Acção sumária 6615/11.4TBVNG – J4 da Secção Cível de V. N. Gaia
Sumário:
I – Tendo a autora aprovado tacitamente, nos termos do contrato, os vários projectos que os arquitectos lhe foram apresentando em execução do contrato celebrado com ela, não pode mais tarde, para pedir a resolução do contrato, vir dizer que os projectos foram mal feitos.
II – Declarações de parte (art. 466/1 do CPC) não espontâneas e não corroboradas minimamente por qualquer outro meio de prova não têm força probatória suficiente para convencer da verdade de uma dada afirmação de facto. Dito noutros termos: “A única coisa que importa valorar da declaração de um litigante é que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e que se veja credenciado por outros meios de prova. De contrário, a declaração é suspeita de falsidade, ou, ao menos, a sua força probatória é tão débil que não deve ser tida em conta. Nem sequer se é coerente […]. Nestes casos, importaria concluir que o resultado da produção da prova é infrutuoso, e o juiz assim o deveria argumentar na sentença.”
III – As consequências de uma eventual falta de fundamentação da decisão relativa à matéria de facto estão previstas, não no art. 615 do CPC (nulidade da sentença), mas sim no art. 662/2 do CPC.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A intentou, em 06/07/2011, a presente acção contra B, C, D e E, pedindo que seja declarado resolvido, com justa causa, o contrato de prestação de serviços que com eles celebrou e, em consequência, que os mesmos sejam condenados a pagar-lhe 6434,04€ de honorários que lhes entregou (com iva), mais 187,40€ com despesas que teve que suportar e 2500€ por danos morais sofridos, tudo com juros de mora desde a citação [o valor do pedido, 8934,04€, não atinge a soma destes três valores parcelares, sendo igual à soma de apenas o 1º com o 3º].
Para tanto alegou que (transcreve-se quase na integra a petição da autora para se poder confrontar o que se diz mais à frente sobre ela): era proprietária de um terreno, pretendendo destiná-lo à construção de uma habitação com vista a investir na produção de energia renovável (fotovoltaica); para tal consultou os réus a quem informou que o seu orçamento era reduzido e que a construção da casa era, sobretudo, para garantir a aprovação do investimento em energia renovável, e que, portanto, se gastasse o dinheiro todo na habitação, faltaria, depois, para o referido investimento na produção de energia renovável; os réus ficaram de apresentar uma proposta à autora, o que fizeram a 16/02/2006, constando da mesma a estimativa orçamental para a execução da obra de 63.000€, para uma área de construção para habitação de 120 m2 e garagem de 30 m2, a qual, e segundo consta da referida proposta, assentou nos valores praticados na execução de obras similares; considerando, a autora, tal proposta já elevada para as suas possibilidades, questionou os réus no sentido de acautelar eventuais “derrapagens”, tendo os mesmos referido que tal estimativa já previa um valor razoável para acabamentos e que seria preferível ter surpresas no final do que não estar prevenido e não ter possibilidades para terminar a obra; assim, nesse pressuposto, celebrou, a autora, em 25/03/2006, com os réus, um contrato de prestação de serviços, mediante o qual os réus se obrigaram a elaborar o Estudo Prévio, o Projecto de Licenciamento – Arquitectura e Especialidades, o Projecto de Execução de Arquitectura, a apoiar a autora na selecção de propostas de contratos de empreitada e, ainda, a fazer a Assistência Técnica e acompanhamento à Obra; como retribuição a autora ficou de pagar, a título de honorários, o valor total de 5250€, tendo pago, efectivamente, 6434,04€ já com IVA; contudo, os réus não cumpriram aquilo a que se obrigaram por via do referido contrato; e mais, ainda: apresentaram à autora estimativas completamente erradas ou desfasadas da realidade – ao contrário do que fizeram constar da proposta de orçamento apresentada, em causa, i.e. que a estimativa apresentada tinha por base os valores praticados na execução de obras similares – o que levou a que a mesma tivesse contratado, induzida em erro, e bem sabendo que a questão do orçamento era essencial para a sua decisão de contratar; senão vejamos: o projecto de licenciamento da obra em causa foi aprovado pela Câmara Municipal de X em 04/12/2007; sendo que, em 29/12, entregaram, os réus, à autora, um exemplar (quando deviam ter entregue 5) do projecto de execução, de modo a que a mesma pudesse encetar as devidas diligências, nomeadamente recolhendo junto de construtores, orçamentos para a execução da obra, e, posterior, adjudicação da mesma; a autora procedeu às diligências necessárias com vista à adjudicação da obra, tendo, para o efeito, consultado e pedido orçamento a 7 construtores, um deles, aliás, indicado pelos réus; de todos os construtores consultados, apenas um apresentou o orçamento detalhado, no valor de 182.600€ mais IVA, e obedecendo à totalidade do projecto de execução, com a excepção da cozinha, não contabilizada e não incluía sistemas de aquecimento e o sistema de energias renováveis; todos os demais orçamentos apresentados rondavam o valor de 170.000€, mais IVA; perante tais orçamentos, a autora, sentindo que foi enganada pelos réus, solicitou uma reunião com os mesmos, que se realizou no dia 17/05/2008, pelas 19h; manifestou, então, a autora, a sua indignação perante a disparidade entre os valores estimados apresentados pelos réus antes mesmo da assinatura do contrato e os apresentados pelos empreiteiros; o arquitecto C justificou, então, na altura, que os valores previstos na proposta foram apenas para cálculo de honorários e que eram apenas estimativas, necessitando, sempre, de um orçamento; apesar de não se ter conformado com tal explicação, e porque já tinha gasto muito dinheiro com todo este processo, a autora pediu, então, ajuda ao mesmo para resolver tal situação ou, então, a devolução do dinheiro, entretanto, pago; tendo, o mesmo, apenas respondido que a aconselhava a verificar junto dos construtores o que estava a encarecer a obra, por forma a se poderem efectuar algumas alterações, ainda que tal implicasse aditamentos à Câmara; a autora assim procedeu, tendo, no entanto, obtido a resposta dos empreiteiros que a ser possível uma redução, a mesma, rondaria, sempre, os 10.000€, e não mais; comunicou, de imediato, tal situação aos réus, nomeadamente por e-mail remetido em 04/06/2008, sendo que, a partir dessa data, não obteve, a autora, por parte dos réus, qualquer colaboração ou ajuda para solucionar o problema, embora tenha, a autora, tentado, por várias vezes, e por diversas formas, solucionar a questão (conforme demonstram as várias comunicações trocadas entre autora e réus constantes do doc. 3 que se junta, em anexo); os réus, incumpriram, dessa forma, também, o apoio e o acompanhamento devido à autora na selecção de propostas de contratos de empreitadas e o dever de assistência técnica à obra, uma vez que não foi possível avançar, por culpa exclusiva dos réus, até à fase de execução da obra, porque os réus estimaram um valor para a realização das obras que se veio a revelar completamente erróneo e desfasado do, efectivamente, praticado, uma vez que não duplica, mas quase que triplica o valor inicialmente estimado pelos réus; e, não podem vir agora justificar que tais estimativas só tinham em vista o cálculo de honorários, pois bem sabiam que esse era um aspecto essencial para a autora contratar – e que se a mesma tivesse conhecimento do real custo das obras não contrataria -; e que, assim procedendo estavam a enganar a autora, induzindo-a em erro; de resto, tal constituiu uma justificação que não decorre do texto respectivo, nem dos factos envolventes à negociação do contrato, nem, sequer, da prática da profissão, sendo que, qualquer declaratário normal nunca fará a leitura que os réus vêm, agora, injustificadamente, tentar justificar; não podem, ainda, os réus, vir dizer que, entretanto, tais estimativas, sofreram actualizações devido à passagem do tempo, pois desde a entrega das estimativas até à recolha dos orçamentos não passaram mais do que 3 anos, os quais não podem, de maneira nenhuma, justificar o aumento de quase 300% no custo de execução da obra; tal desfasamento ficou, antes, a dever-se a erro grave por parte dos réus, ou, se assim não aconteceu, a manifesta má fé dos mesmos, que conhecendo a intenção da autora em não gastar mais do que os valores estimados, levaram-na a contratar; pelo exposto, incumpriram, os réus, por várias vezes, e de diferentes formas, o contrato supra referido; incorreram em erro grosseiro, que muito prejudicou a autora, pois viu-se sem o dinheiro entretanto entregue aos réus a título de honorários e sem a execução de um projecto que apenas consta do papel e que, por isso, de nada lhe serve; violaram, ainda, o princípio da boa fé, antes e depois da celebração do contrato pois bem conheciam, ou deviam conhecer os valores praticados no mercado para a execução da obra em causa – e que, a autora, tendo conhecimento dos mesmos, não os aceitaria -; e, ainda assim, apresentaram à autora valores bastante inferiores, induzindo-a em erro, de modo a levarem-na a contratar, o que, efectivamente, veio a acontecer; causas que legitimam o desinteresse da autora pela manutenção do contrato, e o direito a rescindi-lo com justa causa, por violação e incumprimento grosseiro do mesmo por parte dos réus (cfr. cláusula 3ª/três, al. c) do contrato); o prejuízo da autora é, assim, equivalente ao valor que despendeu e entregou aos réus a título de honorários e os demais custos que teve de suportar em virtude de toda esta situação, nomeadamente 34,69€ em cópias, uma vez que nem sequer as 5 lhe entregaram; 34,57€ na Câmara Municipal de X designadamente em certidões e papéis requeridos; teve, ainda, danos morais, uma vez que tal situação afectou-a e transtornou-a de sobremaneira, tendo, inclusive, deixado de dormir tranquilamente; ainda, hoje, e pese embora os anos volvidos, é uma situação que lhe custa aceitar e permanece revoltada, a ponto de o tema ser recorrente nas suas conversas de amigos e colegas; continua a ter, assim, um enorme desgosto na não concretização do referido projecto, uma vez que abandonou os projectos que tinha para o terreno em causa, devido ao total descrédito relativamente aos técnicos em geral, pelo que, reclama dos réus 2500€, a título de danos morais.
Três dos réus contestaram – o quarto, engenheiro, foi citado editalmente e depois na pessoa do MP e não foi apresentada nenhuma contestação –, impugnando o essencial dos factos alegados pela autora: a autora nunca lhes disse quanto pretendia gastar em todo o processo; o que estavam a contratar era um contrato de prestação de serviços e a proposta que lhe apresentaram foi de honorários baseados numa estimativa orçamental para a execução da obra pretendida pela autora e não um orçamento para a execução da obra; não disseram nada para a enganar ou induzir em erro de modo a levá-la a celebrar o contrato; e depois cumpriram as obrigações assumidas nesse contrato à excepção da assistência técnica por esta não se ter vindo a realizar por culpa da autora; a autora não pagou todos os honorários acordados: não pagou os 525€ correspondentes àquela assistência técnica, tendo pago tudo o resto, no valor de 4725€, mais IVA; manifestaram sempre disponibilidade para apreciar qualquer orçamento, mas a autora nunca lhes apresentou nenhum orçamento; quanto aos danos morais invocados pela autora, lembram que esta, tendo por base o trabalho realizado por eles, acabou por apresentar, com outro técnico, um segundo projecto em tudo idêntico ao por eles elaborado, em relação ao qual já foi emitida a respectiva licença de construção e iniciada a obra.
Depois de realizado o julgamento, foi a acção julgada parcialmente procedente, declarando-se resolvido, com justa causa, o contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e os réus e condenando-se estes a pagaram àquela 5786,51€, acrescidos de juros contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, à taxa legal.
Os réus arquitectos recorreram, para que fosse alterada a decisão da matéria de facto e, em consequência, absolvidos do pedido, com a argumentação que será abaixo considerada.
A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada no sentido pretendido pelos réus e, se o for, se tal deve levar à revogação da condenação dos réus; bem como, independentemente desta alteração, se os factos provados não deviam ter conduzido à condenação dos réus.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
[…]
Antes disso, refira-se o seguinte quanto à prova testemunhal invocada pela decisão recorrida no §2:
X, é companheiro da autora; a gravação do depoimento começa com a testemunha já a responder ao advogado; a 2:00 o próprio advogado da autora resume a razão de ciência da testemunha: pronto, okay, sabe só apenas aquilo que ela lhe disse fazer, depois como é que o fez…; tendo a testemunha acabado de dizer que não viu projecto nenhum, não viu plantas, não viu absolutamente nada, era o dinheiro dela [da autora], era uma coisa dela em que ele não queria participar; embora depois acrescente que a levou a uma reunião num dia perto do inverno, vê-se que não participou nessa reunião (2:05 a 2:58); o que sabe é só dos comentários que ela lhe fazia (também a 2:59 a 3:24); nem sequer sabe dos valores que ela se propunha gastar (=> 4:13); como é evidente, perante o que antecede, também diz não poder comparar o que foi feito (a casa que a autora acabou por construir) com o que estava previsto no primeiro projecto, visto que não o viu (=> 6:02); mais à frente, a perguntas da mandatária dos réus, volta a dizer que nunca participou em reuniões e que só sabe o que lhe foi dito pela autora (= 6:51); o seu depoimento não tem valor probatório.
Isto pelo que se segue:
O valor de depoimentos de testemunhas que contam o que as partes lhe contam para prova de factos favoráveis à pretensão destas:
Aquilo que as partes dizem nos articulados quando expõem a sua versão dos factos, na parte que é favorável às mesmas, não tem qualquer valor probatório (na parte desfavorável pode vir a ter valor de confissão: arts. 46 e 465/2 do CPC). São antes afirmações de facto que vão ser sujeitas a prova (art. 410 do CPC, não sendo rigorosa a expressão “temas de prova”, pois, como diz Lebre de Freitas, a prova continua a incidir sobre os factos concretos – A acção declarativa… 3ª edição, pág. 197).
O mesmo vale em relação àquilo que as partes contam às testemunhas, sempre na parte que lhes é favorável (na parte desfavorável podem ter valor probatório: art. 358/3 e 4 do CC). O facto de elas contarem oralmente a sua versão às testemunhas em vez de o fazerem por escrito ao tribunal não altera a razão de ser das coisas.
Pois que se as declarações de parte são um meio de prova [art. 466 do CPC – o testemunho de parte, como lhe chama Lebre de Freitas, Sobre o novo CPC (uma visão de fora), ROA 2013/1, pág. 43, consultado no sítio da OA na internet], esse meio de prova pressupõe que é a própria parte que presta declarações ao tribunal e não uma testemunha. Assim, se existe valor probatório das declarações da própria parte, favoráveis à mesma, ele só existe no âmbito de um elemento de prova que tem de ser produzido nas condições previstas por lei (o que inclui a hipótese referida por Lebre de Freitas, a acção declarativa…, 3ª edição, pág. 260: “no acto de produção d[o depoimento de parte], o depoente poderá manifestar a vontade de que as declarações favoráveis que faça sejam valoradas como prova sujeita à livre apreciação do julgador, desde que a parte contrária esteja presente, ou lhe seja dada a possibilidade de igualmente ser ouvida”), isto é, que só é válido se elas forem prestadas por elas próprias e depois de ajuramentadas, tudo nos termos do art. 466 do CPC (e, por força deste, no art. 456 do CPC), e não através daquilo que as testemunhas dizem que elas lhes contaram. Ou seja, a parte não se pode fazer substituir por uma testemunha na prestação dessas declarações. A abertura excepcional à possibilidade de as declarações de uma parte fazerem prova de factos que são favoráveis às suas pretensões tem que ter a contrapartida de só poderem valer desde que prestadas nos termos pressupostos por aquela norma.
Quer isto dizer que os depoimentos das testemunhas que se limitem a contar o que lhes foi contado pelas partes não têm qualquer valor probatório, na parte que é favorável às partes.
[…]
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O valor das declarações de parte
O art. 466 do CPC prevê o meio de prova por declarações de parte. E o seu nº. 3 esclarece que “[o] tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
No entanto, no termo da apreciação da prova, se o único elemento de prova do facto forem as declarações da parte a quem essa prova favorece (e, para mais, como no caso, sem qualquer espontaneidade), sem qualquer corroboração por outro elemento de prova, o tribunal não se pode convencer da afirmação de facto quesitada.
É que a apreciação desta prova faz-se segundo as regras normais da formação da convicção. Ora, em relação a factos que são favoráveis à procedência da acção, o juiz não pode ficar convencido apenas com as declarações de uma parte, naturalmente interessada na procedência da acção, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas.
Note-se, aliás, que as declarações de parte não estão tratadas na lei como qualquer outra prova. Ao contrário da regra geral que vigora para todas as outras provas, que devem ser arroladas nos articulados ou na audiência prévia, com algumas possibilidades de alterações (arts. 552/2, 572d, 591, 593/3 e 598/1do CPC), em relação a esta o art. 466/1 do CPC dispõe que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, o que indicia o carácter subsidiário ou supletivo que lhe é imputado nas citações que se seguem.
Naquela que parece ter sido a primeira defesa do depoimento de parte livremente valorado, em Portugal, logo se fazia a restrição: “embora apenas, na parte em que é favorável ao depoente, em complemento de outras provas” – Lebre de Freitas, ROA, 1990, II, pág. 750, como relator do parecer da comissão de legislação da AO sob o projecto de CPC; já na tese de doutoramento deste Professor, A confissão no direito probatório, de 1991, Coimbra Editora, págs. 241/242, nota 15, referia-se que a valoração da declaração favorável do interrogado funcionava, fora dos países anglo-saxónicos, nos apertados limites duma prova subsidiária, parecendo que esta subsidiariedade tem a ver com a situação em que os outros meios de prova disponíveis não possibilitaram ao juiz a formação da sua convicção, ou seja, pressupõe a existência de outros meios de prova, assim devendo ser interpretada, por isso, a referência que este Professor faz, na 3ª edição da Acção declarativa, Set2013, ao funcionamento das declarações de parte como prova subsidiária, quando não haja outros elementos de clarificação do resultado das provas produzidas (págs. 278 e nota 11 da pág. 259) e nunca como o único elemento de prova dos factos favoráveis.
Mais ou menos neste sentido parece ir também Remédio Marques, como se pode ver na conclusão XXI do seu texto, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos – Julgar – 16, 2012: “É assim admissível a produção e a valoração das declarações da parte, mesmo que respeitem a factos probatórios que lhe sejam favoráveis, contanto que o tribunal não se tenha baseado exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre os factos controvertidos que deu como provados.” (os sublinhados foram aqui introduzidos).
No mesmo sentido parece ir Paulo Pimenta, citado por Luís Filipe de Sousa, que afirmará que “Face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva (…)” Na citação do TRP de 23/03/2015, referido abaixo, este Paulo Pimenta diz que as declarações de parte serão um meio a que as partes recorrerão “nos casos em que, face à natureza pessoal dos factos a averiguar, pressintam que os outros meios probatórios usados não terão sido bastantes para assegurar o convencimento do juiz.” (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 278).
Relativamente ao sistema espanhol que também admite a prova por declarações da parte, diz Jordi Nieva Fenoll (La valoración de la prueba, Marcial Pons, 2010, págs. 241/242):
“lo único [das quatro circunstâncias gerais da credibilidade de qualquer pessoa, quais sejam: coerência no relato do declarante, contextualização, existência de corroborações periféricas e ausência de circunstâncias oportunistas no relato] que cabe valorar de la declaración de un litigante es que su relato esté espontaneamente contextualizado e que se vea acreditado por outros médios de prueba. De lo contrario, la declaración es sospechosa de falsedad, o al menos su fuerza probatória es tan débil que no tiene por qué ser tenida en cuenta. Ni siquiera se es coherente, por las razones antes vistas. En esos casos, cabría concluir que el resultado de la práctica de la prueba es infructuoso, e así debería argumentarlo el juez en la sentencia.” [A única coisa que importa valorar da declaração de um litigante é que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e que se veja credenciado por outros meios de prova. De contrário, a declaração é suspeita de falsidade, ou, ao menos, a sua força probatória é tão débil que não deve ser tida em conta. Nem sequer se é coerente, pelas razões já vistas. Nestes casos, importaria concluir que o resultado da produção da prova é infrutuoso, e o juiz assim o deveria argumentar na sentença. – tradução deste acórdão]
Quanto “às razões já vistas” quanto à irrelevância, neste caso, da coerência do depoimento, este autor acrescenta, com interesse para o caso dos autos (veja-se o que já se disse acima quanto à espontaneidade – ou falta dela – das declarações de parte da autora):
En cuanto a la coherencia, […e]s casi seguro que el litigante habrá hablado con su letrado, y éste, ejerciendo su oficio, le habrá realizado recomendaciones sobre la declaración. Ello hay que tenerlo en cuenta a fin de no sobrevalorar la coherencia de un relato. El litigante puede haber hablado mil veces del objeto del juicio con el abogado, por lo que es posible que incluso haya llegado a distorsionar la historia real de base, adaptándola, sin ser del todo consciente, a lo que dicen los escritos dispositivos. Por eso no resulta de gran ayuda en estas casos el juicio sobre la coherencia del relato, porque puede estar perfectamente preparado de antemano. Al contrario, en este caso concreto, la espontaneidad puede ser un factor positivo a considerar en cuanto a la veracidad de la declaración. Como es seguro que el letrado, si ha hecho bien su trabajo, ha construido un relato estructurado y sin contradicción alguna, si la declaración del litigante también posee esa coherencia casi podría decirse que excesiva, surge aquí un motivo para desconfiar. Pero como se ve, esta circunstancia es de muy difícil apreciación, por lo que solamente debería acudirse a la misma con carácter subsidiário.” [Quanto à coerência, […é] quase seguro que o litigante terá falado com o seu advogado, e este, exercendo o seu ofício, ter-lhe-á feito recomendações sobre as declarações. Há que ter isto em conta a fim de não sobrevalorizar a coerência de um relato. O litigante pode ter falado mil vezes do objecto do processo com o advogado, pelo que é possível que, inclusive, tenha chegado a distorcer a história real de base, adaptando-a, sem estar disso consciente, ao que dizem os articulados processuais. Por isso, não é de grande ajuda, nestes casos, o juízo sobre a coerência do relato, porque pode estar perfeitamente preparado de antemão. Pelo contrário, neste caso concreto, a espontaneidade pode ser um factor positivo a considerar quanto à veracidade da declaração. Como é seguro que o advogado, se fez bem o seu trabalho, construiu um relato estruturado e sem qualquer contradição, se a declaração do litigante também possui essa coerência que quase se poderia dizer excessiva, surge aqui um motivo para desconfiar. Porém, como se vê, esta circunstancia é de muito difícil apreciação, pelo que somente se deveria socorrer da mesma com carácter subsidiário. – tradução deste acórdão].
Ou seja, voltando ao início, chegado a fase da apreciação da prova, as declarações de parte, para convencerem de factos favoráveis à parte, precisam de estar corroboradas por algum outro elemento de prova, para além de terem de ser caracterizadas pela sua espontaneidade. A prova dos factos favoráveis aos declarantes, decisivos para a acção, não se pode basear pura e simplesmente nas declarações dos mesmos.
Neste sentido, vejam-se os acs. do TRP de 26/06/2014, 97564/13.8YIPPRT.P1, não publicado, do TRP de 15/09/2014, 216/11.4TUBRG.P1, do TRP de 20/11/2014, 1878/11.8TBPFR.P2; do TRP de 17/12/2014, 2952/12.9TBVCD.P1; do TRP de 17/12/2014, 8184/11.6TBMAI.P1; do TRL de 05/03/2005, 1925/10.0TBTVD.L1.-2, [que, citando a posição de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro – “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente. Já integrado num acervo probatório mais vasto, poderá mesmo ser decisivo na prova desse facto, pois proporciona um material probatório necessário à prova do facto” (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, 2013, vol. I, Almedina, pág. 364) – considera que, no caso, este acervo se não mostrava reunido e por isso não dá como provado o facto que estava em causa, só sustentado nas declarações de parte]; também citando estes autores, veja-se o ac. do TRE de 12/03/2015, 1/12.6TBPTM.E1, numa situação em que as declarações de parte foram conjugadas com outra prova].
O acórdão do TRP de 23/03/2015, 1002/10.4TVPRT.P1 tem uma formulação diferente, considerando que apenas se pode dizer “normalmente [ou tendencialmente] insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie.” A verdade é que também no caso chegou à conclusão, em relação a factos em que só havia como prova as declarações da autora, que as declarações de parte não bastavam.
E é este mesmo acórdão que lembra a “natureza essencialmente supletiva das declarações de parte” com nota que remete para João Correia/Paulo Pimenta/Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, pág. 57.
Noutra parte, refere que “vários autores, directa ou indirectamente, apontam a sua [das declarações de parte] ‘previsível insuficiência probatória’ ou fraca fiabilidade” aqui com nota para Estrela Chaby, O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 50, nota 124.
Contra, veja-se Luís Filipe de Sousa numa citação que é feita da obra do mesmo, pág. 198, pelo ac. do TRL de 22/05/2014, 3069/06. 0TBALM.L2-2 – “no limite, admitimos que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indirectos.” (posição reiterada no estudo As malquistas declarações de parte, Junho de 2015, http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/CPC2015/painel_1_articulados_audiencia_luissousa.pdf
Um dos argumentos deste autor tem por base a equiparação de uma testemunha interessada com o de uma parte [“o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada”], invocando-se até um acórdão do TRP que trata daquela situação, mas estas não são minimamente confundíveis: uma testemunha não deixa de ser uma testemunha e o interesse dela, por maior que seja, não é igual ao de uma parte; situação também diferente da da testemunha é a parte material que não é parte formal (aquela tem um testa-de-ferro a desempenhar a função desta, e aparece a depor como testemunha, mas só formalmente, porque os interesses que se discutem são os dela).
A posição de Carolina Braga da Costa Henriques Martins, Declarações de Parte Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/bitstream/10316/28630/1/Declaracoes%20de%20parte.pdf se por um lado se pode dizer favorável a esta última tese, quando, por exemplo, diz que “É notório que existem determinados casos em que só as partes têm contacto directo com as circunstâncias que as envolveram, não havendo outros meios probatórios que possam auxiliar na descoberta da verdade material. Pense-se no exemplo dos acidentes de viação em que não houve nenhuma testemunha que tivesse presenciado o ocorrido, ou até nas situações de divórcio, onde não há qualquer tipo de meio do qual a parte se possa socorrer para se fazer ouvir sobre aquilo que efectivamente vivenciou […] Nestes litígios é então inegável que, em nome da descoberta da verdade material, que aqui se sobrepõe a qualquer tipo de justificação e que é o âmago do nosso processo civil, não se pode deixar de ter em consideração as declarações da parte podendo estas, de acordo com a íntima convicção do juiz, fundar a decisão de mérito sobre a causa. Porém, e evidentemente, o julgador não se pode abstrair do facto de estarem em causa as afirmações de um sujeito directamente interessado, com as implicações daí decorrentes”, por outro pode-se dizer favorável à outra [e assim foi tomado pelo ac. do TRC de 23/06/2015, 1534/09.7TBFIG.C1, nota 23] quando conclui que: “não se pode esquecer o carácter necessária e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória. Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.”
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[…]
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Da nulidade da sentença?
Do que os réus dizem quanto aos factos 35 e 36 retiram eles que:
De acordo com o disposto no art. 615/1, alínea b) do CPC, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão.
Como vimos, no que respeita aos 35 e 36 não existe qualquer menção, referência, por mera remissão que fosse, aos fundamentos que levaram o Tribunal a dar tais factos como provados.
Assim sendo, no tocante pelo menos na esta parte, terá a sentença de considerar-se nula, o que se requer.
Como já se viu acima, havia fundamentação para a decisão, decisão que, no entanto, estava parcialmente errada. O problema, por isso, era outro, que não o de ausência de fundamentação.
De qualquer modo, aquilo que consta da fundamentação da decisão da matéria de facto nunca pode conduzir à nulidade da sentença. A questão da fundamentação daquela é tratada em lugar distinto do desta. Aquele no art. 662/2 e 3 e esta no art. 615, ambos do CPC.
A falta de fundamentação de uma sentença judicial é a falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (art. 615/1b do CPC). Como dizem Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 703: “Há nulidade […] quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão […]”
E como esta norma vem de 1939 (= art. 668 do CPC na versão de 1939…) ela sempre só se referiu à indicação dos factos provados e à fundamentação de direito, não à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (que, aliás, constava de um despacho ou acórdão autónomo, que nada tinha a ver com a sentença: art. 653/2 do CPC antes da reforma).
Visto de outra perspectiva, as consequências de uma eventual falta de fundamentação da decisão relativa à matéria de facto estão previstas, não no art. 615 do CPC (nulidade da sentença), mas sim no art. 662/2 e 3 do CPC, como já se dizia no ac. do TRP de 29/05/2014, processo 389/12, não publicado. O que é um outro modo de dizer que essa matéria nada tem a ver com as nulidades da sentença.
Neste mesmo sentido, com mais desenvolvimento, pode ver-se o posterior acórdão do TRC de 20/01/2015, 2996/12.0TBFIG.C1:
II – Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório.
III – Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação – a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de l[evar] à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (art. 662/2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (art. 662/2 do nCPC).
Acórdão este que teve o comentário favorável do prof. Miguel Teixeira de Sousa, na entrada de 29/01/2015 do blog do IPPC, Jurisprudência (69): “Efectivamente, apenas a falta da especificação dos fundamentos de facto ou de direito implica a nulidade da sentença. Não é o que se verifica quando os fundamentos de facto constam da sentença, mas o tribunal não especifica as razões pelos quais esses fundamentos são considerados adquiridos ou provados. Esta falta de fundamentação não gera a nulidade da sentença, antes permite a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, como se refere no acórdão, justifica que a Relação possa exigir à 1.ª instância a fundamentação dessa decisão (cf. art. 662.º, n.º 2, al. d), CPC).”
Ainda no mesmo sentido, veja-se o ac. do TRP de 05/03/2015, 1644/11.0TMPRT-A.P1, com ampla fundamentação: I – Não são confundíveis nem têm o mesmo regime o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação e o vício da deficiência da motivação da decisão da matéria de facto.
No mesmo sentido ainda, veja-se o ac. do TRL de 17/06/2015, 8594/10.6TBOER.L1-2: II. No âmbito da nulidade da sentença prevista no art. 668 do CPC/1961, não se incluía a falta de fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, a qual, existindo, causaria uma nulidade processual, por omissão de ato prescrito por lei, com influência no exame ou na decisão da causa, ou, sendo insuficiente, determinaria nova fundamentação, a requerimento da parte. III. Apesar da integração da decisão sobre a matéria de facto na sentença, a arguição de vícios na fundamentação não se alterou, continuando a ter o mesmo tratamento jurídico, com a excepção de poder ser determinada, oficiosamente, outra fundamentação.”
Este acórdão teve, no entanto, anotação desfavorável de Miguel Teixeira de Sousa, na entrada do mesmo blog, de 30/07/2015, Jurisprudência (181) que assim altera a sua posição anterior.
[…]
*
Em consequência do que antecede, os factos provados passam a ser os seguintes (altera-se a ordem dos factos, por não haver nenhuma dúvida sobre a sua sequência e por haver conveniência em colocá-los nessa sequência):
1/2. O primeiro, segundo e terceiro réus são arquitectos e o quarto réu é engenheiro.
3. A autora é proprietária de um terreno, no lugar de x, freguesia de x, concelho de x.
10. A autora pretendia destinar o terreno à construção de uma habitação com vista a investir na produção de energia renovável fotovoltaica.
9. Autora e réus estiveram neste terreno em Dezembro de 2005.
11. Aquando da respectiva visita ao terreno, a autora informou os réus de que o seu orçamento era reduzido.
12. E, ainda, que a construção da casa era, sobretudo, para garantir a aprovação do investimento em energia renovável
4. Em 16/02/2006 [ou melhor, 21/12/2005, como decorre da clª 1ª do contrato, […]] foi apresentada pelos réus à autora a proposta de honorários referente à elaboração do processo de licenciamento p/ execução de habitação unifamiliar, da qual constava uma estimativa orçamental de 63.000€ para uma habitação com a área prevista de 120m2 com uma garagem de 30m2 [omite-se aqui a proposta…].
14. A proposta 4 foi remetida pelos réus à autora na sequência da visita ao terreno em questão e da conversa a que se reportam os factos 11 e 12.
33. Os réus bem sabiam que o valor necessário para a execução das obras era um aspecto essencial para a autora com eles contratar.
15/16. Na sequência do recebimento da proposta a autora questionou os réus no sentido de acautelar eventuais derrapagens.
17. Os réus responderam-lhe que a existência de um projecto de execução iria possibilitar o controlo do orçamento.
5. Autora e réus subscreveram o contrato de serviços de arquitectura e engenharia [omite-se aqui o contrato].
7. O projecto de licenciamento da obra a que se refere o contrato 5 foi aprovado pela Câmara Municipal de x em 04/12/2007.
8. Os réus entregaram à autora apenas um exemplar do projecto de execução da obra e um exemplar do projecto de licenciamento – arquitectura e especialidades.
19. A autora com vista à adjudicação da obra consultou e pediu orçamento a sete construtores, um dos quais indicado pelos réus.
20/21/22. De todos os construtores consultados, apenas um apresentou o orçamento detalhado e obedecendo à totalidade do projecto de execução, com excepção da cozinha, cuja execução não [foi] contabilizada; cifrava-se em 182.600€ mais IVA e não incluía sistemas de aquecimento nem o sistema de energias renováveis.
23. Um outro orçamento tinha o valor de 157.243,03€, um segundo o valor de 197.087,23€, um terceiro o valor de 148.375€ e um quarto o valor de 139.256,13€, todos mais IVA.
24. Perante tais orçamentos, a autora, vista a disparidade de valores entre os orçamentos que lhe haviam sido apresentados e as estimativas de valores que lhe haviam sido apresentadas pelos réus, solicitou uma reunião com os mesmos.
25. Tal reunião realizou-se no dia 17/05/2008, pelas 19h, tendo comparecido, à mesma, apenas a autora e o réu, arquitecto C.
26. Manifestou, então, a autora, a sua indignação perante a disparidade entre os valores estimados apresentados pelos réus, antes mesmo da assinatura do contrato 5 e os apresentados pelos empreiteiros.
27. O arquitecto C, justificou, então, na altura, que os valores previstos na proposta 4 foram apenas para cálculo de honorários e que eram apenas estimativas, necessitando, sempre, de um orçamento.
28. Apesar de não se ter conformado com tal explicação, e porque já tinha gasto muito dinheiro com todo este processo, a autora pediu, então, ajuda ao mesmo para resolver tal situação ou, então, a devolução do dinheiro, entretanto, pago.
29. Tendo, o mesmo, apenas respondido que a aconselhava a verificar junto dos construtores o que estava a encarecer a obra, por forma a se poderem efectuar algumas alterações, ainda que tal implicasse aditamentos à Câmara.
30. A autora assim procedeu.
31. Tendo, no entanto, obtido a resposta dos empreiteiros que a ser possível uma redução, a mesma, rondaria, sempre, os 10.000€, e não mais.
32. A autora comunicou essa resposta aos réus por e-mail de 04/06/2008, tendo então havido entre eles uma troca de vários outros [reproduzidos acima] e uma reunião em 15/11/2008, em que foram discutidas uma série de questões relativas aos assuntos que em parte constam daqueles e-mails.
37. A situação a que se referem os presentes autos afectou a autora.
6. A autora, e a título de pagamento dos honorários referenciados no contrato entregou, pelo menos, aos réus, a quantia de 4725€, acrescida de IVA à taxa em vigor à data do respectivo pagamento.
38. O montante de honorários fixados, para a fase denominada de assistência técnica à obra ascendia ao montante de 525€, a ser paga com a consignação da obra.
36. A autora despendeu o valor de 34,57€ em certidões e papéis requeridos.
*
Do recurso da decisão sobre a matéria de direito
As razões da sentença
A fundamentação da sentença é a seguinte, em síntese:
“O contrato que se estabeleceu entre a autora e os réus é um contrato de prestação de serviços, ao qual se refere o art. 1154 do Código Civil. […]
A dúvida, como de resto a divergência entre as partes, surge apenas no tocante ao saber se os réus terão no caso cumprido integralmente a prestação a que se obrigaram para com a autora, sabendo-se que a mesma, e de modo prévio, os havia informado das suas reais intenções quanto àquilo que por ela era pretendido com o projecto que os mesmos se propunham executar-lhe e das suas limitações económicas no que concerne à execução do mesmo.
Analisados os factos provados ressalta desde logo o incumprimento por parte dos réus no que concerne a uma das obrigações acessórias a que se haviam comprometido com a autora por força do contrato que com ela celebraram, ou seja, a referente ao número de exemplares do projecto de execução da obra e do projecto de licenciamento que estavam obrigados a entregar-lhe.
[…]
Todavia o incumprimento por parte dos réus da referida obrigação não levaria, por si só, ao reconhecimento à autora do seu direito à resolução do contrato em discussão nos autos, pelo facto da mesma, analisado um tal contrato no seu todo, não assumir grande relevância e repercussão no conjunto das obrigações nele estipuladas.
O mesmo porém já não acontece com a obrigação assumida pelos réus, consistente precisamente na elaboração do projecto de licenciamento, arquitectura e especialidades e do projecto de execução de arquitectura.
Na verdade e pese embora os réus tenham elaborado os projectos a que se haviam comprometido com a autora e de os terem feito aprovar junto da edilidade competente, o facto é que a referida prestação acaba por não trazer a esta a utilidade pela mesma pretendida e visada com a contratação a que procedeu, e no caso, a construção pela autora, num seu terreno, de uma habitação destinada a permitir-lhe o investimento pretendido fazer em energias renováveis, pela simples razão da construção projectada implicar o dispêndio de valores superiores aqueles que por ela haviam sido equacionados para o efeito.
Daí que se possa concluir no sentido de uma tal factualidade ser apta a permitir a conclusão de que os réus não cumpriram a obrigação assumida.
Ou seja, o dano não resulta aqui da omissão ou do atraso do cumprimento, mas antes dos vícios ou deficiências da prestação efectuada que se realiza, embora não como se impunha.
Por outras palavras, a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e boa-fé – J. Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, pág. 46 e seguintes.
De referir ainda que a tónica da defesa dos réus é posta, em grande medida, no facto da prestação a que estavam obrigados, mormente no que concerne ao licenciamento e elaboração dos projectos a que se haviam comprometido, ter sido realizada e aceite pela autora, e, desse modo, extinta.
Porém, e na perspectiva deste tribunal, sem razão.
Com efeito, e mesmo a ter havido uma tal aceitação, há casos em que o credor aceita a prestação porque desconhece, sem culpa, o vício de que a mesma padece. Torna-se-lhe então possível, em tais casos, prevalecer-se da invalidade do cumprimento, com base em erro ou dolo – arts 251 e seguintes e 295 -, seguindo-se a aplicação do regime do não cumprimento definitivo ou da mora – Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 745.
Por outro lado, creio também ser evidente que a autora só aceitou celebrar o contrato de prestação de serviços em discussão nos autos com os réus e só aceitou a prestação consistente no projecto que eles lhe apresentaram, pela simples razão de estar convencida de que o referido projecto lhe permitiria a construção aos preços referenciados na proposta 4, sob a epígrafe de estimativa orçamental da obra, ou seja, 63.000€, sendo o custo concernente à habitação de 54.000€ e o custo concernente à garagem de 9.000€.
Convicção essa que, e no entanto, se revelou errónea – como se viu dada a disparidade entre tais valores e os orçamentos que pediu com base nos aludidos projectos – , mas sem que o fosse por culpa sua.
Na verdade, e olhando para aquela proposta 4, e mais propriamente para o item aonde se referem os valores atrás referenciados, denominado, também como já se referiu, de estimativa orçamental da obra, a conclusão a que a autora chegou seria aquela a que um declaratário normal, sem conhecimentos específicos como era o caso da autora pese embora a sua licenciatura em engenharia química, chegaria, já que nada é passível de inculcar a ideia de que uma tal estimativa seria completamente desconforme à realidade dos preços do mercado da construção existentes à data ou que a mesma apenas visasse, tal como defendido pelos réus, o cálculo dos respectivos honorários.
Todavia, e na situação dos autos, sempre uma tal questão estaria ultrapassada dada a matéria de facto que resultou provada e que aponta no sentido dos réus terem criado na autora, erroneamente, uma tal convicção – factos 15, 16 e 17.
Por outro lado, não poderiam os réus ignorar aquilo que lhes havia sido desde sempre referido pela autora no tocante à sua contenção de gastos nem tão pouco ignorar que o projecto pelos mesmos apresentado e licenciado importaria em custos substancialmente superiores aqueles que a autora estaria na disposição, e poderia, gastar.
Posto isto, de referir ainda que um tal projecto, e vistos os custos de construção que o mesmo, em análise última, comportaria, e a atitude dos réus, de nada terem feito no sentido de o alterar pese embora aquilo que lhe era solicitado pela autora, sempre teria que se considerar como inexequível para esta, e portanto apto a justificar a resolução operada com fundamento, como se disse, no incumprimento por parte daqueles da respectiva prestação, já que a desconformidade da referida prestação a afasta de tal modo do modelo de prestação exigível que o interesse do credor fica inteiramente por preencher – João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5ª edição, pág. 126.
No que concerne aos direitos que emergem para a autora por virtude do inadimplemento por parte dos réus, e para além do direito à resolução do contrato – art. 801/2 do CC – e à sua prestação por inteiro, tem ainda a mesma o direito a ser indemnizada pelo interesse contratual negativo ou de confiança. Trata-se, no fundo, do prejuízo que a mesma não sofreria se o contrato não tivesse sido celebrado.
No caso, e no que concerne aos danos aptos a integrarem um tal dano, a autora apenas logrou fazer a prova daqueles que se mostram referenciados nos factos 35 e 36.
Por outro lado, e no que concerne aos danos morais peticionados […o] que resultou provado a respeito – facto 37 – […] nunca poder[ia] ser considerado[…] apto[…] a configurar a gravidade exigida para ser[…] ressarcíve[l] a título de danos morais – art. 496 do CC.
Contra isto dizem os réus:
[A alteração da decisão da matéria de facto] imporia, portanto, decisão oposta à que foi proferida.
Decisão que, necessariamente, iria no sentido de que os réus cumpriram integral e escrupulosamente a prestação a que se obrigaram perante a autora.
Aliás, reconhece o tribunal […] que os réus elaboraram os projectos a que se haviam comprometido com a autora e que os fizeram aprovar junto da edilidade competente.
Entende é que aqueles projectos não lhe trouxeram a utilidade pretendida.
Conclui, por isso, que a prestação efectuada, em linguagem mais comum, não vai, ou não foi, de encontro ao pretendido pela autora, mais dizendo que esta apenas contratou por uma determinada convicção – a de que construiria pelo preço apresentada na proposta de honorários como estimativa orçamental para o cálculo daqueles – o que não veio a acontecer.
Vai o tribunal ainda mais além, pressupondo que foram os réus que incutiram, culposamente, aquela tal convicção na autora o que lhe permite a resolver o contrato, alegando a sua invalidade pelo facto de, só por induzida em erro, o ter subscrito.
Com o devido respeito, nem a prova produzida, como à saciedade se demonstrou, leva à conclusão que a autora foi induzida em qualquer erro, muito menos pelos réus (provou-se até o oposto), que a autora não tinha consciência do significado dos valores que lhe estavam apresentados na proposta de honorários e que estes eram, afinal, preços ou orçamentos de construção (até porque veio a construir com um projecto idênticos em tipologia, matareis e valores).
A tese de que os projectos dos réus, devidamente concluídos e aprovados, não terem a utilidade pretendida pela autora e que, por isso, estava induzida em erro quando contratou, fica, assim, desconstruída.
Inexistindo, assim, qualquer vício ou erro que possibilite a resolução do negócio. Mas mesmo considerando que tivesse existido qualquer erro que tivesse levado a autora a contratar, o que nem por mera hipótese académica se admite, tão pouco poderia, por tal motivo, ser o negócio [resolvido], com as consequências que ditaram a decisão proferida.
Isto porque, para que um erro possa dar origem à inviabilização de um negócio, conforme preconiza o tribunal, dizem as disposições conjugadas dos arts. 251, 253/1 e 254/1 do CC, que tem de resultar das circunstâncias concretas apuradas que o declaratário (neste caso os réus) não podia ignorar a essencialidade do motivo sobre o qual o erro recai e que o erro do declarante (a autora) tenha sido determinado intencionalmente por outrem (chama-lhe a doutri-na dolus malus).
Veja-se a este propósito o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2005, proc. 04B4349, consultável em http://www.dgsi.pt, que refere: “O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro (arts. 251 e 247/2 do CC).
Continuando a citar o mesmo acórdão: “Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (art 251), quer o dolo (art. 254/1) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.”.
Sendo que, ainda citando: “A essencialidade do erro (ou do dolo) deve ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante ou do contraente enganado (deceptus), ou seja daquele que haja sido levado a formular uma ideia inexacta acerca do objecto do negócio, sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.”
Cometendo “…dolo ilícito o deceptor – autor do artifício, sugestão ou embuste – que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria.”
Exigindo a lei, para a anulação do negócio, de acordo com o mesmo aresto “…que se trate de um dolus malus (art. 253/2) que não de meras sugestões ou artifícios usuais considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico (dolus bonus).”
Mais exige a lei, para a anulação do negócio, que exista “…um nexo de causalidade entre o dolo e a actuação do enganado. A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, determinado intencionalmente por outrem: a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada) – “erro qualificado”.”
Por outro lado, se algum erro tivesse existido (como se refere, nem por hipótese académica se admite), e fosse ele não sobre a pessoa ou nem sobre o objecto do negócio, mas eventualmente, pelo que discorre a sentença, sobre os motivos determinantes da vontade, para ser possível a anulação do negócio seria exigível o acordo das partes quanto à essencialidade dos motivos (art. 252) ou a alteração futura e anormal das circunstâncias com que se contratou (art. 437).
A autora nas contra-alegações diz, no essencial, que o entendimento dos réus, de que não existe erro que possibilite a resolução do negócio, não é o [que] resulta dos autos nem do acórdão da OA.
*
Decidindo:
A construção feita pela autora na petição inicial (e agora nas contra-alegações), sem a invocação de uma norma legal que seja, mistura duas áreas de questões muito diferentes: por um lado, sugere que os réus a enganaram, levando-a a contratar, isto é, a celebrar um contrato que, não fosse esse engano, ela não teria celebrado; e depois diz que este contrato foi mal executado, conduzindo a um resultado que não lhe serve para nada, o que pressupõe que o contrato foi bem celebrado, pois que se tivesse sido cumprido correctamente teria servido para os interesses que visava satisfazer.
Ou seja, por um lado, temos a invocação de vícios na formação da vontade de celebrar o contrato (eventualmente enquadráveis numa das normas dos arts. 247, 251, 252, 253, 254, todos do CC) a que coerentemente se devia ter seguido a invocação da anulabilidade do mesmo, com o consequente pedido de anulação do contrato, e, por outro lado, temos a invocação do incumprimento do contrato, a conduzir ao direito de resolução do mesmo e à indemnização dos prejuízos causados (arts. 801 e 808, ambos do CC), com os correspondentes pedidos de resolução e de indemnização, o que são coisas com pressupostos, regimes e consequências diferentes.
Da resolução por má execução
Apesar do que antecede, a autora aparentemente só acabou por pôr em jogo a resolução do contrato, por incumprimento do mesmo, e foi também, aparentemente, apenas este, em termos práticos, o caminho seguido pela sentença recorrida, que declarou resolvido o contrato, com justa causa, com direito a indemnização (o valor da condenação corresponde, embora isso nunca seja dito na sentença, à soma do valor do facto 6, com iva de 21%, com os valores dos factos 35 e 36; a referência a justa causa é enganadora, já que esta é um fundamento de resolução ou revogação de determinados tipos de contratos [os duradouros – veja-se o estudo de Baptista Machado citado pela sentença, nas págs. 356 e segs da obra Estudos em homenagem a Teixeira Ribeiro, Coimbra, BFD, 1979, ou também, por exemplo, o de Januário Gomes, Em tema de revogação do mandato civil, Almedina, 1989, págs. 64 a 66] e não uma figura que se use no âmbito do regime geral da resolução do contratos dos arts. 801 e 808 do CC; dito de outro modo, o incumprimento do contrato para efeitos de resolução nos termos dos arts. 801 e 808 não está baseado nem pressupõe a justa causa; ainda de outro modo, no caso dos autos não está em jogo, designadamente, a revogação do contrato por justa causa do art. 1170/2 do CC, aplicável por força do art. 1156 do CC).
Isto apesar da sentença, na fundamentação, sugerir que o contrato foi celebrado devido a dolo dos réus e de sugerir que a aceitação de parte do resultado do cumprimento do contrato pela autora se deveu também a vícios na formação da sua vontade que poderiam conduzir à anulação de tal aceitação, sem que de tudo isto retire as consequências devidas.
Por causa disto tudo, os réus foram induzidos em erro que se reflecte na sua argumentação: misturam a anulabilidade/invalidade com a resolução do negócio e põem em causa os fundamentos daquela com vista a pôr em causa a resolução do contrato decretada pela sentença.
Tudo isto tem agora de ser reponderado, mas partindo-se daquilo que foi decidido e que era o pretendido pela autora, ou seja, a resolução do contrato por incumprimento do mesmo imputável aos réus.
Esta tem como pressuposto, grosso modo, o incumprimento definitivo do contrato (art. 801 do CC) a que têm sido equiparadas outras situações, no âmbito do art. 808 do CC, sendo que, se em relação ao incumprimento a sentença diz alguma coisa, já quanto ao facto de ele ser definitivo não diz nada.
Comece-se pela primeira questão: o contrato foi mal executado?
Por tudo o que foi dito aquando da apreciação da prova (e perante os elementos de prova), vê-se que a impressão que fica é que não há prova de que os projectos (entre eles o último, de execução) elaborados pelos réus não tenham sido bem feitos. A autora acompanhou toda a face da elaboração dos projectos e aceitou os respectivos resultados, o que se demonstra com o facto de ter pago as diversas prestações do preço e levado o projecto final para a elaboração dos orçamentos. E tanto isto é assim que a sentença se sente na obrigação de falar na questão da aceitação do resultado e de dizer que esta pode ser anulada. Mas se o pode, a verdade é que não o foi, pelo que teríamos uma aceitação da obra.
Mas aqui – na parte de direito deste acórdão – a questão tem de ser colocada de outro modo: reconstruindo a fundamentação da sentença, vê-se que esta entende que se está perante um projecto de execução que conduz a uma obra (orçada em 170.000€) que não foi a obra que foi objecto do contrato celebrado (estimada em 63.000). O resultado seria desconforme ao visado objectivamente no contrato. Haveria aqui a prova do cumprimento defeituoso da obrigação, prova que cabia à autora. E, depois de provado o cumprimento defeituoso, a culpa por este presumir-se-ia ser do obrigado, no caso, dos réus (art. 799/1 do CC). Cabia depois aos réus a alegação e prova de que o cumprimento defeituoso não tinha sido culpa sua, o que eles não fizeram.
Mas, como se vê, é a própria sentença que introduz um obstáculo a esta construção: os réus teriam alegado que a autora aceitou a obra (aquele projecto de execução). Tendo a autora aceite a obra, dir-se-ia que ela não podia vir resolver o contrato com base na desconformidade do resultado alcançado com o resultado contratado. A sentença, para afastar esta conclusão, diz então que a aceitação da obra é um acto jurídico que pode ser anulado. E pode, de facto, mas essa anulação não foi pedida pela autora nem era objecto do processo, nem foi decidida pela sentença recorrida que apenas a invoca como possibilidade.
Mas houve ou não aceitação da obra?
Diga-se antes de mais que os réus não alegaram a aceitação da obra, ou a sua aprovação; o que eles fizeram foi impugnar o incumprimento (imperfeito) do contrato alegado pela autora, dizendo que o tinham cumprido (como devido); mas isto é irrelevante, visto que os factos que demonstram a aprovação da obra, por parte da autora, estão provados e a aprovação é uma excepção peremptória que, por regra não excepcionada no caso, é de conhecimento oficioso (arts. 576/3 e 579 do CPC); assim, a sentença fez bem em trazer para a discussão esta questão.
Posto isto, ao longo de mais de 2 anos, os réus foram elaborando projectos de arquitectura e especialidades (factos 4, 7 e 8) que a autora pagou (factos 6 e 38 – a única parte do preço que a autora não pagou foi a última prestação, de 10%, de assistência técnica), e também elaboraram o projecto de execução, que a autora também pagou (mesmos factos) e depois levou-o para elaboração de orçamentos (factos 8 e 19 a 22) tudo actos inequivocamente concludentes da aprovação tácita da obra, aprovação tácita que estava prevista expressa e tacitamente em várias cláusulas do contrato 5: por exemplo, nas cláusulas 4ª/b) e c), 7ª/2/b), c) e d), e 10ª/1b), c) e d), e 2. Cláusulas que, aliás, apenas desenvolvem aquilo que está previsto no art. 1163 do CC (“comunicada a execução ou inexecução do mandato, o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes, de acordo com a natureza do assunto, vale como aprovação da conduta do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do mandato ou desrespeitado as instruções do mandante, salvo acordo em contrário”), no regime do contrato de mandato, cujas disposições são extensivas, com as necessárias adaptações, ao contrato de prestação de serviço não regulado especificamente pela lei (art. 1156 do CC).
Tendo a autora aprovado tudo aquilo que foi feito, durante cerca de 2 anos, primeiro com os projectos de arquitectura e de especialidades e depois com o projecto de execução, não pode depois, para fundamentar um pedido de resolução, alegar que estes projectos (ou o último) estão mal feitos e não correspondem àquilo que queria. Como diz Antunes Varela, através da citação de um autor italiano, dadas estas circunstâncias [as referidas no início do art. 1163 do CC], ‘o legislador reconhece, autoritariamente, a incompatibilidade de um comportamento inactivo do mandante com uma vontade de recusa de uma prestação inexactamente cumprida’ (CC anotado, vol. II, 4ª edição, 1997, Coimbra Editora, pág. 799). Mas no caso não existe só o silêncio, mas o acto de pagamento a que o contrato atribuiu o significado de aprovação.
É certo que, como diz a sentença, esta aprovação da obra podia ser anulada, mas para isso a autora teria que ter alegado, ao menos, os factos necessários para se poder concluir que a aprovação tinha ocorrido por engano ou erro, eventualmente induzidos pelos réus.
O que a autora, como se viu, não fez, minimamente, até porque nem falou no assunto, pelo que a sentença não podia ter afastado a aprovação da obra pela autora e se a autora a aprovou não pode dizer que está mal feita. Não o pode ela nem a sentença, que assim perde a base para a decretada resolução do contrato (o que arrasta também a obrigação de restituição com a indemnização correspondente), não tendo que ser discutido se o “defeito” se reconduzia a um incumprimento definitivo ou se poderia vir a reconduzir-se a uma mera mora na execução do contrato que não daria direito à resolução do mesmo enquanto não fosse convertido em incumprimento definitivo…
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Da anulação por erro
Como o juiz pode corrigir a qualificação jurídica da pretensões deduzidas pelas partes, tendo em conta os efeitos prático-jurídicos que elas realmente visam [neste sentido vejam-se os dois acórdãos do STJ relatados por Lopes do Rego, de 05/11/2009, publicado sob o nº. 308/1999.C1.S1: 2. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, e o de 25/02/2010, publicado sob o nº. 399/1999.C1.S1: a qualificação jurídica que a parte realiza quanto à pretensão de tutela processual que deduz não impede que o tribunal possa reconfigurar adequadamente tal pretensão, dando-lhe a adequada configuração jurídico-normativa, suprindo ou corrigindo o erro de direito da parte na formulação jurídica do pedido que deduz: como temos sustentado (veja-se o ac. do STJ de 05/11/2009 […]): o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo este fenómeno que permite compreender, por exemplo, que seja lícito ao tribunal convolar de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração de ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado (cfr, por exemplo, o acórdão uniformizador 3/2001, de 23/1/2001)], e como no caso dos autos é notório que a autora pensa que a resolução do contrato é uma forma de anulação do mesmo, englobando na figura da resolução do contrato a da anulação, como formas de extinção do mesmo, entende-se que o objecto da acção era também a anulação do contrato.
Supondo então que também estava em causa o direito à anulação do contrato, por erro na formação da vontade (erro que a autora nunca identifica, mas que será o do erro sobre os motivos, com o regime dos arts. 252/1 e 434, ambos do CC: a autora quis contratar porque pensava que a obra só lhe ia custar 63.000€, mas afinal a obra custava 170.000€), eventualmente provocado pelos réus (e então o regime seria o dos arts. 253 e 254, ambos do CC: os réus teriam levado a autora a pensar que a casa só lhe ia custar 63.000€), isto é, que o objecto desta acção era também o exercício desse direito – e assim o entenderam quer a autora, quer o tribunal recorrido (embora só em parte, sendo inequívoco que decretou a resolução do contrato por incumprimento, não o tendo anulado por erro), quer os réus – embora a coberto de uma qualificação errada (a de resolução do contrato, que, ao contrário do que a autora supõe, não abrange a anulação), diga-se que também aqui os respectivos pressupostos não se verificam.
Falta desde logo o principal, que é o erro.
Este erro seria, segundo a autora, o pensar que o projecto contratado dizia respeito a uma obra no valor de 63.000€ quando, afinal, ela tinha o valor de 170.000€.
Ora, como já se viu, estes valores não têm nada a ver um com o outro. O valor de 170.000€ – que aliás não se provou, provando-se antes vários, um deles de 130.225€ – diz respeito não ao valor da obra tal como ela tinha sido objecto do contrato, mas a um projecto que é o produto final de 2 anos de trabalho dos réus, por fases sucessivamente aprovadas pela autora.
O erro, por isso, não diria respeito à vontade manifestada aquando da celebração do contrato de prestação de serviços, mas sim, quando muito, aos posteriores actos de aprovação tácita dos resultados da execução do contrato pelos réus.
Daí que a sentença também tenha trazido à baila a anulabilidade destes actos de aprovação, que chamou de aceitação, na sequência aliás daquilo que se verificou no decorrer do julgamento, em que se começou a discutir a questão de saber se os réus tinham informado a autora de que as alterações introduzidas nos projectos da obra iriam inflacionar o preço da mesma.
Só que este eventual erro da autora na aprovação dos resultados dos serviços dos réus, por falta de informação dos réus, nunca chegou, sequer, a ser aflorado na petição inicial, isto é, nos factos alegados pela autora; tal como a eventual consequência a extrair deles, que seria a da anulação desses actos de aprovação, nunca foi pedida nos autos, isto é, nunca foi objecto dos mesmos e por isso, por mais voltas que se dessem, nunca poderiam ser anulados (art. 609/1 do CPC).
Em suma, por não se demonstrar a existência de erro, também não pode proceder o pedido de anulação do contrato, (mal) englobado no pedido de resolução do mesmo.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a sentença e substituindo-a por esta decisão que julga a acção improcedente e absolve os réus do pedido.
Custas pela autora (quer da acção quer do recurso).
Valor da acção e do recurso: 9121,44€.
Porto, 10/09/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto