Acção 508/13.8TBMTS-A.P1 – Matosinhos, secção cível, J3

            Sumário:

              Se, num requerimento de intervenção principal de terceiro (art. 316 e segs do CPC), a ré alega factos que convencem de que pode ter acção de regresso contra esse terceiro para ser indemnizada do prejuízo que lhe cause a perda da demanda e que esse terceiro não é parte de uma relação que permitisse o litisconsórcio necessário ou voluntário passivo, o requerimento deve ser convolado para o de intervenção acessória (arts. 321 e segs do CPC), desde que o juiz se convença da relevância do interesse que está na base do chamamento, que a intervenção não perturba indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, se convença da viabilidade da acção de regresso e da sua efectiva dependência das questões a decidir na causa principal.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A A(seguradora) intentou uma acção contra a ré B, transportadora, e contra a alegada seguradora desta, C, pedindo o reembolso dos valores que diz ter sido obrigada a pagar por danos decorrentes do transporte efectuado pela ré.

            A ré contestou e requereu a intervenção provocada [sic], dedu-zida nos termos dos arts. 316 e segs do CPC [sic] de uma mediadora de seguros, D.

            Alegou para o efeito (em síntese deste TRP mas com as palavras da ré), que com a celebração do dito contrato de seguro a responsabilidade da ré foi transferida para a C e para D, pelo que deveria esta também ser admitida a juízo por ter legitimidade para intervir na causa por ser também responsável do direito invocado pela autora. Na verdade, no âmbito da sua actividade e com vista a celebração de seguro de responsabilidade civil da sua actividade de transportador, bem como das mercadorias transportadas, contactou para o efeito em Outubro/Novembro de 2011 a D, acabando por aceitar celebrar o contrato de seguro proposto com indicação que o seguro seria colocado na seguradora E e que seria agente desta a C, como sua representante em Portugal. Foi nessa sequência emitida e enviada à ré a apólice de seguro que se junta que vem subscrita por C actuando por conta de certos sindicatos da E com a indicação de feito no Porto em 23/11/2011. Da mesma constava ser apólice de seguro de responsabilidade civil para operadores de transporte, indicando a ré como tomador e segurado figurando como segurador 100% E e ainda como broker a D. A apólice indicava ainda para participação de sinistros a D e a C. Subsequentemente, a D remeteu com data de 20/2/2012 à ré carta indicando estar em pagamento o recibo n.º x para a apólice n.º x do ramo mercadorias na seguradora britânica, anexando o respectivo aviso recibo emitido conjuntamente pela seguradora e agente. Nessa missiva era ainda indicada a referência bancária da D para que fosse efectivado o pagamento do prémio. Recebido tal aviso, a autora em 28/2/2012 procedeu à transferência bancária da quantia reclamada e na mesma data, remeteu para a entidade C a nota de pagamento respectiva. Em meados de Fevereiro de 2013 a ré recebeu uma carta datada de 11/02/2013, alegadamente emitida pela seguradora E a qual refere que a dita C desde 28/2/2011 teria deixado de ser agente e que desde então não mantém relação directa com nenhum sindicato E mais referindo que nenhum sindicato do E subscreveu a apólice em causa nem assumiu ou autorizou a respectiva cobertura e que a referida apólice era falsa e, portanto, inválida e não produz quaisquer efeitos, não garantindo, designadamente cobertura de seguro. Inquieta com tal circunstância sobretudo perante a alegada ausência de representação do agente C que havia sido assegurada pela D como uma entidade credenciada a par da seguradora inglesa que representava, a ré procurou informar-se junto do ISP, o qual veio a responder em comunicação confirmando o cancelamento da dita C no Instituto e sugerindo a contratação de novos seguros bem como a apresentação da presente queixa às autoridades, o que a ré fez. A ré ignora em concreto quem procedeu à emissão da apólice indiciada de “falsa” sendo certo que a mesma chegou ao seu poder pela D através do referido interlocutor acima identificado, C. No entanto, tal contrato de seguro evidencia que a responsabilidade pelo pagamento, a existir, encontra-se transferida quer para a C, quer para a chamada D.

            A A não se opôs à intervenção.

            Em 22/01/2015 foi proferido o seguinte despacho, depois de se referir o que antecede:

         “Analisada a apólice junta aos autos constata-se que o contrato de seguro em causa foi celebrado com “100% E”, sendo que a D apenas aí figura na qualidade de broker. Em tais circunstâncias, conclui-se que através do contrato de seguro em análise não foi transmitida qualquer responsabilidade para a referida D e, como tal, indefere-se a sua intervenção.”

            A ré recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que admita o chamamento requerido – e termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

        I – Não pode a ré concordar com o entendimento dado pelo tribunal recorrido aos factos vertidos na sua contestação, mor-mente no que respeita à posição que a D assume no âmbito do contrato de seguro a que fazem alusão.

         II – Na verdade o que sucedeu foi que após a celebração do contrato de seguro a que se faz alusão nos presentes autos, veio a ré a ter conhecimento, conhecimento esse fornecido pela companhia de Seguros E e posteriormente confirmado pelo Instituto de Seguros de Portugal, que a C não tinha legitimidade, nem poderes para celebrar contratos de seguro m seguros em nome e por conta da redita companhia.

         III – Facto que invalidou que o referido contrato de seguros produzisse efeitos e por conseguinte fosse inválido.

         IV – Como resulta do alegado pela ré na sua contestação a chamada D sempre actuou em conjunto com a C pois foi esta que recebeu os prémios de seguro que foram liquidados no âmbito da apólice supra mencionada, isto para já não dizer que foi aquela quem influenciou a ré no sentido de os celebrar nos termos em que o foram.

         V – Contrariamente ao entendimento perfilhado no despacho recorrido, foi requerido o chamamento da D aos autos não por força da existência do aludido contrato de seguro, mas por força da sua invalidade e da actuação conjunta desta e da C no facto ilícito praticado, mormente da responsabilidade civil por factos ilícitos que resulta da actuação de ambas, que levará necessariamente a que sejam estas responsáveis pelos danos causados à ré por força da invalidade do aludido contrato de seguro que transferia a responsabilidade para a redita seguradora.

         VI – Ao partir deste errado pressuposto vem o despacho ora posto em crise inquinado, inclusive, na sua fundamentação.

         VII – No caso dos autos, contrariamente ao decidido, considerando os fundamentos da acção e as razões trazidas pela ré para justificar o chamamento, o despacho recorrido deveria ter considerado existir fundamento para a chamada ser demandada, dado que atenta a invalidade do contrato de seguro pelas razões apontadas, só por esse facto a responsabilidade não foi transferida para a companhia de seguros constante do redito contrato.

         VIII – Assim, e porque sempre se diria que a intervenção provocada prevista no art. 321 do CPC compreende o denominado “chamamento em garantia imprópria” quando a responsabilidade do demandado e do garante tenha origem em relações ou situações jurídicas diversas e seja de excluir a existência de qualquer ligação por via de acto ou facto jurídico entre o credor e o garante, [v.g.], quando o direito de regresso[,] a caracterizar exclusivamente pel[o] ré[u,] possa resultar de uma mera responsabilidade extracontratual.

         IX – E porque nos termos do art. 323/11 do CC, o simples pedido de intervenção na causa tem efeito interruptivo da prescrição, pois trata-se de um acto de exercício do direito, realizado judicialmente, e de que à parte contrária é dado conhecimento, pelo que e uma vez que os factos que configuram a possibilidade da acção de regresso da ré contra a chamada foram já configurados no requerimento junto com a contestação, sempre e contrariamente ao decidido, cabia ter admitido o chamamento em causa, como intervenção acessória provocada.

         X – Ao não decidir como tal violou o despacho recorrido o disposto nos arts. 321 do CPC mormente do 323/1 do CC, actuando em verdadeiro erro de julgamento.

            A autora não contra-alegou.

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            Por razões que não resultam deste apenso, o recurso só foi admitido em 27/11/2015.

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            Questões que importa decidir: se a intervenção da D devia ter sido admitida.

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            Diga-se antes de mais que a ré apoiou a sua argumentação no ac. do TRP de 09/07/2014, publicado na base de dados do IGFEJ com o n.º 5849/13.1TBMTS-A.P1, acórdão que resolveu exactamente a mesma questão que se coloca nestes autos, tendo-o feito de forma que aqui se subscreve inteiramente, estando, por isso, o que se segue, mais completamente fundamentado naquele acórdão.

            A ré ao tentar provocar a intervenção da D fê-lo de forma a misturar as coisas: por um lado, invocou os artigos 316 e segs do CPC, que pertencem a uma secção específica do CPC dedicada à intervenção principal; por outro, falou, por duas vezes, na transferência, por força do contrato de seguro, da responsabilidade pelo pagamento, a existir, para a 2ªré C e para D; e, por fim, alegou uma série de factos que consubstanciam uma eventual responsabilidade civil extracontratual da D para com a ré.

            Ora, a última referência permitiria a intervenção acessória (arts. 321 a 325 do CPC) e não a intervenção principal, a qual seria possível, em abstracto, pela segunda referência, se tivessem sido alegados mais factos, por a intervenção visar então completar o litisconsórcio voluntário passivo [nos termos em que a acção foi configurada pela autora – note-se que o contrato de seguro em causa é voluntário e, em princípio, a autora não podia ter demandado directamente a alegada seguradora da ré; fê-lo, no entanto, alegando factos que sugeririam que a 2ªré não poria em causa a possibilidade da demanda directa, o que não é o caso do requerimento da ré em que parte do princípio da inexistência do seguro para responsabilizar a D]; pelo que, é contraditório fazerem-se as mesmas em simultâneo e depois invocar-se os arts. 316 e segs do CPC. Tal como é contraditório, invocar-se em simultâneo, com os mesmos factos, uma transferência de responsabilidade por força de um contrato – o que dá origem a responsabilidade contratual (arts. 799 e segs do CC) – e a constituição em responsabilidade pela prática de actos ilícitos – responsabilidade extracontratual (arts. 483 e segs).

            Apesar disso, o que resultava, objectivamente, das alegações da ré é que ela queria que a entidade referida fosse chamada à acção acautelando a eventualidade do contrato de seguro ser inexistente por falso, o que decorreria da actuação da D.

            Ou seja, o que realmente estava em causa era a intervenção acessória provocada da D como auxiliar da defesa, embora o que de facto a ré requereu tenha sido a intervenção principal da D, por força de um contrato de seguro que teria transferido a responsabilidade não só para a 2ª ré, como também para a D, o que, aliás, não era coerente com os factos alegados e deu lugar à afirmação, correcta deste ponto de vista, do despacho recorrido, de que a D não era parte no seguro em causa.

            Este erro da ré, no entanto, pode ser corrigido, convolando a requerida intervenção principal para a intervenção acessória da D, (neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Coimbra Editora, vol. 1, 3ª edição, Set2014, págs. 630/631) como auxiliar na defesa respeitante às questões implicadas pela verificação do direito do autor, com repercussão na existência e no conteúdo do direito de regresso (mesmos autores, obra e local) e não para discutir a verificação dos factos ilícitos invocados pela ré, pelo que nada indicia que a intervenção vá perturbar indevidamente o normal andamento do processo.

            Convolação que pode ser feita porque no requerimento foram alegados todos os factos necessários à demonstração da viabilidade da acção de regresso e da sua efectiva dependência das questões a decidir na acção principal, e sem que se verifique a série de obstáculos referidos no ac. do TRL de 18/10/2012, 10514/11.1T2SNT-A.L1-2

            Razão pela qual se dá procedência ao recurso da ré.

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            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por este que admite a intervenção requerida, agora convolada para intervenção acessória provocada, com custas do incidente pela ré, devendo ser ordenada a citação da D nos termos do art. 323 do CPC.

            Sem custas (o recurso)

            Porto, 21/01/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto