Acção 819/15.8T8VFR – St. Mª Feira – 2ª Secção Cível – J1
Sumário:
I – Se o devedor mantém poderes de administração (e de representação) não se justifica que os contratos de mandato que celebrou (art. 110/1 do CIRE) e as procurações que outorgou (art. 112/1 do CIRE), no exercício daqueles poderes, caduquem.
II – Se o tribunal onde corre termos uma acção declarativa comum para condenação no pagamento de uma dívida tiver conhecimento do trânsito em julgado da declaração de insolvência da ré, deve declarar a inutilidade superveniente da lide quanto a esse pedido (art. 277-e do CPC e AUJ do STJ de 08/05/2013).
III – E a instância deve ser declarada impossível supervenientemente (art. 277-e do CPC) quanto ao pedido de resolução de um contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência (art. 108/4-a do CIRE).
IV – Nesta acção não pode servir de fundamento da resolução a falta de pagamento de rendas no período posterior à data da declaração de insolvência.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
C, Lda, intentou em 03/03/2015, a presente acção contra A, Lda, B e D, pedindo a resolução de um contrato de arrendamento celebrado com a ré sociedade, por falta de pagamento de rendas, e o pagamento por esta e pelas demais rés, enquanto fiadoras, de rendas vencidas no âmbito desse contrato, bem como a condenação de todas elas, nas mesmas qualidades, de rendas vencidas de um outro contrato de arrendamento entretanto já resolvido.
As rés contestaram em 14/04/2015, dizendo, no que ainda importa, que a primeira ré tinha requerido um processo especial de revitalização (PER) em 22/12/2014, requerimento que tinha sido recebido, pelo que a acção devia ser suspensa; excepcionaram a ilegitimidade parcial da 2ª ré por, ao contrário do alegado, não ser fiadora no segundo pedido; impugnaram parte dos valores em dívida; invocaram, a favor das últimas rés, o benefício da excussão prévia em relação à ré sociedade.
A acção foi suspensa apenas quanto aos pedidos de condenação no pagamento de rendas vencidas e vincendas contra ré sociedade
A 02/11/2015 foi realizada a audiência prévia, tendo no decurso dela – depois de discutido o valor da acção, o valor das dívidas, a qualidade de fiadora da 2ª ré em relação ao 2ª contrato e o benefício da excussão prévia -, sido dado conhecimento pelas mandatárias das partes que o PER tinha sido encerrado e a ré sociedade sido declarada insolvente, tendo-se confirmado que assim sucedia com trânsito em julgado desde 12/08/2015 (a sentença é de 16/07/2015, na sequência da desistência da devedora da oposição que tinha deduzido à oposição) e que em assembleia de credores de 10/09/2015 tinha sido deliberada a manutenção da gerência pelos actuais legais representantes.
Foi então proferido saneador-sentença, no qual se considerou que, dada aquela decisão da assembleia de credores, se mantinha o mandato judicial conferido por tal ré à advogada presente na audiência prévia e cessava a suspensão da instância e, depois de consignados factos que se consideravam provados, foi julgado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autora e a primeira ré em 01/11/2011, condenando-se em consequência esta última a entregá-lo livre de pessoas e bens à autora, e foram condenadas as rés no pagamento das rendas e juros pedidos com as alterações entretanto feitas na audiência.
A ré sociedade interpôs recurso deste saneador-sentença – para que seja revogado – invocando a caducidade da procuração junta aos autos e inutilidade superveniente da lide, nos termos que abaixo serão precisados, sendo estas as questões que importa decidir, defendendo a autora, em contra-alegações, a improcedência da posição assumida pela ré quanto a elas.
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Os factos que interessam à decisão da primeira questão são os que resultam do relatório que antecede, acrescentando-se ainda o seguinte:
Na assembleia de credores as propostas constantes do relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência nomeado foram votadas favoravelmente por 73,22% dos credores presentes que representavam 27,16% dos créditos reclamados e eram as seguintes:
“a) Elaboração de um plano de insolvência, nos termos do art. 195 e ss do CIRE, no prazo de 60 dias, dada a dimensão do processo e a necessidade de encontrar pontos de acordo com os credores; b) Manutenção da gerência pelos actuais gerentes, face à proposta de apresentação do plano de insolvência; c) Manutenção da capacidade de movimentação das contas bancárias pela administração da empresa; d) Dispensa da apreensão dos bens da insolvente, podendo ser geridos os activos correntes, não sendo, contudo, permitida qualquer alienação de activos fixos sem a aprovação nos termos do CIRE.”
A seguir a esta votação, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Atendendo ao deliberado por esta assembleia de credores decide-se: – Conceder à insolvente o prazo de 60 dias para apresentar a proposta de plano de insolvência; – Conferir à devedora a manutenção da administração da MI, suspendendo-se a liquidação do activo; – Conferir à devedora a manutenção da capacidade de movimentação das contas bancárias; – Dispensar a apreensão dos bens da insolvente, podendo ser geridos os activos correntes, não sendo, contudo, permitida qualquer alienação de activos fixos sem a aprovação nos termos do CIRE.”
I
Da caducidade da procuração
Diz a ré sociedade que:
Nos termos do art. 112 do CIRE, a procuração dos autos deve ser declarada caduca, uma vez que a ré foi declarada insolvente; pelo que deveria ter sido ordenada a notificação do Administrador Judicial da insolvente para a representar nos presentes autos; o que não ocorreu.
A autora, em suma, entende o contrário, porque:
– por um lado, as procurações que caducariam, nos termos do art. 112/1 do CIRE, seriam apenas as procurações que digam respeito ao património integrante da massa insolvente; ora, o objecto em litígio nos presentes autos é uma acção despejo intentada pela autora contra a ré, pela falta de pagamento das rendas; não está em discussão o património da massa insolvente: a procuração passada à mandatária da ré, nos presentes autos, conferiu-lhe poderes para a representar na acção de despejo, única e simplesmente; os poderes conferidos pela ré no âmbito desta acção, não dizem respeito ao património da massa insolvente, porque o locado ocupado pela ré pertence à autora; e
– por outro lado, na Assembleia de Credores deliberou-se que se mantinha a gerência pelos atuais gerentes, ou seja, atribuiu-se a administração da massa insolvente à ré, mantendo-se válido o mandato forense da presente acção […] porque a mesma vai prosseguir os seus trâmites para a apresentação do plano de recuperação, a actividade da insolvente vai-se manter e a massa insolvente vai ser administrada pela própria ré.
A fundamentação do saneador-sentença já foi transcrita acima: considerou-se que, dada a decisão da assembleia de credores, o mandato judicial se mantinha.
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Posto isto,
O art. 81 do CIRE, que têm a epígrafe ‘Transferência dos poderes de administração e disposição’ diz o seguinte no seu n.º 1: “Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração [e, logicamente, de representação – como aliás também resulta logo do art. 81/4 do CIRE], como e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.”
Ora, o título X diz respeito à hipótese da administração pelo devedor.
Quer isto dizer que, nestes casos, a declaração de insolvência não priva o insolvente dos poderes de administração [e de representação] e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente.
Os arts. 110 a 112 do CIRE, que são os artigos que têm relevo no caso dos autos, têm aquela norma como necessário pressuposto e por isso apenas têm pleno cabimento quando a administração é entregue, sem mais, ao administrador da insolvência, não quando o devedor continua a ter os poderes de administração do seu património.
Se o devedor mantém poderes de administração (e de representação) não se justifica que os contratos de mandato que celebrou e as procurações que outorgou, no exercício daqueles poderes, caduquem.
Neste sentido, dizem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em anotação ao art. 110 do CIRE, que “a razão da caducidade não é o intuitus personae, mas o pressuposto de que, não dispondo o insolvente de poderes de administração e de disposição de bens da massa, não devem manter-se os contratos que ele concluiu para que terceiro realiza negócios jurídicos sobre os bens.” (CIRE, anotado, Almedina, 2013, pág. 334).
Que é o artigo 110 o que importa, de imediato, ao caso, e não o art. 112 invocado pela ré, resulta evidente de ele se referir aos mandatos enquanto o art. 112 do CIRE só se refere às procurações, sendo que no caso o que se está a discutir é a caducidade de um contrato de mandato judicial e não propriamente a prática, pela mandatária da ré, de actos em nome desta (e que o art. 110 se refere aos mandatos judiciais é referido, sem discussão, pela doutrina, como resulta, por exemplo, do CIRE anotado por Carvalho Fernandes e João Labareda, 3ª edição, Quid Juris, 2015, págs. 483 e 484, do Curso de direito da insolvência de Alexandre Soveral Martins, Almedina, 2015, págs. 174 a 179, e de CIRE anotado por Ana Prata e outros, já citado, págs. 333 a 342).
Nesta linha, embora para um caso bem diferente, veja-se o raciocínio desenvolvido pelo ac. do TRL de 06/03/2008, 1610/2008-8: “No caso de procuração com poderes gerais o mandato deve considerar-se subsistente, nos termos da lei, quanto àqueles actos de que o devedor não esteja privado de exercício, ou seja, quanto a todos aqueles actos em que não esteja cometida, por lei, a representação ao administrador da insolvência. Se foi conferida pelo devedor procuração com poderes forenses gerais a um mandatário, se é reconhecido ao devedor, do ponto de vista substantivo, legitimidade para a prática de determinados actos, a que título se vai considerar caducado o mandato? Não seria, nesta linha de pensamento, um contra-senso considerar-se o mandato caducado e, depois, reconhecer-se que o devedor pode outorgar mandato para a prática de actos ao abrigo dos quais já lhe fora conferida procuração, fixando-se, como se referiu anteriormente, prazo para junção de procuração que sempre está junta aos autos?”
O que antecede é suficiente para se concluir pela manutenção do contrato de mandato judicial que está consubstanciado na(s) procuração(ões) juntas pela ré e, face ao que se decidirá a seguir, não há necessidade de outras considerações, restando apenas esclarecer dois pontos: por um lado, a posição assumida pela ré é contraditória; se ela entende que o contrato de mandato caducou, a sua mandatária não podia recorrer invocando para tal poderes que derivam desse contrato; por outro, o primeiro argumento da autora não convence, visto que o contrato de mandato que abrange poderes para a mandatária da ré a defender em juízo numa acção em que está em causa a resolução de um contrato de arrendamento que é a sede da mesma, não se pode considerar “estranho à massa insolvente” (art. 110/1 do CIRE).
II
Da impossibilidade/inutilidade superveniente da lide
Antes de fixar os factos e dar a fundamentação de direito e a decisão recorrida, o tribunal recorrido disse ainda:
“Dada a atribuição, em assembleia de credores, da administração da massa insolvente à devedora, mantém-se válido o mandato forense dos autos bem como cessa a suspensão da instância relativamente ao pedido de condenação da ré sociedade já que, ao contrário do que decorreria do prosseguimento dos autos para liquidação, não há necessária inutilidade desta lide em função da insolvência já que a mesma prosseguirá para apresentação de plano de recuperação e se mantém a actividade da insolvente e a administração da massa pela mesma.”
Contra isto, diz a ré sociedade [transcrevem-se as conclusões respeitantes a esta questão na parte minimamente útil]:
28) Em segundo plano, sempre se dirá que cumulativa e posteriormente à notificação do AI para representar a ré nos presentes autos, deveria o tribunal a quo ter procedido à extinção da presente instância, por inutilidade superveniente da lide, pelo menos no referente aos pedidos efectuados à recorrente;
29) Isto porque, a matéria em questão nos autos encontra-se expressamente regulada no art. 108 do CIRE, o qual prescreve que o contrato não se suspende, mas pode ser denunciado pelo AI;
30) Ou seja, a resolução do contrato após a declaração de insolvência, não fica na pendência do locador, mas só e apenas dependente de acto de denúncia pelo AI;
31) Dizendo o n.º 4 do referido artigo expressamente que após a declaração de insolvência (extensível igualmente ao PER, por aplicação ex vi) que o locador não pode requerer a resolução do contrato com base na falta de pagamento de rendas anteriores a essa declaração nem com justificação na deterioração da situação financeira do locatário;
32) Assim se reforçando a tese de que o destino do contrato de arrendamento, cuja resolução é peticionada com base na falta de pagamento das rendas, incumbe apenas ao AI;
33) Por fim, e não menos relevante, a Assembleia de Credores determinou por maioria aferida nos termos CIRE, que a AI ficaria a cargo da própria devedora, nos termos dos arts. 156/3, 224/3 e 223 e segs do CIRE;
34) Porém, ao contrário do entendimento perfilhado na sentença em recurso, a administração pelo devedor, quando lhe é atribuída, não é plena nem discricionária;
35) Sobretudo na fase em que lhe foi conferida, na Assembleia de Credores, quando a apreensão de bens já se encontrava realizada, sendo de considerar apenas como efeito prático da entrega da administração ao próprio devedor a suspensão da liquidação (sem prejuízo dos bens perecíveis), com vista à apresentação de plano de recuperação;
36) Mas a administração pelo próprio é sempre supervisionada e fiscalizada pelo AI – cfr. arts. 226 e 52 e ss, em especial atenção os arts 55 e 59, todos do CIRE;
37) Ficando apenas atribuídos ao devedor actos de gestão corrente e apenas quanto aos quais não haja oposição do Administrador – cfr. 226 do CIRE;
38) Entendendo-se por actos de gestão corrente todos aqueles que decorram geral e comummente das exigências diárias, gerais e correntes do exercício da actividade comercial, em favor da massa insolvente e nunca em seu desfavor;
39) Tudo o resto será qualificado como acto de gestão extraordinária, os quais carecem de autorização do administrador para obrigar a insolvente e se tornarem eficazes – cfr. 226 do CIRE;
40) In casu, é inegável que a resolução e entrega do locado consubstanciam a prática de actos de natureza extraordinária, pelo que se encontram legalmente confiados ao AI, tanto mais que o locado corresponde à sede da insolvente e é nele que se centra a actividade daquela e onde essencialmente prestam os seus colaboradores funções;
41) Pelo que, a recorrente jamais poderia ter sido condenada nos termos em que foi;
42) Até porque, na prática, se encontra impossibilitada de satisfazer a condenação […];
A autora responde o seguinte [em síntese deste TRP, mas mantendo na íntegra a construção da autora]:
Quanto à inutilidade: como resulta dos autos, a autora requereu a resolução do contrato de arrendamento 4 meses e meio antes da ré ter sido declarada insolvente; o preceituado no art. 108 do CIRE não se aplica ao caso;
Quanto à indisponibilidade: a assembleia de credores atribuiu a administração da massa insolvente à ré; ao administrador podem ser atribuídos poderes exclusivos de administração do património do devedor; o imóvel ocupado pela ré sociedade pertence à autora, não faz parte do património da ré; pelo que o administrador não tem legitimidade, nem competência para administrar o imóvel locado; a autora é proprietária do imóvel locado e está impedida de se apropriar e de usufruir desse bem, apesar de existir um incumprimento contratual por parte da ré, que tem como consequência a resolução do contrato; a ré é parte legítima na resolução do contrato de arrendamento e na entrega do imóvel e para se operar esta resolução não é necessária qualquer autorização do administrador; não se verifica qualquer violação dos arts. 223, 224 e 226 do CIRE.
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Da impossibilidade superveniente quanto ao crédito contra a ré sociedade
O ac. do STJ de 08/05/2013, proferido no processo 170/08.0TTALM.L1.S1, com vários votos de vencido, publicado na base de dados do IGFEJ e também na 1ª série do Diário da República de 25/02/2014, pretendeu uniformizar a jurisprudência no seguinte sentido:
Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287 do CPC.
Este acórdão foi objecto pelo menos de um comentário negativo – no CIRE anotado por Ana Prata e outros…, págs. 258 a 262 – mas sem novos argumentos, ou seja, argumentos que não tivessem sido afastados, bem ou mal não importa, pelo próprio AUJ, pelo que o mesmo para já deve ser acatado.
Tendo o tribunal recorrido conhecimento do trânsito em julgado da declaração de insolvência, tinha que aplicar este AUJ declarando a inutilidade superveniente da lide quanto ao crédito pedido contra a ré sociedade, a não ser que justificasse fundadamente a não aplicação.
O tribunal recorrido não o fez, argumentando apenas com o facto de ter sido atribuída a administração da massa insolvente à devedora e o processo de insolvência não ir prosseguir para liquidação mas para apresentação de plano de recuperação, mantendo-se a actividade da insolvente.
Mas tudo isto não afasta a existência de uma necessária reclamação de créditos nesse mesmo processo de insolvência (como decorre dos arts. 1, 36/1j, 46/1, 47/1, 90 e 128/1 e 34, todos do CIRE) e é ela que que serve de base de fundamentação ao AUJ referido.
É certo que:
– o crédito da autora pode não ter sido reclamado no processo de insolvência – e é isso que, entre o mais, levou aos votos de vencido naquele AUJ, quase todos eles no sentido de só a reclamação do crédito num processo de insolvência, ou o seu relacionamento pelo administrador, é que seria causa de extinção da instância, por inutilidade da lide, da acção declarativa em que o pedido formulado contra o insolvente é o mesmo crédito -;
– ou pode acontecer, por várias razões, que no processo de insolvência não venha a ser reconhecido o crédito da autora, entre o mais se o processo de insolvência acabar antes dessa fase – e é isto que, entre o mais, levou a que muitos outros acórdãos tenham considerado que a inutilidade só ocorreria quando houvesse, e se houvesse, uma sentença de verificação de créditos;
– tal como pode acontecer que finda a eventual liquidação e encerrado o processo, haja um saldo que pudesse servir para pagar a dívida reconhecida na sentença que viesse a ser proferida nesta acção, o que seria demonstrativo de que não existiria inutilidade.
Mas tendo estas argumentações sido afastadas ou desconsideradas – bem ou mal não importa agora – pela maioria dos votantes do AUJ, as mesmas não podem ser agora retomadas para afastar a aplicação deste.
Pelo que, o saneador sentença devia ter feito a aplicação deste AUJ o qual, por isso, levava a que se considerasse inútil prosseguir a lide para apreciação do crédito da autora contra a ré sociedade (art. 277-e do CPC); e isso teria impedido a condenação da ré sociedade; pelo que esta condenação deve ser revogada, declarando-se em seu lugar a inutilidade superveniente da lide (reportada apenas ao crédito da autora contra a ré sociedade; é que apenas ela recorreu e o fundamento da inutilidade só respeita à ré sociedade, pelo que o recurso não se estende às compartes desta apesar das rés terem sido condenadas como devedoras solidárias: art. 634/2-c do CPC; e, assim, a sentença transitou quanto às outras rés).
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Para apreciação da parte restante da questão agora em apreciação, têm agora interesse os factos dados como provados no tribunal recorrido, pelo que se os passam a transcrever:
- A autora é dona e legítima proprietária de um pavilhão, sito na zona industrial de E, freguesia de E, com 1400 m2, constituído por espaço amplo de armazém, e na frente por dois pisos, rés do chão com escritórios, sanitários e espaço social e 1º andar com a área de gerência e espaço de projectos e cave, com a licença de utilização nºxxx, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo xxxx e descrito na Conservatória do Registo Predial com o nºxxxx.
- Por contrato de arrendamento de 01/11/2011, a autora deu de arrendamento à 1ª ré (sociedade) este pavilhão, com o nº de polícia xxx.
- O local arrendado destina-se exclusivamente à indústria de serralharia, construção civil e vidraria.
- O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 ano, com início em 01/11/2011 e a terminar no dia 31/10/2012, sendo que no final deste prazo prorroga-se por períodos sucessivos de 1 ano, enquanto não for denunciado nos termos legais.
- Como contrapartida da cedência, a 1ª ré comprometeu-se a pagar à autora uma renda mensal de 1526,94€, através de depósito em conta bancária do senhorio, por transferência bancária, ou cheque, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que diga respeito.
- A 1ª ré não pagou, no tempo, modo e local próprio as rendas devidas pelos meses de Setembro2014 a Novembro de 2015.
- Totalizando o valor em débito, até ao momento, a quantia de 22.904,10€.
- As 2ªs e 3ªs rés, na qualidade de fiadoras assumiram o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de arrendamento da 1ª ré.
- A autora é dona e legítima proprietária de um pavilhão, sito na zona industrial de E, freguesia de E, com 1400 m2, constituído por espaço amplo de armazém, e na frente por dois pisos, rés do chão com escritórios, sanitários e espaço social e 1º andar com a área de gerência e espaço de projectos e cave, com a licença de utilização nºxxx, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo xxxx e descrito na CRP com o nºxxxx.
- Por contrato de arrendamento de 01/06/2014, a autora deu de arrendamento à 1ª ré, este pavilhão, com o nº de polícia xxx.
- O local arrendado destina-se exclusivamente à indústria de serralharia, construção civil e vidraria.
- O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 ano, com início em 01/06/2014 e a terminar no dia 31/05/2015, sendo que no final deste prazo prorroga-se por períodos sucessivos de 1 ano, enquanto não for denunciado nos termos legais.
- Como contrapartida da cedência, a 1ª ré comprometeu-se a pagar à autora uma renda mensal de 1750€, através de depósito em conta bancária do senhorio, por transferência bancária, ou cheque, vencendo-se no primeiro dia útil do mês a que diga respeito.
- Em finais de Outubro de 2014, a 1ª ré entregou à autora a chave do arrendado, tendo o contrato cessado nessa data.
- A 1ª ré não pagou, no tempo, modo e local próprio as rendas devidas pelos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2014.
- Totalizando o valor em débito, neste momento, a quantia de 5250€.
- A 3ª ré, na qualidade de fiadora assumiu o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de arrendamento da 1ª ré.
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Da impossibilidade da lide quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento
O AUJ do STJ referido acima não tem aplicação ao pedido de resolução do contrato, já que este não se confunde com o reconhecimento de um crédito.
Mas já tem aplicação (ao pedido de resolução) a norma invocada pela ré, que é a do art. 108/4a) do CIRE:
“O locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário com algum dos seguintes fundamentos:
- a) falta de pagamento das rendas ou alugueres respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência.
[…]”
(neste sentido, o acórdão do TRP de 08/05/2014, 954/12.4TVPRT.P1, não publicado, que se passa a seguir de perto).
Esta norma [art. 108/4a) do CIRE] priva o senhorio do direito de resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento das rendas respeitantes ao período anterior à declaração da insolvência (neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, vol. I, Quid Juris, 2005 pág. 411, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, pág. 331).
Se a acção for intentada antes de ser declarada a insolvência, o efeito da norma não pode ser – não podia ser logicamente – o de impedir a propositura da acção, mas sim, o de impossibilitar a continuação da acção a partir do trânsito em julgado da declaração. Ou seja, no caso, está-se perante uma causa de extinção da instância por impossibilidade superveniente quanto a este pedido (art. 277-e do CPC). Se o locador não pode resolver o contrato com este fundamento, não interessa que já tivesse pedido a resolução, pois que a lei lhe tira o direito de o fazer com aquele fundamento objectivo.
E a norma compreende-se: priva o senhorio do direito de resolução quanto às rendas respeitantes ao período anterior à declaração de insolvência, tal como outras normas privam os restantes credores de exercitarem outros direitos, tudo com vista à salvaguarda dos fins inerentes ao processo de insolvência, sendo que a não retirada daquele direito poderia frustrar estes fins, consubstanciando-se então numa protecção do locador em detrimento dos restantes credores, que essa sim se poderia considerar injusta por tratamento desigual dos credores.
Como dizem Carvalho Fernandes e João Labareda: “[o] n.º 4 surge como um corolário da razão que domina a não suspensão do contrato, enquanto solução, em regra, mais favorável aos interesses da massa, cabendo ao administrador decidir, se os interesses dos credores impuserem solução diferente. […] Aliás, dificilmente se justificaria conferir ao senhorio, enquanto credor do insolvente uma situação mais favorável do que a dos demais. Entendido o preceito nestes termos, não podemos acompanhar o reparo de Luís M. T. Menezes Leitão, a quem ‘parece criticável’ a exclusão do direito de resolução pelo locador com fundamento na falta de pagamento de rendas […].” (agora na 3ª edição, 2015, pág. 480).
Estas críticas de Menezes Leitão e também de Alexandre Soveral Martins (obra citada, pág. 173), com as quais se pode ou não concordar, servem de qualquer modo de confirmação de que se trata de uma privação do direito de resolução.
Mas, como se verá de seguida, se ele perde esse direito de resolução pelas rendas já vencidas, não o perde pelas rendas posteriores, pelo que ou a insolvente passa a pagar as rendas ou então o locador readquire o direito de resolução. Pelo que se trata apenas de um período transitório de privação. E por outro lado, o locador ainda pode denunciar o contrato, já que no caso dos autos, o arrendamento não é para habitação (art. 108/1 do CIRE).
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Da resolução por falta de pagamento das rendas vencidas depois da declaração de insolvência
Como decorre do art. 108/1 do CIRE, o contrato de arrendamento não se suspende. O que quer dizer, que as obrigações que dele decorrem se mantêm. Assim sendo, as rendas continuam a vencer-se. Ora, como o art. 108/4 do CIRE apenas priva o locador do direito de resolução pelas rendas do período anterior, por raciocínio a contrario sensu conclui-se que ele pode resolver pela falta de pagamento de rendas pelo período posterior (neste sentido, entre outros, vejam-se os acs. do TRP de 14/01/2008, 0756532, de 03/12/2009, 826/09.0TJPRT.P1, de 08/04/2010, 2715/08.6TBVCD.P1 e de 03/05/2011, 2158/07.9TJPRT-B.P1, e do TRP de 08/05/2014, 954/12.4TVPRT.P1 este último não publicado).
Daí a alternativa de que se acabou de falar imediatamente antes do início desta nova parte deste acórdão.
Só que, assim sendo, a autora poderia dizer que, continuando a ré sociedade devedora/insolvente a não pagar as rendas (posteriores à declaração de insolvência) ela pode obter a resolução do contrato e o despejo da ré sociedade (e embora não o tenha dito, é isso que está pressuposto na argumentação da mesma).
A verdade é que, sendo, realmente, fundamento de resolução do contrato de arrendamento o não pagamento das rendas depois da declaração de insolvência, esse novo fundamento teria de dar origem a outro pedido, com base numa diferente situação de facto, dirigido a entidade diferente (massa insolvente representada pelo administrador da insolvência) e formulado noutro tribunal. E isso por estar dependente do processo de insolvência, local próprio para se discutirem as questões relacionadas com a massa insolvente, tanto mais que o que está em causa é um fundamento resolutivo relacionado com dívidas que deixam de ser da insolvência para passarem a ser da massa insolvente – neste sentido, vejam-se os já citados acórdãos e os arts. 51/1, als. d) e f), 89/2, do CIRE.
Em suma, a resolução do contrato não podia ser decretada neste processo com base na falta de pagamento das rendas posteriores à declaração de insolvência.
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As custas da acção, relativamente à extinção da instância quanto à ré sociedade têm de ficar por conta desta, já que a causa da impossibilidade/inutilidade superveniente da lide tem origem na esfera jurídica dessa ré (art. 536/3 do CPC). Estas custas da responsabilidade da ré reportam-se ao pedido de resolução que corresponde a 61.077,60€ e a 1/3 do valor dos restantes pedidos (= 21.683,20€).
Em relação aos pedidos contra as duas últimas rés, há que ter em conta que a autora teve um decaimento (em relação à 2ª relativamente a um crédito e ao valor do outro, e em relação à 3ª relativamente ao valor de um dos créditos) que se considera ser de cerca de 38,60%.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decretada resolução do contrato de arrendamento (referido nos factos provados sob 1 a 5) e a condenação da ré sociedade (e apenas desta) e, em sua substituição declara-se a impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido de resolução e a inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos de condenação da ré sociedade, com a consequente extinção da instância quanto a ela.
Custas do recurso pela autora.
Custas da acção pela ré sociedade em 82,53%; dos outros 17,47%, 38,60% são da responsabilidade da autora, 24,65% são da 2ª ré e 36,75% são da 3ª ré.
Porto, 17/03/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto