Acção 91/11.9TBBAO de Penafiel – Secção Cível – J1

              Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            B, Lda, intentou contra J, a presente acção pedindo que: (a) se declare anulado um contrato de compra e venda, declarando-se ainda que, em virtude dessa anulação, cada uma das partes deve restituir à outra o que dela recebeu; (b) se condene o réu a restituir à autora 28.000€, acrescida dos juros vencidos desde o termo de Setembro de 2005, que montam a 5972,40€, até ao efectivo pagamento, liquidando-se os vincendos no final; (c) se condene o réu a pagar à autora 40.000€, a título de indemnização, pelos danos causados ao seu bom nome.

            Para tanto, e em resumo, alega que comprou ao réu um veículo automóvel, sendo que esse automóvel apresentava no conta-quilómetros quilometragem inferior à real, o que o réu bem sabia, sendo esse facto essencial para que a autora comprasse o veículo ao réu. A autora vendeu o veículo, sem saber que os quilómetros haviam sido alterados e, por ter sido demandada judicialmente pelos comprados, foi anulada a compra e venda operada pela autora a esses terceiros, tendo sido a autora condenada a restituir-lhes o preço. A anulação da venda causou danos na imagem da autora.

            O réu contestou impugnando os factos alegados pela autora.

            (nestes dois últimos §§ utilizou-se o relatório feito pelo tribunal recorrido)

            Depois de realizado o julgamento, foi proferido um despacho no qual se deu conhecimento às partes de que o tribunal entendia que se poderia perspectivar a redução do negócio jurídico em discussão – arts. 913 e 911 do Código Civil – e se lhes concedeu oportunidade de se pronunciarem quanto ao referido enquadramento jurídico, para se evitarem decisões surpresa.

            Decorrido o prazo concedido, sem que alguma das partes se tenha pronunciado sobre a questão, foi então proferida sentença em que se decidiu reconhecer à autora o direito a ver reduzido o preço do contrato de compra e venda celebrado com o réu, em 20/12/2004, relativo ao veículo automóvel Mercedes-Benz, modelo C200 CDI, matrícula xx-xx-xx, para o valor de 17.500€; ii) considerando o preço originário do negócio, 28.000€, condenou o réu a entregar à autora 10.500€, acrescidos de juros de mora contados desde o eventual trânsito em julgado desta decisão até efectivo e integral pagamento; e iii) absolveu o réu de tudo o mais quanto foi peticionado pela autora.

            O réu recorreu desta sentença, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:        

        1ª – Os factos provados sob os n.ºs 15 e 16 da sentença recorrida encontram-se incorrectamente julgados, e devem ser considerados não provados.

         2ª – Os alegados factos não podem ser dados como provados pelo simples funcionamento da presunção que decorre das regras da experiência comum, alegada pela sentença como único meio para prova dos mesmos, porque o facto indiciário, não implica, lógica e necessariamente, os factos presumidos.

         3ª – De resto, a sentença não demonstrou essa relação de logicidade, necessidade ou vinculatividade entre o facto indiciário e os factos presumidos, por forma a que a conclusão extraída da presunção o possa ser com as segurança e certeza necessárias. A sentença recorrida violou o disposto no art. 351 [do CC].

         4ª – Também o facto vertido no n.º 19 do elenco dos factos provados se encontra incorrectamente julgado, devendo ser considerado como não provado.

         5ª – Os guias do Eurotax n.ºs 10/2004 e 12/2004, juntos aos autos em audiência de julgamento, o depoimento da testemunha AM (gravado através de sistema integrado digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido – sobretudo desde os minutos 07:00 até 14:50) e o depoimento da testemunha JS (também gravado no sistema integrado digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido – sobretudo desde os minutos 12:30 até aos minutos 22:50) impunham que esse ponto da matéria de facto fosse considerado como não provado.

         6ª – O próprio depoimento da testemunha JP (também ele gravado no sistema digital – na parte dele registado entre os minutos 04:15 a 23:00 – nomeadamente dos minutos 10:50 a 13:50) inculca no sentido de o facto aqui impugnado ser dado como não provado. Trata-se de um depoimento pouco assertivo, pouco fundamentado, pouco seguro e, sobretudo, inconsequente, ora afirmando um facto, ora afirmando o seu contrário, com a mesma convicção aparente.

         7ª – Os factos constantes dos n.ºs 41, 42 e 47 do ponto 7 dos factos provados, bem como os factos alegados nos arts 23 a 32 da contestação apresentada pela aqui autora no Proc. n.º 183/05.3TB…, também eles impunham que o facto impugnado fosse dado como não provado.

         8ª – Os factos vertidos nos n.ºs 20 e 21 do elenco dos factos provados também se encontram incorrectamente julgados, devendo ser considerados não provados.

         9ª – A presunção usada pela sentença para os dar como provados também não pode operar aqui, pois entre o facto indiciário e os factos presumidos não ocorre qualquer nexo lógico-causal que convença de que do facto indiciário se possam extrair lógica e necessariamente os factos presumidos, com a segurança e certeza exigíveis a uma sentença judicial. Esta, de resto, também neste trecho se demitiu de demonstrar fundamentadamente a relação de logicidade, necessidade, vinculatividade ou causalidade entre o facto indiciário e os factos presumidos.

         10ª – De resto, o facto vertido no n.º 21 é de cariz conclusivo e, se não for considerado não provado, deve ser declarado não escrito. Ainda a esta luz a sentença recorrida viola o disposto no art. 351 por mau uso das presunções judiciais.

         11ª – A presente acção foi proposta com base em erro gerador da anulabilidade do negócio, mais propriamente uma actuação de carácter doloso do réu, sendo o pedido formulado o de anulação do contrato, com as consequências de cada parte ser condenada a restituir à outra o que dela recebeu.

         12ª – A sentença, por sua vez, decidiu reduzir o preço do negócio, conforme dela consta.

         13ª – A sentença padece das nulidades previstas: i) na 1ª parte, al. d) do n.º 1 do art. 615; ii) na 2ª parte, al. d) do n.º 1 do art. 615; iii) na al. e) do n.º 1 do art. 615, todos do CPC. Estas nulidades só podem ser arguidas perante o TRP, por a sentença admitir recurso ordinário.

         Sem prescindir:

         14ª – O dolo só é relevante como causa de anulabilidade do negócio quando seja causa de erro e este, por seu turno, seja determinante do negócio. Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa do declaratário – dupla causalidade.

         15ª – A sentença em recurso reconhece, ela mesma, ser evidente que se não mostram verificados os requisitos do dolo relevante, desde logo por não ter ficado demonstrado que o réu soubesse, aquando da venda, que o veículo tinha quilometragem diferente da real. A sentença violou, por isso, o disposto no art. 254/1, devendo ser revogada.

         16ª – Afigura-se que se é certo que não houve erro essencial, também é certo que não se verificou erro incidental, pois não foram alegados nem provados factos de onde pudesse o tribunal retirar a ilação de que o comprador aceitaria negociar por preço mais baixo – mais precisamente pagar o preço de 17.500€ – pois que a autora nunca peticionou ao tribunal a redução do preço nem demonstrou, por factos, que pretendia ficar com o veículo e por que preço quereria ficar com ele.

         17ª – Nunca foi declarada a anulabilidade do negócio – mesmo que apenas na parte referente ao preço – e constituindo aquela pressuposto fundamental para que pudesse operar-se a redução do preço, a sentença recorrida deve ser revogada, por violação do disposto no art. 251.

         18ª – Mesmo que se admita – sem conceder – que tivesse havido erro da compradora sobre o objecto do negócio, ele só é relevante nos termos do art. 247, o que implica não só a sua essencialidade, como também que o declaratário conheça a essencialidade para o declarante do motivo sobre que recai o erro ou, não conhecendo essa essencialidade, não a devesse, contudo, ignorar.

         19ª – A qualidade só é essencial quando se prove que ela se mostra decisiva para a celebração do negócio, tendo em vista a finalidade económica ou jurídica deste.

         20º – Provou-se, como refere a sentença, que a qualidade de o veículo ter percorrido apenas 82.000 km não só não foi essencial para a celebração do negócio pela compradora, como nem sequer entrou ela no programa negocial entre as partes. E também se não provou que o réu não devesse ignorar a essencialidade dos motivos da autora. E, assim, não se verificam os requisitos do art. 247, pelo que, ainda a esta luz, deve a sentença ser revogada, por violação daquele normativo.

         Ainda sem prescindir:

         21ª – No domínio do incumprimento ou do cumprimento defeituoso tem cabal aplicação o regime geral do ónus da prova previsto no art. 342, cabendo ao comprador o ónus da prova do defeito e da respectiva gravidade de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa.

         22ª – Provou-se que o réu não sabia, à data da venda, que a quilometragem ostentada pelo conta-quilómetros do veículo não era real. E não se provou – nem foi alegado pela autora – que o vendedor tenha garantido que o veículo só tenha percorrido os 82.000km e que se tenha responsabilizado por essa quilometragem.

         23ª – Também se não provou que o veículo em causa tivesse sido inidóneo para cumprir as funções normais de um veículo automóvel, pois C com ele circula desde Janeiro de 2005 sem que tenha sido trazida aos autos notícia de qualquer avaria ou circunstância concreta de ordem mecânica que impeçam ou dificultem a sua circulação. A sentença recorrida violou, por isso, o disposto nos arts. 913 e 911.

         24ª – Por outro lado, a sentença ao fixar o valor do veículo em 17.500€ e ao condenar o réu a entregar à autora 10.500€, violou o disposto nos arts. 1222/2, 884, e 911/1, merecendo ser revogada.

         25ª – Tendo-se provado que o vendedor não usou de dolo, cabia ao comprador o ónus de comprovar o cumprimento do seu dever de denúncia do vício, bem como o de demonstrar – pela alegação e prova – os factos que atestem ter cumprido o ónus de propor a acção no prazo do art. 917, ónus esses que constituem pressupostos positivos da própria acção.

         26ª – Como a autora não demonstrou ter cumprido esses seus ónus, que são de verificação cumulativa, deve a mesma improceder por caducidade de todos os direitos conferidos ao comprador, sendo que a caducidade é de conhecimento oficioso, por se tratar de uma caducidade legal e só a caducidade convencional estar vedada ao conhecimento oficioso. A sentença recorrida, ainda a esta luz, deve ser revogada por violação dos arts. 333, 1222/2, 884, 911/1.

            A autora também recorreu da sentença e terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

  1. A autora foi demandada no proc. 183/05.3TB…, que correu seus termos no Tribunal Judicial de …, em acção intentada por C e mulher, com base no facto de a estes ter vendido o veiculo automóvel matricula xx-xx-xx, o qual, marcando, no seu conta-quilómetros, cerca de 82.000km percorridos, tinha percorrido, pelo menos, mais 56.410km. Por sentença de 01/09/2010, proferida nesse processo, o contrato foi anulado e a autora foi condenada a pagar aos casal 31.500€, acrescidos de juros legais a contar da citação.
  2. Por ter comprado o ajuizado veiculo ao réu, com a menção no conta-quilómetros dos mesmos cerca de 82.000km percorridos, a autora, no processo acima referido, requereu a intervenção acessória provocada do réu nesse processo, a qual foi deferida, e em cujo processo o réu se defendeu em articulado próprio, e em audiência de discussão e julgamento, tendo por isso sido notificado, oportunamente, da sentença proferida, da qual não recorreu – tal como a autora.
  3. Tanto na acção atrás referida, como na presente acção, o réu alegou que comprou o veículo a uma sociedade, e que o mesmo, quando o comprou, tinha 79.000km, tendo assim percorrido, na sua mão, cerca de 3000km.
  4. Se as coisas fossem como o réu alegou, no anterior e neste processo, a falsificação do conta-quilómetros do automóvel seria imputável a quem lho vendeu. A ser assim, e tal como foi pedida a sua intervenção no processo anterior, ele poderia ter requerido – chamando-a ao processo – a intervenção da sociedade que lhe vendeu essa viatura, para que esta respondesse pelo dano que lhe provocou.
  5. O réu não requereu a intervenção da sociedade que lhe vendeu o veículo. Por isso, só ele responde pelo dano que causou à autora, e que é equivalente ao valor por que esta lhe comprou o veículo, acrescido dos juros legais.
  6. O réu não podia ter sido condenado apenas nos termos constantes da sentença recorrida, mas sim nos termos peticionados na alínea b) do pedido formulado, pois foi nisso que, por efeito da autoridade do caso julgado, o réu foi condenado como causador da anulação de negócio, tendo por isso o dever de ressarcir a autora, com base no direito de regresso de que ele é o correlativo devedor.
  7. A sentença recorrida, nesta parte, violou o disposto nos arts. 673, 332/4 e 341, in corpo, do CPC de 1961, e arts. 621, 323/4 e 332, in corpo, do CPC em vigor. Por isso, e nesta parte, a sentença recorrida deve ser revogada, condenando-se o réu no pedido formulado na alínea b) da petição.
  8. O tribunal também, não podia ter absolvido o réu do pedido formulado na alínea c) da petição, pois provaram-se factos suficientes para que esse pedido procedesse, ou pelo menos, que só ficasse o montante da indemnização para liquidar em execução de sentença.
  9. Os factos que justificam essa condenação são os constantes dos pontos 11, 12 e 14 a 25 dos factos julgados provados, e os factos das alíneas i) a viii) dos factos julgados não provados, visto que estes devem ser julgados provados, com base na prova produzida, e até com base no facto do réu, que foi chamado na acção referida no ponto 5 dos factos provados e foi demandado na presente, daquela não ter interposto recurso, e em ambas nunca ter chamado a demandada a sociedade a quem diz ter comprado o veiculo.
  10. A alteração dos factos julgados não provados para provados deve ser feita por força do disposto no art. 662/1 do CPC.
  11. E a condenação do réu no pedido da alínea c) deverá ser proferida por força do disposto nos arts. 798, 799, 562, 564, 566 e 569 do CC.

            Nenhuma das partes apresentou contra-alegações.

            O tribunal recorrido pronunciou-se quanto às nulidades da sentença invocada pelo réu, defendendo que as mesmas não se verificavam.

                                                      *

            Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto, quer tendo em conta a impugnação da autora quer a do réu; se se verificam as nulidades da sentença invocadas pelo réu; se o preço não podia ter sido reduzido; se o contrato de compra e venda devia ter sido anulado; e se o réu também devia ter sido condenado na indemnização dos danos não patrimoniais invocados.

                                                      *

            Factos provados (que se transcrevem com algumas simplificações e evitando-se algumas repetições; colocam-se por ordem cronológica, mas mantem-se a numeração dos factos que vem da sentença recorrida para compreensão das alegações e da fundamentação da convicção [e já com as alterações decorrentes da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto]):

         1.º A autora dedica-se ao comércio de automóveis, com fins lucrativos.

         2.º O réu dedica-se ao comércio de automóveis usados, com fins lucrativos.

         3.º No exercício da sua actividade comercial, em 20/12/2004, o réu declarou vender à autora, e esta declarou comprar para revenda no seu comércio, o Mercedes-Benz, modelo C200 CDI, matrícula xx-xx-xx, pelo preço de 28.000€.

         12.º No acto referido em 3, o réu declarou à autora que o veículo ali descrito apresentava uma quilometragem de cerca de 82000 quilómetros.

         15.º O réu não podia ignorar que, ao dar a garantia referida em 4, provocava a convicção na autora que o veículo descrito em 3, apenas tinha percorrido cerca de 82.000 km [face ao que será decidido abaixo, a parte rasurada é substituída pelo seguinte: ‘ao fazer a declaração referida em 12’].

         16.º A autora ficou convencida que o veículo apenas havia percorrido o número de quilómetros descrito em 12.

         17.º O valor de um Mercedes-Benz, com o modelo referido em 3, com pouco mais de 2 anos após o fabrico e com pouco mais de 80.000 tem um valor superior a igual veículo, com igual tempo de fabrico, com 138.410 km.

         18.º O que o réu não ignorava.

         19.º Um Mercedes-Benz, com características idênticas ao descrito na alínea 3 e com 138.410 km, tinha em Dezembro de 2004, um valor de cerca de 17.500€.

         20.º A autora nunca aceitaria pagar o valor referido em 3 se tivesse conhecimento que o veículo referido tinha 138.410 km.

         21.º O réu não ignorava que o número de 82.000km, que constava do conta-quilómetros do veículo descrito em 3, na data de 30/12/2004, determinou a autora a comprar o mesmo veículo pelo preço de 28.000€.

         13.º Em Janeiro de 2005, a autora declarou vender o veículo descrito em 3 a C, e este declarou comprar o mesmo veículo, pelo preço de 30.925,47€.

       14.º Na altura da entrega do veículo ao comprador C, o veículo registava, no seu conta-quilómetros, ter percorrido cerca de 82.000 km.

         11.º Com data de 18/04/2005, o réu subscreveu, nele apondo a sua assinatura, o escrito de folhas 16, intitulado Declaração com o seguinte teor: declara, sob compromisso de honra, sem quaisquer reservas e para todos os devidos e legais efeitos, ter procedido, no dia 20/12/2004, à venda de um veículo automóvel… à B… pelo preço de 28.000€, importância que recebeu desta, da qual lhe dá a correspondente quitação. Mais declara que, à data da referida venda à B, o veículo apresentava uma quilometragem de cerca de 82.000 km. Por ser verdade e corresponder à sua vontade, vai a presente declaração ser datada e assinada, em sinal de plena e total concordância com o seu teor. X, 18/04/2005.

    4.º Em 05/09/2005, o adquirente do veículo 3, C, e sua mulher, intentaram uma acção contra a autora, na qual pediram a anulação do contrato de compra e venda desse veículo à autora, com base no alegado facto do veículo, à data do negócio, ter percorrido muitos mais quilómetros que os indicados no respectivo mostrador (conta-quilómetros).

   5.º Essa acção correu seus termos nos autos do processo nº 183/05.3TB… do Tribunal Judicial de ….

         6.º A autora foi citada para os termos dessa acção, tendo apresentado a sua contestação, na qual requereu a intervenção do ora réu, que nela interveio e apresentou a sua contestação.

        7.º Na sentença proferida nesse processo foram provados os factos seguintes:

1. Encontra-se inscrita na Conservatória…, a sociedade comercial B…, com o objecto social de comércio de automóveis;

2. É sócio e gerente da referida sociedade A;

3. A propriedade do veículo automóvel de matrícula xx-xx-xx encontra-se registada na Conservatória a favor de J.

4. Em Dezembro, a B… declarou comprar e J declarou vender o veículo xx-xx-xx.

5. Aquando do referido em 4, o veículo já apresentava cerca de 82000 Km no conta-quilómetros.

6. No exercício da sua actividade comercial, e no início de Janeiro de 2005, a B… declarou vender aos autores e estes declararam comprar o veículo […] do ano de fabrico de 2002 […] xx-xx-xx.

7. Pelo preço de 31.500€.

8. Para pagamento de parte do preço, os autores entregaram à B… o veículo x, com a matrícula xx-xx-xx, sua propriedade.

9. Que as partes avaliaram em 5.000€.

10. Tendo os autores nessa data entregue à B… as chaves, o título de registo de propriedade, livrete e requerimento-declaração para registo de propriedade do referido veículo.

11. Para pagamento de parte do preço, os autores celebraram ainda um contrato com T…, mediante o qual esta empresa emprestou àqueles 24.000€, com obrigação de estes restituírem outro tanto, nos termos e condições gerais que constam a fls.37 e 38.

12. O montante do empréstimo foi entregue à B…

13. O restante pagamento do preço, no montante de 2500€, foi efectuado em dinheiro.

14. Os autores adquiriram o veículo automóvel referido em 6 para fazerem a viagem de regresso à U, onde estão emigrados.

15. E para ali se deslocarem no dia-a-dia.

16. Desde a data referida em 6, os autores têm circulado diariamente no referido automóvel e praticado todos os actos de conservação e manutenção necessários.

17. Na data referida em 6, o veículo xx-xx-xx apresentava no mostrador do conta-quilómetros a distância percorrida de 82.000 Km.

18. Em 06/04/2005, o autor marido procedeu a uma revisão do veículo xx-xx-xx numa garagem da Mercedes sita em U.

19. Nessa revisão, o funcionário da Mercedes efectuou uma busca informática ao histórico do veículo e verificou que este, numa intervenção mecânica realizada em 28/11/2003, na Alemanha, apresentava no conta-quilómetros 138.410 km.

20. Tendo sido retirados do mecanismo de conta-quilómetros do veículo, pelo menos, 56 410 Km (…).

36. J compra e vende veículos automóveis novos e usados.

37. J importou o veículo xx-xx-xx da Alemanha, onde tinha a matrícula xxxxxx.

38. À data da aquisição referida em 4, o veículo já tinha matrícula portuguesa.

39. Tendo sido J que requereu a atribuição de matrícula portuguesa à viatura junto da Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo.

40. Foi J que submeteu a viatura à inspecção técnica periódica cujo certificado consta a fls. 44.

41. Aquando do referido em 4 e 6, o motor da viatura não denotava qualquer problema de funcionamento.

42. A carroçaria e o interior da viatura encontravam-se em bom estado de conservação, como novos.

43. O réu J adquiriu o veículo automóvel em apreço na Alemanha.

    8.º Com base em tais factos, o Tribunal, em sentença proferida nesse processo, declarou “a anulabilidade do contrato de compra e venda que teve como objecto o veículo, celebrado entre a B… e os autores, condenando a B… a pagar aos autores 31.500€, acrescidos dos juros vencidos desde a data da citação e dos vincendos até integral pagamento, devendo ainda os autores restituir àquela o veículo.

    9.º Na contestação que apresentou no processo acima referido, o réu alegou que, “quando vendeu o automóvel em causa“, “o conta-quilómetros indicava de facto cerca de 82.000 km“, e que “Havia-o adquirido na Alemanha em finais de Outubro de 2004 à V, com sede em I, e o seu conta-quilómetros indicava cerca de 79.000 km”, pelo que, se acaso o conta-quilómetros foi adulterado ou mexido”, esse facto não foi praticado por si, e que nisso não tem também qualquer responsabilidade“.

       10.º Da sentença referida em 8 não foi interposto recurso quer pela autora quer pelo réu.

         22.º A autora confunde-se com o seu sócio e gerente, na praça em que actua, no concelho de X e concelhos vizinhos.

      23.º Qualquer compra ou venda feita à sociedade, é compra ou venda feita ao A.

        24.º O curso da acção referida em 7 e 8 tornou-se conhecido na praça, bem como o seu resultado, nas localidades referidas em 22.

       25.º E por isso passou a correr, nos meios do comércio de automóveis usados, com reflexos na clientela, que o A vendeu um veículo com o conta-quilómetros adulterado por isso foi condenado em Tribunal.

                                   *  

                                               Dos factos

                                                  15 e 16

            A decisão recorrida deu como provados estes factos, dizendo que, relativamente a eles, teve em conta regras de experiência comum, face à prova dos factos descritos em 12 e 13.

            A ré diz que a presunção é insuficiente para o efeito.

            O facto 15 tem o seguinte conteúdo: O réu não podia ignorar que, ao dar a garantia referida em 4, provocava a convicção na autora que o veículo descrito em 3, apenas tinha percorrido cerca de 82.000 km.

            A referência, na fundamentação da convicção, a garantia e a 4 é enganadora. Primeiro porque o facto 4 não tem nada a ver com qualquer garantia e depois porque em nenhum dos outros factos provados consta a referência a qualquer garantia. E também é enganadora a referência, na fundamentação, ao facto 13 já que não se vê como é que ele pode ajudar à prova do facto 15.

            O que a sentença quis escrever é, no entanto, claro, bastando para concluir isso ter em conta a fundamentação aduzida e o que consta do facto 12, sendo a este que a sentença se quis referir como se vê da sequência dos arts. 13 e 14 da petição inicial, de onde os factos 12 e 13 foram retirados: […o réu] garantiu expressamente à autora ser esse o número de quilómetros percorrido pelo veículo (doc.1). Como em veículos da marca em causa é possível haver um razoável controlo da história desses veículos, através dos registos das revisões que são feitos informaticamente, nos quais são mencionados os quilómetros percorridos até cada uma dessas revisões, o réu não podia ignorar que, com tal declaração, provocava a convicção na autora, como provocou, de que o veículo apenas tinha percorrido cerca de 82.000km.

            Assim, o que a sentença quis escrever foi antes o seguinte: O réu não podia ignorar que, ao fazer a declaração referida em 12, provocava a convicção na autora que o veículo descrito em 3, apenas tinha percorrido cerca de 82.000km.

            Portanto, não se trata de uma garantia, mas de uma declaração. E, assim sendo, vai também afastado um dos argumentos do réu quanto à prova deste facto, que tem a ver com a circunstância de a sentença ter dado como não provado que (i) Quando declarou vender à autora o veículo descrito em 3, o réu garantiu-lhe que o número de quilómetros percorrido pelo mesmo veículo era de 82.000 km. Ou seja, o conjunto de tudo isto é claro no sentido de se perceber que o que a sentença deu como provado foi uma declaração e não uma garantia.

            Posto tudo isto, aquilo que importa saber é se do facto (12), isto é, de o réu ter declarado que o veículo que estava a vender à autora tinha uma quilometragem de 82.000km, se pode presumir o facto (15) que o réu não podia ignorar que, ao declarar isso, provocava a convicção na autora de que o veículo só tinha 82.000km. Ora, é evidente que sim, pois que quando um vendedor de uma coisa usada faz uma afirmação sobre uma qualidade do veículo que tem a ver com o uso do mesmo, visa necessariamente convencer a compradora de que afirmação em causa é verdadeira. A não ser que dissesse que a autora sabia que ele era um mentiroso e por isso tinha razões para crer que ele estava a mentir. Nas condições normais – e as condições extraordinárias para serem tomadas em consideração têm de ser alegadas e provadas – é legítimo concluir do mesmo modo que a decisão da matéria de facto. Aliás, se o réu não pensasse convencer a autora com tal afirmação, não se vê porque é que a faria.

            Ora, perante isto tudo, também não se vê razões para duvidar que a autora tenha ficado convencido de que o veículo tinha apenas 82.000km, como consta de 16.

            Os factos mantêm-se como provados, mas o 15 fica com uma diferente redacção, de acordo com o explicado acima e que é esta: O réu não podia ignorar que, ao fazer a declaração referida em 12, provocava a convicção na autora que o veículo descrito em 3, apenas tinha percorrido cerca de 82.000 km.

                                                      *

                                                 Facto 19

            O facto 19 tem a ver com o valor real do mercedes (cerca de 17.500€), tendo em conta a quilometragem real.

            A decisão de dar o facto como provado tem a seguinte fundamentação:

         “[…] teve-se em consideração o depoimento da testemunha JCP, que trabalhou no G durante 31 anos, no ramo da avaliação e venda de automóveis usados, tendo até colaborado na elaboração da tabela Eurotax até ao ano de 2006, que afirmou que a questão da alteração dos quilómetros do veículo para mais, importava grande desvalorização para o automóvel, sobretudo por se tratar de uma zona do interior do país, razão pela qual avaliou o automóvel com a quilometragem referida em 19 em cerca de 17.500€. As tabelas Eurotax juntas aos autos em audiência não infirmam só por si as declarações desta testemunha. Senão, vejamos. Por exemplo, a tabela de venda atribui aos veículos do ano de 2002 (fls. 303) da marca e modelo dos autos o valor de 28.750€, mas é certo que esse valor será variável de acordo com o mercado, mas também os quilómetros percorridos (sendo facto público e notório que, quanto menos quilómetros percorreu um veículo maior será o seu valor comercial/de venda), estado do veículo, o facto de ser importado, entre outros factores, como é do conhecimento comum.

         Também as declarações das testemunhas AM e JTS (comerciantes de automóveis e amigos do réu, que o acompanharam na viagem à Alemanha para compra do veículo em discussão dos autos) não abalaram o depoimento da testemunha JP. Outrossim, estas testemunhas limitaram-se a referir que, por vezes, a quilometragem dos veículos não é determinante para apurar o seu valor, no entanto, face às contingências descritas pela testemunha JP, e que são conhecidas de todos – também do Tribunal – sabemos que assim não sucede, e no caso até foi esse o fundamento para a anulação da venda do veículo pela autora aos compradores finais, certamente por se ter considerado que o elemento quilometragem havia sido determinante para a venda do automóvel operada pela autora.”

            O réu defende que o facto deve ser dado como não provado, dizendo o contrário do que a decisão da matéria de facto diz sobre o depoimento das testemunhas e dos documentos da Eurotax e invocando ainda factos dados como provados na outra acção e outros afirmados na contestação da autora nessa outra acção.

            Posto isto,

            Antes de mais diga-se que ao apresentar a prova documental, depois do saneador, o réu se limitou a duas fotocópias de duas folhas de dois livros das cotações da eurotax (fls. 86 e 88 dos autos). Uma das págs. 302-303 de um livro de Dez2004 e outra das págs. 304-305 do livro de Out2004, parcialmente ilegível. Quanto à primeira consta o valor de 30.050€ para venda de um mercedes classe C diesel, 200 Cdi, classic (203). Quanto à segunda nada consta para um tal veículo, isto é, não diz respeito ao mesmo.

            Entretanto, na audiência de julgamento de Março de 2015, foram apresentados pelo réu os dois livros em causa, e mandados juntar pelo tribunal recorrido e face a eles pode-se então constatar o seguinte: o réu não juntou cópia, por exemplo, da fls. 12 desses livros, onde se esclarece: “Avaliação de acordo com a quilometragem. Na contracapa deste guia é apresentada uma ‘tabela média quilométrica mensal’, segundo segmento e combustível. O total de quilómetros percorridos por um veículo deverá ser calculado pelo número de meses de idade do mesmo. Assim, o valor deverá ser superior ao indicado no guia se o veículo percorreu menos quilómetros ou inferior caso contrário.”

            A junção daquelas duas folhas naqueles termos não tinha, pois, qualquer valor, ou melhor, tinha um valor negativo, por induzir à conclusão errada defendida pelo réu, pois que sugeria que a quilometragem era praticamente irrelevante para a avaliação dos veículos, já que o réu não apresentava ao mesmo tempo a folha que explicava que os valores dos veículos indicados naquelas folhas não eram definitivos, sendo antes apenas indicadores do valor de um veículo com uma quilometragem média que devem ser corrigidos de acordo com o facto de a quilometragem concreta do veículo ser inferior ou superior.

            Apesar disso a decisão recorrida não foi induzida em erro nesta parte e logicamente concluiu que a quilometragem tem, de facto, relevo.

            Há, no entanto, um lapso, na decisão recorrida: diz-se que na página 303 do livro de Dez2004, preços de venda, se dá o valor de 28.750€ para o veículo dos autos, erro que o réu repete no recurso, quando, como se disse, o valor é de 30.350€ em Dez2004, sem contar com a quilometragem. O valor de 28.750€, referido pela sentença, diz respeito aos veículos CDi elegance ou CDi avantgarde, ambos de 2001 e não de 2002, ou ao veículo C 200 Station k classic de 2002. Ora, o carro dos autos, recorde-se, é um CDi de 2002, sem que se diga nada mais dele, pelo que é, presumivelmente, um classic (para ser qualquer outra coisa que fosse para além do mais simples, os factos em causa teriam que ter sido alegados por quem estivesse nisso interessado – aliás, o advogado do réu, no depoimento da testemunha José Pinheiro, identifica o veículo como C 200 CDi classic, no período de 6:59 a 7:13).

            Já agora anote-se que da consulta do livro de Out2004, constata-se que se trata de um livro das cotações de compra de veículos, e nele, a fls. 300-301 está o valor de compra (não de venda) de um mercedes C 200 CDi, classic, diesel, que é de 25.800€.

            Por fim, no que diz respeito a estas observações preliminares, diga-se que, visto que os livros da eurotax nada dizem quanto à forma de avaliar um veículo que percorreu kms diferentes dos presumidos/médios, aceita-se facilmente que um veículo com mais 68,79% de uso do que o indicado pelo vendedor, valha apenas 62,5% desse valor [tanto mais que, se se tiverem em conta as médias presumidas pelas cotações de eurotax – ou seja, para um veículo diesel, superior, nos dois anos de 2002 e 2003, de 68.200km [isto para não utilizar um valor citadino ainda mais baixo de 43.400km; e tudo isto afasta, por outro lado, o “facto” invocado pelo réu em audiência de julgamento e no recurso, de que um veículo faça, em dois anos, normalmente, 82.000km] -, este veículo tem mais 102,95% do uso médio; ainda um outro modo de calcular o valor do veículo, utilizando os dados do livro de cotações da eurotax: o valor de venda do veículo diminuiu 2900€ num ano (2002 para 2003); em dois anos teria diminuído cerca de 5800€, isto por 68.200km presumidos/médios; pelo que, por 138.410km reais teria diminuído 11.770,94€, pelo que valeria apenas 16.229,06€, valor que, de novo, está próximo dos 17.500€].

            Tendo tudo isto em conta, diga-se que o depoimento da testemunha JP dá sustento suficiente à convicção a que o tribunal recorrido chegou. O réu entende o contrário, apontando contradições nesse depoimento, das quais pretende retirar ao mesmo as características que o tribunal recorrido lhe apontou. Note-se antes de continuar que a forma como o réu invoca este depoimento, em sentido contrário ao decidido, tem muito pouco valor, já que é uma invocação quase em globo, com remessa para o depoimento completo [o depoimento ocorreu a 10/03/2015 com início a 11:47:05; o depoimento sobre a matéria de facto começa, propriamente, a 4:18, sendo antecedido de uma pergunta que vem desde 3:03; e depoimento vai até 22:17 (o minuto a seguir é uma pergunta e a objecção da Srª juíza); assim, indicar a parte do depoimento desta testemunha, desde 4:15 a 23:00 é o mesmo que indicá-lo todo, em bloco…], quase sem qualquer precisão das passagens da gravação em que funda o recurso. No entanto, como o réu acabou por fazer algumas delimitações temporais, com indicação também da matéria a que respeitam e invocou contradições da testemunha, pode-se entender, com boa vontade, que, aqui, não houve um total incumprimento do disposto no art. 640/2a) do CPC e por isso ouviu-se agora o depoimento todo desta testemunha; ora, ao contrário do que o réu diz, o sentido do depoimento da testemunha nunca é o de que o veículo com 132.000km – já agora não se vê a que propósito é que vem este valor – tivesse o valor de 25.000€; a testemunha diz, de 4:23 a 4:43, que este mercedes, com 82.000km, valeria 25.000€ (valor de compra); depois fala do valor do veículo com 138.410km e diz que será de 17.500€ (valor de venda); diz sempre que a quilometragem conta imenso (9:27 a 10:10, o que repete, entre várias outras vezes, de 12:24 a 12:25 e 12:33 a 12:55, etc); a testemunha, a 10:48 a 10:59, o que ainda desenvolve a seguir sob várias formas, esclarece que o valor de 17.500€ é para os 132.000km e os 25.000€ para os 82.000km, pelo que não há contradição real nenhuma, o que há é muita confusão na formulação e sequência das perguntas.

            Em sentido contrário ao da convicção do tribunal vão, como é referido pelo próprio tribunal recorrido, os depoimentos das duas testemunhas do réu que este invoca no recurso, nas passagens 7.00 a 14:50 da primeira e 12:30 a 22:50 da segunda; ou seja, estas testemunhas tentam demonstrar que a quilometragem é praticamente irrelevante para a avaliação do veículo (apenas uma variação de 1000 ou 1500€ ou 2000€…), o que ia no mesmo sentido da junção isolada das duas fotocópias das cotações da eurotax, desmentida pela folha (das mesmas cotações) explicativa da necessidade de se ter em conta a quilometragem. Mas não convencem minimamente, face ao depoimento da testemunha JP e porque estes depoimentos contrariam as regras da lógica, pois que se a quilometragem não tivesse, praticamente, valor na avaliação dos veículos, ninguém se teria dado ao cuidado de a modificar. E contrariam também as regras da lógica por outra via, pois que o valor de uma coisa usada depende logicamente do uso que essa coisa tiver tido, sendo que uma coisa que teve um uso de 168,79% do uso indicado, tem, logicamente, muito menos valor do que o valor indicado. E contrariam ainda as regras da experiência comum das coisas, conformes a estas regras da lógica.

            Mas o réu não se fica por aqui e, como argumento seguinte, diz que os factos constantes dos n.ºs 41, 42 e 43 do ponto 7 dos factos dados como provados e que atestam que em Dezembro de 2004 e Janeiro de 2005 “o motor da viatura não denotava qualquer problema de funcionamento” e que “a carroçaria e o interior da viatura encontravam-se em bom estado de conservação, como novos”, infirmam o depoimento da testemunha JP, mas, como é evidente, estes factos nada têm a ver com o que a decisão recorrida aproveitou – e bem – do depoimento da testemunha JP.

            E o réu continua, agora dizendo que “a própria argumentação constante da contestação apresentada pela autora no proc. 183/05.3TB… e que fez juntar à sua petição integrada no documento n.º 2 apendiculado à mesma, depõe ainda no mesmo sentido da desvalorização do depoimento da testemunha Pinheiro.

            O que o réu não tenta sequer explicar é como é que um articulado subscrito numa acção por um advogado de uma parte pode desvalorizar o depoimento de uma testemunha, que não é nada àquela parte, noutra acção. Se o réu ainda tivesse dito que a testemunha tinha “subscrito” a tese do advogado da autora, ainda vá lá.

                                                       *

                                            Factos 20 e 21

            A fundamentação da convicção, quanto a estes factos, foi a seguinte: teve-se em conta regras de experiência face à prova mencionada em 19.

            O réu considera estes factos não provados e diz que a fundamentação em presunções judiciais é insuficiente. Para além disso diz que o facto 21 é conclusivo.

            Posto isto,

            O que consta de 19 poderia levar à prova do que consta de 20 se antes se desse como provado que a autora sabia o que consta de 19, o que não acontece.  

            A verdade, no entanto, é que nem sequer é necessário recorrer ao facto 19 para dar como provado o facto 20, basta a seguinte consideração para o efeito: alguém que dá 28.000€ por um veículo que tem só 82.000km, não vai dar 28.000€ por esse veículo se souber que afinal o mesmo tem quase mais 70% de uso. É a lógica e a experiência das coisas que o dizem. E por isso mesmo é que se falsificam os conta-quilómetros dos veículos.

            Quanto ao facto 21, o mesmo também não é dedutível, sem mais, do facto 19, com base nas regras da experiência e da lógica, mas prova-se também com base nestas, a partir mais precisamente do simples facto de o réu ter feito a declaração referida no ponto de facto 12, pois que senão não a tinha feito. E a declaração escrita que ele faz uns meses depois, dada como provada em 11, demonstra isso mesmo: é por ele ter conhecimento do que se diz em 21 que ele declara o que consta de 11.

            E os factos do ponto 21 nada têm de conclusivos, isto é, no sentido de serem ‘conclusões de facto’ e não ‘factos’: são factos internos, “eventos do foro interno, da vida psíquica” (cita-se de Antunes Varela, Manual de processo civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 407) do réu e do representante da autora, aos quais normalmente só se pode chegar por via indiciária e por presunções, mas não deixam de ser factos.

                                                      *

            Desenvolvendo a falta de valor das presunções utilizadas, o réu diz a seguir que “a própria autora demonstrou e provou nos autos que, enquanto vendedora do veículo, o facto de a quilometragem do veículo em causa ser superior aos 82.000km não ter “pesado” na vontade negocial do comprador desse mesmo veículo JCB e que este sempre teria adquirido o veículo pelo preço de 31.500€ “independentemente da quilometragem que o mesmo apresentasse” e “ainda que o mesmo demonstrasse quilometragem superior a 82.000km”.

            A argumentação é inaceitável: ‘nos autos’, isto é, nestes autos, nada disto tinha sido alegado ou ficou provado. E o mesmo vale quanto à outra acção, na medida em que a autora não conseguiu provar nada do que o réu refere.

            Já com o uso da argumentação da autora – não do que ela demonstrou ou provou -, que a seguir o réu faz (e que não se transcreve aqui por falta de interesse), o réu esquece-se que um recurso não é uma argumentação contra a posição da autora, mas contra uma decisão tomada por um tribunal. Não faz sentido contrapor a versão da autora numa acção anterior, à versão actual desta, para tentar demonstrar o erro desta, porque o que se tem de demonstrar é o erro da posição do tribunal. Tanto mais, já agora, que o tribunal da acção anterior não acreditou na versão da autora, pelo que nada tem de estranho que agora acredite na versão desta que é semelhante à que era defendida pela parte contrária na outra acção.

            Em suma, improcede totalmente toda a impugnação da decisão da matéria de facto, feita pelo réu, sem prejuízo da alteração introduzida, por razões que nada têm a ver com as dadas pelo réu, ao ponto de facto sob 15.

                                                      *

            Factos não provados que a autora quer que fiquem provados

            O tribunal recorrido entendeu que não ficaram provados uma série de factos, o que fundamentou devidamente.

            A autora discorda, dizendo que eles devem ser tidos por provados.

            Como fundamentação da sua discordância, tendo em conta o corpo das suas alegações, ela diz:

         “A prova desses factos resulta dos depoimentos das testemunhas arroladas pela autora – e até do depoimento das testemunhas arroladas pelo réu – bem como de algumas circunstâncias específicas do processo e de factos que ocorrem, sempre, em situações da espécie.”

            Mais à frente acrescenta:

         “Importa agora evidenciar os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora.

         Essa evidência terá de ser feita, naturalmente, a partir da descrição gráfica desses depoimentos e da audição desses depoimentos e da audição desses depoimentos. A audição, que no papel ou sistema gráfico não pode ser vertida, e a descrição gráfica desses elementos, assinados e concatenados com os anteriores elementos hermenêuticos, mostram-nos que estamos perante depoimentos objectivos, coerentes em si e congruentes com os demais elementos probatórios, que, assim, do ponto de vista jurídico permite qualifica-los como relevantes, porque isentos e sérios.

         Esses depoimentos, para facilitar a análise do discurso que se verte nestas alegacões, estão transcritos em três anexos. Ou seja, os depoimentos de JJPC (consta da gravação digital de 11:07:28 a 11:26:18) – Anexo I; VBMC (consta da gravação digital de 11:26:25 a 11:46:56) – Anexo II; JCP(consta da gravação digital de 11:47:05 a 12:10:22) – Anexo III.

         (E, com a devida vénia, para lá se remete.)

            Quanto a esta invocação, em globo, da prova testemunhal produzida pela autora, para impugnação, em globo, da decisão relativa a todos os oito factos não provados, a mesma não tem nenhum valor, visto que a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nos termos do art. 640 do CPC, o que é notório que não foi cumprido.

            Desde logo porque a autora não indicou “com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso” (art. 640/2a do CPC – neste sentido, por exemplo, o ac. do STJ de 19/02/2015, 405/09.1TMCBR.C1.S1: “a apresentação das transcrições globais dos depoimentos não satisfaz a exigência determinada pelo art. 640/2a do CPC”; acrescentando-se: “[A] reforma do CPC de 2013 […] teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto” […]. Essa maior eficácia […] não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o art. 640/1 vigente [conduz] à […] rejeição imediata [do recurso de facto] a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que [ele] se funda”  […].”).

            A indicação com exactidão das passagens faz-se indicando o momento (hora, minuto e segundo) dessas passagens na faixa do CD dessa gravação. E se tal pode ser impossível em dadas situações, como por exemplo quando se alega que alguém não disse nada sobre um dado assunto, ou se todo o depoimento versa apenas um único ponto de facto, tal não é, de todo, o caso.

                                                      *

            Ainda como fundamentação daquela discordância, a autora diz:

         “Há uma circunstância decorrente do processo, associada aos depoimentos das testemunhas arroladas pelo réu – AFTM, JTS e ADVM -, de enorme relevância, e que não pode deixar de responsabilizar o réu.

         Na verdade, o réu esforçou-se por demonstrar que adquiriu o veículo na Alemanha com cerca de 79.000 km, e que, por isso, atestou que o mesmo tinha cerca de 82.000 km, quando o vendeu a réu, convencido de que isso era verdade.

         As testemunhas que arrolou, ora referidas, esforçaram-se também por convencer o tribunal que era mais ou menos essa a menção quer o conta-quilómetros do veículo marcava quando foi comprado na Alemanha pelo réu.

         Ora, se as coisas eram assim, e sendo certo que o réu nunca teve dificuldades em identificar documentalmente quem era a sociedade alemã que lhe vendeu o veículo, não se compreende que, mormente nesta acção, não tenha provocado a intervenção desta sociedade para ser condenada em indemnização pelos danos que lhe causou.

         A intervenção dessa sociedade nesta acção, que só o réu podia requerer, seria esclarecedora da sua posição…

         Pelo menos ficava-se com a certeza de que o réu adquiriu o veículo com cerca de 79.000 km e que o vendeu com cerca de 82.000 km, ou não…

         O réu preferiu a dúvida… Disse que o comprou com cerca de 79.000… Há 10 anos… E os seus amigos, testemunhas nestes autos, ainda disse se… recordam…”.

            Reparar-se-á, desde logo, que a autora está a fundamentar, em bloco, a discordância em relação a todos os factos dados como não provados, como se todos eles tivessem a ver com a mesma matéria. A argumentação não é dirigida contra nenhuma parte da decisão em concreto, como se valesse para tudo. Por outro lado, tudo se resume, ao facto de a autora querer tirar consequências para os factos provados, do facto de o réu, nas duas acções, não ter chamado à acção a pessoa que lhe vendeu o carro. Ora, tal também não implica, nem a autora diz como é que implicaria, a prova dos factos que foram dados como não provados. Para além do mais, o chamamento em causa é, quando muito, um ónus, não um dever, e não tem qualquer reflexo na prova dos factos.

                                                      *

            Em concreto,

            A autora entende que o facto (i) – Quando declarou vender à autora o veículo o réu garantiu-lhe que o número de quilómetros percorridos pelo mesmo era de 82.000km – está provado por força do disposto no art. 376/1 do CC, sendo que a decisão do tribunal revela que, para o tribunal, as declarações negociais escritas não têm qualquer valor, mesmo quando o documento não é impugnado, no escrito e na assinatura, por aquele contra quem é apresentado e seu autor.

            A argumentação da autora esquece que o tribunal deu como provado o facto 12 e que o documento que a autora (não) invoca não refere em lado algum a palavra garantia, sendo esta a divergência entre o facto 12 e o facto (i), como já se viu acima.

                                                      *

            A autora entende que o facto (ii) – o réu não podia ignorar que o veículo, em consequência dos quilómetros que efectivamente tinha percorrido, teria um valor não superior a 15.000€ -, está provado atenta a prova produzida, mormente pela testemunha JCP, que demonstrou ser conhecedora do ramo dos automóveis usados. Como a autora não indica com exactidão a passagem (o período temporal) deste depoimento em que esta testemunha teria produzido prova sobre este facto, esta parte da impugnação é rejeitada sem mais.

                                                      *

            A autora entende que os factos (iii) – o réu não podia ignorar que, caso se viesse a descobrir o facto que a autora ignorava, tal facto provocaria danos a autora” – e (iv) – designadamente por ficar a sua actividade sob suspeita de alterar, para menos, os conta-quilómetros dos veículos usados que comercializava, para obter proveitos ilícitos em prejuízo dos seus clientes –, estão provados porque “a experiência comum mostra-nos que, constando numa dada praça que, num estabelecimento de venda de automóveis usados, foi falsificado o conta-quilómetros de um automóvel aí à venda, de modo a que esse conta-quilómetros mostre, enganando os interessados na compra, que o veículo apenas percorreu 59% dos quilómetros dos que efectivamente percorrera, esse estabelecimento fica sob suspeita de que falsifica os conta-quilómetros. E, no caso dos autos, essa suspeita ficou bem marcada, como os depoimentos o confirmam.”

            A presunção que a autora pretende tirar de um facto, parte da presunção de um facto que não está provado e que também seria provado por presunção de um outro que também não está provado. E a autora não indica qualquer elemento de prova para prova do primeiro facto de que parte e para prova do segundo a autora invoca, em globo, depoimentos, sem indicar as passagens exactas em que as testemunhas teriam produzido prova sobre esse facto. Pelo que esta parte da impugnação é também rejeitada.

                                                      *

            Depois a autora entende que os factos (v) – igualmente corre no meio comercial que a autora terá falsificado muitos mais conta-quilómetros – e (vi) – o meio comercial em que a autora opera é um meio pequeno, o que facilita as informações negativas do meio comercial -, estão provados com base nos “mesmos elementos probatórios”, o que, pelos mesmos motivos já referidos, importa a rejeição desta impugnação.

                                                      *

            Por fim, a autora considera que os factos (vii) – a autora, desde há meses a esta data, quase não tem clientes – e (viii) – sendo certo que nos últimos meses de 2007, houve aumento de compra de veículos automóveis –, estão provados “pelas razoes já apontadas, mas devendo ser tomado em especial conta o facto de, no concelho de … haver apenas 2 comerciantes de automóveis – a autora e outro – e os negócios que a autora deixou de firmar por via bancária (quanto a estes aspectos revejam-se os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, e muito especificamente o depoimento da testemunha VBMC).”

            Vale, para a rejeição desta parte da impugnação, o já referido acima.

                                          *

Alcance do caso julgado contra o chamado na intervenção acessória

            Nas conclusões a autora também invocava o facto de o réu ter intervindo no outro processo e não ter interposto recurso de tal decisão, mas tal não implica, nem a autora diz como é que implicaria, que os factos julgados naquela acção se devessem julgar como provados também nesta acção. E já agora a autora nem se preocupa em tentar demonstrar que os factos dados como não provados nesta acção tivessem sido dados como provados naquela.

            Como a questão é abordada, de algum modo, quer pela autora quer pelo réu, quer para efeitos de facto quer para efeitos de direito, passa a analisar-se melhor a questão.

            Tendo em conta o disposto nos arts. 321/2 e 323/4, este com remissão para os termos previstos no art. 332, todos do CPC [as soluções são idênticas, na parte que interessa, no regime do CPC antes da reforma de 2013 ou depois desta, pelo que apenas se fará referência a este], a intervenção acessória circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento e, por isso, a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado apenas relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização.

            Note-se, desde logo, que está em causa uma ulterior acção de indemnização e, por isso, desde logo, os pedidos formulados na ulterior acção, que não tenham a ver com o direito à indemnização, não são influenciados pelo decidido na primeira. Assim, o pedido de anulação de um contrato entre B e C não está dependente do que tiver sido decidido numa acção de anulação de um contrato celebrado entre A e B.

            Como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: “[A] função [do…] incidente é […] tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor [do primeiro processo]. […] O âmbito objectivo do caso julgado circunscreve-se assim no âmbito da causa prejudicial (relativamente ao direito de regresso) constituída pelo pri­meiro processo: para a acção de indemnização fica em aberto a discussão sobre todos os outros pontos de que dependa o direito de regresso; assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre o autor e o réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o cha­mado. […]” (CPC anotado, vol. 1.º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 636).

            Ora, no caso dos autos, nenhum dos factos dados como não provados sob (i) a (viii) é pressuposto do direito do casal de autores na acção relativa ao primeiro contrato, nem nela foi, obviamente, discutido e muito menos provado, pelo que não tem razão de ser invocar o decidido naquela acção para concluir como faz a sociedade autora que os factos (i) a (viii) estão provados. O mesmo resulta do que ali foi decidido quanto ao direito, o que se verá mais à frente.

                                                      *

                                   Das nulidades da sentença

            Como se vê no corpo das alegações correspondentes às conclusões 11 a 13, o réu entende que a sentença é nula, por um lado, porque não conheceu do pedido de anulação do contrato que a autora fazia; por outro, porque conheceu de questão que não lhe tinha sido posta, nem subsidiariamente: a da redução do preço; por fim, porque condenou em objecto diverso do pedido. Fundamenta estas conclusões nalguma doutrina e jurisprudência.

                                                      *

              A sentença baseou-se na seguinte construção jurídica, em síntese:

         A autora invocou como fundamento da acção a existência de dolo, enquanto vício na formação da sua vontade de contratar, o qual é motivo de anulação ou de redução do negócio jurídico, nos termos, respectivamente, dos arts. 253, 254 e 292 do Código Civil.

         Para que o dolo seja relevante como motivo de anulação é necessário a verificação de determinadas condições, as quais no caso não se verificam desde logo por não ter ficado demonstrado que o réu soubesse, aquando da venda operada à autora, que o veículo tinha quilometragem diferente da real.

                                          *

         Não se verificando o dolo, poderíamos estar perante uma situação de erro-vício prevista no art. 251 do CC. São condições de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade: a essencialidade, a propriedade e a escusabilidade.

         Para que o erro seja relevante torna-se indispensável que ele seja essencial, ou seja, que tenha um papel decisivo na determinação da vontade do declarante de tal modo que, se ele conhecesse as circunstâncias sobre que incide o erro, não teria querido concluir o negócio (erro absolutamente essencial). No erro incidental existe uma influência apenas nos termos do negócio de modo que o errante sempre estaria disposto a concluí-lo noutras condições – naturalmente mais favoráveis. Pode falar-se, neste caso, de erro relativamente essencial.

         No caso dos autos, não se comprovaram os requisitos de essencialidade do erro, impondo-se concluir que “sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior”, sendo assim um erro incidental.

                                          *

         A situação dos autos também pode ser qualificada como de falta de conformidade do bem adquirido com a expectativa da autora, sendo esta, portanto, a causa de pedir da presente acção.

         Para esta rege o disposto nos arts. 913, 914, 911, 908 e 909, todos do CC, dos quais decorre que o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa, a substituição dela, a redução do preço, e a indemnizações com vista a cobrir os danos não ressarcíveis por estes meios.

         Ou noutra formulação dada mais à frente, terá os seguintes meios jurídicos a serem exercidos segundo uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato.

         Face aos factos provados, teremos de concluir que a autora logrou demonstrar que o automóvel que o réu lhe vendeu, padecia de defeito por falta de conformidade do valor ostentado no conta-quilómetros e os reais quilómetros percorridos, o que diminuía o seu valor, isto é, que o automóvel vendido pelo réu à autora não tinha as qualidades declaradas pelo vendedor – réu -, sendo desconforme com o contrato.

         No caso em apreço, a autora reclama a resolução do contrato.

         Ora, é certo que o “defeito” não pode ser eliminado – o que sucede pela sua própria natureza -, também se mostra inviável a substituição da coisa vendida – o que sucede igualmente pela natureza da coisa objecto destes autos: veículo usado -, pelo que apenas restará à autora obter a redução do preço.

         Note-se que, no caso dos autos, não é proporcional o pedido da autora de resolução do contrato, visto que a sua pretensão pode ser acolhida, com justeza, mediante a redução do preço e não se pode dizer que tenha resultado provado que a quilometragem efectivamente percorrida pelo veículo foi determinante para que a autora comprasse o veículo ao réu – tanto mais quando é certo que a autora era e é uma sociedade comercial que se dedica exclusivamente ao comércio de veículos.

         Assim, tendo-se comprovado que o veículo foi vendido pelo réu à autora pelo valor de 28.000€, e que, mercê do defeito de que padecia, o mesmo automóvel apenas valia cerca de 17.500€, decide-se reduzir o preço a este último valor.

         Deverá, nesta conformidade, o réu entregar à autora a quantia de 10.500€.

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            Face à arguição das nulidades, o tribunal recorrido disse o seguinte, depois de referir que deu às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a redução do preço e de dizer que conheceu de todas as questões que tinha de conhecer:

         “No caso em apreciação, teremos de atentar ao disposto nos arts. 292 e 293 CPC, pelo que, se a anulabilidade for parcial – como concluiu o tribunal – não se poderá determinar a invalidade de todo o negócio.

         Foi precisamente este o caso, o Tribunal concluiu pela anulação parcial do negócio jurídico, quando a autora havia invocado a anulabilidade total, e determinou a redução do negócio, contendo-se dentro dos pedidos formulados pela autora.

         Face ao exposto de nenhuma nulidade padece a sentença recorrida.”

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Omissão de pronúncia sobre questão que se devia apreciar

art. 615/1d do CPC

            Se a sentença diz que a situação de erro-vício prevista no art. 251 do CC depende de três condições e depois diz que não se comprovam os requisitos de essencialidade do erro, que é a primeira condição que refere, e logo a seguir, sem dizer nada quanto às outras duas condições de relevância do erro, passa a analisar a questão a partir de um outro conjunto de normas (913, 905, 911 e 914 do CC), é porque considerou afastada a possibilidade de anulação do contrato por erro, não podendo vir agora dizer que afinal se verificava a anulabilidade parcial do negócio legitimadora da redução do mesmo (art. 292 do CC).

            Mas como a sentença não tirou as consequências da falta de prova dos factos que permitissem considerar verificada a essencialidade do erro, isto é, como nada disse, expressamente, sobre o pedido de anulação do contrato, há, realmente, uma omissão de pronúncia sobre uma questão que se devia apreciar.

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            Do conhecimento de questões de que não se podia tomar conhecimento e da condenação em objecto diverso do pedido [art. 615/1d) e e), do CPC]

                               Da redução do negócio jurídico

            Mas se o tribunal tivesse razão em dizer que foi isso que fez (redução do negócio por via da anulação parcial), isso não afastaria a violação do princípio do dispositivo e as nulidades da sentença.

            O erro na formação da vontade de conclusão de um contrato de compra e venda pode ser fonte de anulação do contrato, se esse erro for essencial (arts. 913, 905, 251 e 247, todos do CC) e pode dar origem à redução do negócio jurídico se esse erro foi incidental. Neste sentido, Mota Pinto: “o erro incidental  não será, todavia, irrelevante: o negócio deverá fazer-se valer nos termos em que teria sido concluído sem o erro. Deverá, porém, ter lugar a anulabilidade quando se não possa ajuizar desses termos com segurança, ou pelo menos, com bastante probabilidade e, ainda, quando se prove que a outra parte os não teria acolhido (art. 292, sobre a redução dos negócios jurídicos) (TGDC, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, Coimbra Editora, pág. 508).

          Mas esta redução do negócio jurídico tem de ser pedida pelas partes, não é de conhecimento oficioso.

               (neste sentido, por exemplo, Pedro Eiró e Teresa Silva Pereira, Comentário ao CC, Parte Geral, UCP 2014, pág. 728: “Outro problema é o de saber se a redução é de conhecimento oficioso ou se deve ser invocada em juízo pelas partes. Se se estiver perante um negócio parcialmente nulo, uma vez que este tipo de invalidade é já, nos termos do seu regime jurídico, de conhecimento oficioso, a menos que a vontade presumível ou hipotética das partes conduza em sentido diferente deve o tribunal conhecer oficiosamente aquela e fazer operar a redução sempre que possível. Se o tipo de invalidade for a anulabilidade parcial do negócio, o negócio só pode ser reduzido caso o contraente que pretenda manter o ato requeira em juízo a sua redução.”; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2002, Almedina, pág. 108: “No que concerne ao desencadear da redução, há que distinguir con­soante o vício que gera a invalidade é, ou não, de conhecimento oficioso. No caso de anulabilidade parcial, não sendo a anulação de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode decidir sobre a redução no âmbito do que lhe for pedido”; Ou o ac. do STJ de 08/01/2015, 991/10.3TBESP.P1.S1, a contrario; no mesmo sentido o réu cita ainda Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 527, que não se teve oportunidade de consultar, sendo que na 2ª edição, da Lex, 1996, salvo erro não se encontra a passagem citada; por fim, o réu também cita uma passagem de Pedro Romano Martinez, Cumprimento defeituoso, Almedina, 1994, pág. 403, que aponta no mesmo sentido). 

            Como a autora apenas pediu a anulação do contrato, nunca invocou qualquer erro incidental nem pediu a redução do negócio jurídico, o tribunal não podia conhecer dessas questões nem condenar na redução do negócio, por ao fazê-lo incorrer na violação do disposto nos arts. 608/2 e 609/1 do CPC, causa das duas últimas nulidades da sentença arguidas pelo réu.

            E a circunstância de o tribunal ter introduzido a questão no despacho posterior ao julgamento, antes da sentença, não supre a falta de pedido da autora.

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                                       Da redução do preço

            Mas a via que realmente o tribunal seguiu não foi a da redução do negócio (art. 292 do CC) mas a da redução do preço, dos arts. 911 e 913 do CC, outra das soluções do regime da venda das coisas defeituosas.

            Esta solução não é exactamente a mesma da da redução do negócio jurídico, embora seja análoga a ela. Mas, como diz Antunes Varela, “para a redução [do art. 292 do CC] não é necessária a prova de que o contrato teria sido concluído sem a parte viciada, ao passo que neste caso [do art. 911 do CC] é necessário que as circunstâncias mostrem que o comprador não teria deixado de comprar. Há, portanto, uma diferença substancial quanto ao ónus da prova.” (CC anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 203).

            Tendo isto em conta, logo se poderia dizer que, no caso dos autos não se provaram circunstâncias que mostrassem que a autora não teria deixado de comprar o veículo [provou-se apenas que ela não teria comprado o veículo por 28.000€ e que este (ou porque este), valia apenas 17.500€].

            Mas, para além disso, e é isso que agora importa, também neste caso o tribunal não poderia, oficiosamente, convolar um pedido de anulação de um contrato (acção anulatória) para um pedido de redução do preço (acção de redução do preço ou estimatória).

            Como diz Antunes Varela, “o que o comprador não pode é pedir a anulação do contrato, se se verificarem os pressupostos do art. 911 do CC e este tiver de ser aplicado. Pode, porém, requerer a redução do preço como pedido subsidiário da anulação, para a hipótese de não se provar o dolo ou a essencialidade do erro […]” (obra citada, pág. 203).

            Ou como diz Calvão da Silva, Compra e venda de coisas defeituosas, Almedina, 2001, pág. 33, “[a] consequência prática, no caso previsto no art. 911, reside em a acção de anulação e a acção estimatória […] não estarem em concorrência electiva: o comprador não pode optar entre as duas, pois a lei expressamente o confina à segunda […]. Mas se as condições das duas acções não são as mesmas e o art. 911 arreda a anulação, já nada impede em nome da economia processual o pedido de redução em via subordinada, como pedido subsidiário da anulação para a eventualidade de esta se revelar infundada […]”.

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            Em suma, verificam-se todas as nulidades da sentença arguidas pelo réu, tendo a mesma de ser anulada, o que resolve o problema quanto às duas últimas nulidades, mas não quanto à primeira.

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            Conhecimento da questão omitida em substituição do tribunal recorrido (art. 665/1 do CPC)

            Não o tendo feito o tribunal recorrido, cabe agora a este tribunal tirar as consequências da falta de verificação da condição da anulação do contrato – essencialidade do erro -, que a sentença recorrido declarou e com a qual se concorda.

            E esta falta da essencialidade do erro percebe-se melhor em confronto com a outra acção, o que se passa a ver, porque tal demonstra, por um lado, que neste caso não se verifica aquela essencialidade e, por outro lado, que o resultado das duas acções não tinha de ser o mesmo.

            Na primeira acção considerou-se que se verificava a essencialidade do erro porque se deu como provado, no facto sob 28 [note-se que este facto não foi transcrito acima, apesar de as partes muito terem invocado os factos provados na outra acção; de qualquer modo, aqui está-se apenas a explicar porque é que na outra acção foi considerada verificada a essencialidade do erro e está-se a utilizar aquele facto apenas para este efeito], que o gerente da autora sabia que o comprador não teria adquirido o veículo se soubesse que este possuía mais quilómetros que os indicados e se não apresentasse boas condições de mecânica (erro essencial).

            Ora, nesta acção não se provou que a autora não teria adquirido o veículo se soubesse que o veículo tinha mais km, o que se provou foi que ela não teria aceitado pagar o preço de 28.000€ se tivesse conhecimento que o veículo tinha 138.410km, o que sugere, sem que se prove, que o teria adquirido por um preço mais baixo (ou seja, quando muito, erro incidental).

            Não se provando a essencialidade do erro, nesta acção, nem fazendo qualquer sentido dizer (como diz a autora ao invocar o caso julgado contra o chamado) que provada a essencialidade do erro na primeira acção se tem de considerar provada a essencialidade também na segunda acção – porque as acções dizem respeito a contratos diferentes – o pedido de anulação não pode proceder.

            E como era este o objecto desta acção, nesta parte, ela tem de improceder. Recorde-se, com efeito, que a autora não pediu, subsidiariamente, a redução do preço, para o caso de não se provar a essencialidade do erro. Não havendo pedido, não pode haver condenação nele. Tal como não estando em causa o direito à redução não podia haver pronúncia quanto ao mesmo. Tudo sob pena das nulidades da sentença já assinaladas.

            Resta acrescentar que se concorda com a sentença quando – tal como a sentença proferida na outra acção – considerou que o caso dos autos cai no âmbito da venda de coisa defeituosa, art. 913 do CC, visto que o veículo não tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor (um uso de 82.000km, já que tinha um uso de 138.410km), e não com o réu que entende que a sentença não podia ter saído do regime da anulação do contrato por erro (arts. 251 e 247 do CC), pois que, estando-se perante um caso de venda de coisas defeituosas, o regime do erro é chamado pelo regime da venda (art. 913 do CC); aliás, considera-se mesmo que a sentença devia ter começado por aí – art. 913 do CC – e só depois ter apreciado a questão do erro (como o fez a sentença da outra acção); por outro lado, diga-se que não é aplicável ao caso o regime da compra e venda de bens de consumo (DL 67/2003, de 08/04, alterado pelo DL 84/2008, de 21/05, que levantaria outras questões), visto que quer a autora quer o réu são comerciantes e a autora comprou o veículo no exercício da sua actividade comercial e o fez para o revender (factos 1 a 3).

                                                      *

Ainda o caso julgado formado na outra acção

            Diz a autora (6ª conclusão) que o réu devia ter sido condenado nos termos peticionados na alínea b) do pedido formulado, pois foi nisso que, por efeito da autoridade do caso julgado, o réu foi condenado como causador da anulação de negócio.

            Ora, para além do que acima já foi dito quanto ao caso julgado contra o chamado, é evidente (basta a leitura da parte decisória), desde logo, que na outra sentença não se verificou qualquer condenação do réu desta acção.

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                       Do direito à anulação por via do regresso

            Nas conclusões 5ª e 6ª, a autora sugere que a sua obrigação de restituição do preço do veículo corresponde a um prejuízo em que incorreu por culpa do réu, tendo por isso direito de regresso contra o réu. E daí conclui que o pedido b) (mas o raciocínio vale também para o pedido a)) deve ser considerado procedente. Mas o direito de regresso não tem nada a ver com o direito à anulação de um outro contrato. Um contrato não pode ser anulado a pretexto de que foi a sua celebração que deu causa ao prejuízo consistente na obrigação nascida da anulação de um outro.

            Poderia falar-se no direito de regresso da autora contra o réu se se provasse que a obrigação de restituição do preço a que ela foi condenada na outra acção teve origem em conduta culposa do réu. Mas aí estar-se-ia perante um direito de indemnização (daquela obrigação de restituição), regulado nos termos dos arts. 908, 909 e 915, todos do CC, que não foi objecto desta acção (danos que não se confundem com os danos não patrimoniais de que se falará a seguir). E esse direito de indemnização não se confundiria com a obrigação de restituição do preço, mas apenas com os danos que não tivessem ficado cobertos pelo exercício dos outros direitos, que teriam por isso de ter sido exercidos de forma procedente (daí que o art. 908 do CC diga: anulado o contrato…).

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                 Da indemnização por danos na imagem da autora

            Os factos de que dependia a procedência deste pedido não se provaram.

            O recurso contra a decisão de considerar improcedente este pedido de indemnização (destes danos) estava, pelo menos, na dependência da prova dos factos dados como não provados de (i) a (viii).

            Não se tendo alterado a decisão da matéria de facto relativa a essas afirmações de facto dadas como não provadas, este recurso, da autora, não pode deixar de ser improcedente.

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            Pelo exposto, julgam-se procedentes as arguições de nulidade da sentença recorrida, tal como se julga procedente o recurso do réu e improcedente o da autora, anulando-se a sentença excepto quanto à absolvição do pedido c) e se substitui (a parte anulada) por esta que julga a acção improcedente também quanto aos pedidos a) e b). Ou seja, a acção fica, no seu todo, julgada improcedente.

            Custas da acção e dos dois recursos pela autora.

            Porto, 28/10/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto