Acção sumária 1597/12.8TBOAZ J1 – secção cível de Oliveira de Azeméis
Sumário:
I – Salvo se se provar o contrário, a falta por um certo período de tempo de um veículo que se adquiriu para usar e se estava a usar, traduz-se num dano de privação do seu uso, que deve ser reparado pelas seguradoras com a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição (de características semelhantes) ou, caso essa obrigação não seja cumprida, pela atribuição, pelo menos tendencialmente, de um valor que parta do custo de aluguer diário desse veículo.
II – O valor de 1500€ de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos durante cerca de 1 mês e meio, incluindo um período de 16 dias de défice funcional decorrente da fractura de uma clavícula, mais a sujeição a exames, tratamentos e medicamentos, tudo com as inerentes dores físicas e psíquicas, não é, longe disso, excessivo.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A intentou a presente acção contra Seguradora, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 15.983,35€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Invocou para o efeito, em síntese, que foi interveniente num acidente de viação do qual foi responsável o segurado na ré, em consequência do qual sofreu danos – materiais no veículo, decorrentes da privação do seu uso e de natureza não patrimonial – pelos quais pretende ser ressarcido.
A ré contestou, alegando que o acidente se ficou igualmente a dever a culpa do autor, concluindo por uma repartição de culpa em 50%. Impugna os danos alegados pelo autor, alegando, igualmente, a ausência de prova dos danos referentes à paralisação do veículo e consequente privação do uso, bem como a inexistência de nexo causal entre o acidente e a alegada incapacidade parcial permanente de que o autor ficou a padecer.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença condenando a ré a pagar ao autor, 1633,35€, pelos danos materiais do veículo, 9350€ pela privação do veículo e 1500€ a título de danos não patrimoniais.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada e substituí-das por outra que absolva a ré do pedido – terminando as suas alegações contra o decidido com as seguintes conclusões:
[…]
- Com interesse para a apreciação das questões objecto deste recurso, vejam-se os pontos 1 e 27 da matéria de facto dada como provada.
- Entende a ré que o tribunal a quo devia ter considerado improcedente este pedido [sic – vê-se do corpo das alegações que a ré se está a referir ao pedido de indemnização pelo dano da privação do uso], ou, quando muito, relegado a quantificação dos danos para incidente de liquidação, porquanto o autor não demonstrou nestes autos qualquer prejuízo concreto, como lhe era imposto, atento, designadamente, o art. 342 do Código Civil.
- Quanto aos danos decorrentes da paralisação do veículo, não se provou qual o prejuízo efectivamente sofrido pelo autor.
- Discorda-se da conclusão do tribunal a quo de que a privação de uso constitui, por si só, um dano indemnizável sem necessidade de comprovação de prejuízos.
- O facto de o autor não poder dispor daquele seu veículo não é suficiente para configurar um dano indemnizável.
- Não tendo o autor logrado provar que sofreu danos concretos, prejuízos, com a privação do veículo, devia o tribunal a quo ter considerado tal pedido improcedente.
- Nesse sentido vejam-se os acórdãos do STJ de 4/10/2007 e de 21/04/2010, disponíveis in www.dgsit.pt;
- Em face do exposto, e salvo melhor entendimento, atribuir ao autor uma indemnização pela privação do uso do veículo, quando ele não fez prova dos factos alegados, é ir ao encontro da arbitrariedade e não da equidade.
- Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, ainda que se entenda que o autor provou o dano, na falta de elementos concretos para o quantificar, devia a liquidação desse dano ser relegada para incidente de liquidação.
- 1 No que ao período de paralisação se refere, entende a ré que deve ser considerado indemnizável apenas o período decorrido entre o acidente e a comunicação da ré ao autor relativa à assunção de 50% da responsabilidade pelo sinistro (doc. n.º 10 da P.I., dado por reproduzida no ponto 27 dos factos provados).
- Ora, conforme se retira do facto provado no ponto 27 (doc. n.º 10 da P.I.), desde essa data o autor sabia a posição da ré e podia (devia) ter diligenciado pelo não agravamento e/ou aumento dos danos, porém o valor não foi aceite pelo autor, tendo este ficado na posse do veículo.
- Assim, entende a ré que ainda que se entenda ser devida alguma compensação pela privação do uso do veículo, o que não se concede, a considerar-se um período de paralisação do veículo do autor, sempre seria o período compreendido entre a data do acidente (29/05/2010) e a data em que foi expedida para o autor a carta que informava o mesmo de que a ré assumiria a responsabilidade pelo acidente (28/06/2010), o que perfaz um total de 29 dias.
- Por fim, no que toca ao montante diário, sem prejuízo do supra exposto e por mera cautela de patrocínio, entende a ré que a quantia diária de 25€ pela qual foi condenada se afigura excessiva, devendo ser ponderado o valor diário em função de critérios jurisprudenciais que têm vindo a ser seguidos em casos como o dos autos em que a indemnização devida ao lesado pela paralisação diária de um veículo deverá ser ponderada à luz de critérios de equidade, de que constituem exemplos o ac. do STJ de 09/03/2010, em que o valor considerado foi de 10€ diários; o ac. do TRP de 07/09/2010 em que se considerou também o valor de 10€ por dia de paralisação, o ac. do TRC de 02/03/2010 no qual foi fixada a quantia de 8€ por dia de privação, e, ainda, o ac. do TRC de 06/03/2012 no qual foi considerada também a quantia de 10€ por dia, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt.
- Finalmente, também a quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais peca por excesso, sendo violadora dos critérios fixados no art. 496 do CC.
O autor não contra-alegou.
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Questões a decidir: embora a ré termine o recurso de forma surpreendente, pretendendo a absolvição do pedido, a verdade é que nas suas conclusões (e não há discrepância destas com o corpo das alegações) apenas discute duas partes da sentença: aquela em que a condenou pelo dano da privação do uso e aquela em que quantificou os danos morais.
Por isso, são apenas estas as questões que importa decidir (art. 635/4 do CPC).
Note-se, mais, que a sentença concluiu que a culpa efectiva (sob a forma de negligência) do acidente foi toda do condutor do veículo segurado da ré e esta também não toca minimamente nesta questão, pelo que, o que se segue parte do pressuposto daquela culpa.
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Do dano da privação do uso
Os factos que interessam à decisão desta questão são os seguintes:
- No dia 29/05/2010, pelas 16h45, o autor conduzia o veículo ligeiro […] xx […] sua propriedade […].
[…]
- Por carta com data de 28/06/2010, a ré comunicou ao autor que considerava que havia divisão de responsabilidades na produção do acidente imputando a este 50% da responsabilidade (conforme documento junto sob o n.º 10 com a petição inicial cujo teor se deu por integralmente reproduzido).
- O autor deu conhecimento à ré que não aceitava a divisão de responsabilidades que lhe era proposta, por entender que o condutor do yy [segurado da ré] era totalmente responsável pelo sinistro, pedindo que efectuassem a reparação do xx.
- Todavia, a ré não alterou a sua posição quanto à responsabilidade pelo sinistro e não mandou proceder à reparação do xx, nem facultou ao autor um veículo de substituição.
- Em consequência do embate descrito, o xx sofreu danos materiais na sua frente, designadamente ao nível de pára-choques, grelhas, frisos do pára-choques, suporte do pára-choques, spoiler, cobertura da grelha, emblema dianteiro, faróis, condensador, ventoinha eléctrica direita e capô.
- Os serviços de peritagem da ré efectuaram, em 02/06/2010, uma peritagem ao xx e orçamentaram o custo da sua reparação em 1633,35€.
- O xx, em resultado do embate, ficou impossibilitado de circular, pois estava afectado ao nível dos radiadores e do sistema de iluminação, pelo que teve que ser rebocado para a oficina automóvel.
- O autor havia adquirido o xx para fazer face a todas as necessidades diárias de transporte, não dispondo de outro veículo automóvel.
- O autor tinha estado emigrado a trabalhar no ramo da construção civil, concretamente executando serviços de demolição e restauração de edificações e pintura e, regressado a Portugal, pretendia continuar a exercer essa actividade profissional, tendo para o efeito adquirido o xx para se deslocar aos locais de trabalho.
- O autor passou a andar a pé e às boleias, passando a ficar mais retido em casa e deixado de dar passeios ao fim de semana com a sua companheira.
- A ré nunca disponibilizou ao autor o veículo de substituição, apesar de o ter solicitado por diversas vezes, sendo que a primeira solicitação se verificou aquando da participação do presente sinistro.
- No dia 15/08/2011 o autor emigrou para a Suíça.
- E, em Novembro de 2011, vendeu o xx no estado de embatido em que se encontrava, tendo sido o novo proprietário quem custeou a sua reparação, pois o autor nunca mandou proceder à reparação do xx por não dispor da quantia necessária para suportar o seu custo.
- Um veículo com as características do xx custaria, por dia de aluguer, uma importância superior a 25€.
- O autor esteve privado do xx durante 444 dias, o que lhe causou transtornos, incómodos, arrelias, aborrecimentos e tristeza.
[…]
- Na sequência de peritagem ao xx efectuada pela ré, foi estimado um período de reparação de dois dias, não tendo o mesmo sido reparado apenas porque o autor não aceitou a proposta da ré.
[…]
- O autor, à data em que ocorreu o sinistro em causa nos autos, estava desempregado.
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A sentença tem 6 páginas de fundamentação sobre o dano da privação do veículo, em que faz também a síntese das várias posições que têm sido defendidas pela jurisprudência (o que inclui também a posição de Abrantes Geraldes, Indemnização do dano da privação do uso, Almedina, 2001). Visto que a sentença já disse o necessário e a argumentação da ré se resume, no essencial, em avançar com dois acórdãos do STJ que defenderiam uma posição contrária que não a seguida pela sentença, diga-se, agora, apenas o seguinte:
Parte da jurisprudência defende a tese de que a privação da possibilidade de uso de um bem não é em si um dano (um dos pressupostos da responsabilidade civil), mas apenas a ilicitude da conduta (um dos outros pressupostos daquela responsabilidade) imputada ao agente. Pelo que não bastaria a verificação daquela privação (abstracta), teria ainda de se provar um dano (concreto). E isto, em termos gerais, é correcto. Se A ocupa parte de um terreno improdutivo de B situado fora de uma cidade, ao qual ninguém vai há mais de 10 anos, A pratica um acto ilícito que põe em causa o direito de propriedade de B, mas daqui não decorre qualquer prejuízo patrimonial para B (o terreno nem para estacionamento ou depósito de materiais lucrativo serviria para B, pelo que é escusado falar na perda de rendimentos que seria possível retirar do terreno).
Só que não é esta, minimamente, a situação que se verifica no caso dos autos, nem é ela que se verifica normalmente quando se está perante um proprietário de um veículo automóvel que o comprou para usar e que é vítima de um acidente de viação quando estava em circulação com ele (demonstrando o uso efectivo do veículo) e que a partir daí deixa de poder circular com ele até ao momento em que o veículo seja reparado ou substituído por outro que faça as suas vezes. Nos casos assim configuráveis, a doutrina (principalmente a posição de Júlio Gomes, com o artigo sobre a questão publicado na RDE de 1986, páginas 169 e segs: O dano da privação do uso) e a jurisprudência, com formulações alternativas (inúmeros acórdãos de todas as diversas teses e variantes podem ver-se na comunicação de 2012 da Abrantes Geraldes, de novo sobre o tema, publicada nos CDP número especial 02, págs. 137 e segs), acabam quase sempre por aceitar que se prova o dano da privação do uso e que o mesmo deve ser indemnizado.
A posição de Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, pág. 592) é reveladora de tudo isto: defende a tese inicial referida acima e crítica a tese de que baste a privação da possibilidade do uso para se ter um dano, mas também esclarece que se deve presumir uma vontade e possibilidade de utilização hipotética de bens de uso corrente. Pelo que, nestes casos, cabe ao lesante provar que o lesado não teria a possibilidade ou a vontade de utilizar a coisa. Ou seja, nestes casos, não é o lesado que tem de provar a possibilidade ou a vontade de utilizar a coisa, o que equivale a não considerar que a verificação de um dano indemnizável passe pela prova destes factos (segundo informa Júlio Gomes, na Alemanha atende-se à vontade de utilização do bem por parte do lesado e à possibilidade concreta dessa utilização, mas o ónus de alegação e prova da falta de vontade de utilização do bem no período em apreço por parte do seu titular cabe à lesante e não ao lesado: obra citada, págs. 180 e 187). Também neste sentido, agora, veja-se Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil, temas especiais, Universidade Católica Portuguesa, Setembro de 2015, págs. 57 a 68, especialmente pág. 62: “Em síntese, é tendencialmente maioritária a jurisprudência que tem vindo a decidir em sentido negativo a questão da indemnização por simples privação do uso da viatura, mas, simultaneamente, tem-se vindo a simplificar a prova dos danos concretos por parte do lesado a ponto de os resultados práticos não se revelarem muito diferentes de uma posição favorável à reparabilidade da simples privação.” E mais à frente, pág. 64: “entendemos que a certeza e a segurança do direito são adequadamente alcançadas através da via intermédia supra exposta: presunção da existência de danos concretos a partir da prova do uso regular da viatura [que, na maior parte das situações, não será um uso diário]”.
Ora, que tudo isto é assim, foi o que veio a ser claramente esclarecido pela entrada em vigor, a partir de fins de 2006, do DL 83/2006, de 03/05, que introduziu o art. 20-J no DL 522/85, de 31/12, regime depois substituído por um igual no Dec.-Lei 291/2007, de 21/08, actualmente em vigor, que, pelo seu artigo 42, obriga as seguradoras, verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, a pôr à disposição do lesado um veículo de substituição (de características semelhantes) a partir da data em que assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente (chamando a atenção para esta norma, veja-se, também, Maria da Graça Trigo, obra citada, págs. 62/63).
Repare-se que o único pressuposto do direito é a imobilização do veículo sinistrado, não se exigindo ao lesado que alegue e prove que tinha possibilidade ou a vontade de continuar a utilizar o veículo sinistrado (neste sentido, mas sem referência a este regime específico, vejam-se, por exemplo, os acs. do STJ [por lapso escreveu-se TRP, lapso corrigido a 08/12/2016] de 24/01/2008, 07B3557, e d[o TRP d]e 19/03/2009, 3986/06.8TBVFR.P1).
Nem se diga, raciocinando a contrario, que não tendo a seguradora assumido a responsabilidade exclusiva já não seria obrigada a fornecer o veículo sinistrado, pois que o que decorre de tal norma é a obrigação de fornecer o veículo desde que a responsabilidade seja da seguradora, pelo que, a partir do momento em que se apure que a responsabilidade é da seguradora, esta está obrigada a indemnizar mesmo durante o período em que defendia, sem razão, que a responsabilidade não era sua.
Nem, pela mesma ordem de razões, se diga que a seguradora não tem obrigação de indemnizar pelo período anterior à assunção de responsabilidade, o que seria outro contra-senso que o n.º 5 do art. 42 logo afasta, ao dizer que o disposto neste artigo não prejudica o direito de o lesado ser indemnizado, nos termos gerais, no excesso de despesas em que incorreu com transporte em consequência da imobilização do veículo durante o período em que não dispôs do veículo de substituição. Neste sentido, veja-se Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 568/569, nota 1639, com referência ao art. 20-J já referido acima: “O que resulta das regras gerais sobre a indemnização é, porém, que o lesado tem direito à reconstituição natural logo após a privação do uso do veículo, não devendo entender-se que, quando a seguradora não reconheça logo a sua responsabilidade, mas esta venha posteriormente a apurar-se, fique prejudicado também o direito à compensação dos custos do aluguer de uma viatura pelo próprio lesado. Tal aluguer pelo lesado, em lugar do recurso a outros meios de transporte, não configura, só por si, um agravamento dos danos que conduza à exclusão da indemnização nos termos gerais do art. 570/1, ficando, aliás, a dever-se ao não reconhecimento imediato pela seguradora de uma responsabilidade que depois se veio a apurar.”
Ora, este regime previsto no âmbito do procedimento de regularização de sinistros (invocado pelas seguradoras sempre que o mesmo lhe é favorável) é o reconhecimento implícito do regime substantivo geral (dos arts. 483 e 562 a 566 do CC) do direito à reparação do dano da privação do veículo sem dependência de quaisquer outros pressupostos para além do da existência da imobilização do veículo sinistrado, baseado na presunção natural de que a imobilização forçada de qualquer veículo que estava a ser usado pelo seu proprietário representa um dano.
No caso dos autos, o autor era proprietário do veículo que foi embatido quando estava a circular, tinha-o adquirido para se deslocar aos locais de trabalho e para fazer face a todas as necessidades diárias de transporte, o veículo ficou sem poder circular, o autor passou a ficar mais retido em casa e deixou de dar passeios ao fim de semana com a sua companheira. Tudo isto representa, de forma clara, a prova da frustração da satisfação das necessidades, parte delas patrimoniais, que o autor visava ao adquirir o veículo, ou seja, um dano que deve ser indemnizado (arts. 562 a 564, todos do CC – como se diz no ac. do STJ de 15/11/2011, 6472/06.2TBSTB. E1.S1: VI – Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usava e usaria normalmente (o que, na generalidade das situações concretas, constituirá facto notório ou resultará de presunções naturais a retirar da factualidade provada), para que possa exigir-se do lesante uma indemnização autónoma a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos quantificados, como, por exemplo, que deixou de fazer determinada viagem ou que teve de utilizar outros meios de transporte, com o custo correspondente. VII – Se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava, na sua vida corrente e normal, o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura, provado está o dano indemnizável durante o período de privação ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda, nos termos gerais).
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Do cálculo do dano da privação do uso
Já se viu acima que a seguradora tem a obrigação de colocar à disposição do lesado um veículo de substituição durante o período de imobilização. É evidente que se ela não cumpre esta obrigação (Maria da Graça Trigo, obra citada, pág. 63, chama-lhe “uma segunda privação de uso’), ela será substituída pela obrigação equivalente de pagar o respectivo valor que terá de ser o valor do montante diário necessário ao aluguer de um tal veículo durante o mesmo período.
Se, pela violação da obrigação da entrega do veículo de substituição, a seguradora se livrasse da mesma ou se pudesse livrar-se da mesma pela entrega de um montante mais reduzido, teríamos o benefício do infractor.
Benefício do infractor que também decorreria de se estabelecer qualquer diferença na indemnização apenas devido à reacção do lesado:
– se este tivesse poder económico para tal e perante a inacção da seguradora fosse alugar, à sua própria custa, um veículo de substituição, a seguradora teria de pagar esse aluguer;
– se o lesado não tivesse poder económico para o efeito e por isso tivesse que sofrer a inacção da seguradora sem poder reagir, a seguradora já nada pagaria ou pagaria um valor mais diminuto.
Para além da violação do princípio da igualdade (assim, por exemplo, no ac. do STJ [por lapso já referido acima, escreveu-se TRP] de 24/01/2008, 07B3557, reconhece-se ao lesado o direito a uma indemnização diária de 500€ pela privação do uso, na lógica da regra defendida – ou seja, “o princípio da restauração in natura impõe, no que concerne ao veículo de substituição, que o lesante (ou a sua seguradora) disponibilize ao lesado um veículo da mesma gama ou semelhante, com características idênticas às do danificado, ou assuma a obrigação do pagamento do aluguer de um tal veículo” -, o que levaria, no caso dos autos, ao pagamento de uma indemnização diária de pelo menos 25€, enquanto a seguradora, com apoio nos acórdãos que cita, quer pagar apenas 8€ ou 10€ por dia), estaria a beneficiar-se o infractor (a seguradora) e a incentivá-la a nunca cumprir a obrigação de indemnização através da colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição do veículo imobilizado, ou, pelo menos, a nunca o fazer em todos os casos em que pudesse partir do princípio de que o lesado não conseguiria reagir.
Ou seja, põe-se a seguradora perante a alternativa de cumprir a lei e pagar pelo menos 25€ diários (no caso dos autos) ou não cumprir a lei e pagar apenas 8€ ou 10€ diários. Ou seja, dá-se uma alternativa à seguradora de, não cumprindo a lei, ter um benefício económico, normalmente à custa das pessoas que têm menos posses. E, como é evidente e faz parte da natureza humana, as seguradoras escolhem a via que lhes sai mais barata. Não devia poder ser assim.
Apesar do que antecede, a doutrina e a jurisprudência não têm atribuído, sem mais, o valor locativo do veículo, têm antes atribuído um valor que têm em conta esse valor locativo apenas como ponto de referência (neste sentido, por exemplo, todos os acórdãos citados pela ré). Parte-se normalmente da crítica feita por Paulo Mota Pinto (obra citada, págs. 586 e 592, notas 1687 e 1699) à posição que parece defendida por Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 9ª edição, 2010, Almedina, págs. 348 e 349, notas 733: “a avaliação far-se-á naturalmente pela consideração do valor locativo do veículo […]” e 734; diz-se que “o montante do prejuízo resultante da privação não é, na verdade, igual ao custo de aluguer, sem mais […], desde logo, porque é diferente o valor de uso de um automóvel próprio do valor de uso de um automóvel alugado. A concreta vantagem do uso da coisa pode ser medida pelos custos indispensáveis para tal concretização, mas o seu valor depende, ainda, por exemplo, da idade da coisa e da sua situação concreta. Aliás, é preciso ter em conta as particularidades do caso concreto quanto aos próprios custos de aluguer, que podem variar”; no mesmo sentido crítico, veja-se, agora, Maria da Graça Trigo, págs. 63 a 67, especificamente na pág. 63: “em regra a renda própria de um contrato de locação não traduz apenas o valor do bem, mas também o custo dos factores empresariais necessários para o colocar no mercado”).
Poderá responder-se que a seguradora tinha a obrigação pôr à disposição do lesado um veículo de substituição (de características semelhantes), o que lhe implicaria o pagamento do custo do aluguer em causa, e que o facto de não cumprir essa obrigação, violando-a, não deve levar a que consiga, em definitivo, o não pagamento desse custo, conseguindo o benefício de pagar uma indemnização com um desconto: viola uma obrigação e consegue um prémio.
Não indo tão longe como defendido acima (valor locativo, com o aparente apoio de Menezes Leitão e base legal suficiente e clara no art. 42 do DL 291/07), os acs. do TRP de 26/09/2013, 1393/11.0TBPNF.P1, e de 16/03/2015, 224/12.8TVPRT.P1, vão no entanto muito para além dos 8€ ou 10€ diários dados por aquela jurisprudência, sempre partindo do valor do custo de aluguer de um veículo com características semelhantes: o primeiro considera que o dano da privação do uso deve ser indemnizado “usando como critério – mas não necessariamente como medida exacta – a situação mais similar, ou seja, o custo que o lesado teria suportado se tivesse recorrido ao aluguer de um veículo para substituir o sinistrado, como poderia ter feito”, embora, como não estava provado o montante necessário para o aluguer, tenha atribuído apenas o valor de 500€ por um mês de privação (o que dá o valor de 16,67€ diários); no segundo, atribuiu-se o valor diário de 25€, durante 907 dias, pela privação do uso de um veículo cujo valor diário de aluguer era no mínimo de 50€; teve-se em conta, entre o mais, que a” utilização do veículo sinistrado implicava gastos de manutenção e consumíveis, gastos que devem ser tidos em atenção para reduzir o montante indemnizatório, sob pena de injusto locupletamento do lesado.”
No caso dos autos, embora o custo de aluguer do veículo fosse de pelo menos 25€ diários, o autor só pede o valor de 21,05€ que lhe foi dado pela sentença; ou seja, o próprio autor procedeu ao desconto de um valor que já evitará o locupletamento que os acórdãos acabados de citar querem evitar. O que evita a discussão, no caso concreto, se devia ou não ser feito esse desconto. Sendo que o montante do desconto, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, não peca por defeito.
Pelo que se considera correcto o valor atribuído na sentença.
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Do período de tempo da privação
O autor ficou sem poder usar o veículo até ao momento em que o vendeu. É este o tempo da privação visto que a ré nunca ofereceu ao autor o valor necessário à reparação do veículo.
Com efeito, todo o período de paralisação do veículo é imputável ao lesante; para o não ser tem ele de alegar factos que impliquem a culpa do lesado por essa paralisação (neste sentido, por exemplo, o ac. do STJ de 5/7/94, publicado na CJ.STJ.94.3.45: “é a lesante que tem a obrigação de ressarcir os danos, reconstituindo a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mediante, em princípio, a restauração natural. Incumbe, assim, ao lesante, o dever de efectuar ou mandar efectuar a reparação do veículo danificado no acidente; cabe à ré provar que a autora foi causadora do agravamento dos danos” – veja-se também Júlio Gomes, no artigo já citado, especialmente págs. 217 e 233).
E por isso nem é o lesado que tem de provar – mas no caso até o provou – que não tinha possibilidades de mandar fazer a reparação, nem a discussão tem interesse – em sentido contrário veja-se o ac. do STJ de 4/5/71, no BMJ 207/129, criticado por Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol.I, Almedina, 6ª ed, 1989, págs. 880/881; no bom sentido, o ac. do STJ de 8/11/84, no BMJ 341, págs. 418/422, citado por Antunes Varela, declarando o acórdão que não interessa saber se o lesado dispunha de meios materiais para mandar reparar a viatura, pois era à lesante que competia proceder à reparação.
No entanto, o autor só pediu indemnização até ao momento em que se foi embora do país, e o tribunal concedeu-lho. Está dentro do período de privação, pelo que nada há a dizer.
A seguradora, no entanto, não quer que seja contabilizado o período que vai desde que assumiu perante o autor 50% da responsabilidade no acidente.
A seguradora esquece-se que o autor não é obrigado a aceitar o pagamento parcial da indemnização (art. 763/1 do CC) e que, por isso, sendo a responsabilidade da seguradora exclusiva, ela só se exoneraria com a assunção de 100% da responsabilidade.
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Em suma improcedem todos os argumentos esgrimidos pela ré contra a indemnização pelo dano da privação do uso.
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Dos danos não patrimoniais
Os factos que interessam à decisão desta questão são os seguintes:
[…]
- O autor tinha estado emigrado a trabalhar no ramo da construção civil, concretamente executando serviços de demolição e restauração de edificações e pintura e, regressado a Portugal, pretendia continuar a exercer essa actividade profissional, tendo para o efeito adquirido o xx para se deslocar aos locais de trabalho.
[…]
- Em resultado do sinistro, o autor queixava-se de fortes dores, sobretudo no ombro esquerdo.
- Pelo que foi transportado de ambulância para o Hospital zz, onde foi sujeito a exames médicos, dos quais resultou que o autor poderia ter a clavícula esquerda fracturada, tendo, por isso, sido transferido de ambulância para o Hospital ww.
- O autor foi admitido no Hospital de ww, onde foi submetido a exame por radiografia (Raio-X), que confirmou a fractura da clavícula esquerda.
- O autor apresentava queixas de dor e acentuada limitação funcional do ombro esquerdo e dor na clavícula e mão esquerda, com dor à apalpação da entrelinha articular da articulação do ombro e da clavícula esquerdos.
- Os serviços clínicos do Hospital ww procederam à imobilização do ombro esquerdo do autor, mediante colocação de ligaduras.
- Prescreveram-lhe um medicamento analgésico e deram-lhe alta hospitalar com a advertência para que se mantivesse em repouso.
- Seguidamente ao referido em 46, o autor passou a ser acompanhado pelos serviços clínicos da ré em X, durante cerca de mês e meio, tendo comparecido a três consultas, nas quais os serviços clínicos da ré verificavam a evolução do estado do ombro do autor e prescreviam-lhe medicamentos, nomeadamente analgésicos para alívio parcial das dores.
- Na última consulta, os serviços clínicos da ré deram alta clínica ao autor sem qualquer desvalorização ou incapacidade.
- No que respeita à assistência clínica prestada ao autor, a ré esclarece que prestou assistência médica ao autor, tendo sido fixados pelos seus serviços médicos, uma ITA entre 02/06/2010 e 13/06/2010, tendo sido atribuída alta sem fixação de qualquer incapacidade […].
[…]
- De acordo com os serviços clínicos da ré, o autor apresentava uma pseudartrose do 1/3 externo da clavícula esquerda, consubstanciando tal lesão uma lesão antiga, não resultando do sinistro aqui descrito, tendo o autor, aquando da comunicação pelos serviços clínicos da ré de tal situação, comunicado que tinha sofrido um acidente cerca de 3 anos antes do acidente aqui em causa.
- Em 28/06/2010, o autor recorreu novamente aos serviços clínicos da ré, tendo sido solicitada TAC que veio a confirmar o já anteriormente transmitido ao autor, isto é, de que a lesão por aquele descrita se tratava de uma pseudartrose do 1/3 externo da clavícula esquerda.
- O autor, à data em que ocorreu o sinistro em causa nos autos, estava desempregado.
- A data da cura das lesões é fixável em 14/06/2010.
55 e 56. O défice funcional total estimou-se em 3 dias e o parcial em 13 dias.
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A ré limita-se, na conclusão 15 do recurso, a dizer que a quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais peca por excesso, sendo violadora dos critérios fixados no art. 496 do CC.
No corpo das alegações, para além de considerações genéricas sobre as indemnizações por danos não patrimoniais, e à afirmação não consubstanciada de “que significativa parte da jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem arbitrado quantias inferiores à ora fixada, em situações similares e, noutras, bastante mais graves do que a situação dos autos”, a ré nada mais diz.
Na sentença recorrida, o tribunal teve em conta as normas dos arts. 496 e 494 do CC – O art. 496/1 do CC, sob a epígrafe de danos não patrimoniais, dispõe que “[n]a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” E o art. 496/4 do CC acrescenta que “[o] montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494 […]”, remetendo, pois, para “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” (art. 494 do CC) – e alguma doutrina sobre estes danos e depois ponderou devidamente as circunstâncias que era possível extrair do caso.
Estas, sintetizando-as agora aqui, tendo em conta os factos provados nesta parte, acima transcritos, são as seguintes: o caso dos autos reporta-se a uma pessoa que teve um acidente da exclusiva culpa efectiva do segurado da ré; fracturou a clavícula esquerda e sofreu as inerentes dores físicas que no caso foram fortes; trata-se de alguém que tem que empregar a força do corpo no trabalho e que por isso qualquer problema no mesmo tem reflexos físicos e psíquicos (maiores dificuldades na realização do trabalho e preocupações com a futura possibilidade de utilização normal do mesmo, etc.); a cura das lesões ocorreu 16 dias depois, 3 deles com um défice funcional total; foi sujeito a exames e tratamentos médicos em dois hospitais e esteve sob medicação; teve que ser acompanhado pelos serviços clínicos da ré durante cerca de mês e meio, tendo comparecido a três consultas.
Ora, perante isto, o valor de 1500€ atribuído pela sentença recorrida, representando a atribuição de uma quantia equivalente a menos de dois salários médios mensais como compensação por todos os danos referidos durante cerca de um mês e meio, não tem nada de criticável, tanto que a ré, apesar de dizer que há “jurisprudência dos tribunais superiores que têm arbitrado quantias inferiores à ora fixada, em situações similares e, noutras, bastante mais graves do que a situação dos autos” não conseguiu indicar um único acórdão que fosse nesse sentido.
Assim sendo, entende-se que não se deve mexer na sentença também nesta parte dos danos não patrimoniais.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela ré.
Porto, 08/10/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto