Acção 1080/14.7TBGDM – J3 – secção cível de Gondomar
Sumário
I – O art. 5/1 do DL 218/99 põe a cargo do réu o ónus da alegação e prova de factos que permitam concluir que o facto gerador da responsabilidade civil não lhe é imputável.
II – Se o réu ao contestar não excepciona (alegando os factos que fundam a excepção), não podem ser considerados, na decisão da matéria de facto, os factos que tivessem a ver com matéria de excepção (art. 5/1 do CPC).
III – “A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar […] a verdade da alegação […] feita [pelas partes]”.
IV – “Verificada a violação da disposição de protecção [aquelas que contêm delitos de perigo abstracto (v.g. limites de velocidade)], deve presumir-se a existência de culpa […]”
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
O Centro Hospitalar X intentou uma acção contra o Fundo X, pedindo a condenação deste a pagar-lhe 9.287,78€, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Para tanto alegou que prestou assistência médica a um terceiro em virtude das lesões por este sofridas num acidente de viação em que foi interveniente juntamente com um veículo automóvel cuja marca e matrícula se desconhecem e de que foi culpado exclusivo o condutor deste.
O réu contestou impugnando todos os factos alegados pelo autor e concluiu no sentido da sua absolvição do pedido.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença condenando o réu no pedido.
O réu interpôs recurso desta sentença, cujas alegações terminou com as seguintes conclusões:
I. O tribunal a quo ao julgar provado o que consta dos pontos 4, 5 e 6, fez errada apreciação da matéria de facto, porquanto, do depoimento do assistido e condutor do XX, Y (com passagem na gravação de 14:33:05 a 14:57:33), resultou que este circulava com outro amigo, cada um na sua moto, circulavam a par, indo a ultrapassar (no seu dizer) devagar. Imediatamente à entrada de uma curva, ao mesmo tempo olhando para o amigo que circulava na outra moto.
II. Do depoimento da testemunha circunstancial, Z (com passagem na gravação de 15:03:29 a 15:21:51), cujo depoimento se transcreveu supra, resulta sem margem para dúvida que este não viu o embate, sendo que a única pessoa que afirma ter visto o embate é precisamente o condutor da moto XX, assistido pela autora, e parte interessada nos factos em apreço, porquanto foi um dos lesados com danos corporais no mesmo. A testemunha “supõe” a dinâmica do acidente, contudo afirma categoricamente, perguntada se viu o acidente – “Não, em concreto não”.
III. Assim e duma análise mais cuidada do depoimento da primeira testemunha, Y, bem como do teor da participação de acidente de viação e do croqui da mesma constante, torna-se patente a conduta do lesado na dinâmica do acidente, a qual contribuiu em grande medida para a eclosão do sinistro.
IV. Da instrução e discussão da causa conjugada com a prova documental constante dos autos, resultou que:
– a via tinha 5,40m de largura, com 2,70m destinados à circulação de cada sentido de trânsito; – as motos do lesado/assis-tido e do amigo que o acompanhava, tinham guiadores com cerca de 1m de largura; – que imediatamente antes e ao entrar na curva, circulavam a par com intenção desta primeira testemunha ultra-passar a outra moto; – que nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar ia a olhar para o seu amigo; – só em cima da curva olha para a frente e vê, de frente para si, as luzes do carro desconhecido; – atrapalhando-se e guinando para a esquerda.
V. Já a segunda testemunha, que circulava a pé no local do acidente, afirma que as motos circulavam lado a lado e, com relevo para determinar a posição dos veículos na via, sublinha-se nas suas declarações que a moto que circulava mais à direita ainda tinha espaço livre à sua direita, na faixa de rodagem.
VI. Posto isto, e atentos os depoimentos acima transcritos, conjugados com o croqui constante da participação de acidente de viação, não pode deixar de se concluir que o condutor do XX, no momento do acidente, circulava distraído do trânsito que se fazia na via, a olhar para a sua direita para o colega que pretendia ultrapassar, apesar de bem saber que estava a entrar numa curva de fraca visibilidade, como era do seu conhecimento.
VII. Acresce que teria necessariamente de circular com a sua moto no eixo da via e com a parte esquerda do seu guiador parcialmente na faixa de rodagem destinada a quem circulava em sentido contrário, pois resultou demonstrado que entre o condutor da moto que circulava mais à direita e o passeio do lado direito ainda tinha espaço livre. O guiador dessa moto tinha 1m de largura, somado o espaço mínimo de segurança entre as extremidades dos guiadores de ambas as motos, somando mais um metro de largura do guiador da moto XX, resulta notório que da extrema direita do guiador da moto que circulava pelo lado do passeio à extrema esquerda do guiador da XX que circulava no eixo da via, ultrapassa o cumprimento de 2,70m correspondente à largura da faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos no sentido em que circulavam as motos.
VIII. Nestes termos, os pontos 4, 5 e 6 dos factos provados devem ter uma diferente resposta, para os quais se sugere a seguinte redacção:
4. No dia e hora referidos em 1, o referido Y seguia pela via conduzindo o XX no sentido a – b.
5. O XX circulava junto ao eixo da via a par com outra motorizada, olhando para a direita e distraído do trânsito que se fazia nessa via.
6. Quando circulava pelo modo descrito em 5, ao iniciar a curva que se apresentava à sua direita, atento o seu sentido de marcha, surgiu o veículo de matrícula desconhecida, que circulava em sentido oposto, com a luzes apontadas ao condutor do XX.
IX. A decisão do tribunal que culminou na condenação do réu assentou numa interpretação errada das normas aplicáveis, designadamente quanto à aplicação da exceção à regra de ónus da prova a cargo do autor na presente ação constante do art. 9 (actualmente revogado pela Lei 64-B/2011, de 30/12) do Decreto-Lei 281/99, de 15/06, nos termos do qual, para que se possa aplicar a alegada inversão do ónus da prova em detrimento do regime geral, têm de se verificar os seguintes requisitos, as saber: estarmos perante acidentes de viação; ser o demandado uma segu-radora; estar abrangido por seguro obrigatório de responsabilidade civil, válido e eficaz; o exigido pagamento dos encargos decor-rentes dos cuidados de saúde prestados a vítimas de acidentes de viação se encontrar dentro do limite de 1000 contos por acidente e lesado [a que actualmente corresponde o valor de 4987,98€].
X. Face ao exposto, não se verificam integralmente tais requisitos, pois o demandado não é uma seguradora, o veículo alegadamente causador do sinistro, porque desconhecido, também se desconhece se a sua circulação estava ou não abrangida por seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, válido e eficaz. Sendo que, tão pouco, o demandado o é nessa qualidade.
XI. Por último, e de clareza indubitável, o valor do pedido e no qual o tribunal a quo condenou o réu é de 9287,78€ o qual é perto do dobro do valor máximo de 4987,98€ até ao qual o autor pode beneficiar da predita “inversão do ónus da prova” prevista no nº 1 do artigo 9º do citado diploma legal.
XII. Com esta norma o legislador procurou, no confronto entre dois importantes pilares – a verdade material, a certeza e segurança jurídica por um lado e maior celeridade e facilidade de cobrança das dívidas hospitalares por outro – “equilibrar os pratos da balança” estabelecendo um limite de valor a partir do qual, por configurar quantias mais elevadas, terá o autor de fazer prova da responsabilidade civil (e dos seus pressupostos) que pretende ver assacada ao réu. No caso dos autos, fazer prova da existência e culpa de um veículo desconhecido na eclosão do sinistro que deu origem à necessidade de cuidados hospitalares por parte do condutor do XX.
XIII. A decidir-se de outro modo, estar-se-ia a subverter as regras processuais constantes quer do regime geral, quer deste específico diploma, permitindo que uma entidade hospitalar pudesse cobrar qualquer valor que demonstre documentalmente (através de documentos por si própria emitidos) contra qualquer seguradora, ou como pretende na presente ação, contra o Fundo X, sem ter de demonstrar a culpa do alegado lesante.
XIV. Tal entendimento afronta os mais basilares princípios de direito, pois, apesar de entender que os factos que o réu quer ver julgados provados foram apurados na audiência de discussão e julgamento, entende que ‘Os factos em questão não podem ser qualificados de instrumentais, já que a são relativos a aspectos concretos da dinâmica do acidente e determinantes para a impu-tação da culpa na sua produção. Assim, não tendo sido alegados pelo réu, também o tribunal não os pode considerar nos termos do art. 5 do CPC por entender que não sendo factos instrumentais, também não integram a previsão contida no art. 5/2b do CPC em virtude da falta de alegação por parte do réu de qualquer facto relativo à dinâmica do acidente que permitisse considerar estes factos apurados em sede de julgamento complement[ares] ou concretizadores.’
XV. Face a este entendimento coloca-se a questão: como podia o réu alegar factos respeitantes à dinâmica do acidente se não os presenciou, o acidente não lhe foi comunicado em sede extrajudicial, e está em causa um veículo desconhecido, não existindo a versão dos factos do outro alegado interveniente?
XVI. Nestes termos, deve o condutor do XX ser declarado único culpado do acidente em causa nos autos, ou, caso assim se não entenda, sempre deve ser decidido que o condutor do XX agiu com concorrência de culpa para a eclosão do sinistro.
XVII. A sentença a quo ao decidir como decidiu violou as normas e princípios contidos nos artigos 5 e 9/1 do DL 218/99 de 15/06, 342/1, 483 e 503/1 do CC, 5/2, als. a) e b), do CPC, 38, 41/1, als. e), f) e g) e 90/1 do Código da Estrada.
O autor não contra-alegou.
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Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto no sentido pretendido pelo réu e se, no caso de o ser, tal deve acarretar a improcedência da acção.
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Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
- O autor prestou assistência médica a Y em virtude das lesões sofridas por este em consequência, directa e necessária, do acidente ocorrido no dia 07/04/2011, pelas 22h40, em que foi interveniente, enquanto condutor do motociclo com a matrícula 00-XX-00, juntamente com um veículo automóvel de marca e matrícula desconhecidos e condutor, também, desconhecido.
- Tendo levado a cabo procedimentos médicos no período compreendido entre 7 e 18/04/2011 e realizado consultas externas de ortopedia em 26/04/2011, 03/05/2011 e 11/05/2011.
- Os encargos resultantes da referida assistência médica que foi prestada ao dito Y ascenderam ao montante global de 9.287,78 euros, tendo nessa sequência o autor emitido em nome do réu a factura n.º XXXXXXX, no valor referido, datada de 29/04/2014.
- No dia e hora referidos em 1, o referido Y seguia pela via conduzindo o XX no sentido a-b, circulando a uma velocidade não superior a 50km/h.
- O XX circulava na sua faixa de rodagem junto de outra motorizada.
- Quando se encontrava na sua faixa de rodagem a iniciar a curva que se apresentava à sua direita, atento o seu sentido de marcha, surgiu o veículo de matrícula desconhecida, que circulava em sentido oposto invadindo, parcialmente, a faixa de rodagem destinada à circulação do XX e cortando-lhe a trajectória.
- O XX despistou-se indo embater no passeio que ladeava a faixa contrária, perdendo os sentidos.
- O condutor do veículo desconhecido continuou a sua marcha, abandonando o local, não permitindo ao assistido identificar quer o condutor, quer a matrícula do veículo.
- No local onde ocorreu o acidente a via desenha uma cur-va à direita, atento o sentido de marcha do XX, com visibilidade reduzida.
- A responsabilidade civil pelos estragos provocados pela circulação do XX encontrava-se transferida para a Seguradora X mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º XXXX.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Do confronto entre a redacção dos factos 4, 5 e 6 que o réu quer que fique consignada (conforme conclusão VIII) e a redacção que lhes foi dada pela decisão impugnada resulta o seguinte:
Em relação a 4 o réu quer que seja retirada a afirmação de que o veículo do autor circulava a uma velocidade não superior a 50km/h.
Em relação a 5, em que se dizia que o veículo do autor circulava na sua faixa de rodagem junto de outra motorizada, o réu quer que seja dito que o fazia junto ao eixo da via (em vez de na sua faixa de rodagem), a par com outra motorizada (e não junto de outra motorizada) e quer que seja acrescentado que o autor estava a olhar para a direita e distraído do trânsito que se fazia nessa via.
Em relação a 6, na parte que importa, o réu quer que, em vez de ‘ao iniciar a curva…. surgiu o veículo de matrícula desconhecida, que circulava em sentido oposto invadindo, parcialmente, a faixa de rodagem destinada à circulação do XX e cortando-lhe a trajectória’, fique escrito apenas que ‘surgiu o veículo de matrícula desconhecida, que circulava em sentido oposto, com a luzes apontadas ao condutor do XX.’
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Em relação ao que se refere a 4, o réu não tem uma linha de texto que seja a tentar demonstrar que o tribunal não devia ter dado como provado que o veículo do autor circulava a uma velocidade não superior a 50km/h, pelo que esta pretensão vai, desde já, rejeitada [art. 640/1b) do CPC].
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Em relação a 5 a questão que se coloca é completamente diferente.
Com efeito, a sentença, ainda no decurso da fundamentação da sua convicção quanto à decisão da matéria de facto, diz o seguinte, como aliás já decorre de parte das conclusões do réu:
“Na audiência de discussão e julgamento foram apurados um conjunto de factos aos quais não foi feita alusão nem nos factos provados, nem nos factos não provados.
Tais factos prendiam-se com a dinâmica do acidente e eram relativos à conduta do assistido pelo autor (o XX seguia muito próximo do eixo da via; circulava a par com outro motociclo; a olhar para o lado, para o condutor do outro motociclo; foi surpreendido pelo veiculo a circular em sentido contrário e atrapalhou-se guinando para a esquerda atravessando-se na frente desse veículo).
Tais factos não foram alegados por nenhuma das partes.
Tais factos teriam de ser alegados pelo réu, atenta a inversão do ónus da prova existente – cfr. art. 9/1 do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15/06.
Os factos em questão não podem ser qualificados de instrumentais, já que a são relativos a aspectos concretos da dinâmica do acidente e determinantes para a imputação da culpa na sua produção.
Assim, não tendo sido alegados pelo réu, também o tribunal não os pode considerar nos termos do art. 5 do CPC por entender que não sendo factos instrumentais, também não integram a previsão contida no art. 5/2b do CPC em virtude da falta de alegação por parte do réu de qualquer facto relativo à dinâmica do acidente que permitisse considerar estes factos apurados em sede de julgamento complemente[ares] ou concretizadores.”
Ou seja, a decisão da matéria de facto diz que quase todos aqueles factos poderiam ser dados como provados se tivessem sido alegados. Mas não o foram.
Contra isto, o réu, como se vê das suas conclusões de recurso, entende, por um lado, que a inversão do ónus da prova do art. 9 do DL 281/99 invocado não é aplicável ao caso dos autos e, por outro lado, que não lhe era exigível que alegasse factos respeitantes à dinâmica do acidente por: (i) não os ter presenciado, (ii) o acidente não lhe ter sido comunicado em sede extrajudicial, (iii) estar em causa um veículo desconhecido, não existindo a versão dos factos do outro alegado interveniente.
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Do regime geral da cobrança de dívidas hospitalares
Quanto ao argumento da aplicação do regime do art. 9 do DL 281/99 (que à data dos factos ainda estava vigente), o réu tem razão, já que não se verificam os respectivos pressupostos de aplicação, como ele o demonstra. De resto, o autor não tinha invocado a aplicação do art. 9, que não tem a ver com o caso, mas antes o regime geral da cobrança das dívidas, previsto nos arts. 5 a 8 do mesmo DL.
Não sendo aplicável o art. 9, é no entanto aplicável o art. 5/1 do DL, que, ele sim, sem dependência dos pressupostos do art. 9, põe a cargo do devedor o ónus da alegação e prova de que não é responsável pelo facto gerador da responsabilidade (como decorre da interpretação do art. 5/1: se ‘nas acções para cobrança das dívidas de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde […]’ é porque a prova do facto gerador da responsabilidade não lhe cabe, já que a única prova que lhe cabe é a da prestação de cuidados de saúde; se não lhe cabe a prova do facto gerador da responsabilidade, daí decorre que se não fizer essa prova não pode ser prejudicado e a acção tem de proceder mesmo sem ela; pelo que só assim não sucederá se o réu fizer a prova de que a responsabilidade não lhe cabe a ele, o que só poderá fazer se alegar os factos que permitam essa conclusão; neste sentido, desde logo o ac. do STJ de 30/09/2003, 03A1973, invocado pelo autor, acórdão que diz que cabe à seguradora alegar a falta de culpa do seu segurado [estava-se num caso em que o réu era uma seguradora…]; no mesmo sentido, embora fale apenas no ónus da prova, veja-se ainda o ac. do STJ de 15/10/2013, 1382/11.4TBVFR.P1.S1: “I – No âmbito das acções de dívidas hospitalares, previstas no DL n.º 218/99, de 15-06, cabe ao autor a prova da prestação dos cuidados de saúde e a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos, incumbindo à parte contrária a prova de que não foi culpada. II – É que, nos termos do art. 5.º do citado DL n.º 218/99, há uma inversão do ónus da prova da culpa, pelo que incumbe à ré, de acordo com o art. 344/1 do CC, a prova de que o condutor do veículo nela seguro não foi culpado do acidente que motivou as lesões do assistido”; o acórdão, que tem um voto de vencido, cita ainda outras duas decisões do STJ ambas neste mesmo sentido, e refere-se à numerosa jurisprudências das Relações que vão no mesmo sentido; contra isto o Fundo limita-se a dizer que não há no art. 5/1 qualquer inversão do ónus da prova; onde a haveria seria, sim, no art. 9; mas é manifesta a falta de fundamentação da primeira afirmação que é aquela que agora interessa).
Já agora note-se que o art. 5/1 vale contra todos os réus, incluindo pois o Fundo, e não apenas contra as seguradoras. Só no art. 9 de tal DL é que se começa a falar em seguradoras.
Assim sendo, embora o réu tenha razão em dizer que o art. 9 não se aplica ao caso dos autos, sendo que a referência a tal artigo ter-se-á devido a um mero lapso de escrita da decisão recorrida como se vê depois do resto da sentença, aplica-se de qualquer modo o art. 5/1 do mesmo DL, que tem, ele sim, a consequência invocada pela sentença recorrida: se é o réu que tem o ónus da alegação e prova dos factos que permitam concluir que a responsabilidade não lhe é imputável, se nada alega nesse sentido, os factos respectivos não podem ser tomados em consideração.
Aliás, mesmo sem recurso ao art. 5 do DL 218/99, a construção da sentença feita na 2ª parte da argumentação transcrita é válida, como se passa a ver.
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Do ónus da alegação dos factos essenciais que consubstanciam as excepções
Posta a questão nos termos que se colocam em qualquer acção respeitante a um acidente de viação, os factos que estão em causa são factos que o réu poderia ter alegado se quisesse demonstrar que o condutor do XX tinha sido o único culpado do acidente ou que tinha concorrido para o mesmo. Ou seja, são factos que impediriam o nascimento da obrigação de indemnizar ou modificariam essa obrigação, que estava baseada na culpa exclusiva do condutor do veículo desconhecido. São, por isso, matéria de excepção (arts. 505 e 506 do CC e 571/2 e 576/3 do CPC).
Ora, os factos essenciais da matéria da excepção, sem a qual esta não se pode considerar invocada têm de ser alegados pelas partes contra as quais são feitas valer os direitos (art. 5/1 do CPC – como diz Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, 2013, pág. 165: “Às partes – e só a elas – cabe alegar os factos principais […] da causa, isto é, os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções […]; e mais à frente, nota 39 da pág. 169: os factos em que a excepção se funda deverão ter sido objecto de alegação nos articulados, pois o conhecimento oficioso da questão de direito (excepção) não dispensa a introdução dos factos pelas partes […]), pelo que o tribunal não se lhes pode substituir, como aconteceria se tomasse em consideração, na decisão da matéria de facto, factos de uma excepção que não tivesse sido alegada pela parte. E a sentença tem toda a razão ao dizer que os factos em causa não podem ser considerados complementares ou concretizadores de algo que o réu não alegou, ou seja, no entendimento que se está agora a seguir, de factos essenciais da matéria de excepções que não foram invocadas.
E o réu não tem razão ao argumentar com a, em síntese, impossibilidade material, por força das circunstâncias, de alegar factos relativos ao acidente. O réu teve, como todos os réus, um prazo para contestar, que podia ser prorrogado (art. 569/5 do CPC), durante o qual podia e devia ter feito a investigação do acidente relatado pelo autor. Aliás, a configuração que o caso dos autos assume na versão da sentença e na tese do réu, demonstra que a investigação era possível e que a simples audição do condutor do veículo e da testemunha que seguia no mesmo sentido, permitiam chegar à descoberta dos factos em causa.
O nosso sistema processual civil continua, no fundamental, a ser idêntico ao que era antes da reforma de 2013 nesta parte: a instrução do processo não é uma actividade de investigação livre dos factos, mas antes uma actividade de investigação da verdade das afirmações das partes sobre os factos; as partes não podem esperar que a actividade instrutória durante o decurso do processo supra a sua falta de alegação dos factos essenciais (não interessando ao caso dos autos saber se também de todos os principais) que deviam ter alegado.
Como diz Lebre de Freitas: “A produção dos meios de prova no processo visa demonstrar a realidade dos factos alegados pelas partes ou, em outra perspectiva, demonstrar a verdade da alegação por elas feita [em nota: As duas perspectivas retratam conceitos praticamente equivalentes; mas, no campo do processo civil, a segunda tem a vantagem de acentuar que a função probatória é precedida pela afirmação de que o facto ocorreu: a alegação precede a prova […]] (A acção declarativa, 3ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 204).
Em suma, a sentença teve razão em não considerar os factos em causa como factos de que pudesse tomar conhecimento, por não terem sido alegados pelo réu (e isto vale para todos os factos que o réu quer ver alterados em relação a 5, pois que não alegou nenhum deles e todos dizem respeito a matéria de excepção).
Não podendo ser considerados, não importa discutir se estão ou não provados, ou seja, a matéria da impugnação da decisão da matéria de facto fica, nesta parte, prejudicada.
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O que antecede vale também para os factos que o réu pretende alterar e acrescentar relativamente a 6. Trata-se de factos que o réu não alegou na contestação, ou seja, de matéria de excepção que não foi invocada e que por isso não pode ser considerada.
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Improcede, pelo que antecede, toda a tentativa do réu de alterar a decisão da matéria de facto.
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Da culpa do acidente – presunções de culpa
Com base na matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, não há dúvida que a acção devia ser considerada procedente, como aliás não deixa de ser reconhecido implicitamente pelo réu que não tem qualquer conclusão destinada a apresentar razões pelas quais a decisão devesse ser modificada com base nos factos realmente provados; defende essa alteração apenas com base na procedência da pretensão da alteração da matéria de facto.
Aliás, a argumentação do réu até constitui fundamentação adicional do bem decidido pela sentença recorrida, visto que, resultando dos factos provados a violação, pelo condutor do veículo desconhecido, de uma contra-ordenação (apareceu ao condutor do XX a conduzir na mão de trânsito contrária – art. 13, n.ºs 1 e 5, do Código da Estrada), aplicar-se-ia então, como defende o réu, a presunção natural de culpa de tal condutor.
Como diz Sinde Monteiro (Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Colecção Teses, 1989, pág. 267): “…Está pois bem acompanhado o nosso STJ (ac. de 21/2/1961, BMJ.104, 417/421), ao falar de ‘…negligência presumida, qualificação que se traduz por inobservância de leis ou regulamentos, o que per se dispensa a prova em concreto da falta de diligência” (o autor cita também os acs do STJ de 14/10/1982, BMJ 320/422; de 6/1/1987, BMJ 363, págs. 488/491, com inclusão de outra jurisprudência, e de 21 e 28/1/88, TJ n.º 40, Abril de 1988, respectivamente págs. 22 e 23).
E ainda do mesmo autor: “Verificada a violação da disposição de protecção [aquelas que contêm delitos de perigo abstracto (v.g. limites de velocidade) – pág. 610], deve presumir-se a existência de culpa, solução para que se vêm inclinando os nossos tribunais” – pág. 612.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Porto, 08/10/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto