Acção 1991/11.1TBPRD – Penafiel, Secção Cível, J4
Sumário:
Numa acção em que seja requerida a intervenção acessória de alguém, na sentença dessa acção o tribunal não se tem de (nem se pode) pronunciar sobre a questão de saber se essa mesma sentença constitui caso julgado quanto à chamada.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, Lda, intentou uma acção contra B, Lda (actualmente C, Lda), pedindo a condenação desta a pagar-lhe 45.615,96€, acrescida dos correspondentes juros de mora, alegando para o efeito o não pagamento, pela ré, de fornecimentos que a autora lhe tinha feito naquele valor.
A ré invocou ter direito a uma indemnização da parte da autora, por danos que lhe causaram serviços que esta lhe prestou, tendo excepcionado a compensação de créditos e reconvencionado com base nela, contra a autora, o pagamento de uma dada quantia.
A autora replicou, invocando a sua ilegitimidade quanto à reconvenção por ter celebrado um contrato de seguro com a Companhia de Seguros D, SA, considerando, por isso, ser esta seguradora que devia responder pelos danos sofridos pela ré que seriam muito menores; e requereu a intervenção principal da seguradora nos presentes autos, ao abrigo do disposto nos arts. 325 e segs do CPC (na versão anterior à reforma de 2013), para a seguradora se opor à pretensão da ré; concluindo pela improcedência do pedido reconvencional e da excepção deduzida.
Foi deferido “o requerido pedido de intervenção acessória da chamada Companhia de Seguros D” enquadrando-se o chamamento nos termos do art. 330 do CPC (ainda antes da reforma de 2013) e como questão de direito de regresso. A seguradora foi citada nos termos do art. 332 do CPC.
A seguradora contestou dizendo, no essencial, que não assegurou a cobertura do risco em causa nos autos (e eventualmente a cobertura estaria assegurada por uma outra empresa, pelo que o eventual direito de regresso recairia sobre esta e não sobre si), pelo que deveria ser absolvida do pedido reconvencional.
Depois do julgamento foi proferida sentença, julgando verificado o crédito da autora sobre a ré, a obrigação da autora de pagar à ré a indemnização dos danos que lhe causou e um crédito desta sobre a autora, e operada a compensação dos dois créditos e, “em consequência”, julgou-se improcedente a presente acção e absolveu-se a ré do pedido; julgou-se improcedente o pedido reconvencional quanto a parte do pedido e, nos termos do art. 277/d) do CPC, julgou-se extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente, quanto à parte remanescente [por aplicação do AUJ do STJ de 08/05/2013 (170/08.0TTALM.L1.S1)]; e, sob f) foi declarado que a sentença não constitui caso julgado quanto à chamada, nos termos previstos no artigo 332 do CPC (depois da reforma de 2013).
A seguradora chamada vem recorrer desta última parte da sentença (f) – para que seja substituída por outra que declare expressamente que constitui[…] a sentença agora proferida caso julgado quanto à chamada, para os devidos e legais efeitos, nos termos previstos nos artigos 332, 619 a 621 do CPC – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem na sua parte minimamente útil):
c) Como resulta expressamente do art. 332 do CPC [depois da reforma de 2013], em que se fundamenta a sentença recorrida na resposta dada a esta questão, “a sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente”.
d) E a força de caso julgado aplica-se independentemente do sentido ou alcance do mérito da sentença, quer isto dizer, seja esta de absolvição ou de condenação.
e) Se assim não for existirá uma contradição insanável entre a) a conclusão da impossibilidade de ser intentada acção futura, b) a aplicação daquele art. 332 do CPC e a c) declaração de que esta sentença quanto à chamada não tem força de caso julgado.
f) Como bem nota o Tribunal a quo na sua fundamentação, face à matéria de facto provada nos autos sobre os fundamentos da causa de pedir e do direito de regresso, que constitui caso julgado material, forçoso foi concluir que ficou provado que a autora não está constituída na obrigação de indemnizar a ré, pelo que logo e “necessariamente que inexiste qualquer direito de regresso da autora do chamamento, que por isso não poderá intentar ulterior acção de indemnização contra a aqui interveniente”.
g) Mas esta conclusão só será juridicamente fundamentada e válida se, como decorre expressamente do art. 332 do CPC, for declarado o efeito de caso julgado, na sua vertente material e formal, da sentença recorrida perante a seguradora chamada, podendo esta assim valer-se no futuro do efeito preclusivo do caso julgado formado pela decisão já proferida e objecto deste recurso.
h) Só assim ficará assegurada a inadmissibilidade de qualquer indagação ulterior sobre a relação material controvertida, que assim se encontra já definitivamente definida nesta decisão recorrida, de forma a dar como não provada a obrigação da autora indemnizar a ré e, consequentemente, da seguradora ao abrigo do contrato de seguro celebrado com aquela.
i) E é precisamente aqui que reside a legitimidade da seguradora para o presente recurso, já que o n.º 2 do art. 631 do CPC [depois da reforma de 2013] confere legitimidade recursória a quem seja “directa e efectivamente” prejudicado pela decisão, ainda que não seja parte na causa ou seja apenas parte acessória ou por outras palavras “impõem-se que a vulnerabilidade do interesse do terceiro resulte directa e efectivamente, juridicamente da decisão” – in Guia de Recursos em Processo Civil”, 5ª Edição, J. O. Cardona Ferreira, pág.132.
j) Ora a vulnerabilidade do interesse da seguradora reside precisamente na passagem da sentença recorrida que declara que esta não constitui caso julgado perante a seguradora, negando assim a esta o direito de beneficiar do efeito preclusivo do caso julgado previsto nos arts. 619 a 621 do CPC.
A autora não contra-alegou.
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Questões que importa decidir: se da sentença não deve constar a declaração de que não ela constitui caso julgado quanto à chamada, mas, pelo contrário, que ela constitui caso julgado quanto à chamada.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que constam do relatório supra.
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Da argumentação da sentença
Na sentença considerou-se que uma das questões a resolver era a de saber se a sentença constitui caso julgado quanto à seguradora chamada, nos termos previstos no art. 332 do CPC depois da reforma de 2013, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso da autora do chamamento, invocável em ulterior acção de indemnização.
E disse-se:
“A intervenção acessória – inovação da reforma processual emergente do Dec.-Lei nº 329-A/95, justificada, além do mais, pela extinção do incidente do chamamento à autoria – mostra-se claramente motivada no preâmbulo daquele diploma, onde se pode ler a esse propósito:
“Relativamente às situações presentemente abordadas e tratadas sob a égide do chamamento à autoria, optou-se por acautelar os eventuais interesses legítimos que estão na base e fundam o chamamento nos quadros da intervenção acessória, admitindo, deste modo, em termos inovadores, que esta possa comportar, ao lado da assistência, também uma forma de intervenção (acessória) provocada ou suscitada pelo réu da acção principal. Considera-se que a posição processual que deve corresponder ao titular da relação de regresso, meramente conexa com a controvertida – invocada pelo réu como causa do chamamento – é a de mero auxiliar na defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual efectivação da acção de regresso pelo réu de demanda anterior, e não a de parte principal: mal se compreende, na verdade, que quem não é reconhecidamente titular ou contitular da relação material controvertida (mas tão somente sujeito passivo de uma eventual acção de regresso ou indemnização configurada pelo chamante) e que, em nenhuma circunstância, poderá ser condenado caso a acção proceda (ficando tão somente vinculado, em termos reflexos, pelo caso julgado, relativamente a certos pressupostos daquela acção de regresso, a efectivar em demanda ulterior) deva ser tratado como parte principal. A fisionomia atribuída a este incidente traduz-se, nesta perspectiva, numa intervenção acessória ou subordinada, suscitada pelo réu na altura em que deduz a sua defesa, visando colocar o terceiro em condições de o auxiliar na defesa, relativamente à discussão das questões que possam ter repercussão na acção de regresso ou indemnização invocada como fundamento do chamamento”.
Assim, “como a intervenção acessória provocada não permite que o terceiro interveniente assuma a qualidade de parte principal, não é possível que o réu da acção formule qualquer pedido (mesmo subsidiário) de condenação desse terceiro na satisfação do seu direito de regresso – e muito menos, acrescente-se, de condenação no pedido deduzido pelo autor na acção. O terceiro é chamado para auxiliar o réu na sua defesa e a sua actividade não pode exceder a discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso que fundamenta a intervenção (art. 330º, nº 2). Com este chamamento, o demandado obtém não só o auxílio do terceiro interveniente, como também a vinculação deste último à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 332º, nº 4). Portanto, a intervenção do terceiro não é acompanhada de qualquer alteração no objecto da causa e, menos ainda, de qualquer cumulação objectiva” (Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2ª edição, Lisboa, 1997, pág. 179).
Desta forma, mantém-se actualizado e deve prevalecer no respeitante à intervenção acessória fundada no direito de regresso, o entendimento (quase unânime na jurisprudência) de que o incidente de chamamento à autoria não visava condenar o chamado, antes e apenas estender a este os efeitos do caso julgado da decisão proferida na causa (acs. STJ de 05/07/90, no Proc. 79434 da 2ª secção; de 08/11/95, no Proc. 87509 da 1ª Secção; de 30/10/96, no Proc. 155/96 da 2ª Secção e de 14/04/99, no Proc. 167/99 da 2ª Secção).
Isso mesmo acontece agora no âmbito do incidente de chamamento para intervenção acessória previsto no art. 321 do actual CPC [depois da reforma de 2013], com fundamento no eventual direito de regresso, cuja única intenção é a de alargar o caso julgado ao respectivo interveniente (Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 2ª edição, Coimbra, 1999, pag. 121. Cfr. Ac. STJ de 05/02/2002, no Proc. 3869/01 da 1ª Secção).
Em consequência do exposto, naturalmente há que extrair a ilação de que não sendo a interveniente acessória sujeito da presente acção nada há que decidir (condenando ou absolvendo) quanto a ela.
Com efeito, a solução não podia deixar de ser a de manter a interveniente afastada do objecto da decisão, na justa medida em que a sua intervenção acessória não a constituiu parte na presente acção.
Seja como for, importa referir que não tendo a autora sido condenada a satisfazer a indemnização à ré, necessariamente que inexiste qualquer direito de regresso da autora do chamamento, que por isso não poderá intentar ulterior acção de indemnização contra a aqui interveniente, não constituindo a sentença agora proferida caso julgado quanto à chamada, nos termos previstos no artigo 332 do CPC [depois da reforma de 2013].”
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Não se concorda com o decidido em f) da sentença mas por razões opostas às da seguradora.
Diga-se, antes de mais, que quase tudo aquilo que é dito pela sentença sobre a questão está correcto e pode ser aproveitado como pano de fundo para explicação do que se segue.
Mas, primeiro, e por exemplo recorrendo à passagem citada de Miguel Teixeira de Sousa – “a intervenção do terceiro não é acompanhada de qualquer alteração no objecto da causa e, menos ainda, de qualquer cumulação objectiva” – a sentença não tinha razão, por um lado, em considerar como uma questão a resolver a questão de saber se a sentença constitui caso julgado quanto à seguradora chamada. Essa questão é resolvida em abstracto pela lei, no art. 332 do CPC (depois de reforma de 2013) e, depois, em concreto, tem que ser resolvida na eventual futura acção que venha a ser intentada para exercício do direito de regresso. É na causa posterior que se tem de ver quais dos factos e do direito que a decisão judicial estabeleceu fazem caso julgado em relação ao chamado.
Segundo, a parte final da fundamentação também não está certa:
A sentença não tem razão quando diz que “não tendo a autora sido condenada a satisfazer a indemnização à ré, necessariamente que inexiste qualquer direito de regresso da autora do chamamento, que por isso não poderá intentar ulterior acção de indemnização contra a aqui interveniente”, pois, como resulta das partes restantes da decisão, a sentença reconheceu à ré o direito de indemnização contra a autora por danos que lhe foram provocados por conduta imputada à mesma. Ora, a autora só não foi condenada a satisfazer a indemnização à ré porque, por um lado, o respectivo crédito foi compensado (compensação que é uma causa de extinçao das obrigações alem do cumprimento – veja-se a epígrafe do capítulo VIII do título I do livro II do CC) e porque, por outro lado, se julgou extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente. Mas foi reconhecido à ré o crédito à indemnização e a correspondente obrigação da autora indemnizar a ré (obrigação que parcialmente se extinguiu por compensação). Por isso, não se pode dizer que a autora não tenha direito de regresso contra a seguradora que contratou para cobrir o risco da existência desta obrigação. O direito de regresso está apenas dependente da satisfação do direito do credor (veja-se apenas por exemplo o art. 524 do CC), que pode ocorrer por compensação, e não da satisfação através do pagamento na sequência de uma condenação na indemnização.
E a sentença também não tem razão quando diz que “não constitui[…] caso julgado quanto à chamada, nos termos previstos no artigo 332 do CPC.”, quando o art. 323/4 do CPC diz exactamente o contrário, isto é, que a sentença constitui caso julgado em relação à chamada.
Nem se invoque o ensino de Lebre de Freitas e outros (CPC Anot., vol.1º, págs.589 e 590), como o faz o tribunal recorrido noutra ocasião, citando-o: “No regime do anterior chamamento à autoria, constituía-se sempre caso julgado contra o primitivo réu, mesmo que ele se excluísse da causa (antigo artigo 328-2) e contra o chamado, quer este aceitasse quer não a autoria (antigo art. 327-1). […] Diversamente se passam as coisas num regime em que ao chamado só é consentido intervir acessoriamente. […] A produção de caso julgado perante o chamado à intervenção acessória pode, portanto, não se produzir, quando se produzia sempre perante o chamado à autoria”, porque o Prof. Lebre de Freitas está claramente a referir-se a outra questão: é que o chamado, hoje, é sempre citado pessoalmente, nunca o sendo editalmente. Por isso, hoje, quando ele não pode ser citado pessoalmente, o incidente finda e, nesta hipótese, o caso julgado não se produz porque ele não chega a ser chamado (vejam-se as págs. 635 a 639 da 2ª edição, de 2008, do CPC anotado, Coimbra Editora). Este ensino, por isso, não diz que, apesar do chamado ter sido citado, o caso julgado pode não se produzir por outras razões, como, segundo o tribunal recorrido, por não se reconhecer a existência do direito de regresso.
Em suma, como já se disse, não era questão a decidir neste processo a de saber se a sentença constitui caso julgado quanto à seguradora chamada, nos termos previstos no art. 332 do CPC depois da reforma de 2013, pelo que a sentença nada devia ter dito quanto a tal questão, nem num nem noutro sentido, pelo que, também não tem razão a seguradora quanto pretende que a sentença diga agora o oposto do que disse.
O que consta da parte decisória da sentença sob f) tem, pura e simplesmente, de ser eliminado.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, revogando-se a a al. f) da parte decisória da sentença recorrida (ou seja, a declaração de que a sentença agora proferida não constitui caso julgado quanto à chamada, nos termos previstos no artigo 332 do NCPC).
Custas do recurso em metade pela seguradora e sem custas na parte restante.
Porto, 26/11/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto