Acção ordinária 129/03.3TBGDM do Juiz 2 da secção cível da instância local de Gondomar

            Sumário:

              I – Um despacho proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a questão que estiver em causa ou do trânsito em julgado do mesmo, não é um despacho nulo, é, sim, um despacho ineficaz.

              II – Um despacho proferido no uso legal de um poder discricionário é irrecorrível e não vincula o juiz (arts. 620 e 630 do CPC), que pode proferir, depois disso, um outro, noutro sentido, se se convencer que a alteração é conveniente aos fins do processo.

              III – Um despacho que suspenda a causa devido à pendência de uma causa prejudicial (art. 272/1 do CPC), é recorrível quanto à verificação dos pressupostos da prejudicialidade mas irrecorrível quanto ao juízo da conveniência da suspensão.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            Neste processo, iniciado, como o número do processo indica, em 2003, ou seja, há mais de 11 anos, foi, em 28/02/2008, proferido o seguinte despacho (que se transcreve na parte com interesse para este recurso):

        Constata-se que a ré foi declarada insolvente. Face à natureza e função do processo de insolvência, a presente acção não pode prosseguir enquanto se verifique a pendência do processo de insolvência. Pelo exposto, por considerar que existe motivo justificado, nos termos do disposto no art. 279/1 do CPC, suspendo esta instância até que seja proferida decisão de encerramento do processo de insolvência.

            A autora interpôs recurso deste despacho, que o tribunal recorrido considerou admissível mas foi depois julgado deserto por falta de alegações.

            Por força de requerimentos feitos pela ré, com o fim de se levantar a suspensão, a 12/12/2011 e 06/02/2012 foram proferidos despachos dizendo que a decisão que suspendeu a instância até que fosse proferida decisão de encerramento do processo de insolvência encontra-se transitada em julgado, pelo que se indefere o requerido, devendo a instância permanecer suspensa naqueles termos. E a 20/01/2014 foi dito que atentos os despachos anteriores se tinha esgotado o poder jurisdicional quanto à questão suscitada, pelo que nada mais havia a decidir a esse respeito.

            A 18/03/2014 foi, no entanto, proferido o seguinte despacho que se transcreve na parte que interessa:

         “Apesar dos subsequentes despachos proferidos ao longo dos anos subsequentes, que o mantiveram, é de considerar – compulsados melhor os autos – que o referido despacho de 25-02-2008, não transitou em julgado.

     Na verdade, insusceptíveis de trânsito em julgado, porque intrinsecamente incapazes de admitir recurso ordinário, são os despachos de mero expediente e os proferidos no uso de um poder discricionário, os quais por isso não adquirem valor de caso julgado (arts 679 e 672, in fine, do CPC então vigente, correspondendo aos actuais arts 630/1 e 620 – ver Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2.ª edição, Lisboa 1997, pág. 567).

         Ora, constituem despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, designadamente, aqueles através dos quais o juiz suspenda a causa por a decisão depender do julgamento de outra já proposta ou por ocorrência de outro motivo justificado, nos termos do art. 279/1 do CPC (v. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, 1999, pág. 278).

         Assim, importa apreciar se é de fazer prosseguir a presente acção declarativa.

         Caso esta acção visasse a condenação da ré insolvente no cumprimento de uma obrigação pecuniária, verificar-se-ia uma inutilidade superveniente da lide quanto à ré.[…] (v. AUJ n.º 1/2014) […]. Sucede que, no caso dos autos [… n]ão se pretende obter o reconhecimento de um crédito, pelo que a declaração de insolvência não tem por efeito a inutilidade superveniente da lide, nem a suspensão da instância. De igual modo, não há notícia que a ré tenha optado pela obtenção de uma indemnização tendente a proceder ela própria à reparação dos defeitos, e que o tenha reclamado no processo de insolvência.

         Acresce que, o Sr. Administrador da Insolvência não requereu a apensação destes autos ao processo de insolvência. Por outro lado, existe ainda uma ré que não foi declarada insolvente, o que também sempre obstaria à decretada suspensão, nesta parte.

         De qualquer modo, considerando que inexiste fundamento legal para a suspensão da instância, nem a mesma se apresenta conveniente por qualquer outro motivo justificado, determino o prosseguimento dos autos. […]”

            A interveniente [que no despacho que antecede é qualificada como outra ré] arguiu, a 03/04/2014, a nulidade deste despacho: (i) diz que do despacho de 2008 foi interposto recurso, que foi admitido mas julgado deserto por falta de alegações, pelo que a decisão transitou em julgado; (ii), invoca os despachos de 2011, 2012 e Janeiro de 2014; (iii) diz que não resulta dos autos que até à presente data tenha sido proferida decisão de encerramento do processo de insolvência; (iv) invoca o disposto no art. 613, nºs. 1 e 3, do CPC (: “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”); (v) tira o resultado de que o tribunal recorrido não podia reapreciar a situação, por não ter havido qualquer alteração nos pressupostos do despacho de 2008; (vi) acrescenta que os despachos de 2011 e 2012, também transitados em julgado, conferiram à decisão de 2008 a natureza de caso julgado; (vii) e considera que tudo isto vale por dizer que o despacho em causa (de 18/03/2014) é nulo, por violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado.

            Quer a autora quer a ré (como massa insolvente) pronunciaram-se pelo indeferimento da nulidade arguida pela interveniente.

            Por despacho de 27/06/2014, foi proferido o seguinte despacho no que importa à questão:

        “Nada há a rectificar ou a alterar ao despacho de 18/03/2014, o qual não padece de qualquer irregularidade ou nulidade, pelo que o mantenho nos seus precisos termos.”

            A 05/09/2014, a interveniente interpõe recurso deste despacho repetindo os mesmos argumentos utilizados na arguição de nulidade.

             Quer a autora quer a ré (como massa insolvente) pronunciaram-se no sentido da negação de provimento ao recurso.

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            Questão que importa decidir:

            O despacho recorrido (de 27/06/2014) é um despacho que se pronuncia sobre uma arguição de nulidade e que diz que o despacho de 18/03/2014 não padece de qualquer nulidade.

            Recaindo o recurso da interveniente naquele despacho – o que é inequívoco, nem aliás seria tempestivo se tivesse por objecto qualquer outra decisão -, a questão que importa decidir seria só esta: saber se o despacho de 18/03/2014 sofre de qualquer nulidade.

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            Os factos que importam para a decisão desta questão são os que constam do relatório deste acórdão.

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                                  Da nulidade e da ineficácia

            Os fundamentos invocados pela interveniente não são fundamentos de nulidade do despacho de 18/03/2014.

            Um despacho proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a questão que estiver em causa ou do trânsito em julgado do mesmo, não é um despacho nulo, é, sim, um despacho ineficaz.

            Dizem Lebre de Freitas e outros: “não constituem, finalmente, vícios da sentença os casos em que ela é ineficaz, por circunstâncias extrínsecas ao acto, preenchendo, porém, os requisitos do respectivo tipo legal. Estão nestes casos a sentença […] proferida sobre objecto já coberto pelo caso julgado (art. 675-1) […].” (CPC anotado, Coimbra Editora, 1999, vol. 2, Coimbra Editora, pág. 665; o art. é agora, depois da reforma de 2013 do CPC, o art. 625/1).

            No mesmo sentido e ligando as duas questões diz Castro Mendes: “Quanto ao 5º caso [sentença lavrada já depois de haver outra proferida no processo (contra o art. 666/1)], a hipótese é de ineficácia, por aplicação do art. 675/2 […].” (DPC III, AAFDL, 1980, págs. 299/300; os arts. são agora, depois da reforma de 2013 do CPC, os arts. 613/1 e 625/2).

            Portanto, o despacho recorrido está certo, visto que não há nulidades no despacho de 18/03/2014.

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            No entanto, já que a ineficácia pode ser declarada a todo o tempo e os fundamentos dela foram invocados, embora com errada qualificação jurídica pela interveniente, sendo que, quanto à qualificação jurídica o juiz não está sujeito às alegações das partes (art. 5/3 do CPC), vai-se apreciar a questão do ponto de vista da ineficácia.

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Da modificabilidade dos despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário

            Como dizia o despacho de 18/03/2014, citando Lebre de Freitas, o despacho que suspende a causa por a decisão proferida depender do julgamento de outra já proposta é um despacho proferido no uso legal de um poder discricionário (correspondia à anotação ao art. 156/4, que é agora, depois da reforma de 2013 do CPC, o art. 152/4).

              Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (obra citada, agora na 3ª edição, Set2014, págs. 302/303, 536 e 184) lembram que este não é o entendimento usual da jurisprudência – apesar da expressão ‘pode’ e de a jurisprudência reconhecer a grande liberdade que é concedida ao juiz que se deve orientar por critérios de utilidade e conveniência processual e de a doutrina entender o contrário quanto a norma semelhante do art. 92 – defendendo que o entendimento unitário das duas disposições se impõe, o que parece inequívoco e portanto é esta a posição que se segue, sempre sem prejuízo de se reconhecer a recorribilidade se for ordenada a suspensão fora do circunstancialismo dos nºs. 1 dos arts. 272 e 92, ou seja, de a decisão ser sindicável quanto à verificação dos pressupostos da prejudicialidade.

            Ora, por força do disposto nos arts. 620 e 630/1 do CPC, os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário não admitem recurso nem têm força obrigatória dentro do processo.

            Explica Alberto dos Reis: “Estes despachos podem ser alterados livremente, mesmo dentro do processo, o que significa que não dão origem à formação de caso julgado formal, não têm eficácia vinculativa (CPC anotado, vol. V, reimpressão de 1981, Coimbra Editora, pág.166).

            Por isso, em qualquer altura em que o juiz se aperceba que a suspensão da causa já não serve os fins do processo e que é conveniente fazer cessar a suspensão precisamente para providenciar pelo andamento regular e célere do processo, em cumprimento do agora chamado dever de gestão do processo (art. 6 do CPC), deve fazê-lo, sem que se verifique, com isso, qualquer violação dos fundamentos invocados pela interveniente.

            Daí que, Lebre de Freitas e outros digam, embora para hipótese paralela: “Não se aplicando embora o art. 97/2, a negligência das partes em promover o andamento da causa prejudicial pode levar o juiz a fazer cessar a suspensão, no exercício ainda do poder que lhe é concedido pelo art. 279/1. Aliás, a verificação dessa negligência pode levar o juiz a convencer-se supervenientemente de que a causa prejudicial foi intentada unicamente para se obter a suspensão (art. 279/2). Como pano de fundo destas apreciações judiciais, está o dever de o juiz providenciar pelo andamento regular e célere do processo (art. 265/1).” (obra citada, vol. 1º, pág. 508; os arts. são agora, depois da reforma de 2013 do CPC, respectivamente, os arts. 92/2, 272/1, 272/2 e 6/1).

            Ora, no caso dos autos, o tribunal recorrido está perante um facto superveniente – embora a interveniente diga o contrário -, que é o decurso do tempo (que já vai para 7 anos) que indicia, de forma inequívoca, que a suspensão do processo não serve os fins do mesmo (até porque também se indicia que o processo de insolvência – também já com, pelo menos, quase 7 anos – não acabou ainda devido à pendência das questões que estão relacionadas com este).

            E assim fez o que devia ter feito tendo em conta os fins do processo, ou seja, levantar a suspensão.

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            Falta dizer, quanto a outros dois argumentos da interveniente, que o facto de o tribunal recorrido ter admitido o recurso do despacho de 2008, não quer dizer que o recurso fosse admissível, porque tal decisão não vincula o tribunal superior (art. 641/5 do CPC); de qualquer modo, já se viu acima, o despacho em causa não faz caso julgado formal, pelo que não seria aquela vicissitude processual que poderia implicar a atribuição de força de caso julgado à decisão; os despachos de 2011, 2012 e de Janeiro de 2014 não podem modificar a natureza de um poder conferido por lei (no caso pelo art. 272/1 do CPC), nem impedir o seu uso num momento posterior perante uma alteração de circunstâncias; isto é, esses despachos de 2011, 2012 e Janeiro de 2014, ao fazerem uma qualificação jurídica do despacho de 2008, não afectam o despacho de 2008 e muito menos o despacho de 18/03/2014 que tem de continuar a ser analisado à luz dos arts. 272/1, 620 e 630 do CPC, sem qualquer vinculação do juiz por aquelas qualificações jurídicas.

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            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pela interveniente.

            Porto, 08/01/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto