Acção declaração do DL 108/2006 2649/11.7TBMTS do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos

Sumário:

I. Por força da presunção legal de incumprimento culposo prevista no art. 12/1 da Lei 24/2007, as concessionárias só se eximem da responsabilidade por danos causados por objectos existentes nas faixas de rodagem das auto-estradas, que indiciariamente lhes cabe, se “demonstrarem que agiram com a diligência exigível ao bonus pater familias”, ou seja, que “a empresa adoptou e cumpre um sistema de vigilância próprio de um concessionário prudente e zeloso, concebido para prevenir, identificar e remover os normais riscos que condicionam a segurança da circulação”.

II. Para tal não é suficiente provar-se que se fizeram passagens pelo local sem se detectar objectos caídos na via, se não se provar que essas passagens são feitas de modo a corresponderem a um efectivo exercício de vigilância da via.

III. As obrigações de indemnização pecuniárias são ilíquidas, pelo que não basta a interpelação dos lesantes para haver mora. O devedor apenas se constitui em mora com a citação para a acção, a menos que já haja então mora por a falta de liquidez lhe ser imputável (art. 805/3 do CC).

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

[….]

Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença a condenar a ré no pedido.

             A ré recorre desta sentença – e com ela impugna também o despacho que desatendeu uma reclamação contra a base instrutória, para que este seja alterado de modo a aditar-se um quesito – para que a sentença seja revogada e substituída por outra que altere a “resposta” dada aos artigos 2, 3, 7, 17, 19, 20, 22 e 25 da base instrutória e a absolva do pedido, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

                       […]

X. Já no que concerne ao artigo 22, e tendo em atenção o depoimento transcrito de AJ, este devia ter sido considerado provado, embora no sentido de que a visibilidade era de 75 a 100 metros.

Posto isto,

XI. Não havendo dúvidas quanto à aplicabilidade do artigo 12/1a) da Lei nº 24/2007, de 18/07, ao sinistro dos autos, importa, no entanto, salientar que a ré diverge do Tribunal a quo na interpretação que desse preceito legal deve ser feita.

XII. Efectivamente, sendo verdade que a ré se obrigou a assegurar permanentemente a circulação na AE em boas condições de segurança e comodidade, daí não decorre que essa sua obrigação implique uma omnipresença em todos os locais da sua concessão como (não o dizendo expressamente) considerou a sentença, mormente nos locais de eclosão de acidentes ou de queda ou abandono de objectos, até porque as suas obrigações são de meios e não de resultado, como facilmente se intui.

XIII. Por outro lado, também não nos parece que se possa falar em presunção de incumprimento em tal situação e menos ainda que à ré incumbia demonstrar a proveniência do objecto para se eximir da sua eventual responsabilidade, quer porque não está prevista na Lei aplicável essa presunção ou que só logre afastar essa responsabilidade com a ocorrência de um caso de força maior, quer porque, e finalmente, dessa forma caminharíamos inevitavelmente na direcção de uma responsabilidade objectiva que também não tem previsão legal.

XIV. Incumbe à ré, isso sim (tratando-se, portanto, de obrigações de meios, sem que lhe deva ser exigido o dom da ubiquidade), um ónus de provar que cumpriu com as suas obrigações de segurança, obrigações essas que não são iguais em todos os casos previstos nas diferentes alíneas do artigo 12/1 da Lei nº 24/2007, de 18/07, mas que nesta situação (de acidente com objecto) traduzem-se no patrulhamento permanente da via, respeitando uma cadência razoável de passagem nos mesmos locais, e a prova também que nada foi detectado naquele local na última passagem em vigilância – vide, nestas linhas, a transcrição efectuada de uma parte do ac. desta RP de 09/11/2009 (e cfr. também os ac. desta RP de 13/09/2012 e de 17/11/2011).

XV. Ainda que – o que se admite apenas para efeitos deste raciocínio – o Tribunal ad quem entenda que o artigo 36 da contestação da ré não deve figurar nos factos controvertidos e necessariamente, pelo que se disse, naqueles provados, a verdade é que a ré fez indiscutivelmente essa prova (i. e., que passou pela última vez no local, sem ter detectado o que quer que seja, apenas cerca de 1h05m antes do acidente), além de que, como se conclui da demais prova, a origem do objecto naquele local é perfeitamente explicável (embora esta última não nos pareça de todo uma prova essencial a fazer pela ré).

Sem prescindir,

XVI. Alterada a matéria de facto nos moldes defendidos pela ré na primeira parte deste recurso, devem daí ser retiradas as devidas consequências, com reflexo na sorte da acção que assim deverá ser julgada improcedente.

XVII. De facto, a conduta do condutor do veículo seguro é merecedora de censura, na medida em que este não foi cauteloso e não respeitou o Código da Estrada (art. 14/1) que lhe impunha que transpusesse – e tinha espaço e tempo suficientes para o fazer – gradualmente as vias até que o veículo chegasse à via da direita das quatro ali existentes, sentido A – M (pois que esse era o seu sentido de marcha), e não, como afinal fez, que atravessasse numa rápida diagonal três daquelas quatro vias.

XVIII. Por isso, e devido à circunstância de o condutor não ter agido de acordo com o critério prudente de um bonus pater familias, sempre será de considerar o disposto no art. 570 do CC, de modo que a eventual culpa da ré (a existir, o que não se concebe) deveria ser neste caso totalmente excluída.

Ainda sem prescindir e por mera cautela de patrocínio,

XIX. Não faz qualquer sentido a condenação da ré em juros a contar de uma invocada interpelação, pois que, e como é sabido, a sua eventual mora só se inicia com a citação para a acção.

Finalmente,

XX. A sentença violou, pois, e salvo o devido respeito, o art. 12/1a) da Lei 24/2007, de 18/07, e os arts 342, 483, 487, 570 e 805/3, todos do CC, razões pelas quais deve ser revogada e substituída por outra decisão que absolva a apelante do pedido formulado pelo autor.

*

A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

*

[…]

Da impugnação do despacho que desatendeu a reclamação contra a base instrutória

No art. 36 da sua contestação a ré dizia: “A concessionária, aqui ré, obrigou-se, regra geral, i. e., em condições normais, a efectuar passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 3 horas, salvo, naturalmente, se as condições de tráfego/circulação ou a eclosão de acidentes, incidentes ou outro tipo de ocorrências o não permitirem.”

No despacho que indeferiu a reclamação da ré por a matéria deste artigo não ter sido levada à base instrutória, diz-se que o alegado no art. 36 não possui cunho factual, que pressupõe a existência de um acordo de vontades não invocado e que não pode ser demonstrado através de meios de prova.

A ré não tem razão em pretender o contrário.

Para se concluir pela existência de uma obrigação, a ré precisava de ter alegado a fonte da mesma, o que não fez. Se o tivesse feito, eram esses os factos que tinham que ser levados à base instrutória. Como se, por exemplo, tivesse dito – mas não disse – que tal obrigação resultava do que constava do “Manual de Operação e Manutenção e no plano de controlo de qualidade” para o qual a Base XLV do DL 189/2002, de 28/08, remete, como consignado nos factos assentes [facto D)/4].

Não o tendo feito, tal alegação era puramente conclusiva, sem base factual e, como diz o despacho impugnado, insusceptível de ser objecto de produção de prova.

E como já resulta do que antecede, a situação não tem qualquer comparação com outras obrigações que foram dadas como assentes no despacho de condensação. Elas foram aí consignadas como conteúdo de regras que regulavam a relação contratual entre a ré e o concedente, não como obrigações nascidas não se sabe de onde por a ré não o ter alegado.

Por isso, se a defesa da ré foi prejudicada por aquela obrigação não ter sido levada à base instrutória, ou talvez melhor, logo aos factos assentes, como provavelmente poderia ter acontecido, só dela se pode queixar.

E não interessa agora saber se tal matéria – que não foi levada à base instrutória – foi ou não provada pelo depoimento de uma testemunha, pois que, não tendo sido levada à base instrutória não foi objecto de prova e por isso não pode ser dada como provada.

De qualquer modo, o que interessaria saber – e que teria de ser alegado e não foi – era se a ré, em cumprimento ou não daquela obrigação, tinha de facto passado pelo local com o intervalo máximo de três horas. Ora, a ré abstém-se de fazer esta afirmação (e a prova que foi ouvida para os outros quesitos, torna claro, como diz a autora, que esse intervalo não foi respeitado: houve uma passagem às 15h40 e outra só às 19h40, ou seja, um intervalo de 4h; para além da prova pôr em causa a eficácia tais passagens, como diz a autora, já que é só um trabalhador da ré que a faz enquanto vai a conduzir um veículo automóvel, atento ao trânsito…).

Assim, nada do que a ré diz nas três primeiras conclusões do recurso procede.

[…]

Do recurso contra a decisão da matéria de facto

[…]

*

Do recurso contra a decisão de direito

A sentença recorrida faz a seguinte construção:

A autora, ao pagar a indemnização ao seu segurado, sub-rogou-se no direito deste (arts. 441 do Código Comercial e 592/1 e 593 do CC), pelo que importa saber se o segurado tinha algum direito contra a ré, pelos danos que resultaram para o veículo daquele devido ao acidente dos autos. Depois diz que a ré é concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente e que nos termos das Bases XLV e LIV do anexo do DL 189/2002, de 28/08, lhe incumbem certas obrigações, respondendo, por força da Base LXXIII  do mesmo anexo, “nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco…”.

Após lembra a controvérsia jurisprudencial sobre a natureza da responsabilidade civil a que a ré fica sujeita perante os utentes da via, pois que uns a consideravam extracontratual e outros contratual e esclarece que entretanto foi publicada e entrou em vigor em 19/07/2007 a Lei 24/2007, de 18/07, a qual estabelece no seu art. 12/1, que “Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a: a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais”, sob pena de se presumir a culpa da dita nesse cumprimento.

E acrescenta: a questão é, então, saber em que circunstâncias poderemos considerar que a ré cumpriu a mencionada obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, por isso, não obstante a verificação do acidente, ficará exonerada do dever de reparar os prejuízos causados.

Julgamos que não bastará à ré concessionária a demonstração de que foi diligente. Ter-se-á, em primeiro lugar, que estabelecer positivamente qual o evento concreto que lhe impediu o cumprimento da aludida obrigação. Tal não significa, contudo, que lhe seja exigível a prova histórica daquele, designadamente, quando se trate de um facto de terceiro, a identificação desse mesmo terceiro.

O que parece ser de exigir é que se trate sempre de um facto estranho à esfera de actividade da ré. É que se os factos caem na sua esfera de domínio, mesmo sem implicarem uma actuação culposa (p. ex. a avaria de um veículo de fiscalização ou a doença de um funcionário) nomeadamente na modalidade de “culpa de organização”, não se poderá considerar cumpridas as obrigações supra mencionadas.

Compreende-se, pois, que para efeitos de cumprimento deste ónus probatório, muito depende da concreta causa de acidente.

Ora, na situação vertente, a ré alegou e conseguiu demonstrar que: – os seus funcionários efectuam diversos patrulhamentos em toda a extensão da VRI, nó do aeroporto; – que no dia do acidente passaram, pelo menos, duas vezes no local do acidente, a última pelas 19h40, e não detectaram qualquer objecto caído no chão; e – que sempre que tem conhecimento da existência de quaisquer objectos na VRI que possam colocar em risco a circulação automóvel actua de forma imediata por forma a removê-los da via de trânsito.

Resulta ainda dos factos provados que no dia, hora e local da ocorrência do acidente não existia qualquer sinalização a advertir os condutores de veículos automóveis para objectos caídos no pavimento e que o troço da concessão em que ocorreu o acidente é habitualmente utilizado por veículos pesados devido à proximidade do aeroporto e da via de ligação ao Porto de Leixões.

Tendo em conta as características do trânsito que aí se processa e resultando apenas demonstrado que no dia do acidente os funcionários da ré passaram no local do acidente duas vezes, tem que concluir-se que a ré não cumpriu os deveres de vigilância adequados a evitar aquela específica fonte de perigo – queda ou abandono de objectos provenientes da circulação de veículo pesados que predominam no local.

A argumentação da ré contra a sentença recorrida está sintetizada nas conclusões XI a XV.

                                                      *

Da presunção legal de incumprimento culposo

A Lei 24/2007, em caso de acidente rodoviário ocorridos em auto-estradas, causados por objectos existentes nas faixas de rodagem, com consequências danosas para pessoas ou bens, impõe às concessionárias da exploração das AE, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança.

Ora, quem tem o ónus da prova do cumprimento de obrigações, tem também o ónus da prova de que o não cumprimento delas não procede de culpa sua (assim também na responsabilidade contratual, onde sempre se entendeu que é o devedor que tem de alegar e provar o cumprimento da obrigação, por força do art. 342/2 do CC, pois que se não o fizer, se presume o incumprimento, cabendo-lhe então provar que este não procede de culpa sua, por força do art. 799/1 do CC; compreende-se, assim, mesmo sem se seguir a tese contratual, a utilidade da construção que é feita no ac. do STJ de 02/11/2010, 7366/03.9TBSTB.E1.S1: “Trata-se de um ónus posto a cargo de alguém que é devedor de uma prestação inerente à concessão das auto-estradas, o que permite afirmar que a lei consagrou a regra do art. 799/1 do CC – cabendo à concessionária ilidir a presunção de culpa quando for possível afirmar que, por violação de “obrigações de segurança”, ocorreu por acidente rodoviário respeitando [a…] “ a) objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) atravessamento de animais; c) líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais”).

E isto equivale a estabelecer uma presunção de culpa no incumprimento daquelas obrigações (a ré não tem por isso razão quando diz, na conclusão XIII que não se pode falar em presunção de incumprimento em tal situação; como diz Rui Ataíde, Acidentes em auto-estradas: natureza e regime jurídico da responsabilidade dos concessionários, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor CFA, Vol. II, Almedina, 2011, pág. 195 e nota 60: “há uma expressa presunção indirecta de ilicitude [{ou seja, de incumprimento – acrescento deste acórdão} – a presunção é indirecta porque não se diz que se presume o incumprimento mas, antes, que se deve provar o cumprimento]”).

Daí que este ónus de prova, que diz respeito à ilicitude (incumprimento das obrigações de segurança), estabelece ao mesmo tempo uma presunção de culpa no incumprimento, num paralelo com o regime da responsabilidade por danos causados por coisas (art. 493/1 do CC – como diz o ac. do TRC de 27/03/2012, 211/09.3TBCLB.C1: A introdução pela Lei 24/2007, através do respectivo art. 12/1, para a concessionária de uma auto-estrada, de um ónus da prova do cumprimento das obrigações activas de segurança do troço concessionado em termos de evitar acidentes referidos às causas indicadas nas três alíneas desse nº 1, implica o estabelecimento de uma presunção de culpa da concessionária e […] actuará como regra de decisão em caso de non liquet probatório).

E, assim sendo, por força desta presunção legal de culpa (art. 487/1, parte final, do CC), as concessionárias só se eximem da responsabilidade por danos causados por objectos existentes nas faixas de rodagem, que indiciariamente lhes cabe, se “demonstrarem que agiram com a diligência exigível ao bonus pater familias” (art. 487/2 do CC – Rui Ataíde, estudo citado, pág. 173).

A ilisão desta presunção de culpa – presunção que não é incompatível “com a natureza das obrigações de meios postas a cargo das concessionárias” (Sinde Monteiro em anotação ao Ac. do STJ de 12/11/1996 publicada na RLJ 131/1998, págs. 41-50, 106-113, 378-380 e RLJ 132/1999, págs. 28-32, 60-64 e 90-96, especificamente pág. 93 e nota 56 da RLJ 132, e Rui Ataíde, estudo citado, pág. 173), como em geral não é incompatível com as obrigações de meios (como por exemplo se tem entendido, por último, na responsabilidade por negligência médica) – não “implica a prova positiva do concreto evento que produziu o dano” ou de que o evento se deveu a caso fortuito, de força maior ou de terceiro (Rui Ataíde, estudo citado, pág. 176); exige apenas a comprovação de que “a empresa adoptou e cumpre um sistema de vigilância próprio de um concessionário prudente e zeloso, concebido para prevenir, identificar e remover os normais riscos que condicionam a segurança da circulação” (Rui Ataíde, estudo citado, págs. 177-178).

*

E tudo isto já se podia entender assim desde há muito, como se pode ver na anotação do Prof. Sinde Monteiro supra referida: entendia que existia uma presunção de culpa da concessionária considerando a auto-estrada como coisa imóvel sobre a qual a concessionária detém um poder de facto, com o dever de a vigiar (art. 493/1 do CC).

No mesmo sentido, diz, em síntese, Menezes Leitão: “Os deveres que recaem sobre a concessionária implicam manifestamente o dever de vigilância da auto-estrada o que, face ao art. 493/1 implica o estabelecimento de uma presunção de culpa, relativamente aos danos causados a terceiros em resultado das deficientes condições da viga, a qual seria, nos termos gerais, ilidida com a mera demonstração de que o dever de vigilância foi cumprido. Esta solução foi expressamente consagrada no art. 12/1 da Lei 24/2007 (Direito das obrigações, vol. I, 2010, 9ª ed,  Almedina, nota 709, págs. 336/337).

No mesmo sentido, ainda, ia o artigo do Conselheiro Urbano Dias, Da responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas em acidentes de viação, publicado na Revista do CEJ 1º semestre de 2007 nº. 6.

Para além disso, noutras hipóteses, ainda havia que considerar que algumas das normas do contrato de concessão são disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, cuja violação acarreta o preenchimento da 2ª modalidade da ilicitude do art. 483/1 do CC, o que permitia presumir, natural ou judicialmente, a culpa (“Verificada a violação da disposição de pro­tec­ção [aquelas que contêm delitos de perigo abs­tracto (v.g. limites de veloci­da­de) – pág. 610], deve presu­mir-se a existência de culpa, solu­ção para que se vêm inclinando os nossos tribunais” – Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Reco­mendações ou Informações, Al­medina, Colecção Te­ses, 1989, pág. 612.). No mesmo sentido, Rui Ataíde, estudo citado, pág. 173. Para Carneiro da Frada era esta a via normal de solução, mas apenas admite, em nota, que demonstrada a violação de uma disposição de protecção, é naturalmente curta a distância para a culpa (Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes em auto-estradas, de 2005, publicado em Estudos em Homenagem ao Prol Doutor Manuel Henrique Mesquita, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Vol. I, Out2009).

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Da prova da vigilância efectiva

Voltando aonde se estava antes deste parêntese, a concessionária pode ilidir a presunção de ilicitude e de culpa, provando que adoptou e cumpre um sistema de vigilância, mas isto não é o mesmo que provar que foi adoptado um qualquer sistema de vigilância, ou, o que é ainda menos útil por já decorrer da lei, que se está obrigado a um sistema de vigilância. Tem desde logo que se provar que o mesmo existe e é cumprido de forma eficaz.

Ora, no caso dos autos, a ré concessionária apenas provou a existência de uma série de obrigações de segurança e que passou no local, naquele dia, pelo menos duas vezes, mas não que exerça a vigilância em condições de eficácia. Relembre-se aliás, que, como se disse no relatório deste acórdão, a ré nem sequer alegou que passasse pelo local com o intervalo de tempo a que dizia ter ficado obrigada (e também por isto não a ré não tem minimamente razão com o que diz na parte final da conclusão XIV).

E aqui tem realmente relevo, como refere a autora nas contra-alegações, a discussão travada à volta da pretensão da ré em que fosse levada à base instrutória aquilo que tinha afirmado sobre a sua obrigação de passar pelo local de três em três horas.

Primeiro, porque essa discussão torna nítido que a ré entende que a simples obrigação de efectuar passagens já é uma forma de exercer a vigilância (por isso é que a ré insiste pela quesitabilidade do que alega em 36 da contestação).

Segundo, porque tornou nítido que há que distinguir entre efectuar passagens pelo local e a eficácia dessas passagens. Uma passagem de um trabalhador da ré pelo local, como condutor e único ocupante de um veículo, que tem que estar atento ao trânsito, não assegura minimamente uma vigilância eficaz das condições de segurança da faixa de rodagem. Seria diferente, por exemplo, se fossem dois trabalhadores da ré num veículo, um deles a guiar e outro atento às condições de segurança da via (às coisas e animais existentes na faixa de rodagem).

Note-se que não se está a utilizar os factos que estavam em causa e transpareceram na discussão daquela questão, o que seria ilegítimo visto que não se previu a produção de prova sobre eles, mas sim a utilizar a distinção que a discussão tornou clara: uma passagem de um funcionário (o plural que está utilizado nos factos provados diz respeito ao facto de terem sido feitas duas passagens) pelo local não garante que essa passagem corresponda a uma vigilância eficaz (ou um exercício efectivo de vigilância na expressão de Sinde Monteiro, RLJ 131, pág. 112)

Por tudo isto é irrelevante que a ré tenha passado pelo local 1h e pouco antes do embate e não tenha dado conta da existência do objecto em que o veículo foi embater, pois que nada garante minimamente que nessa passagem a ré estivesse em condições de ter dado conta do objecto no caso de ele já lá estar. Pelo que o objecto já lá podia estar e a ré não o ter visto.

Chegando à mesma conclusão, embora com outra fundamentação, vai o ac. do STJ de 14/03/2013, 201/06.8TBFAL.E1.S1: Recaindo sobre a concessionária de auto-estrada uma obrigação reforçada de meios, a elisão da referida presunção [de incumprimento de obrigações de segurança], relativamente à entrada ou permanência de animais na faixa de rodagem, não se basta com a prova genérica de que houve passagens da equipa de assistência e de que não foi detectada ou comunicada a presença do animal.

A situação permite, pois, no caso, conclusões diferentes das que foram obtidas nos acórdãos citados pela ré (deste TRP, de 09/11/2009, 6004/06.2TBSTS.P1; de 13/09/2012, 4401/08.8TBVFR.P1; e de 17/11/2011, 2338/07.7TBPNF.P1). É que no caso dos autos é possível tornar claro que fazer-se passagens pelo local sem detectar objectos caídos na via não equivale só por si a um efectivo exercício de vigilância da via.

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Da tese da insuficiência da prova de cumprimento de procedimentos genéricos

Note-se que com isto não se está a ir tão longe como vai hoje a maioria da jurisprudência, quando diz que “[n]ão é suficiente a prova do cumprimento de procedimentos genéricos de inspecção e vistoria para que se possa ter por acatada a obrigação de manutenção das condições de segurança da via.” (apenas por exemplo, vejam-se os acórdãos do TR de Coimbra  de 18/09/2012, 1509/11.6TBFIG.C1; do TRC de 16/04/2013, 1058/10.0TBVNO.C1; do TR do Porto de 05/11/2012, 89/11.7TBVPA.P1; do TRP de 15/04/2013, 3410/08.1TBMAI.P1; do TR de Lisboa de 16/05/2013, 5719/07.2TBVFX.L1-2; do TRL de 26/06/2012, 1017/0905TCLRS.L1-7; do TRL de 17/05/2012, 6727/07.9TBVFX.L1-6; do TR de Guimarães de 18/04/2013, 2863/11.5TBGMR.G2; do TRE de 31/05/2012, 114/11.1T2ALS.E1), posição que normalmente vem ainda acompanhada, a propósito do lugar paralelo do atravessamento de animais, da consideração de que “a concessionária […] só afastará essa presunção [de incumprimento das obrigações] se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não lhe deixou realizar o cumprimento” (na síntese muito utilizada do ac. do STJ de 16/09/2008, 08A2094; a parte final vem de um acórdão arbitral relatado por Paulo Cunha, segundo se vê na nota 163 da anotação de Sinde Monteiro, RLJ 132, pág. 93), cuja constitucionalidade já foi apreciada por vários acórdãos do Tribunal Constitucional (referidos na nota 63 do estudo de Rui Ataíde) e que tem apoio doutrinal (Sinde Monteiro: “O desejável nível de convicção só poderá em regra ser alcançado, pensamos, mediante a prova histórica, positiva, a respeito do modo de intrusão do canídeo”; e antes: “[…] a presunção de culpa parece estar ao serviço da justiça material, fazendo recair sobre os ombros do vigilante o ónus da prova de uma situação excepcional”, RLJ 131, págs. 111 e 379, e RLJ 132, pág. 94).

E, assim sendo, não se pode sequer sugerir (o que então teria de ser discutido), como resultaria do que a ré diz na conclusão XIII, que se esteja a seguir, neste acórdão, uma qualquer via de responsabilidade objectiva, ou a pôr a cargo da ré uma prova impossível de fazer.

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Em suma, a ré não provou que cumpriu com um dever de vigilância efectivo e por isso responderá em princípio pelos danos causados (em princípio, diz-se, porque ainda falta discutir o que vem a seguir).

Improcedem pois as conclusões XI a XV.

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Da culpa do segurado da autora

Nas conclusões XVI a XIX a ré sugere que a culpa do acidente se deveu ao segurado da autora, o que permitiria a aplicação do disposto no art. 570/2 do CC. Mas para isso baseou-se na eventual alteração dos factos provados, sendo que a procedência parcial do recurso quanto à decisão relativa à matéria de facto, pouco ajuda, pois que as alterações introduzidas não dizem respeito à culpa do condutor.

É que a única questão que se poderia levantar diz respeito à alteração à resposta ao quesito 22, referente à visibilidade da via. No entanto, como já decorrerá do que foi sendo dito acima, a visibilidade da via (que de qualquer modo se ficava por apenas entre 75 a 100 m) não é a mesma coisa que a visibilidade do objecto. Ora, quanto a esta foi dado como provado, em 9, sem recurso da ré, que o objecto com o qual o veículo colidiu não era visível para o condutor do mesmo. E, assim sendo, o condutor do veículo não pode ser censurado por não o ter visto.

Improcedem, por isso, as conclusões XVI a XIX.

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Quanto aos juros

A sentença recorrida condenou a ré nos juros vencidos desde a data (12/03/2009) em que a ré foi interpelada extrajudicialmente para pagar a quantia que a autora peticionou nesta acção. Invocou para o efeito, na parte que interessa, o art. 805/1 do CC.

A ré entende, na conclusão XX, que a ser condenada só o devia ser, quanto aos juros, relativamente àqueles que se vencessem desde a data da sua citação para esta acção. Invoca para o efeito o art. 805/3 do CC.

Neste ponto a ré tem razão.

As obrigações de indemnização pecuniárias são ilíquidas (neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 304.) Ela só se tornará liquida com a condenação judicial (art. 805/3, 1ª parte, do CC). Pelo que não basta a interpelação da ré para haver mora. Mas, para evitar que a situação de ilíquidez se prolongue no tempo com prejuízo para o lesado, a lei (art. 805/3, 2ª parte, do CC) considera que o lesante se constitui em mora pelo menos desde a citação, a não ser que entretanto se possa imputar a iliquidez ao lesante, pois que então este entra em mora desde esse momento. Ora, no caso, não se alega nem prova qualquer acto da ré que desse causa à iliquidez. Pelo que só a partir da citação é que se vencem juros.

Procede, pois, esta conclusão, tendo que ser alterada a condenação relativa aos juros, que só se passaram a vencer a partir de 06/05/2011.

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Pelo exposto, julga-se (a) improcedente a impugnação do despacho que indeferiu a reclamação contra o despacho de condensação, (b) parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto, alterando-se a mesma nos termos consignados acima, e (c) também parcialmente procedente o recurso contra a sentença, na parte relativa à data de vencimento dos juros de mora, que passa a ser a de 06/05/2011, passando pois a ré a estar condenada a pagar à autora 13.597,37€, com juros de mora vencidos desde 06/05/2011 e vincendos até integral pagamento.

Custas da acção e do recurso pela autora e pela ré na proporção do decaimento.

Porto, 31/10/2013

Pedro Martins

1º Adjunto

2º Adjunto