Acção 3832/14.9TBMTS – Matosinhos – Secção Cível – J4
Sumário:
I – O ónus da prova do cumprimento defeituoso cabe ao credor da prestação (art. 342/1 do CC), mas esse ónus não inclui também o de provar as causas do defeito, nem os motivos do aparecimento do defeito. Por outro lado, é ao devedor da prestação que cabe a prova de que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.
II – O cumprimento defeituoso da obrigação pode dar origem à resolução do contrato quando aquele se concretize em “incumprimentos turbadores em relações contratuais duradouras, ou seja, abalando a ‘confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor’.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, Lda, intentou a presente acção contra o Condomínio do edifício X, Blocos A, B, C e D do n.º xxx, da Rua de xxx, xxx, pedindo a condenação deste a pagar-lhe 9035,42€, acrescidos de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que: a autora tem por objecto social a actividade de fornecimento, montagem e de conservação de elevadores; no exercício da sua actividade celebrou com o réu quatro contratos de conservação de elevadores simples, sem peças incluídas, nos termos dos quais se obrigava a conservar, por períodos de seis anos, renováveis por iguais períodos, um conjunto de oito elevadores instalados no edifício, contra o pagamento de um determinado valor mensal; a autora foi sempre cumprindo com as suas obrigações até que o réu lhe enviou uma carta resolvendo os contratos dos autos, com fundamento no facto de, no ano de 2011, não ter respondido eficazmente às solicitações para assistência técnica dos elevadores e por não ter ressarcido o réu em tempo útil das taxas dos pedidos de reinspecção a três elevadores; a autora rejeita os fundamentos de resolução do contrato alegando que respondeu sempre prontamente às solicitações e que os elevadores, enquanto objectos mecânicos, estão sujeitos a avarias, a qual pode até derivar da má utilização dos utentes e do desgaste dos materiais, para o qual a autora foi até alertando o réu. A autora chegou mesmo a enviar orçamentos que nunca foram adjudicados e que nunca se comprometeu a assumir os valores despendidos com a reinspecção. Mais alega que, à data da resolução do contrato, o réu deixou por pagar o valor de 9356,42€, que a autora está a pedir, relativos a três facturas de reparação, quatro de sanção contratual e duas notas de débito de juros.
O réu – citado a 24/07/2014 – contestou, alegando, em síntese, que: no decurso de 2011, em particular a partir de Março, o réu procedeu a inúmeras solicitações de assistência técnica junto da autora que, na sua maioria, não obtiveram qualquer resposta e, das poucas vezes em que os técnicos da autora se deslocaram ao imóvel, as suas intervenções nunca foram adequadas a resolver os problemas de que os elevadores padeciam, o que teve por consequência que os condóminos se viram por diversas vezes privados da utilização dos elevadores; em face desta situação, dois representantes da autora deslocaram-se, a pedido do réu, a uma assembleia geral de condóminos onde se discutiu a deficiente assistência aos elevadores e falta da aprovação dos mesmos em sede de inspeção periódica, tendo um dos representantes [da autora] confessado a falta de resposta e inadequação da actuação da sua representada, comprometendo-se a anular algumas facturas e em resolver a situação, tendo o réu conferido uma nova oportunidade à autora; decorridos três meses da data da assembleia, a autora não cumpriu com nenhuma das medidas a que se comprometera, tendo o réu optado por resolver o contrato por incumprimento imputável à autora; o réu solicitou então a uma empresa da especialidade que avaliasse o estado dos elevadores tendo esta emitido um relatório técnico no qual denuncia que algumas anomalias/deficiências advieram de erros de má execução técnica que não cumpriam com normas de segurança assim como de adulteração de equipamentos. Invoca ainda que a autora apenas procedeu à anulação de quatro facturas e que não reembolsou o réu do valor pago com as inspecções reprovadas, continuando a remeter facturas após a resolução do contrato, debitando serviços não-prestados. A título subsidiário diz que a sanção contratual constitui uma cláusula penal desproporcionada, ostensiva e abusiva, o que gera a sua nulidade com fundamento no art. 810 do Código Civil e arts. 18 a 22 do Dec.-Lei n.º 446/85.
A autora respondeu às excepções invocadas pela ré e pronunciou-se quanto aos documentos apresentados na contestação.
(utilizou-se até aqui, quase na íntegra, o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizado o julgamento foi proferida sentença condenando o réu a pagar à autora 444,52€, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento e absolvendo-o do resto.
A autora interpôs recurso desta sentença – para que seja alterada a matéria de facto, revogada a sentença e substituída por outra que declare injustificada a resolução contratual operada pelo réu, condenando-o no pedido [incluindo o pagamento das facturas xxx (doc. n.º 22 da PI) e xxx (doc. n.º 26 da PI) e sobre as quais o tribunal a quo não se pronunciou] -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [transcrevem-se as relativas à matéria de direito; as relativas à decisão da matéria de facto serão transcritas a propósito de cada uma delas]:
[…]
B. Da narrativa oferecida pelo Tribunal a quo, decorre que a autora deveria ter solucionado as avarias em termos eficazes – e conclui que assim não aconteceu porque as avarias voltaram a acontecer – em “ vez de ter que se deslocar lá em 68 ocasiões”.
C. Sucede, porém, que as partes celebraram 4 contratos de manutenção simples de elevador, para a manutenção simples de 8 elevadores – 2 por contrato – estando excluído do seu objecto a substituição ou reparação de componentes defeituosos (cfr. cláusula 5.1.1.1. dos contratos).
D. Com o devido respeito, o Tribunal a quo olvida que a causa das avarias teve origem no sistema das fechaduras de encravamento das portas de patamar e que a autora apresentou orçamentos para a sua reparação (cfr. facto provado n.º 19).
E. A autora não pode ser responsabilizada pela ocorrência sucessiva dessas avarias, quando já apresentou orçamentos para a sua correcção e o réu não os adjudicou.
F. Apesar de o Tribunal a quo ter indicado como tema da prova “Saber se a causa das avarias nos elevadores se deveu a má utilização pelos utentes, pelo decurso do tempo (desgaste) ou pela falta ou ineficácia das reparações”, não oferece resposta a este tema da prova, preferindo concluir que o elevado número de avarias corresponde a um cumprimento defeituoso da obrigação pela autora.
G. Sendo certo que a própria autora não coloca em causa que se verificou um número elevado de avarias em 2011 – a solução para as mesmas já havia sido orçamentada, pela primeira vez, em 2009, cfr. facto provado n.º 19 – a verdade é que a prova de que as avarias resultaram de uma incorrecta ou insuficiente manutenção cabia ao réu e este, manifestamente, não fez essa prova.
H. Atento o disposto no artigo 342/2 do Código Civil, alegando o réu o cumprimento defeituoso da obrigação de manutenção dos elevadores pela autora, era a si que competia fazer a prova dos factos que pudessem sustentar essa alegação.
I. Tendo a autora apresentado orçamentos para a correcção das anomalias verificadas, não adjudicados pelo réu, fica claro que não pode aquela ser responsabilizada pelas avarias ocorridas e que cumpriu as obrigações contratualmente assumidas com o réu nos 4 contratos celebrados.
[…]
TT. Importa concluir que o Tribunal a quo andou mal ao considerar que a autora cumpriu defeituosamente as obrigações contratuais assumidas perante o réu. Isto porque:
– Os contratos celebrados entre as partes consistiram na manutenção simples dos elevadores e estava excluído do seu objecto a reparação e/ou substituição de componentes defeituosos (cláusula 5.1.1.1.) – cfr. docs. 1 a 4 da PI;
– A maior parte das avarias verificadas nos elevadores do réu resultou do desgaste das fechaduras das portas de patamar dos elevadores do réu – cfr. orçamentos apresentados pela autora, depoimentos de V e P;
– A autora respondeu a todas as avarias que lhe foram comunicadas – cfr. facto provado n.º 11;
– A autora já havia apresentado 5 orçamentos para a reparação das fechaduras das portas de patamar dos elevadores do réu, sendo certo que o réu apenas adjudicou metade de um orçamento, para o elevador que havia ficado parado por se ter partido a fechadura de encravamento, cfr. docs. n.ºs 8 a 12, depoimentos do legal representante do réu, de V e P;
– O réu assume ter recebido os orçamentos para reparação daqueles componentes, mas alega que tinham por finalidade responder “apenas” a “eventuais avarias”, cfr. depoimento do legal representante do réu.
– Em 2011, os elevadores do réu tinham cerca de 30 anos de utilização, cfr. depoimento de M, condómino do réu;
– À data da resolução do contrato pelo réu (Setembro de 2012), todos os elevadores estavam devidamente inspeccionados e certificados, cfr. factos provados n.ºs 21 e 22;
– Em 2010, houve a necessidade de efectuar a reinspecção a 3 dos 8 elevadores do réu, sendo certo que a entidade inspectora deu o prazo de 90 dias para a correcção daquelas anomalias – cfr. Docs. n.ºs 13 a 15 da PI;
– Em 2 elevadores, a anomalia verificada pode acontecer de forma súbita, a todo o tempo, até mesmo no dia da inspecção ou mesmo posteriormente, sendo corrigível a qualquer momento – cfr. docs. n.ºs 13 e 15 da PI e facto provado n.º 18;
– O réu não fundamentou a resolução dos contratos com base na reinspecção de três dos seus oito elevadores – o Tribunal a quo considerou, aliás, que a autora procedeu aos deveres de manutenção e reparação entre 2008 e 2011 – até porque entre a necessidade de reinspecção dos três elevadores e a resolução do contrato distaram aproximadamente 2 anos – cfr. facto provado n.º 34.
UU. Apurar se a resposta a avarias pela autora era ou não defeituosa equivale a matéria cujo ónus da prova recaía sobre o réu e este manifestamente não a fez, cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/03/2004, 0431239, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, 209/06.3TVPRT.P1.S1, ambos da base de dados do IGFEJ.
VV. O réu não invocou nem provou que a autora pudesse ter reparado as avarias sem a colocação de novas peças, nem invocou, nem provou, que as avarias nos seus elevadores fossem resultantes de uma má manutenção dos elevadores.
[…]
XX. O Tribunal a quo refere que “a autora peticiona ainda o pagamento de uma factura devida por um serviço prestado e não pago” acabando, bem, por condenar o réu no pagamento da factura peticionada no valor de 444,52€ (Doc. n.º 20 da PI).
YY. Sucede, porém, que a autora peticionou a condenação do réu no pagamento de 3 facturas de reparação e não apenas de 1, já que as facturas juntas como docs. n.º22 e 26 da PI também se reportam a serviços prestados e não pagos pelo réu.
ZZ. Ao não decidir sobre esta questão, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 608/2 do CPC.
AAA. Sendo certo que também sobre estas facturas “o réu não logrou fazer prova de que o serviço facturado não tivesse sido prestado”, deve o réu ser condenado igualmente no pagamento das facturas xxx – 11,69€ – e xxx – 157,93€ -, acrescidas dos respectivos de mora desde o seu vencimento – 27/10/2012 e 15/11/2012, respectivamente.
BBB. A decisão recorrida violou, ainda o disposto nos arts 763, 802/1 e 2 e 1170/2, todos do Código Civil.
O réu contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada no sentido pretendido pela autora; se não se justificava a resolução do contrato pelo réu; se o réu também devia ter sido condenado por outras duas facturas.
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[…]
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Do recurso sobre matéria de direito
As razões da quase total improcedência da acção
A sentença – tendo em conta que a autora se comprometeu a assegurar a manutenção dos elevadores do réu, mais concretamente, a fornecer o mais alto nível de segurança e capacidade de resposta, assegurando a fiabilidade do equipamento em serviço e uma rápida resposta a avarias e a pedidos de reparações e que, apesar disso, (i) só em 2011 a autora teve que ser chamada 68 vezes para intervir nos elevadores, em 4 das ocasiões duas vezes no mesmo dia, ficando os condóminos, durante o período de tempo que está em causa, privados da possibilidade de utilizar os elevadores; (ii) três [mas já se viu que são cinco] dos elevadores não foram aprovados numa inspecção, tendo o réu tido que suportar as despesas com a reinspecção que aprovou os elevadores; (iii) na assembleia de condóminos de 27/01/2012 a autora comprometeu-se a quatro acções para solucionar os problemas, das quais apenas realizou uma – considerou que a autora cumpriu defeituosamente a obrigação contratual assumida para com o réu, isto é, que a prestou com vícios e defeitos que impedem o preenchimento do interesse deste, por violação do princípio da boa fé e de deveres acessórios de conduta, ou impedem o cumprimento do programa contratual, causando-lhe, com culpa presumida (presunção que não foi ilidida pela autora), danos (arts. 406/1, 762, 763, 799, todos do CC), o que deu ao réu o direito de resolver, como resolveu, o contrato (art. 801/2 do CC), pelo que a autora já não lhe pode exigir as prestações que se venceriam depois da resolução, como o fez a título de cláusula penal.
Das argumentação da autora
A autora entende que não se provou o cumprimento defeituoso da sua obrigação e isso porque:
– os contratos celebrados entre a autora e o réu eram de manutenção estando excluído do seu objecto a substituição ou reparação de componentes defeituosos (cláusula 5.1.1.1), ora, diz a autora, a sentença olvida que a causa das avarias teve origem no sistema das fechaduras de encravamento das portas de patamar e que a autora apresentou orçamentos para a sua reparação, pelo que a autora não pode ser responsabilizada pela ocorrência sucessiva dessas avarias, quando já apresentou orçamentos para a sua correcção e o réu não os adjudicou (conclusões b) a e) e i));
Esta argumentação da autora, no início do recurso, parte do princípio que o facto invocado por ela está provado, esquecendo que ele não foi dado como provado e que mais à frente a autora o vai tentar provar, sabendo-se agora que sem o conseguir. Dito de outro modo, esta argumentação está baseada em factos não provados, como resulta expressamente da conclusão TT), onde a autora descreve os factos em que baseia a sua tese, incluindo aqueles que constam dos travessões 2 e 5, como se eles estivessem provados. Mas não estão.
– depois a autora queixa-se de que o tribunal a quo apesar de ter indicado como tema da prova “saber se a causa das avarias nos elevadores se deveu a má utilização pelos utentes, pelo decurso do tempo (desgaste) ou pela falta ou ineficácia das reparações”, não oferece resposta a este tema da prova (conclusão f)).
Esta argumentação da autora esquece que aquilo que se tem de provar – aquilo sobre que o tribunal se tem de pronunciar – são factos e não sobre temas de prova.
Como diz Lebre de Freitas, a propósito dos temas de prova (ponto 13.2.3. Identificação do objecto do litígio e enumeração dos temas da prova, da Acção declarativa, 3ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 197): “Com isto, a prova não deixa de incidir sobre os factos concretos que o autor alegou como constitutivos do seu direito, tal como plasmados nos articulados (petição, réplica, articulado superveniente), bem como sobre os factos probatórios de onde se deduza, ou não, a ocorrência desses factos principais e sobre os factos acessórios que permitam ou vedem esta dedução, uns e outros denominados no art. 5-2-b como factos instrumentais. Nesta medida, a norma geral do art. 410 (“A instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”) não é rigorosa, como aliás resulta das normas, também gerais, dos arts. 412 (factos que não carecem de prova) e 420-1 (factos sobre que a prova antecipada há-de recair) e das normas especiais, entre outras, dos arts. 452 e 454 (depoimento de parte sobre factos), 466 (declarações de parte sobre factos), 475 e 487-3 (factos ou questões de facto objecto da perícia), 495-1 (factos que constituem objecto da prova testemunhal) e 503-3 (factos sobre os quais incide o depoimento), bem como das normas de direito material contidas no Código Civil (maxime, as normas gerais dos arts. 341 CC e 347 CC).”
– por fim, nas conclusões g), h), tt), uu) e parte de vv), a autora diz que cabia ao réu provar o cumprimento defeituoso da obrigação, o que este não o fez, entendendo a autora que essa prova seria a de que as avarias resultaram de uma incorrecta ou insuficiente manutenção, ou, nos termos da outra parte da conclusão VV), que o réu teria de provar que a autora podia ter reparado as avarias sem a colocação de novas peças.
E é esta, de facto, uma das sub questões principais: está ou não provado o incumprimento defeituoso da obrigação?
Do cumprimento defeituoso
Na formulação de Baptista Machado, “por cumprimento inexacto deve entender-se todo aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé.” (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, pág. 386). Ou, na formulação de Brandão Proença, o cumprimento defeituoso “resulta da violação dos princípios fundamentais que regem o cumprimento, ou seja, a boa fé, a pontualidade e a integralidade, traduzindo-se na execução de prestações qualitativas e quantitativas diversas das estipuladas ou na inobservância dos chamados deveres laterais.” (Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra editora, 2011, págs. 354/355). Ou ainda, na versão de Menezes Leitão, o incumprimento defeituoso da obrigação é a realização da prestação de forma que “não corresponde integralmente à obrigação a que o devedor se vinculou, não permitindo assim a satisfação adequada do interesse do credor. É o caso, por exemplo, de alguém […] prestar um serviço em termos inadequados” (Dtº das obrigações, 2º vol, 2014, Almedina, 9ª edição, págs. 259/260). Na “execução defeituosa o devedor realiza a totalidade da prestação (ou parte dela) mas cumpre mal, sem ser nas condições devidas” (Pessoa Jorge, citado através de Brandão Proença, obra citada, págs. 138/139).
Do ónus da prova
O ónus da prova do cumprimento defeituoso cabe ao credor da prestação (art. 342/1 do CC), mas esse ónus não inclui também o de provar as causas do defeito, nem os motivos do aparecimento do defeito (parafraseou-se Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Teses, 1994, pág. 359), isto é, e parafraseando Cura Mariano (Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, Almedina, 2004, pág. 58) basta-se com a demonstração do mau comportamento, não sendo necesária a prova da causa do mesmo.
Por outro lado, é ao devedor da prestação que cabe a prova de não ter culpa (art. 799/1 do CC), isto é, é ele que terá de provar que o cumprimento defeituoso “não procede de culpa sua.” (Menezes Leitão, obra citada, pág. 262), ou dito de outro modo, que “o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, designadamente a má utilização que este tenha feito do bem” (Romano Martinez, obra citada, pág. 361). Como diz Cura Mariano (obra citada, pág. 58), “o estabelecimento desta presunção [de culpa] resulta do facto de, sendo a culpa, segundo as regras da experiência, normalmente inerente ao incumprimento contratual, deve competir ao devedor provar a verificação da situação anormal de ausência de culpa. Além disso, sendo o devedor quem controla e dirige a execução da prestação tem maior facilidade de conhecer e demonstrar a causa da verificação do incumprimento.” Por fim, o devedor pode “afastar a responsabilidade derivada do cumprimento defeituoso se fizer[…] a prova da existência de uma causa estranha que tenha estado na origem do defeito” (Romano Martinez, obra citada, pág. 362). Neste sentido, também, com desenvolvimento, José Lebre de Freitas, O ónus da denúncia do defeito da empreitada no artigo 1225 do Código Civil. O facto e o direito na interpretação dos documentos, O Direito, 1999, pág. 231, especialmente págs. 239 a 244.
Ora, tendo isto presente, não há dúvida de que as obrigações que a autora assumiu no contrato, de acordo aliás com o disposto no art. 5/1a) do DL 320/2002, de 28/12, e no seu anexo II, parte A), que se podem sintetizar nos termos do ponto 6 dos factos provados – a xxx compromete-se a fornecer o mais alto nível de segurança e capacidade de resposta, assegurando: § fiabilidade do equipamento em serviço; § rápida resposta a avarias e a pedidos de reparações; § comunicação e apoio técnico – não foram cumpridas pela autora de forma minimamente satisfatória para o réu, isto é, para os condóminos.
Tendo-se os contratos iniciado em Abril de 2008, em Dez2010, quando uma entidade terceira fez inspecção aos elevadores, 5 deles estavam com avarias que tinham que ser corrigidas. 5 e não 3 como quer a autora e como a sentença disse por engano (estão em causa três avisos de reinspecção, respeitante a três dos quatro contratos, sendo que apenas num se especifica que diz respeito só a um elevador. Logo, 3 x 2 – 1 = 5). É certo que depois a autora faz as reparações necessárias e os elevadores não chegam a parar por causa daquelas inspecções, mas é um facto que aponta para uma má manutenção dos elevadores. Depois, durante 2011, a autora tem que se chamada 68 vezes, para reparar avarias dos elevadores. Sendo 8 elevadores, compreender-se-ia que a autora lá tivesse que ir, já com algum exagero, umas 3 vezes por ano para cada um, o que daria 24 vezes. Ora, ela teve que lá ir 68 vezes, quase 3 vezes mais, sendo que algumas dessas reparações tinham carácter urgente, designadamente nos elevadores que se encontravam avariados, impossibilitando os moradores e outros utilizadores de acederem àqueles equipamentos (facto 9). Por fim, em Janeiro de 2012 a autora vai à assembleia de condóminos reconhecer que está a prestar um mau serviço de manutenção, propondo-se, de modo a evitar a resolução do contrato, resolver os problemas com uma série de medidas (4), só cumprindo, subsequentemente, uma delas.
A autora diz que apresentou orçamentos para substituição de peças (3 em Agosto de 2009), que não estavam abrangidas pelos contratos de manutenção celebrados, e tenta provar que foi o facto de não ter sido feita esta substituição que provocou as avarias subsequentes, mas não fez minimamente essa prova. Note-se entretanto que cada um dos 3 orçamentos de 2009, de pré-inspecção, são de valores quase 10 vezes mais elevados do que os valores apresentados para reparação em 2 deles (em fins de 2011 e começos de 2012), e que tendo sido apresentados em Agosto de 2009 não se demonstrou a necessidade da sua realização para a aprovação subsequente à inspecção de Dez2010, o que indicia que se tratava de substituições não necessárias para as avarias em causa, o que de algum modo torna compreensível que o réu não tenha adjudicado aqueles três orçamentos. Seja como for, o ponto que importa é que a autora não fez a prova de que tenha sido a falta de substituição daquelas peças que tenha dado origem às múltiplas avarias em 2011.
Aliás, a autora na petição tentava imputar as avarias à má utilização dos elevadores pelos condóminos, mas não fez nenhuma prova disso, o que seria fácil de fazer tendo em conta que dos contratos constava que os defeitos derivados da má utilização dos elevadores eram da responsabilidade do condomínio e que por isso a sua reparação seria custeada à parte. Ora, não há prova de qualquer serviço facturado à parte, o que indicia que as avarias não resultavam também da má utilização dos equipamentos, com que a autora se tentou desculpar ou justificar.
Em suma, o réu cumpriu com o ónus que lhe incumbia de provar o cumprimento defeituoso da prestação, enquanto a autora não cumpriu o ónus de provar que o cumprimento defeituoso não procedia de culpa sua.
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Das consequências do incumprimento defeituoso
O cumprimento defeituoso da obrigação não tem, regra geral, autonomia como fundamento resolutivo – acabando por se reconduzir a uma mora ou por se converter num incumprimento definitivo -, relevando apenas como causa de danos específicos que devem ser indemnizados. No entanto, nos contratos que dão origem a relações contratuais duradouras, ele pode funcionar como fundamento resolutivo se, face a ele, o credor tiver razões para temer que o devedor vá continuar a realizar a prestação mal, sem respeito pelos interesses do credor e por aquilo a que se obrigou (ver, desenvolvidamente, Baptista Machado, obra citada, designadamente nas págs. 348 a 350 e 356 a 363).
Assim, por exemplo, no caso do contrato de mandato, decorre dos arts. 1170 e 1172 do Código Civil que o mandato pode ser revogado a todo o tempo se para isso o mandante tiver justa causa e, nesse caso, este nunca terá de pagar qualquer indemnização (como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 814: “A obrigação de indemnizar é, porém, afastada sempre que haja justa causa para a revogação. Seria de facto intolerável que o contraente provocasse pela sua conduta a revogação e ainda por cima obtivesse a indemnização pelo prejuízo que alegue ter sofrido.”). E a justa causa poderá ser, precisamente, a quebra de confiança no comportamento futuro do mandatário face ao comportamento anterior dele que será, em regra, a execução defeituosa do mandato.
O conceito de “justa causa”, como diz ainda Baptista Machado (obra citada, págs. 356/363), é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto. Será uma “justa causa” ou um “fundamento importante” qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa) […]”.
Ora, o caso dos autos é um contrato de prestação de serviços (art. 1154 do CC) não regulada especialmente por lei (o DL 320/2002, de 28/12, prevê os contratos de manutenção dos elevadores, quer simples quer completa – vejam-se os arts. 5 do DL e o anexo II do mesmo DL – mas não os regula especificamente, excepto quanto ao conteúdo mínimo das obrigações de manutenção e de beneficiação) e a que são, por isso, aplicáveis as disposições do mandato, com as necessárias adaptações (art. 1156 do CC). O que, aliás, é aceite por ambas as partes (na petição e na contestação).
E já se viu que o cumprimento defeituoso da prestação por parte da autora era de molde a fazer crer ao réu que a autora ia continuar a cumprir defeituosamente a prestação, tanto que, depois da autora assumir o mau cumprimento e a obrigação de o corrigir num período de tempo que lhe foi dado para o efeito, no essencial não fez nada para melhorar a situação. Ou seja, aquele período de tempo quase que funcionou como interpelação admonitória com fixação de prazo, tornando compreensível que o tribunal recorrido tenha visto nele como que um incumprimento definitivo atributivo do direito de resolução. Mas aqui, neste acórdão, entende-se que o mesmo funciona antes como “inadimplemento de valor sintomático” fundamentador, como justa causa (e por isso sem direito a indemnização), da resolução do contrato de prestação de serviços de execução duradora (arts. 1154, 1156, 1170 e 1172, todos do CC). Fundamentação de direito esta que o réu já invocava expressamente na contestação e por isso a autora já teve oportunidade de pôr em causa. Mas a própria autora colocava a questão nestes termos (sendo ela mesma que invocava os arts. 1154, 1156, 1170 e 1172 do CC, considerando que se tratava de um contrato de prestação de serviços), embora negando que o réu tivesse justa causa para a resolução do contrato.
Como diz Baptista Machado, “[a] gravidade do inadimplemento, sobretudo nas relações contratuais duradouras, pode aumentar também com a repetição do mesmo tipo de inadimplemento ou da mesma falta contratual. Assim, num contrato de fornecimento, o reiterado fornecimento de produtos de qualidade inferior à prevista agrava o inadimplemento a ponto de, mesmo sendo pequeno o desvio qualitativo, poder fundamentar eventualmente um direito de resolução. […] Por último importa referir que, naqueles casos em que o inadimplemento tem um valor sintomático, não será tanto a gravidade do inadimplemento em si mesmo que terá relevância, mas o seu significado no que respeita à confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor.” (obra citada, pág. 350). Ou como diz Brandão Proença, O cumprimento defeituoso da obrigação pode dar origem à resolução do contrato quando esta se concretize em “incumprimentos turbadores em relações contratuais duradouras, ou seja, abalando a ‘confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor’” (Brandão Proença, obra citada, págs. 359/360, sendo a parte final uma citação de Baptista Machado).
Por fim, a autora diz (último travessão da conclusão TT)) que o réu na carta de resolução não a fundamentou na reinspecção de três dos seus oito elevadores, até porque entre a necessidade de reinspecção dos três elevadores e a resolução do contrato distaram aproximadamente 2 anos, mas também sem razão, já que a questão das reinspecções dos elevadores consta da carta, quando se fala nas despesas desnecessárias com elas, tudo a caracterizar a má prestação dos serviços de manutenção.
Em suma: justificava-se a resolução do contrato de prestação de serviços por justa causa e por isso sem direito a indemnização.
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Da falta de pronúncia quanto a outras duas facturas
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, alterando-se a condenação do réu para o valor de 602,45€, acrescidos de juros de mora vencidos desde 24/07/2014 e vincendos, até efectivo e integral pagamento e absolvendo-o do resto.
Custas do recurso pela autora em 98,2% e pelo réu em 1,8%. Valor do recurso: 8590,90€.
Custas da acção pela autora em 93,33% e pelo réu em 6,67%. Valor da acção: 9035,42€.
Porto, 26/11/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto