AECOPEC 107435/13.0YIPRT – J3 – Secção Cível de Gaia
Sumário:
- Depois da reforma de 2013 do CPC e por força do art. 266/2c) do CPC, o réu “passou a ter, no caso da compensação [pelo menos na judicial], o ónus de reconvir, formulando o pedido de mera apreciação da existência do contracrédito, com base no qual pode fazer valer, em excepção, a extinção do crédito do autor.”
- Pelo que “a dedução da compensação será […] inadmissível nos processos especiais em que o réu não possa deduzir reconvenção [como é o caso da AECOPEP], salvo se a lei especificamente exceptuar o fundamento da compensação […]”
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, SA, requereu uma injunção contra B, SA, para que esta lhe pagasse 10.678,59€ de capital e 16.416,05 de juros de mora, alegando que forneceu à ré os bens identificados em cinco facturas, que identificou, e que esta, apesar de instada para o efeito, não procedeu ao seu pagamento.
A ré, citada a 03/01/2014 deduziu oposição excepcionando (i) a ineptidão do requerimento injuntivo porque a autora não identificou os bens fornecidos, as datas de vencimento e os montantes de cada factura; e (ii) a prescrição dos juros de mora na parte em que excedam 5 anos; e impugnou todos os factos alegados, na sequência do que, e sob essa epígrafe, passa a dizer que [transcreve-se, na íntegra, para se poder confrontar o que a ré dizia e o que agora diz nas conclusões do recurso; os valores são sempre indicados em euros para melhor compreensão das questões]:
“De facto, entre autora e ré foram há muitos anos atrás estabelecidas diversas relações comerciais. A autora era, à data, a representante exclusiva em Portugal dos sistemas de ar condicionado da marca X, sendo a autora [quis escrever ré] vendedora na zona de V destes equipamentos. No âmbito de um protocolo de crédito de ALD, celebrado na época entre as partes e uma sociedade denominada W, ficou estabelecido que a ré compraria aparelhos de ar condicionado à autora, sendo esses artigos, numa primeira fase, facturados à ré, que, por sua vez, através da parceria referida, permitia aos clientes finais o pagamento do equipamento em 12 prestações mensais sem juros. A operação de crédito era realizada pela W, sendo que a ré facturava os artigos vendidos à W que os disporia num aluguer de longa duração aos clientes finais da autora e da ré. Isto é, o pagamento era feito por intermédio da autora pois o cheque, da W, para pagamento dos artigos vendidos, era entregue à autora, que posteriormente o entregaria à ré, sendo creditado na conta da ré as devidas comissões, o que nem sempre ocorreu. Na verdade, os valores das comissões, referentes ao contrato de ALD n.º xxxx, no valor de 760.54€, bem como os valores referentes às comissões do contrato de ALD n.º xxxx, no valor de 3060,09€, que perfazem um total de 3820,63€. Tais valores não foram liquidados pela autora à ré […]. A autora, no dia 04/07/2000, enviou um fax para a sede da ré, onde reclamava o pagamento de 6857,97€, solicitando, ainda, a emissão de uma factura no valor de 3820,63€ (o valor supra referido) para que a autora procedesse ao pagamento do montante em dívida à requerida. Assim, ao valor reclamado de 6857,97€, deveria abater-se o montante de 3820,63€, perfazendo, assim, uma alegada dívida de 3037,34€. Acresce que a ré, e como supra se referiu, vendeu inúmeros aparelhos de ar condicionado na zona de V, sendo que alguns desses aparelhos apresentaram diversos problemas técnicos que a autora, apesar de por diversas vezes advertida, nunca os resolveu. Tendo a ré suportado diversas despesas relacionadas com o apoio a dar a esses clientes, nomeadamente a colocação de outros aparelhos, provisoriamente, bem como a substituição dos aparelhos Electra por outros, a título definitivo. Concretamente, a ré vendeu, entre outros, equipamentos da autora aos seguintes clientes: C, D, E, equipamentos esses que, devido aos diversos problemas técnicos, levaram a que houvesse incumprimentos por parte dos clientes supra referidos. In casu: – C: Os aparelhos colocados (da marca X) nunca funcionaram pois congelam no inverno, bem como outros que não funcionam em qualquer uma das estações, o que levou o cliente, por diversas vezes, a solicitar a reparação dos mesmos […]. A autora, após ter sido advertida por inúmeras vezes, enviou à C algumas suas delegações técnicas, para a resolução dos problemas detectados, já que tinham sido os técnicos desta que tinham feito os cálculos da instalação Porém, e apesar de se instigar insistentemente a resolução dos problemas detectados, nunca os mesmos foram resolvidos, tendo o cliente, em virtude do incumprimento da autora, recusado proceder ao pagamento do equipamento. – D: Foram instalados, na supra referida, aparelhos vendidos pela autora que nunca funcionaram. Aquando da interpelação do não funcionamento, à ré, esta comunicou o mesmo à autora, mais informando que os clientes exigiam a substituição dos aparelhos de ar condicionado. Apesar da interpelação supra referida, nunca a autora tomou qualquer decisão no sentido de alterar a situação de incumprimento, o que obrigou a ré a colocar outros aparelhos de ar condicionado, agora da marca Y, a expensas da ré, com o valor de 2742,89€. Subtraindo o montante dos aparelhos novos com a alegada dívida, já subtraída, perfaz, assim, o valor em débito o montante de 294,45€. – E: A ré procedeu à venda de aparelhos de ar condicionado da marca representada pela autora. Mais uma vez, os aparelhos não funcionaram, tendo os técnicos da autora procedido à sua substituição, com a participação técnica da ré. O valor da comparticipação técnica, apesar de peticionada, nunca foi paga à ré, cifrando-se o mesmo em 1446,51€. Se ao alegado débito, subtraímos o valor pela assistência referida no artigo anterior, conclui-se que a ré nada deve à autora, muito pelo contrário. Do exposto resulta que é a ré credora da autora no montante de 1152,06€.” Termina, nesta parte, dizendo que o requerimento deve ser julgado improcedente por não provado e a requerente absolvida do pedido.
Depois da injunção ter sido convertida nesta AECOPEC a autora foi convidada a completar a alegação dos factos realizada no requerimento de injunção, o que fez alegando que forneceu à ré a pedido desta vários aparelhos de ar condicionado, pelo que a relação entre as partes se classificaria como contrato de compra e venda, e que procedeu à emissão das respectivas facturas que se venciam no prazo de 90 dias a contar da sua emissão, conforme acordado pelas partes e que a factura nº xxxx se encontra parcialmente paga, encontrando-se ainda em falta 1543,10€, sendo o total do valor em dívida de 10.678,59€. Desta vez juntou as facturas em causa.
Notificada a ré nada mais veio dizer; a autora entretanto impugnou os factos alegados pela ré transcritos acima, mais dizendo que esses factos não devem ser considerados uma vez que o pedido formulado pela ré não contém qualquer compensação ou reconvenção.
Depois de realizado o julgamento, a ré foi condenada a pagar à autora 10.678,59€, a título de capital, acrescidos de juros de mora às taxas legais previstas na Portaria 597/2005, desde 03/01/2009 até efectivo e integral pagamento.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que a absolva do pedido ou, subsidiariamente, para que se reduza a condenação ao valor de 6857,96€, acrescidos dos devidos juros – , terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
Depois de, nas conclusões 4 a 7, a ré ter invocado os factos dados como provados em 2, 3, 22 (mas aqui, onde consta ‘vendeu inúmeros aparelhos’, a ré escreve ‘vendeu os aparelhos’), 23, 27, 28, 30, 33 e 36, a ré continua:
- Por força dos defeitos existentes, a ré, ao abrigo da excep-ção de não cumprimento do contrato, não pagou os fornecimentos em débito à autora.
De seguida tem uma série de outras conclusões em que expli-ca em termos abstractos o funcionamento da excepção de não cum-primento (ou do incumprimento imperfeito) do contrato, e depois continua:
- Revisitando o caso concreto, importa, então, apurar a invocação da excepção pela ré em face dos concretos defeitos apresentados pelos ares condicionados fornecidos pela autora.
- Com interesse para a apreciação desta questão, além dos factos acima enumerados, interessa ainda salientar que os forneci-mentos ocorreram entre 1997 e 1999 e a autora apenas acciona judicialmente a ré em 2013.
- Mais, existem nos autos documentos que comprovam que a autora sabia dos defeitos e que os assumiu – factos assentes 33.
- Em 1997, logo após os fornecimentos, a ré informou a autora que os clientes exigiam a substituição dos aparelhos (facto assente 33), tendo inclusivamente procedido à sua substituição por outros a título definitivo (factos provados 23 e 36).
- Na situação sub judicio, o preço da compra deveria ter si-do pago 90 dias após o fornecimento dos bens e com a boa recep-ção dos mesmos, ou seja, deveriam estar em perfeito funcionamen-to nos clientes angariados pela ré […]: factos 24, 26, 32, 35 e 36.
- Daqui se extrai que a autora cumpriu defeituosamente a sua obrigação contratual, no que concerne ao contrato de compra e venda.
- Em face do que se deixou exposto, assiste à ré o direito a invocar a excepção de não cumprimento, não se suscitando dúvidas de que esta poderia reter a parte do preço adequada e proporcional aos inúmeros defeitos elencados (o que passa a tentar demonstrar nas conclusões 27 a 29).
30. Depois, entende a ré que a compensação de 3820,63€ seria justificada, devendo ser condenada apenas na quantia de 6.857,96 €, acrescida de juros de mora […].
31. A Sr. Juiz a quo entendeu que, à luz do estatuído no art. 266/2c) do CPC, a compensação entre créditos apenas poderia ser conhecida se fosse deduzida reconvenção, articulado não admissí-vel no âmbito da presente acção.
32. Todavia, e com o devido respeito, esta norma não vem pôr termo à questão da forma processual pela qual a compensação deve ser deduzida, devendo-se entender que o reconhecimento de um crédito, com vista à sua compensação, também pode ser deduzido como excepção peremptória.
33. Acresce que, in casu, se entende que tal excepção é de conhecimento oficioso, embora tenha sido tacitamente invocada – arts 29 a 44 da oposição à injunção.
34. Também, à luz do anterior CPC a compensação podia ser deduzida por pedido reconvencional (cfr. art. 274/2b), admitindo-se a hipótese de, dependendo do seu valor, poder ser admitida como excepção peremptória.
Depois, no sentido que referiu, a ré invoca, nas conclusões 35 e 37, os acs. do STJ de 11/01/2011 (2226/07 – 7TJVNF.P1.S1) e de 24/05/2006 (05S369) e continua:
36. Na impossibilidade de deduzir pedido reconvencional e considerando que o valor do contra-crédito da recorrente é inferior ao valor do crédito pelo qual foi demandada (reconhecido em 3.820,63€), a sua invocação funcionaria como uma verdadeira excepção peremptória, a que o tribunal não atendeu.
38. Com efeito, e como ficou demonstrado nos autos, entre as partes existiu uma relação jurídica duradoura, pelo que a introdução do crédito da ré sob a autora não embute uma nova relação jurídica à lide que implique reconvenção.
39. Assim, a ré agiu validamente em invocar a existência de um contra-crédito, o que constitui declaração da sua vontade de o compensar.
40. Nos termos do art. 579 do CPC, as excepções peremptórias são de conhecimento oficioso, excepto quando a lei não as torne dependentes da vontade do interessado, sendo que nada estando previsto quanto à forma dessa declaração, a mesma pode ser feita expressa ou tacitamente, nos termos gerais.
41. Assim, ao invocar a existência de um crédito sob a autora, a ré invocou um facto extintivo do direito de que aquela se arroga-va, que, conforme o art. 576/3 do CPC, implicava a absolvição parcial do pedido em quantia diversa daquela que ocorreu.
42. De facto, a sentença estatui que “provou-se que a ré tem um crédito sobre a autora no valor de 3820,63€”, e sendo manifesta a inferioridade desse valor face ao valor que lhe era exigido, claramente a ré invocou uma excepção de conhecimento oficioso e que não foi atendida pelo Tribunal a quo.
43. A prova produzida, demonstrativa da existência do crédito pretendia extinguir o pedido da autora nessa quantia, o que não ocorreu.
44. A alegação do crédito na oposição à injunção manifesta, tacitamente, a intenção da ré em compensar o seu crédito com o devido à autora, o que a sentença recorrida deveria ter efectuado.
45. Operada esta compensação e sem prescindir do supra ale-gado quanto à excepção do não cumprimento, a ré apenas poderia ter sido condenada na quantia de 6.857,96€.
A autora não contra-alegou.
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Questões que importa solucionar: se devia ter sido reconhecido à ré o direito de excepcionar o cumprimento imperfeito do contrato; se o cré-dito da autora devia ter sido compensado com o crédito que na fundamenta-ção da sentença se reconhece que a ré tinha sobre a autora.
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Para a decisão das questões referidas importam os seguintes factos dados como provados:
- A autora dedica-se, entre o mais, à actividade industrial de construção civil e comercial.
- No exercício da sua actividade a autora, a solicitação da ré, forneceu-lhe vários aparelhos de ar condicionado da marca Electra.
- O preço de cada um dos aparelhos de ar condicionado era variável de acordo com o modelo.
- Para cada fornecimento a autora procedeu à emissão das respectivas facturas.
- A autora emitiu e enviou à ré as seguintes facturas relativas a esses bens:a) Factura 1966, emitida em 19/9/1997, no valor total de 6145,68€; b) Factura 2515, emitida em 11/5/1998, no valor total de 2991,76€; c) Factura 2524, emitida em 14/5/1998, no valor total de 7366,47$; d) Factura 3109, emitida em 20/8/1998, no valor total de 5679,39€; e) Factura 3330, emitida em 17/1/1999, no valor total de 1268,03€.
- As partes acordaram em que as facturas se venceriam no prazo de 90 dias a contar da sua emissão.
- A ré, apesar de instada diversas vezes para o efeito, não procedeu ao pagamento dessas facturas, tendo apenas pago parte da factura n.º 1966, encontrando-se por pagar da mesma o valor de 1543€.
- Entre autora e ré foram há muitos anos atrás estabelecidas diversas relações comerciais.
- A autora era, à data, a representante exclusiva em Portugal dos sistemas de ar condicionado da marca X, sendo a ré vendedora na zona de V desses equipamentos.
- Foi celebrado um protocolo de crédito de ALD celebrado entre as partes e uma sociedade denominada W tendo ficado estabelecido que a ré compraria aparelhos de ar condiciona-do à autora, sendo esses artigos numa primeira fase facturados à ré.
- Essa parceria permitia aos clientes finais o pagamento do equipamento em prestações mensais.
- A operação de crédito era realizada pela W.
- A ré facturava os artigos vendidos à W que os disporia num, aluguer de longa duração, aos clientes finais das aqui autora e ré.
- Por estes negócios eram devidas comissões a pagar pela autora à ré.
- Nem sempre estas comissões foram creditadas na conta da ré junto da autora.
- Dessas comissões a ré tem a haver da autora 3820,63€.
- Tal valor não foi pago pela autora à ré.
- A autora no dia 04/07/2000, enviou um fax para a sede da ré onde reclamava o pagamento de 6857,97€.
- Solicitando ainda a emissão de uma factura de 3820,63€, para que a autora procedesse ao pagamento do montante em dívida à ré.
- Nos termos dessa comunicação ao valor reclamado de 6857,97€ deveria abater-se o montante de 3820,63€ perfazendo, assim, uma alegada dívida de 3037,34€.
- A ré vendeu inúmeros aparelhos de ar condicionado na zona de Valpaços, sendo que alguns desses aparelhos apresentaram diversos problemas técnicos que a autora e apesar de diversas vezes advertida por vezes não resolveu.
- Tendo a ré suportado diversas despesas relacionadas com o apoio a dar a esses clientes, nomeadamente a colocação de outros aparelhos provisoriamente, bem como a substituição dos aparelhos Electra por outros, a título definitivo.
- A ré vendeu, entre outros, equipamentos da autora aos seguintes clientes: C; D; E.
- Equipamentos esses que, devido aos diversos problemas técnicos levaram a que houvesse incumprimentos por parte desses clientes.
- Os aparelhos da marca X colocados na C nunca funcionaram pois congelam no inverno, e outros não funcionam em qualquer uma das estações.
- O que levou a que este cliente da ré, por diversas vezes, solicitasse a esta a reparação dos mesmos.
- A autora, após ter sido advertida por inúmeras vezes, enviou à C algumas das suas delegações técnicas, para a resolução dos problemas detectados.
- Já que tinham sido os técnicos desta que tinham feito os cálculos da instalação.
- Porém, apesar de se instigar insistentemente a resolução dos problemas detectados, nunca os mesmos foram resolvidos.
- Tendo o cliente, em virtude do incumprimento da autora, recusado proceder ao pagamento do equipamento.
- Na D foram instalados aparelhos vendidos pela autora que nunca funcionaram.
- Aquando da interpelação do não funcionamento à ré esta comunicou o mesmo à autora, mais informando que os clientes exigiam a substituição dos aparelhos de ar condicionado.
- Apesar da interpelação supra referida a autora nunca alterou a situação, o que obrigou a ré a colocar outros aparelhos de ar condicionado de outra marca a expensas suas.
- A ré procedeu à venda de aparelhos de ar condicionado da marca representada pela autora à E.
- Estes aparelhos não funcionaram, tendo os técnicos da autora procedido à sua substituição.
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As razões da sentença
A sentença recorrida entende que a autora tem contra a ré um crédito pelo preço de cinco vendas que lhe fez de diversos aparelhos de ar condicionado que depois entregou (arts. 874 e 879 do CC).
E diz, grosso modo, que se provou que alguns dos aparelhos que a autora forneceu à ré apresentavam problemas técnicos, que a autora, apesar de para tal instada não resolveu, tendo a ré suportado diversas despesas relacionadas com o apoio a dar a esses clientes, nomeadamente a colocação de outros aparelhos provisoriamente, bem como a substituição dos apare-lhos por outros, nos termos concretizados acima.
Depois diz que se os aparelhos vendidos tivessem vícios estar-se-ia perante uma venda de coisa defeituosa, conforme se prescreve no art. 913/1 do CC. Mas diz: “sucede porém que a ré não logrou provar, nem sequer alegou, a correspondência entre os alegados aparelhos defeituosos e os fornecimentos em causa nestes autos, de modo a poder socorrer-se desse facto para se eximir ao pagamento do respectivo preço.”
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A excepção de não cumprimento do contrato
Da leitura da oposição da ré, resulta desde logo que esta não deduziu nunca a excepção do não cumprimento do contrato, mesmo que sob a forma de incumprimento imperfeito. A excepção de não cumprimento do contrato é uma faculdade da parte recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar (ou não efectuar correctamente) a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. (art. 428 do CC). Ora, o que a ré fez foi dizer que a venda que a autora lhe fez de aparelhos defeituosos, no âmbito de uma relação negocial duradoura entre ambas, a levou a fazer despesas que corresponderiam a créditos seus sobre a autora, sendo o total deles, descontado do crédito da autora, correspondente a um saldo a seu favor de 1152,06€.
E não se trata de a ré não ter qualificado a defesa que apresentou como excepção, mas de os factos que alegou não serem enquadráveis como tal, mas apenas, como já dito, como matéria de eventual direito a haver da autora o pagamento de despesas que fez por aquela lhe ter fornecido bens defeituosos.
Questão nova
Não tendo a ré deduzida a excepção de não cumprimento do contrato em tempo oportuno, no tribunal recorrido, não o pode fazer agora, neste tribunal, porque um tribunal de recurso não se ocupa de questões novas.
Como diz Ribeiro Mendes, em Portugal, os recursos ordinários são de revisão ou de reponderação da decisão recorrida, não de reexame; o objecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida. A questão ou litígio sobre que recaiu a decisão impugnada não é, ao menos de forma imediata, objecto do recurso). (Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, Abril de 2009, págs. 50 e 81),
Consequência disto, é que “os tribunais de recurso não podem apreciar ou criar soluções sobre ‘matéria nova’” (ainda Ribeiro Mendes, obra citada, pág. 51).
Ou como dizem Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, “[é], por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.” (CPC, anotado, vol. 3º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 8).
Estes autores acrescentam que “[o]s tribunais de recurso podem, porém, conhecer de questões novas que sejam de conhecimento oficioso […]”, mas a questão colocada pela ré não tem nada a ver com questões de conhecimento oficioso.
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Insuficiência dos factos
Não sendo enquadráveis como excepção de não cumprimento do contrato, os factos que a ré logrou provar também não são suficientes para dizer que ela tem os créditos invocados por ela contra a autora. Isto sem prejuízo do que a sentença diz sobre um crédito em concreto, como se verá mais à frente, mas com outras consequências.
E não são suficientes pelo que resulta do que se segue:
Como se vê da confrontação entre a oposição e os factos provados, a ré, para além de uma série de considerações genéricas sobre problemas que teriam surgido no decurso da sua relação comercial duradoura com a autora, reproduzidas nos factos provados sob 22 a 25, apenas concretizava esses problemas em relação a três casos, sendo que, quanto ao primeiro, agora nos factos sob 26 a 31 (C) não tirava quaisquer consequências concretas em relação à autora, já que terminava apenas com a invocação da excepção de não cumprimento do cliente em relação à ré e não desta em relação à autora.
Restavam os outros dois casos sendo que no último deles, o agora relacionado com os factos sob 35 e 36 (E), apenas se prova que foi a autora que procedeu à substituição dos aparelhos, pelo que daqui não pode decorrer nenhuma direito da ré sobre a autora.
Quanto ao caso da D, agora sob os factos 32 a 34, a situação está descrita/provada em termos genéricos, não se sabendo quando é que ocorreu, a que aparelhos respeita e os valores que estavam em causa, falta que é imputável à ré porque a inseriu num contexto muito vasta de uma relação negocial duradoura entre a autora e a ré, vinda de “há muitos anos atrás”, sem qualquer precisão; e depois de a autora ter apresentado, a convite do tribunal, uma petição inicial aperfeiçoada que permitiria, à ré, em nova contestação, relacionar, se fosse o caso, a situação com os aparelhos concretos que estavam em causa nesta acção, não o fez.
Falta de conexão, aliás, que a sentença invoca como argumento contra o qual a ré não escreveu uma linha que fosse, construindo a sua tese, no recurso, como se o contrário é que fosse verdade e alterando para tanto, como já foi assinalado acima, uma frase de um dos factos provados, o sob 22, pois que onde consta ‘vendeu inúmeros aparelhos’, a ré escreve ‘vendeu os aparelhos’.
Poderia a ré invocar a violação pelo tribunal do dever de mandar aperfeiçoar articulados deficientes (art. 17/3 do regime das AECOPEC), mas não o fez, nem a questão pode ser conhecida oficiosamente (a situação é diferente dos casos em que o tribunal de recurso absolvesse, por falta de concretização de factos, uma parte que tivesse sido condenada, porque aí a nulidade seria cometida pelo próprio tribunal de recurso que absolveria sem dar à parte a possibilidade de aperfeiçoar um articulado que foi ele que considerou deficiente; como o tribunal não pode cometer nulidades, teria de a evitar, fazendo então esse convite: é a situação do ac. do TRP de 12/02/2015, 5807/13.6TBMTS.P1; mas, no caso dos autos, a nulidade já teria sido cometida, a parte não a arguiu e ela não é de conhecimento oficioso).
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Da compensação e da necessidade de reconvenção
Mas, para além disto, e mais importante porque torna praticamente inútil tudo o que antecede, no caso, como já se viu, o que houve foi a invocação pela ré da existência de uma série de créditos seus sobre a autora que a ré foi fazendo compensar, ao longo do articulado da oposição, com o crédito da autora sobre a si.
Ora, a questão coloca-se, em relação a todos estes créditos, da mesma forma que a sentença recorrida a colocou para um só dos créditos invocados pela ré e com isto entra-se na matéria da segunda via de argumentos da ré contra a sentença recorrida.
Diz-se a sentença recorrida:
“No caso em apreço a ré alega que é credora da autora da quantia de 3820,63€ relativa a valores de comissões que aquela não lhe pagou. Efectivamente provou-se que a ré tem um crédito sobre a autora no valor de 3820,63€ a esse título. Porém para que tal a pudesse eximir do pagamento do montante peticionado pela autora nestes autos, teria que operar a compensação do crédito da autora com o seu crédito, conforme previsto no art. 847 do CC. Sucede que, conforme previsto no art. 266/2c) do CPC, na redacção que lhe foi dada pela Lei 41/2013, de 26/06, já em vigor à data da apresentação da contestação, “quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor” tem que deduzir pedido reconvencional. Ora, nestes autos a ré não formulou pedido reconvencional de forma a fazer operar a compensação, o que, aliás, não seria legalmente admissível, uma vez que as acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato não admitem a dedução de pedido reconvencional. Assim sendo, não pode operar-se nestes autos a compensação dos créditos pretendida pela ré […].”
Ora esta fundamentação da sentença corresponde hoje a uma leitura linear do regime processual vigente e a ré argumenta contra este fundamen-to da sentença como se o regime em causa não tivesse sofrido qualquer modificação, ou seja, utiliza argumentos que se utilizavam antes da reforma de 2013 do CPC.
Já o Prof. Lebre de Freitas discute o actual regime com argumentação que tem em conta as alterações ocorridas e, apesar de ir reconhecendo que a intenção do legislador de 2013 terá sido outra, defende que a melhor interpretação do regime de 2013 é a de que “com ele nada mudou, permanecendo a reconvenção fundada em compensação meramente facultativa.” (A acção declarativa, Coimbra Editora, 3ª edição, 2013, pág. 132).
Mas o Prof. Lebre de Freitas admite que possa ser outro o entendimento, isto é, que “sem a dedução do pedido de reconhecimento do crédito do réu a compensação não opera (de outro modo, não se vê razão para que a redacção do artigo anterior não tivesse sido mantida).” Ou seja, “o réu terá de reconvir, formulando um pedido de simples apreciação da existência do direito que serve de suporte à excepção. Talvez se possa falar então de um ónus de reconvir, cuja inobservância não extingue o direito de crédito do réu, mas que este tem de observar se pretender obter o efeito extintivo do direito de crédito do autor.” (pág. 131)
E mais à frente, esclarece em nota 122 da pág. 132, na lógica deste entendimento, que “A dedução da compensação será também inadmissível nos processos especiais em que o réu não possa deduzir reconvenção, salvo se a lei especificamente exceptuar o fundamento da compensação (assim nos embargos de executado: art. 729-h).” E um desses processos especiais que não admite reconvenção é o dos autos (Lebre de Freitas, obra citada, pág. 349, parte final da nota 19: “A solução legal para a acção declarativa do DL 269/98 [para a questão da admissibilidade da reconvenção] não parece a melhor).
Face à alteração legislativa, à intenção do legislador de impor a reconvenção para que opere a compensação e ao facto de a interpretação mais evidente da lei (e por isso aquela que será mais facilmente compreendida e seguida, proporcionando uma maior uniformidade de decisão e certeza do direito e segurança jurídica) ser esta, entende-se que ela deve passar a ser seguida.
Isto mesmo foi entretanto reconhecido por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC anotado, vol. 1.º, 3ª edição, Coimbra Editora, Set2014, pág. 522: “A melhor interpretação do novo preceito acabaria, porém, por ser a de que com ele nada mudou, não fora uma consequência prática que Ramos Faria – Luísa Loureiro, Primeiras notas cit., I, n.º 2.3 da anotação ao art. 266, apontam: com a supressão, pela Assembleia da República, da réplica em resposta às excepções, o autor só poderia pronunciar-se sobre a existência e o conteúdo da nova relação jurídica trazida ao processo pelo réu nos termos do art. 3-3, o que não é o mais conveniente para o bom desenrolar do processo. Daqui se retirará que o réu passou a ter, no caso da compensação, o ónus de reconvir, formulando o pedido de mera apreciação da existência do contra-crédito, com base no qual pode fazer valer, em excepção, a extinção do crédito do autor.”
Também o Prof. Miguel Teixeira de Sousa refere que “actualmente a compensação [é] feita valer por via de reconvenção”, ou, dito de outro modo, que “segundo o regime instituído no nCPC, a compensação passou a ser alegada sempre por via de reconvenção” [o que não tem o efeito de precludir a compensação, ou seja, “o réu que não alegou um contracrédito para obter a extinção por compensação do crédito do autor não só não perde este seu contracrédito, como não está impedido de o invocar e exigir numa posterior acção”, sendo que “a exclusão da compensação (por lapso está escrito reconvenção) de qualquer preclusão constitui, aliás, um bom argumento (de ordem prática, quanto mais não seja) para se defender que a compensação deve ser invocada por via de reconvenção, e não por via de excepção”, “dado que a formulação e consequente apreciação do pedido reconvencional de extinção do crédito do autor por compensação torna indiscutível que qualquer decisão sobre o contracrédito adquire valor de caso julgado material (art. 619/1 do nCPC) e tudo isto tem, por sua, vez, reflexos na leitura do art. 729/2h) do CPC, a propósito do qual este prof. escreveu o que antecede em Sobre a oposição à execução com fundamento em contracrédito sobre o exequente em 26/06/2015, no blog do IPPC, excepto quanto às últimas linhas que foram retiradas de uma anotação do mesmo prof. de 17/04/2014, do mesmo blog, agora sob Jurisprudência (9)].
No entanto, numa outra entrada deste blog, em 27/06/2015, sob o mesmo título, este Prof. explica que o que antecede diz só respeito à compensação judicial e não à compensação extrajudicial (aquela que opera mediante declaração de uma das partes à outra). Em relação a esta diz que a sua invocação “em juízo não implica a dedução de nenhum pedido reconvencional, mas apenas a invocação da extinção do crédito alegado pelo autor como consequência daquela compensação, ou seja, a alegação de um facto extintivo deste crédito e, portanto, de uma excepção peremptória (cf. art. 576.º, n.º 1 e 3, CPC); noutros termos: a compensação extrajudicial já operou a extinção recíproca dos créditos, pelo que a única coisa que o demandado pode (e tem de) alegar em juízo é esta extinção, bastando-lhe invocar, para isso, a correspondente excepção peremptória.”
Mas se assim for, volta-se à discussão da forma como a compensação deve ser deduzida, perdendo-se a vantagem que o legislador terá pretendido obter com a modificação do regime. O Prof. Lebre de Freitas, que também tinha este entendimento, sob forma de dúvida, embora referindo os problemas a que a solução actual conduzia (entre o mais poderá levar a anular um efeito extintivo mútuo que é de direito material por via dum impedimento processual – Acção declarativa, págs. 131/132, e CPC anotado, págs. 521/522) acabou por aceitar, como se viu, a existência do ónus de reconvir sem fazer a distinção entre a compensação já operada extrajudicialmente e a que se quer operar judicialmente.
Seja como for, acrescente-se que no caso dos autos não há notícia, nos factos provados, de qualquer manifestação da vontade de compensar comunicada pela ré à autora, pelo que não se estava perante uma compensação extrajudicial e por isso esta questão agora levantada não se coloca.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela ré.
Porto, 02/07/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto