Acção 496/13.0 TBSTS do J2 de Santo Tirso – Secção Cível
Sumário:
Numa acção de despejo baseada na falta de pagamento de rendas, tendo sido excepcionada, na contestação, a nulidade do contrato de arrendamento e a existência de um acordo de não pagamento de rendas, o pedido de despejo imediato não deve ser admitido nem deferido.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
Segundo se depreende da conjugação da certidão junta a estes autos de recurso em separado, com o alegado pelas autoras A e E no recurso e com o conteúdo da decisão recorrida, pode-se dizer o seguinte para os efeitos deste recurso:
A O, Lda, foi demandada em 05/02/2013, pedindo-se, entre o mais, que ela fosse condenada a despejar o arrendado.
Fundamentou-se tal pedido no não pagamento das rendas vencidas desde Setembro de 2012 a Fevereiro de 2013.
A ré contestou excepcionando a nulidade do contrato de arrendamento, bem como o abuso de direito, consubstanciado no facto de em Outubro de 2012 ter deflagrado um incêndio no locado que o destruiu, apenas deixando as paredes, tendo ficado a ré impossibilitada de aí exercer a sua actividade, já que o imóvel não reúne as mínimas condições, sendo que a autora assumiu com a ré que nenhuma quantia seria cobrada a título de rendas até que a seguradora desta a indemnizasse e esta executasse as obras necessárias a repor a normal actividade naquele imóvel.
Em 05/07/2013, as autoras requereram que a fosse ré fosse notificada para proceder ao pagamento das rendas vencidas (de Março a Julho de 2013), acrescidas da respectiva indemnização.
A ré notificada para o efeito, nos termos do disposto no art. 14/4 do NRAU, nada pagou ou depositou, dizendo, em síntese, o seguinte, a 22/01/2015: o pagamento de rendas pressupõe a concessão do gozo temporário do prédio; desde o malogrado incêndio que a ré não labora no referido imóvel por este não reunir as condições mínimas para o efeito; encontrando-se o mesmo desocupado e livre de pessoas e bens há mais de um ano, momento em que a ré se viu obrigada a transferir a sua actividade para um outro local, em consequência do imóvel em causa não o permitir; as chaves do imóvel foram entregues ao falecido Sr. Moura; sintomático disso mesmo (que as autores estão na posse das chaves do imóvel) são as fotografias juntas ao requerimento, tiradas do interior do armazém.
As autoras vieram então requerer o despejo imediato da ré, dizendo ainda, quanto à justificação apresentada pela ré, que impugnam como falso tudo o alegado, que mais não é do que a representação concreta da repugnante má-fé com que a ré litiga […] Já não são só desrespeitosas, mas também perversas, as afirmações levianas vertidas nos articulados da ré, fruto do infortúnio de quem tenta misturar factos com o direito e pior ainda com a realidade – sem respeito por aqueles que já cá não estão!….
Tal requerimento foi indeferido com base nas seguintes considerações:
“Nos termos do artigo 14 do NRAU a falta de pagamento ou depósito das rendas que se forem vencendo na pendência da acção constitui fundamento para que o senhorio possa requerer o despejo imediato do arrendatário.
Tem-se entendido que o despejo imediato por falta de pagamento de rendas só poderá ter lugar quando não seja colocada qualquer questão susceptível de pôr em causa o arrendamento nos seus elementos essenciais. Discutido este, ou alegados factos [capazes] de o pôr em causa, é lícito ao arrendatário não se dever limitar ao pagamento da renda para evitar o despejo imediato, antes podendo defender-se com quaisquer factos que justifiquem o não pagamento.
Como refere Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 7ª edição Coimbra 2003, p. 382, “só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta tiver subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão pelo réu”.
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que o arrendatário contrapõe ao pedido de despejo imediato, a nulidade do contrato, o facto do locado não reunir condições para que o mesmo o possa usar, o que não tem feito, e ainda um acordo celebrado com a auto-ra de não pagamento de rendas.
Ora, o contrato de arrendamento é sinalagmático, ou seja, o uso do local arrendado pelo arrendatário tem como correspectivo o pagamento da respectiva renda ao senhorio, o qual tem de fornecer-lhe o locado em condições de utilização. Quando falha um dos termos do sinalagma bilateral entra em crise a relação jurídica contratual, justificando-se por parte do contraente não faltoso a exceptio non rite adimpleti contractus, consagrada no artigo 428 do Código Civil.
Em face de tudo quanto se expõe, tendo em conta que na presente acção está em causa a validade do próprio contrato de arrendamento invocado, assim como a falta de condições do locado e ainda uma transacção celebrada com o senhorio de não pagamento de rendas, entendemos que, por ora, é lícito aos réus, não procederem ao pagamento das rendas vencidas, pelo que, não estão reunidos os pressupostos necessários para o deferimento do despejo imediato.”
As autoras recorrem deste despacho:
- Nos termos dos nºs 3, 4 e 5 do artigo 14 da Lei 6/2006, na redacção introduzida pela Lei 31/2012 de 14/08, na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais, e, não juntando o arrendatário prova aos autos do pagamento ou depósito das rendas encargos ou despesas, vencidas por um período igual ou superior a dois meses, o senhorio pode requerer o despejo imediato.
- Não obsta à imediata procedência do incidente de despejo imediato o facto de o arrendatário ter deduzido na acção principal de despejo excepções de nulidade do contrato de arrendamento, de ter “deflagrado um incêndio no local que o destruiu, apenas deixando as paredes tendo ficado a ré impossibilitada de aí exercer a actividade, já que o imóvel não reúne as mínimas condições”, ou qualquer impugnada transacção de não pagamento de rendas.
- Na acção/incidente de despejo incidental, a prova do pagamento ou do depósito é a única defesa admissível, não sendo relevante qualquer outro argumento, no mesmo nem sequer deduzido.
- A decisão recorrida fez má aplicação dos factos e do direito, violando o disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 14º da NRAU, pelo que deve ser revogada,
- Ordenando-se o despejo imediato do arrendado.
A ré não contra-alegou.
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Questão a decidir: se o pedido de despejo imediato devia ter sido deferido.
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Os factos a considerar são os que resultam do que antecede (embora a certidão levante dúvidas sobre quem são os autores, porque diz que o autor é uma outra pessoa, que não as autoras, e outros, e sobre quem é a parte passiva, já que se refere à ré e outros, para além do despacho recorrido e as autoras se referirem à autora e aos réus; no entanto, como não há razões para pôr em causa que a ré seja a única putativa arrendatária nem que as recorrentes sejam as únicas putativas senhorias, vão-se desconsiderar aquelas dúvidas).
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Se um arrendatário deixar de pagar dois meses de rendas, o senhorio tem um fundamento para resolver o contrato (art. 1083/3 do CC). Lançando o senhorio mão do procedimento especial de despejo (art. 15/2e da Lei 6/2006, de 27/02, na redacção da Lei 31/2012, de 14/08) ou, eventualmente, da acção de despejo (art. 14 daquela Lei), o arrendatário pode deduzir oposição (art. 15-F/1 da Lei) ou contestar a acção (art. 14/1 daquela lei com remessa para o processo comum declarativo), onde poderá alegar tudo o que entender na sua defesa.
Porque é que as coisas serão diferentes pelo simples facto de estar pendente uma acção de despejo? Porque é que estando pendente uma acção de despejo por falta de pagamento de rendas, em que o arrendatário já se tinha defendido alegando alguma razão para não ter de pagar rendas, o arrendatário perderia o direito de se opor ao despejo (que será uma consequência da resolução do contrato por falta do pagamento das rendas) apenas por, consequentemente com a anterior defesa, continuar a não pagar as rendas? Porque é que o arrendatário, que tinha estado sem pagar rendas até aí, seria obrigado a renunciar à sua defesa, às razões invocadas para não pagar as rendas, e a ir pagá-las, apenas por serem rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de ser despejado de imediato?
Por exemplo, o arrendatário excepcionava, na contestação da acção, como no caso dos autos, entre o mais, a nulidade do contrato, a impossibilidade de uso do locado e um acordo de não pagamento de rendas com o senhorio; por isso, justificava o não pagamento das rendas vencidas e refutava o fundamento resolutivo invocado pelo senhorio, concluindo pela improcedência da acção; o senhorio não tinha o direito de pedir o despejo imediato (veja-se Miguel Teixeira de Sousa, Tópicos sobre a acção de despejo, Cadernos o Direito 7, 2013, págs. 111 a 122, espec. pág. 122), nem este teria sentido, sem discussão das excepções deduzidas pelo arrendatário. No entanto, segundo a tese seguida pelo recurso, se o arrendatário, consequentemente com a sua defesa, continuasse a não pagar as rendas que se vencessem, já o senhorio poderia obter o despejo imediato, porque o arrendatário não podia invocar aquela nulidade ou aquele acordo. É uma solução ilógica e inadmissível por pôr em causa o direito de defesa do arrendatário e por isso já julgada inconstitucional pelo tribunal constitucional.
Não pode ser. Se o arrendatário tiver alguma razão para de algum modo pôr em causa a fonte da obrigação de pagamento de rendas e por isso a exigibilidade destas, tem o direito de, no pedido de despejo imediato por falta de pagamento de rendas, continuar a invocar a razão já apresentada para não ter pagado as rendas que serviram de fundamento à propositura da acção e invocar outras para continuar a não pagar as que entretanto se venceram e não pode ser decidido o despejo imediato sem que tais questões estejam decididas (e daí que a decisão recorrida possa/deva ter em conta, como teve, também o que tinha sido alegado na contestação).
Tem pois razão a decisão recorrida, que tem a seu favor
– uma extensa corrente jurisprudencial:
(grande parte dela referida por Rui Pinto, Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, Agosto de 2013, págs. 1116 a 1133, com referência a acórdãos que já vêm de 1963 e vão até Nov2011, e portanto já no âmbito do art. 979 do CPC; ainda recentemente reafirmada pelo ac. do TRL de 12/02/2015, 4030/12.1TJLSB-A.L1-6: O incidente de despejo imediato tem base de sustentação e sentido técnico quando se discute se foi cumprida ou não a obrigação e não quando se debate se ela existe ou não),
– o apoio da doutrina:
[veja-se, para além de Rui Pinto, obra e local citados, Miguel Teixeira de Sousa, A acção de despejo, Lex, 1995, pág. 78: “No entanto, o despejo imediato não deve ser decretado se o arrendatário invocar a exceptio non adimpleti contractus como fundamento para o não pagamento das rendas vencidas durante a pendência da acção de despejo (cfr. art. 428/1 do CC). Por exemplo, apesar de se encontrar admitido por acordo, ou mesmo provado, que o arrendatário não pagou as rendas que se foram vencendo durante a pendência da acção, o despejo imediato não deve ser decretado se esse locatário tiver alegado factos que envolvem a violação do contrato de arrendamento pelos locadores (ac. do TRP de 17/05/1994, CJ.94/3, pág. 203)]
– e a consideração, pelo tribunal constitucional, de que o entendimento contrário é inconstitucional, com ampla, concreta e extensa fundamentação
(ac. do TC 673/2005, de 06/12/2005, a propósito da inconstitucionalidade do art. 58 do RAU ≈ art. 14/3 e 4 da Lei 6/2006, de 27/02: “Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida […]”; entre o mais, diz o TC:
“Numerosa jurisprudência das Relações tem também sublinhado que o incidente de despejo imediato pressupõe que se mostre assente, na acção em que ele se enxerta, não só a existência de um contrato de arrendamento válido, mas também que autor e réu são efectivamente as partes no contrato e que nenhum litígio persiste quanto, por exemplo, ao montante da renda, à mora do locador ou ao incumprimento, por parte deste, de qualquer dever contratual, que fosse susceptível de não tornar líquida e incontroversa a mora do locatário no pagamento das rendas vencidas na pendência da acção. Só perante situações em que não existe controvérsia quanto ao dever de o réu pagar certa renda ao autor, por força de contrato de arrendamento, é que seria aceitável que, face a incumprimento dessa obrigação na pendência da acção de despejo e formulação, pelo autor, de pedido de despejo imediato, a possibilidade de defesa do réu fosse restringida à prova do pagamento ou depósito das rendas em dívida”.
Após o TC faz uma extensa citação de acórdãos todos neste sentido; e depois acaba por concluir:
“Fazendo aplicação destas considerações ao caso ora em análise, surge, de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo, das possibilidades de defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). […] Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efectividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da CRP).”
Aliás, nestes casos – de contestação da acção baseada em falta de pagamento de rendas – nem sequer devia ser dado início ao incidente de despejo imediato, com indeferimento liminar, por terem sido alegadas excepções peremptórias na contestação. Neste sentido, apenas por exemplo, Rui Pinto, obra citada, págs. 1121 a 1124, esp. 1122 e acórdãos do TRL de 17/05/2007, 1657/2007-2, e do TRE de 22/01/2004, 2414/03-3 (e como se verá de seguida é também este o entendimento de grande parte dos acórdãos que seguem posição diversa, pois que exigem como pressuposto do incidente à existência de um contrato válido e uma renda incontroversa; assim, por exemplo, expressamente o ac. do TRP de 2008, 0821166).
As razões invocadas pelas autoras, seguindo o ac. do TRG de 20/3/2014, 662/13.9TBGMR-A.G1, com invocação dos fundamentos do ac. STJ de 05/12/2006, 06A2299, do ac. do STJ de 09/10/2007, 07A2681, do ac. do TRL de 10/12/2009, 189/07.8TBMTJ-B.L1-7, do ac. do TRG de 29/11/2007, 2276/07-2, e também referidas no ac. do TRP de 20/05/2008, 0821166, e no ac. do TRP de 19/05/2014, 1423/11.5TBPRD-A.P1, não convencem:
Primeiro porque não afastam os argumentos referidos acima, sendo que os acórdãos do STJ de 2006 e do TRL de 2009 nem sequer referem o ac. do TC; segundo porque vários destes acórdãos acabam por admitir expressamente que têm como pressuposto que para que o referido incidente funcione é necessário que esteja admitida a existência de um contrato de arrendamento válido entre as partes e que não seja controvertida a renda (é o caso dos acs. do STJ de 2007, do TRG de 2007 e do TRP de 2008) não explicando porque é que não será também relevante a existência de um acordo de não pagamento de rendas ou de uma excepção de não cumprimento do contrato; terceiro, porque argumentam com uma petição de princípio: a lei inclina-se a favor do senhorio… porque não concede ao arrendatário a possibilidade de oposição com outros fundamentos, dizem, esquecendo-se que era precisamente esta impossibilidade que se tinha que demonstrar; e, quarto, porque dizem que a limitação das possibilidades de defesa do arrendatário é a única forma de o incidente de despejo imediato ser eficaz, mas sem explicaram como é que as exigências de eficácia poderiam justificar um tão radical afastamento do direito constitucional de defesa da outra parte.
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O caso levanta, no entanto, uma particularidade: dizendo a ré que entregou as chaves ao senhorio, com o sentido de que este as aceitou, podia-se entender que o contrato de arrendamento tinha sido revogado tacitamente por acordo das partes.
As autoras invocam esta alegação da ré para sugerir que a mesma corresponde à demonstração da falta de interesse da ré no locado e que, por isso, não se justificaria o indeferimento do pedido de despejo imediato, mas sem razão, porque a ter ocorrido a revogação tácita do contrato, o que tribunal teria de fazer era declarar a inutilidade superveniente parcial da lide, continuando a acção a correr apenas para conhecer da questão das rendas vencidas e das que se foram vencendo.
Só que as autoras não querem que seja tirada essa consequência, provavelmente porque perderiam o direito às rendas referentes ao período posterior à revogação tácita do contrato e por isso impugnaram todos os factos alegados pela ré, incluindo os que sugeriam a revogação tácita; estando impugnados os factos, o tribunal não pode actuar partindo do princípio de que eles se verificaram. As autoras não podem querer que o tribunal tenha os factos alegados pela ré como provados para uma coisa e não os ter como provados para outra coisa.
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Em suma: tendo sido excepcionada, na contestação, a nulidade do contrato de arrendamento e a existência de um acordo de não pagamento de rendas, e depois do incidente, a entrega das chaves do locado, o despejo imediato não podia ser deferido.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pelas autoras.
Porto, 23/06/2015
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto