e exploração do prédio entende-se estar compensada com os frutos da aplicação do capital que os réus, com a diligência de um bom pai de família, poderiam ter obtido a partir do momento em que tiveram na sua disponibilidade as quantias que os autores lhe entregaram a título de pagamento do preço convencionado, num total de 99.759,58€. […]

            Dizem os autores:

         Como facilmente se constata, só por lapso o tribunal a quo terá condenado os outros réus a restituírem aos autores a «quantia que deles receberam a título de pagamento do preço estipulado no contrato, ou seja, o valor de 99.759,58€», já que, em parte alguma, resulta ter sido esse o preço pago pelos autores.

         De facto, da escritura pública de compra e venda resulta que o casal da 1ªré vendeu pelo preço global de 49.879,79€ o usufruto aos 2ºs autores e a nua propriedade aos 1ºs autores.

         Sucede que, como resulta directamente do contrato-promessa celebrado, os autores pagaram a título de preço a vendedores 119.711,49€, tendo estes recebido daqueles esta importância (cfr. contrato-promessa junto a fls. 100 a 103).

         Pelo que, sempre a importância a restituir pelos réus aos autores a título de pagamento do preço acordado teria que ser esta importância, acrescida dos juros de mora correspondentes ao período decorrido entre 30/04/1997 e a data da sua efectiva restituição.

         Pois como ensina Pinto Monteiro «na verdade, tendo a declaração de nulidade, tal como a anulação e a resolução, efeito retroactivo, isso significa que os efeitos retroagem à data do negócio, o que quer dizer que o vendedor deve colocar o comprador na situação em que este estaria se o preço lhe fosse efectivamente restituído logo no momento em que ele o entregou à outra parte. Daí que nos pareça que o comprador tenha direito aos juros correspondentes ao período entre aquela data e a da sua restituição efectiva (solução que nos parece preferível à da actualização da soma entregue a título de preço» – in RLJ, Ano 141, n.º 3971, pág. 105; considerando estarmos em face de uma dívida de valor, e, por essa razão, sujeita a actualização, vide Clara Sottomayor “A obrigação de restituir o preço e o princípio do nominalismo das obrigações pecuniárias – a propósito do Acórdão do STJ de 11 de Março de 1999 -, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, pág. 547 e segs).

         Do mesmo modo, e porque nunca a temática relacionada com a simulação e consequente nulidade foi alegada no tribunal recorrido, não se deixa de alegar nesta sede terem os autores o direito a serem reembolsados pelas diversas benfeitorias realizadas no prédio citado, as quais, se se revelar necessário, não deixarão de ser demonstradas na competente acção judicial.

            Os 2ºs réus respondem, entre o mais, que:

        Os autores sustentam a sua pretensão no preço referido no documento junto com a P.I. com o n.º 9, mas tal documento não permite tirar a conclusão de que o casal da 1ªré tenha recebido os referidos 24.000.000$, uma vez que não corresponde ao contrato referido no facto 30, o que é fácil de constatar uma vez que o mesmo nem sequer se encontra assinado pelas partes, o que faz presumir que nem sequer houve entrega de qualquer quantia, uma vez que tal nunca aconteceria sem que quem a entregasse ficasse com um comprovativo de o ter feito e o documento não refere que naquela data tenham sido entregues 24.000.000$ mas sim 10.000.000$. O que está assente (facto 40) e devidamente assinado pelas partes pela ocasião da escritura de compra e venda é que os autores pagaram e os vendedores receberam o preço global de 49.879.78€, pelo que é esse o valor que deve ser restituído. 

            E, mais à frente:

         “[…E] considerando decisão do tribunal a quo de compensar a vantagem económica dos 2ºs réus (a posse dos 49.879,79€), com a vantagem económica dos autores (ocupação e exploração do prédio durante 18 anos), refira-se que “a declaração de nulidade de um negócio jurídico não implica necessariamente a restituição de tudo o que houver sido prestado, havendo que atender à boa fé e ao correcto exercício dos direitos” (sumário do ac. do TRL de 26/11/1987, BMJ, 371.º- 540).

         Ora, a verdade é que durante os 18 anos que decorreram desde a escritura de compra e venda, os autores poderiam ter recebido rendas e, quiçá, o contrato de arrendamento poderia ter cessado com a consequente valorização do prédio e sua venda por um valor mais elevado do que os 10.000.000$.

         Assim, caso seja revogada a decisão do tribunal a quo, desde já se alega que os 2ºs réus têm direito a ser reembolsados pela ocupação que os autores fizeram do prédio.

            E, no seu recurso, como se viu, os 2ºs réus pretendem que o valor da restituição em que foram condenados passe a ser de apenas 49.879,78€ e não de 99.759,98€ em que, por lapso, segundo dizem, foram condenados.

            Decidindo:

            A nulidade declarada respeita ao contrato definitivo celebrado em 30/04/1997 e não ao contrato-promessa de 14/03/1997. O preço de que o tribunal tinha conhecimento relativamente ao contrato de 30/04/1997, era o de 49.879,79€ e não o de 99.759,58€ a que o tribunal se refere por lapso (este preço é o referido no contrato-promessa entre o casal da 1ª ré e a U,), nem o de 119.711,49€ (do contrato-promessa entre o casal da 1ªré e os autores, documentado de fls. 100 a 103, documento 9, referido nos factos 30 e 31; em relação ao qual, por isso, se tem de considerar assente o preço nele mencionado, apesar de não ter ficado expressamente consignado, já que os 2ºs réus nunca impugnaram o doc; aliás, há outro exemplar do mesmo contrato/documento, a fls. 392/395, esta assinada pela vendedora 1ªré; assim, não tem razão de ser a impugnação, agora, de tal valor).

            Seja como for, face ao que se disse acima quanto à impossibilidade de, nestes autos, se decidir, com a necessária certeza, quanto aos direitos dos autores sobre a casa com os 165m2 de logradouro e por isso sobre a obrigação de restituição deste bem e do preço respectivo, a transcrição desta partes das alegações dos autores e dos 2ºs réus serviu apenas para reforçar a existência de outras questões que têm a ver com a obrigação de restituição e que não podem ser decididas desde já.

            O que, quanto ao recurso dos 2ºs réus, significa que fica prejudicado o seu conhecimento.

                                               *

Da nulidade do contrato-promessa celebrado em 02/04/1996

                        Da falta de legitimidade para a arguição

            Diz a sentença (seguindo o parecer apresentado pela U; mas quanto à qualificação da declaração como unilateral, sem criação de obrigações, os dois pareceres são coincidentes):

         Nesta acção não se está a apreciar qualquer pedido de execução específica desse contrato formulado por qualquer dos outorgantes desse contrato.

         Acresce que carece de qualquer suporte jurídico a construção jurídica vertida na petição inicial pelos autores, no sentido de que, a verificação da impossibilidade legal do fraccionamento daquele logradouro do prédio xx de forma a que deste seja autonomizada a área de 442m2, traduziria a verificação de facto condicionante aposto pelos autores na sua declaração escrita feita a 30/04/1997, a importar, alegam, a destruição automática e retroactiva dos efeitos da citada declaração escrita feita pelos autores e a determinar, em consequência, o alargamento do objecto mediato da compra e venda a toda a área do logradouro, mediante o pagamento do preço pago pela U aquando da celebração do contrato promessa que visava a aquisição por compra daquela parcela de 442m2.

         Efectivamente, não se vislumbra que as partes outorgantes tenham acordado numa cláusula negocial acessória cujo conteúdo fosse a sujeição da eficácia desse negócio ou de parte dele a um facto futuro e incerto. Isto é, que tenham acordado que a verificação da impossibilidade legal do fraccionamento daquele logradouro do prédio urbano supra identificado determinaria a cessação da eficácia do negócio ou de parte do negócio – vide arts 270 e 271 do CC.

         A denominada “condição resolutiva” foi colocada pelos autores, numa declaração escrita unilateral feita por estes no dia da celebração da escritura pública, a qual, não faz parte do concreto conteúdo negocial acordado entre as partes. Essa declaração escrita feita pelos autores traduz uma mera declaração unilateral que funciona tão só como um meio acessório escrito que revela a simulação verificada no negócio de transmissão de propriedade e constituição do direito de usufruto operado a 30/04/1997.

         Logo, não se vislumbra que os autores se tenham auto-vinculado a qualquer obrigação perante qualquer dos réus.

         Os autores […] não são titulares de um qualquer direito sobre o prédio em causa […].

         Por fim, os autores não têm legitimidade para invocar a nulidade, uma vez que não são titulares de qualquer relação jurídica cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada por tal negócio.

            Dizem os autores:

         Os autores peticionaram a declaração de nulidade, por impossibilidade legal do seu objecto, do contrato-promessa celebrado em 02/04/1996 entre a 1ª ré e marido e a U, no que concerne aos 4s42m2.

         O tribunal recorrido assim não entendeu, considerando inclusivamente que os autores não tinham legitimidade para invocar aquela nulidade por não serem titulares de qualquer relação jurídica cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada por tal negócio.

         É convicção dos autores assistir-lhes legitimidade para invocar a nulidade. Isto, porque sendo formalmente proprietários do prédio urbano que engloba o logradouro prometido vender por à U e tendo-se obrigado a respeitar tal promessa, são titulares de um direito que é afectado na sua consistência prática por aquele contrato-promessa.

         Na verdade, são os autores que, por virtude de figurarem como proprietários de todo o prédio pagam o respectivo IMI, e dificilmente conseguirão, se algum dia o quiserem, vender apenas a casa composta por dois pisos com a área de 72 m2 e logradouro de 165 m2 onde habitam.

         Parece-nos mais consentânea com a realidade a doutrina pugnada por Pedro Pais de Vasconcelos, a que aderimos: «A redacção da lei exige que se dê alguma atenção ao interesse que funda a legitimidade. Em primeiro lugar, há que ter em conta que dificilmente alguém assumirá os encargos de uma acção judicial sem ter nisso um interesse sério. Em segundo lugar importa não esquecer que, uma vez proposta uma acção de declaração de nulidade, ou invocada como excepção a nulidade numa acção pendente, o tribunal tem de se pronunciar oficiosamente sobre ela, seja qual for a qualidade da pessoa que tomou a iniciativa de suscitar a questão. O art. 286 ao reconhecer legitimidade substantiva a “qualquer interessado”, não deve ser interpretado como admitindo a invocação da nulidade por “qualquer pessoa”, o que seria talvez demasiado amplo, mas também não deve sê-lo no sentido de restringir a legitimidade para invocar a nulidade a pessoas que sejam titulares de um interesse especialmente privilegiado, porque esse é o caso da regra de legitimidade para a anulação dos negócios jurídicos anuláveis. O interesse exigido no art. 286 não pode ser simplesmente fútil ou frívolo, nem abusivo, mas não deve ser restrito à titularidade de uma situação ou relação que seja afectada na sua consistência prática ou jurídica pela subsistência do acto nulo. (…) Uma vantagem económica directa ou indirecta deve ser suficiente para integrar o interesse a que se refere o art. 286. Ao admitir a invocação da nulidade “por qualquer interessado”, o preceito deve melhor ser interpretado no sentido de que tem legitimidade qualquer pessoa que esteja interessada na declaração da nulidade, tal como o entende Rui de Alarcão. O interesse não deve ser apreciado objectiva, mas antes subjectivamente. No caso concreto deve ser aferido se aquela pessoa obtém alguma utilidade, ou remove alguma desvantagem com a declaração de nulidade. Se assim for, é parte legítima. Finalmente, deve ser recordado que, uma vez suscitada a questão da nulidade, o juiz tem de se pronunciar sobre ela (…). Atento o poder-dever de o tribunal conhecer oficiosamente a nulidade, perdem muito do seu sentido as orientações restritivas em matéria de legitimidade para a arguição da nulidade.» (in Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., pág. 580 e 591).

            Decidindo:

            Antes de mais, note-se que a posição que os autores adoptam quanto à legitimidade para a arguição da nulidade do contrato-promessa de 1996 é contraditória com a posição que adoptam quanto à arguição da nulidade do contrato de compra e venda de 30/04/1997.

            Seja como for, tendo sido declarada a nulidade quer do contrato simulado quer do contrato dissimulado, por decisão agora confirmada, os autores deixaram de ter legitimidade para arguir a nulidade do contrato-promessa de 1996, com efeitos retroactivos, porque não se pode dizer que tenham qualquer interesse que fique dependente da (in)validade desse contrato (neste sentido vão também as contra-alegações dos réus e o parecer apresentado pela U: “não sendo os autores titulares de qualquer relação jurídica cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo contrato-promessa, não têm legitimidade para invocar a nulidade, por impossibilidade legal do seu objecto ou por qualquer outra causa, do referido contrato-promessa”).

            O interesse que, segundo o art. 286 do CC, atribui legitimidade a terceiro para invocar a nulidade do negócio jurídico é um interesse de direito substantivo e pressupõe a oponibilidade do negócio jurídico ao seu titular, seja enquanto terceiro juridicamente interessado (o negócio prejudica a consistência jurídica de um seu direito), seja como terceiro juridicamente indiferente (o negócio prejudica a consistência prática ou económica de um seu direito) e a invocação da nulidade do negócio visa impedir esse prejuízo [Lebre de Freitas, O conceito de interessado no art. 286 do CC, Estudos em memória de Dias Marques, conclusões na pág. 384)].

            E se é certo que o tribunal deve conhecer oficiosamente a nulidade (o que o tribunal recorrido fez, quer quanto ao contrato de compra e venda de 30/04/1997, quer quanto ao contrato-promessa de 1996), quando do processo constem os factos necessários para o efeito, tal não implica que, por exemplo, dê andamento à prova sobre esses factos no caso da falta de legitimidade, por falta de interesse, do arguente, se dela se aperceber a tempo, nem, por outro lado, que admita um recurso interposto sobre a decisão de nulidade, por quem não tinha, por falta de interesse, legitimidade para a invocar, o que seria absolutamente contraditório com a referência ‘ao interessado’ no art. 286 do CC.

            Assim não se aprecia a questão da nulidade do contrato-promessa de 1996 e as consequências que os autores queriam retirar dessa nulidade (nem, por isso, se transcrevem as respectivas alegações ou conclusões sobre o assunto).

                                                       *

                                               Das custas

            Dizem os autores (com algumas simplificações deste TRP):

         De acordo com o preceituado no art. 616 do CPC qualquer das partes pode pedir ao tribunal que proferiu a decisão, a sua reforma quanto a custas (e multa), competindo este pedido, designadamente, naqueles casos em que a distribuição da responsabilidade se não ache estabelecida de acordo com os critérios fixados na lei.

         Porém, como decorre do n.º 3 daquele preceito, cabendo recurso da decisão que condene em custas (ou multa), o requerimento previsto no n.º 1 deverá ser feito na alegação.

         […]

         Como vai supra alegado, o tribunal a quo declarou ex offício a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre os autores e a 1ª ré e seu marido, por entender ter ocorrido simulação contratual.

         Preceitua o art. 527 do CPC que «a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa …».

         Ora, no caso sob análise e na tese do tribunal a quo, a declaração de nulidade fundamentou-se na simulação alegadamente existente aquando da celebração do contrato de compra e venda de 30/04/1997.

         Sendo os alegados simuladores os autores e o casal da 1ªré, intervindo os 2ºs réus na qualidade de sucessores dos vendedores

         Vale dizer, na óptica do tribunal a quo deram causa à nulidade os simuladores.

         Destarte, mesmo que a sentença recorrida não merecesse qualquer reparo quanto à decisão, deverá ser revogada nesta parte: sempre teriam as custas da acção que ser da responsabilidade dos simuladores (autores e 2ºs réus) na proporção de metade para cada um.

         Devendo as custas da reconvenção ser de conta e cargo dos 2ºs réus.

            Respondem os 2ºs réus:

         […] nos termos do disposto no artigo 527 do CPC, a decisão que julgue a acção condena em custas a parte que a ela houver dado causa.

         E dúvidas não parecem subsistir que os autores, enquanto autores, é que deram origem à acção.

         Mas, além do mais, a verdade é que a acção instaurada pelos autores foi julgada “improcedente, por não provada” (cf. decisão da sentença – p. 51).

         Por manifesta falta de legitimidade dos autores, que carecem de título (entendido no sentido civilístico) para alcançar as suas pretensões (cf. p. 42 da sentença).

         Neste sentido, aliás, invocamos o ac. do TRP de 06/10/2014, proferido no âmbito do processo 1351/11.4TTBRG-A.P1 que dispõem que “É parte vencida aquela que é objectivamente afectada pela decisão, isto é, que não tenha obtido a decisão favorável aos seus interesses. O autor é parte vencida se a sua pretensão foi recusada, no todo ou em parte, por razões de forma ou fundo.”

         Termos em que deve ser mantida a condenação dos autores no pagamento das custas do processo.”

            Decidindo:

            O que o art. 527 diz é o seguinte: 1. A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. 2. Entende -se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

            Ou seja, não é o que dizem os 2ºs réus e é mais do que o que dizem os autores.

            A parte vencida na acção são os autores, que, aliás, ficaram totalmente vencidos, já que nenhuma parte das suas várias pretensões foi julgada procedente. O raciocínio que os autores fazem é uma variante do que costuma ser feito a propósito da impossibilidade ou inutilidade superveniente da lei, por força do disposto no art. 536/3 do CPC, que, no entanto, não tem aplicação ao caso porque não foi por impossibilidade ou inutilidade que a acção vai ser extinta, mas antes por improcedência da acção por falta de prova dos direitos que os autores se arrogavam.

            Quanto à reconvenção ela não chegou a ser apreciada, por se ter considerado que a apreciação dela estava dependente do[s] pedido[s] formulado[s] pelos autores e este[s] tinha[m] sido julgado[s] improcedente[s] (art. 266/6 do CPC), o que não foi posto em causa por nenhuma das partes.

            Ora, nestes casos, a responsabilidade cabe aos réus reconvintes, isto é, o réu é responsável pelas custas relativas à reconvenção deduzida  por ele próprio, sempre que o tribunal não venha a tomar conhecimento dessa reconvenção por não se preencher a condição da qual depende a sua apreciação (que é a procedência da acção), com base no princípio que se retira hoje do art. 536/3 do CPC, isto é, que a parte que pode lucrar com a procedência de um pedido deve ficar responsável pelas custas, mesmo no caso de esse pedido não vir a ser apreciado por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, ou seja, uma regra de responsabilidade objectiva, pois que se compreende que as custas sejam imputadas à parte (seja activa ou passiva) pela qual corre o risco da impossibilidade ou inutilidade. Assim, dado que quem poderia lucrar com a procedência da reconvenção seria o próprio réu reconvinte, compreende-se que deva ser esta parte que deva ficar responsável pelas respectivas custas quando essa reconvenção não venha a ser apreciada. O autor só pode ficar responsável por essas custas quando a reconvenção seja apreciada e o tribunal o condene no pedido nela formulado. A responsabilidade do autor pelo pedido reconvencional que não chegou a ser apreciado colocá-lo-ia na mesma situação do autor que tivesse sido condenado no pedido reconvencional, o que não pode ser (tudo isto foi retirado do artigo de Miguel Teixeira de Sousa, Reconvenção subsidiária, valor da causa e responsabilidade pelas custas, publicado nos CDP 7, Julho/Setembro de 2004, págs. 11 a 18 – não se utilizou, neste acórdão, a qualificação de subsidiária porque o que interessa, no caso, é que o tribunal entendeu que apreciação da reconvenção estava na dependência da procedência do pedido da acção e por isso não a apreciou e deste entendimento ninguém recorreu).                                                   

                                                                 *

            Considerando que o recurso dos autores é procedente quanto à questão das consequências a retirar da nulidade do contrato dissimulado relativamente à obrigação de restituição (que se refere apenas a parte do prédio de que pretendiam passar a ser donos), bem como às custas da reconvenção, considera-se que ficaram vencidos neste recurso em apenas 2/3 e daí a repartição de custas que se fará a seguir.

                                                                 *

            Pelo exposto, julga-se o recurso dos autores procedente:

            – quanto à condenação dos autores e dos 2ºs réus, desde já, a restituírem o que foi recebido em consequência do contrato dissimulado, condenação que se revoga por falta de elementos para o efeito, devendo a questão ser discutida noutra acção; e

            – quanto às custas da reconvenção que são agora postas a cargo dos 2ºs réus.

            Custas do recurso dos autores pelos autores em 2/3 e pelos 2ºs réus em 1/3.

            E julga-se prejudicado o recurso dos 2ºs réus quanto ao preço a restituir.

            Custas deste recurso pelos 2ºs réus.

            Porto, 21/01/2016

            Pedro Martins

            1º adjunto

            2º adjunto