Acção 710/14.5TBPVZ – Póvoa de Varzim – Secção Cível – J1

            Sumário:

            Se está decidido com trânsito em julgado que a ré tem título para utilizar licitamente uma parcela de terreno que é propriedade dos autores, é manifesta a improcedência de uma nova acção cujo resultado se traduziria em negar a licitude daquela utilização, contradizendo a autoridade do caso julgado.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            M e mulher M, intentaram a presente acção contra B, SA, pedindo a condenação desta a entregar aos autores a parcela de terreno comodatada, no âmbito do contrato de comodato celebrado, nos termos dos artigos 1137/2 e 1140 do CC e a pagar-lhes 15.000€ a título de danos patrimoniais, pelo incumprimento contratual e no que se vier a apurar em execução de sentença, mais 15.000€ a título de danos não patrimoniais provocados pela ré, ao não actuar de acordo com a lei, pela não entrega da coisa comodatada, e ainda 250€ por dia a título de sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento da sentença que venha a ser proferida.

            Alegam para tanto que compraram um terreno do qual os vendedores tinham emprestado 80m2 para ocupação por posto de transformação (PT) adstrito à rede de distribuição de energia eléctrica construído pela ré; com a venda do terreno ocorreu a cessão da posição dos comodantes para os autores; e estes resolveram o contrato e pediram a restituição dos 80m2, o que a ré não satisfez; dizem, numa parte da petição já subordinada à epígrafe ‘do direito’, que a presença do PT lhes provoca incómodos, perturbando todo o ambiente de lazer envolvente da habitação e impossibilitando os autores de usufruírem da plenitude da sua propriedade em momentos de família e laser, sem falar no perigo que constitui para a saúde dos autores e do filho de ambos e de todos que lá vão e passam; e terminam dizendo: “a ré deverá ainda indemnizar os autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, de forma a compensar os autores por todas as perturbações e incómodos que o incumprimento do contrato de comodato, isto é, a não entrega da parcela de terreno comodatada, provocou aos autores.”

            A ré contestou, entre o mais excepcionando a ocorrência de caso julgado, porquanto os autores já tinham intentado contra a C, SA, antecessora da ré, uma acção cível igual a esta, que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Vila do Conde, onde foi proferida decisão já transitada em julgado que, apesar de reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a parcela ocupada pelo PT, absolveu a C dos demais pedidos, por ela ter posse titulada da mesma; pede a condenação dos autores como litigantes de má-fé, entre o mais porque estes sabem que é falsa a alegação da existência do contrato de comodato por terem conhecimento do que ficou provado na primeira acção; impugna o essencial dos factos alegados pelos autores.

            Os autores responderam à matéria de excepção impugnando a identidade de pedido e causa de pedir entre esta acção e a acção transitada em julgado, porque na primeira acção estava em causa a propriedade e na presente acção está em causa um incumprimento de contrato de comodato.

            No despacho saneador julgou-se logo a acção manifestamente improcedente (por verificação da autoridade de caso julgado), absolvendo a ré do pedido e condenando os autores como litigantes de má-fé na multa de 5UCs e em indemnização a pagar à ré no valor de 1000€.

            Os autores recorrem deste saneador sentença – para que seja revogado e determinado o prosseguimento do processo – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) O tribunal a quo determinou que a improcedência da acção motivando de que se tratava de autoridade de caso julgado, condenando os autores como litigantes de má-fé.

B) Isto porque considerou que a presente acção se encontra no objecto da acção que já transitou em julgado.

C) No entanto, na presente acção temos como objecto da acção e do pedido a responsabilidade contratual no âmbito do contrato de comodato enquanto na acção que já transitou em julgado temos como objecto da acção e do pedido o reconhecimento do direito de propriedade dos autores.

D) Tratam-se, assim, de acções e pedidos diferentes, não consignando um caso de autoridade de caso julgado.

E) Pelo exposto resulta, sem margens para dúvidas de que não se trata de uma autoridade de caso julgado uma vez que as acções e os pedidos são completamente distintos.

            A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

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            Questão que importa decidir: se a acção não devia ter sido julgada improcedente.

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            Estão dados como provados os seguintes factos:

  1. Os autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito no Lugar x, freguesia x, concelho x, inscrito na matriz predial urbana sob o n.º xxx e descrito na Conservatória do Registo Predial de X sob o nº 00xxx/940831.
  2. Os autores intentaram contra C acção judicial (ordinária), com vista à declaração dos autores como proprietários do prédio e da faixa de terreno onde existe posto de transformação e abastecimento da rede de PT e de iluminação pública e da posse da ré como insubsistente, ilegal e de má fé, e à condenação da ré no reconhecimento desse direito e à restituição dessa parcela de terreno na situação anterior à edificação do alegado posto, e ainda no pagamento de 5000€ por todos os incómodos, perturbação e desgostos que causaram aos autores (alegam incómodos, perturbações, angústias e aborrecimentos entretanto ocasionados pela atitude da ré, receando os autores, nomeadamente, a limitação da sua propriedade, adquirida com muito custo, e por isso sentindo-se tristes, desgostosos e humilhados) [deu-se nova redacção a este facto, para que a síntese da petição inicial ficasse mais completa, de acordo com o documento que serviu de prova ao facto – estes parenteses rectos são deste acórdão do TRP].
  3. Nessa acção, a ré contestou, alegando que a ocupação da alegada faixa de terreno não é ilegal, porquanto quando os autores adquiriram tal imóvel já se encontrava nele implantado o posto de electricidade, que foi construído em 1982, por imposição dos serviços municipalizados de X, como condição para aprovação do projecto de loteamento e faz parte integrante das infra-estruturas eléctricas de todo o loteamento em que se inclui o imóvel em apreço. Tal parcela ocupada pelo posto é de 80 m2 – o que foi dado como provado na decisão já transitada em julgado – conforme resulta da certidão junta aos autos e para a qual se remete na sua totalidade.
  4. Foi proferida decisão que julgou improcedente a acção e lícita a ocupação da referida parcela de terreno por parte da ré (C), pelo que foi a ré absolvida da totalidade do pedido então efectuado.
  5. Os autores inconformados recorreram da decisão e foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 27/02/2003, que declarou os autores proprietários do referido prédio e, no mais, manteve a decisão proferida na 1ª instância [acórdão este confirmado por ac. do STJ de 20/11/2003, 03A2743 – parenteses introduzidos por este acórdão]
  6. Nesse acórdão [do TRP], e sobre a ocupação da referida parcela de terreno com o poste de electricidade, escreveu-se que “ (…) o então dono do terreno acordou em implantá-lo, com vinculação no alvará de loteamento. Aceitou, pois, a constituição do que passou a ser uma servidão administrativa. O lote onde foi implantado foi vendido e revendido, mas essa servidão, dada a sua natureza, acompanhou o direito. Estão, assim, os autores vinculados a respeitar aquela oneração, procedendo apenas a acção e o recurso quanto à declaração do direito de propriedade.” Mais à frente acrescenta-se, podendo-se ler – “De qualquer modo, sempre se dirá que a situação descrita abre caminho – pelo menos caminho – à figura do abuso de direito. O poste de electricidade é, seguramente, bem visível e já existia lá há anos quando os autores compraram o lote e na compra abstiveram-se de qualquer referência a ele. Não se poderá daqui presumir, que aceitaram o que agora impugnam? E que pretendem só agora pôr em causa um fornecimento de energia eléctrica do modo como se processa há anos, e, assim, contrariar a expectativa de quem é, por ele, responsável?”
  7. A concessão da distribuição de energia em baixa tensão passou da C, em resultado de operação de fusão, para a ora ré.

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            O comodante, findo o contrato de comodato, pode exigir a restituição da coisa (arts. 1135/h e 1137 do CC) por duas vias. Ou assumindo-se como proprietário e intentando uma acção de reivindicação contra o comodatário, invocando a sua propriedade e a detenção da coisa por este (art. 1311 do CC). Ou pode intentar, como comodante, uma acção de cumprimento da obrigação de restituição, contra o comodatário, invocando o contrato e o incumprimento da obrigação.

              (está-se a falar disto em termos gerais, sem se aceitar minimamente a construção jurídica feita pelos autores, já que, ao contrário do que eles pressupõem a mudança de proprietário do bem emprestado não acarreta a cessão da posição que o anterior proprietário ocupava no contrato de comodato; não tendo sido clausulada a cessão [os autores não a alegaram nem ela está na lógica da alegação dos autores, que vêem a cessão, no caso, como uma consequência da venda], a transmissão da posição contratual só ocorreria se houvesse alguma regra excepcional – como é o caso do art. 1057 do CC relativamente ao contrato de arrendamento. O que quer dizer que mesmo que se lograsse provar que havia um contrato de comodato, o facto de os autores terem comprado o bem emprestado, não faria deles parte no contrato de comodato; o que, só por si, seria razão para a manifesta improcedência da acção de que fala o saneador-sentença).

            Retomando o que se estava a dizer, aquelas duas acções são distintas, por força da distinta causa de pedir: a primeira é uma acção real em que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real e a segunda é uma acção obrigacional em que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva a obrigação de restituir: o contrato e a sua cessação (art. 581/4 do CPC).

            Logo por aqui, a excepção do caso julgado não funcionaria, o que não impede que funcione a autoridade do caso julgado, como referido no saneador-sentença.

            E isto pelo seguinte:

            Numa acção de reivindicação o réu pode recusar a restituição se alegar e provar que tem título que legitime a sua posse ou detenção da coisa (art. 1311 do CC).

            Provado, numa acção de reivindicação, que o réu tem título que legitima a sua posse ou detenção da coisa reivindicada pelo autor, isso fica entre eles decidido com força de caso julgado (art. 621 do CPC), isto é, fica decidido que o réu pode recusar a restituição porque tem título que legitima a sua posse ou detenção.

               Isto tendo em conta que, como ensina Miguel Teixeira de Sousa, “o caso julgado abrange a parte decisória […] da sentença […], isto é, a conclusão extraída dos fundamentos”, e isto porque “[c]omo toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. […] Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.” (Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2ª edição, 1997, págs. 578/579; no mesmo sentido, o artigo deste autor no blog do IPPC, de 02/04/2014, Jurisprudência (6), com referência a inúmeros acórdãos do STJ e das Relações).

          Pelo que aquele autor não pode vir discutir de novo com este réu a existência daquele título de detenção ou posse. Não o pode directamente, nem o pode através da propositura de uma acção cujo resultado fosse contradizer o que antes tinha sido decidido. Ou seja, que se traduzisse em estabelecer que, afinal, o réu não tinha aquele título que legitimava a sua posse ou detenção. O resultado seriam duas decisões contraditórias.

            E por isso, mesmo que não se aceitasse a extensão do caso julgado aos fundamentos (mesmo que apenas enquanto pressupostos daquela decisão), a solução não podia ser outra.

            Como ainda explica Miguel Teixeira de Sousa, quanto aos limites objectivos do caso julgado da decisão, este “possui também um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.”

            E dá o seguinte exemplo: “se, numa primeira acção, se reconheceu que o réu se encontrava na posse de um prédio por força da vigência de um contrato de arrendamento, não pode, numa acção posterior, entender-se que esse contrato fora revogado por acordo escrito anterior à propositura da primeira acção”.

            Aplicando ao caso dos autos, se na primeira acção se reconheceu que a ré tinha título legítimo para utilizar os 80m2 do terreno dos autores, não pode, numa acção posterior, entender-se que afinal a ré se estava a servir daqueles 80m2 do prédio a título de comodato revogado pelos autores.  

            E aqui funciona, como disse, a sentença, a autoridade do caso julgado, e não a excepção do caso julgado [neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, pág. 579, na parte final do exemplo referido, ao criticar implicitamente a opção pela excepção do caso julgado; este Prof. na anotação de 02/09/2015 a um acórdão, Jurisprudência (186), explica que a autoridade do caso julgado não funciona como excepção;  é antes a vinculação de um tribunal de uma acção posterior ao decidido numa acção anterior].

            Com o mesmo resultado, dizem Lebre de Freitas e outros, que “embora o caso julgado não se estenda aos fundamentos da decisão, há que ter em conta que […] o caso julgado há-de poder ser invocado quando a sua não extensão aos fundamentos possa gerar contradição entre os fundamentos de duas decisões que seja susceptível de inutilizar praticamente o direito que a primeira decisão haja salvaguardado […]” (CPC anotado, vol. 2.º. 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 350/351).

            Estando o tribunal vinculado à decisão anterior (que inclui como fundamento o título legítimo da detenção do terreno ocupado com a PT pela ré), não a pode contrariar decidindo agora algo contraditório com ela, como o entendeu o tribunal recorrido (com apoio em Jacinto Rodrigues Bastos, Vaz Serra, Miguel Teixeira de Sousa e no ac. do TRP de 29/05/2012, 613/08.2TBMDL.P1), com a consequência da manifesta improcedência da acção (também quanto aos outros pedidos, porque estes tinham como pressuposto a procedência do primeiro).

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            A condenação em litigância de má-fé só poderia ser considerada se o recurso fosse procedente, como decorrência da alteração do decidido, já que os autores não têm uma única conclusão (a obrigatória indicação, de forma sintética, dos fundamentos por que pediriam a alteração da decisão – art. 639/1 do CPC) a pôr em causa, autonomamente, essa condenação.

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            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pelos autores (sem prejuízo do concedido apoio judiciário, mas também sem prejuízo do cancelamento do mesmo, tendo em conta o disposto no art. 10/1d da Lei 34/2004, de 29/07; comunique, para este efeito, à segurança social com as referências necessárias).

            Porto, 18/02/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto