Inventário 13292/09.0TBVNG-A do Juiz 2 da 5ª secção da família e menores de Vila Nova de Gaia

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            Na diligência que se realizou no dia 15/03/2012, neste processo de inventário para separação de meações, requerente e requerido (= cabeça–de-casal), representados por mandatários judiciais, declararam estar de acordo quanto aos bens que deviam constar da relação de bens, entre eles não incluindo 272.727 acções de uma sociedade que a requerente tinha reclamado que fossem arroladas; em seguida foi proferido despacho declarando, face ao acordo alcançado, sem efeito a inquirição de testemunhas a que se destinava tal diligência para decisão daquela reclamação e, considerando-se “resolvidas todas as questões colocadas […] e assente por acordo a relação de bens”, designou-se data para a conferência de interessados.

            A 02/07/2013, a requerente veio arguir “nulidade ou anulabilidade”, dizendo, em síntese, sobre a questão, o seguinte:

         Sempre tinha tido dúvidas de que aquelas acções não tivessem pertencido ao cabeça de casal, como, de resto, pertenceram, e por isso encetou diversas diligências, através da sua mandatária judicial, no sentido de apurar da veracidade do pressuposto em que assentou o seu consentimento na não inclusão daquelas participações na relação comum do casal. A seguir discrimina tais diligências, de algumas das quais ainda está à espera do resultado – protestando juntar os documentos que lhe sejam fornecidos, reservando-se o direito de, se desta forma não os obtiver, poder solicitar a sua junção, para tanto requerendo a notificação de terceiro para o efeito -, concluindo, daquelas de que já tem conhecimento, que o requerido a induziu em engano e erro, sem os quais não teria acordado na exclusão das acção da relação de bens. Erro que, diz, constitui nulidade principal ou secundária com influência na decisão da causa, determinando a nulidade ou anulabilidade da conferência de inquirição de testemunhas, bem como de todos os actos processuais que dele dependem ou nos quais o resultado da repetição daquele acto tenha implicação, incluindo a decisão final, de harmonia com as disposições combinadas dos arts 251 e 253 do Código Civil e 201 nºs 1 e 2, 203 e 205, do Código de Processo Civil. Conclui no sentido de ser declarada nula ou anulada a conferência de inquirição de testemunhas, bem como todos os actos processuais que dela dependam ou nos quais o resultado da repetição daquele acto tenha implicação, incluindo a decisão final e, em consequência, incluir-se na relação de bens o montante de 300.000€, obtido pela transacção daquelas 272.727 acções

            A 09/10/2013, o requerido, revelando ter conhecimento daquela arguição desde 05/07/2013, veio requerer que se ordenasse o prosseguimento dos autos que sentia urgir dada a eternização do processo, fazendo uma série de outras considerações, entre elas a de que estava transitado o despacho que homologou o acordo sobre a relação de bens e que tinha estado a aguardar pelo despacho sobre aquela arguição de nulidade.  

            A 18/10/2013, a requerente defende o desentranhamento deste requerimento pelo “facto do seu conteúdo ser absolutamente irrelevante, infundamentado e extemporâneo”.

            A 24/03/2014 foi proferido um despacho em que – depois de se descrever a pretensão da requerente, se diz que o requerido pugnou pela improcedência da pretensão da requerente, alegando que o despacho que homologou o acordo sobre a relação de bens já transitou em julgado – se apreciou a questão nos seguintes termos:

         “No caso, face ao alegado, afigura-se-nos que o que a requerente pretende é que este tribunal aprecie e decida da invocada anulabilidade da transacção celebrada pelos interessados na diligência judicial realizada no dia 15/03/2012, defendendo ter agido em erro-motivo ou erro-vício sobre o objecto do negócio devido à actuação dolosa provinda do requerido, ao omitir ser titular das identificadas participações sociais.

         Ora, entendemos que a concreta pretensão da requerente não é compatível com a natureza dos autos de inventário, sendo que as questões suscitadas e inerente processado não constituem termo normal deste processo e extravasa a competência material deste Tribunal de Família e Menores.

         Em suma, a concreta pretensão da requerente exige que a mesma recorra aos meios comuns e instaure nos tribunais comuns uma acção declarativa, neste caso, na forma de processo comum ordinário, atento o valor em causa.

         Pelo exposto, declaro a inadequação do meio processual usado para alcançar o fim proposto, como também a incompetência deste tribunal em razão da matéria para a apreciação dos pedidos formulados que desta forma, improcedem.”

            A requerente veio então interpor recurso deste despacho – para que seja revogado e em consequência (i) seja autuado por apenso o requerimento inicial da requerente, (ii) seja desentranhado o requerimento extemporâneo do requerido de 09/10/2013, (iii) se proceda à notificação para a junção da prova requerida e (iv) os autos prossigam com a produção da prova – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [que se transcrevem na parte útil]:

         “1. A conclusão/sentença de fls. … e segs violou o art. 267 do CPC não autuando por apenso o requerimento inicial.

  1. A requerente arguiu a nulidade ou anulabilidade, nos termos conjugados das disposições 251 e 253 do CC, da diligência judicial realizada em 15/03/2012, para inquirição de testemunhas.

         […]

  1. O requerido não deduziu oposição no prazo legal, nos termos do disposto no nº2 do art. 293 do CPC.
  2. E em 09/10/2013, isto é 46 dias após aquela notificação e em violação clara da lei pretende deduzir oposição.
  3. A requerente arguiu a sua irrelevância, falta de fundamentação e extemporaneidade, pedindo o seu desentranhamento dos autos.
  4. Não obtendo qualquer decisão da Srª juíza a quo em relação ao pedido de desentranhamento por si formulado.
  5. Em vez disso, a Srª juíza a quo, em violação do referido art. 293/2 do CPC, refere que o requerido pugnou pela improcedência da pretensão da requerente, alegando que o despacho que homologou o acordo sobre a relação de bens já transitou em julgado.
  6. O que significa que aceitou a oposição extemporânea, como tempestiva.
  7. Para além dos documentos juntos a requerente protestou juntar documentos que solicitou, reservando-se o direito de, se desta forma não os obtiver, poder solicitar a sua junção para tanto requerendo a notificação daquela empresa para o referido efeito.
  8. Não os tendo obtido, em requerimento de 13/11/2013, requereu a notificação de terceiro para juntar cópia das acções, uma vez que era ela a sua actual detentora.
  9. A Srª juíza a quo não se pronunciou relativamente ao supra requerido, em violação do disposto no art. 608/2 do CPC.
  10. Mais o referido despacho não especifica a fundamentação de facto e de direito, para justificar a decisão – art. 615/1b) do CPC.
  11. E, tendo sido indicada prova testemunhal e documental a Srª juíza a quo não devia ter remetido as partes para os meios comuns, porquanto só após a produção de prova seria possível com segurança apurar da viabilidade ou não de conhecer com segurança a questão da titularidade dos bens.
  12. Afigurando-se que a prova indicada (testemunhal e documental) permite proferir despacho que com segurança e com um elevado grau de certeza decida em definitivo sobre a questão […].
  13. E a conclusão/sentença de forma simplista e sintética entente não ser a pretensão da requerente compatível com os autos de inventário em clara violação do disposto no nº 1 do art. 91 do CPC: “O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes nela levantados”.

         […]”

            O requerido não contra-alegou.

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            Questões que importa decidir: embora a decisão recorrida fale na inadequação do meio processual usado, na incompetência do tribunal em razão da matéria para a apreciação dos pedidos formulados e na improcedência dos mesmos, fá-lo     com fundamento no entendimento de que a concreta pretensão da requerente exige que a mesma recorra aos meios comuns e instaure nos tribunais comuns uma acção declarativa; assim, a improcedência a que a decisão se está a referir é a da pretensão processual de que a questão posta seja resolvida no inventário; pelo que, a decisão acaba por consubstanciar, apenas, a declaração de que a questão posta pela requerente tem de ser resolvida numa acção autónoma e não no processo de inventário; não se trata, pois, propriamente de remeter os interessados para os meios comuns; assim, a questão principal a decidir é (i) a saber se a arguição de nulidade do acordo quanto aos bens que deviam constar da relação podia ser resolvida no inventário e não, propriamente, como quer a requerente, se os interessados não deviam ter sido remetidos para os meios comuns. As outras questões são: (ii) se o despacho recorrido devia ter mandado autuar a arguição por apenso; (iii) se o requerimento do requerido de 09/10/2013 devia ter sido mandado desentranhar; (iv) se o despacho recorrido devia ter ordenado a notificação de um terceiro para juntar aos autos documentos; (v) a prévia, das nulidades invocadas.

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            Os dados que importam à decisão de tais questões são os que constam do relatório que antecede.

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                                            Das nulidades

            Como já se sintetizou e transcreveu a decisão recorrida, pode-se desde logo concluir que não há qualquer falta de fundamentação, de facto e de direito, pelo que não se verifica a nulidade invocada pela requerente, na conclusão 17, prevista no art. 615/1b) do CPC depois da reforma de 2013. A fundamentação de direito não tem de incluir, forçosamente, a referência às normas legais. Como diz Antunes Varela, Manual de processo civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 688: “não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que se sentença se apoia.”.

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Reclamação de bens / arguição de nulidade

            A pretensão substancial da requerente na peça que intitulou de arguição de nulidade é a de que fique a constar da relação de bens, como mais um bem, o preço da venda de umas acções. Como antes tinha chegado a um acordo com o outro interessado no sentido de tais acções não ficarem a constar da relação de bens, pretende a anulação de tal acordo e para tal invoca vícios na formação da sua vontade ao emitir a declaração que faz parte daquele acordo.

            Assim, do que se trata, no fundo, é de uma nova reclamação contra a relação de bens que tem como pressuposto necessário a prévia anulação, por razões de direito substancial, do acordo a que a requerente chegou com o outro interessado.

            Não se trata, pois, de uma arguição de nulidades de actos processuais (diligência de inquirição de testemunhas, como a requerente diz na conclusão 2ª do seu recurso), cuja procedência levasse, por força do art. 201 do CPC (aqui, como de seguida, a referência é ao CPC antes da reforma de 2013, excepto se for dito o contrário), à anulação de subsequentes actos processuais, entre eles o da decisão do incidente de reclamação de bens, ao contrário do que pretende a requerente.

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Acção de anulação e/ou recurso de revisão

            Requerente e requerido puseram termo ao litígio existente entre ambos – sobre a relacionação de umas acções societárias – através de um acordo feito constar de uma acta judicial. Esse acordo, por sua vez, esteve na base da decisão subsequente proferida, que declarou, face ao acordo alcançado, “resolvidas todas as questões colocadas […] e assente por acordo a relação de bens.”

            Está-se, assim, perante uma transacção judicial, com a qual as partes puseram termo a um incidente (arts. 1248 a 1250 do CC e 293/2, 294 e 300/4 do CPC), o que foi reconhecido por decisão judicial, que embora sem utilizar a expressão homologação, teve o mesmo significado que esta, pois que se limitou a constatar que estavam resolvidas todas as questões colocadas e que a relação de bens ficava assente por acordo (art. 300/3 do CPC).

            Esta decisão do incidente da reclamação de bens, é uma decisão de mérito (art. 300/3 do CPC) e faz caso julgado (art. 671/1 e 301/1 do CPC).

            Perante isto, a requerente, se entendia que a sua declaração de vontade que tinha composto a transacção estava viciada por erro (arts. 247 a 254, todos do CC), tinha duas hipóteses: intentava uma acção autónoma (a autonomia também decorre do lugar paralelo do art. 566 do CPC) destinada à anulação da transacção (arts. 287 do CC e 301/1 e 2 do CPC), seguida de um recurso de revisão da decisão (arts. 301/2 e 771d do CPC), ou simplesmente intentava um recurso de revisão da decisão sem prévia acção de anulação (arts. 301/2 e 771d do CPC) [como diz Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 162, nota 24: “[n]o caso de proceder a acção de declaração de nulidade ou de anulação do acto, a sentença homologatória é seguidamente impugnável em recurso de revisão (art. 696-d). Mas a precedência da acção deixou, com o DL 38/2003, de 08/03, de ser obrigatória: a revisão da sentença pode ser directamente pedida (art. 697-2-c). O regime de necessária dupla impugnação do direito anterior era bem expressivo da distinção entre a eficácia do acto substantivo das partes (que a acção visa destruir) e a da sentença que o homologa (atacada através do recurso)”].

            Em qualquer caso, o que ela não podia fazer, era tentar a anulação da transacção no próprio processo e sem sequer pôr em causa o trânsito em julgado da decisão que se baseou nela para julgar resolvidas as questões da reclamação de bens e assente a relação por acordo das partes.

            Portanto, a decisão recorrida     tinha razão em considerar inadequado o meio processual usado para alcançar o fim proposto.

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                                     Da autuação por apenso

             A autuação por apenso resulta sempre de uma regra processual específica que diz quando é que uma acção, um recurso ou um incidente são autuados por apenso.

             Não há qualquer norma no processo de inventário que diga que uma reclamação de bens, baseada numa arguição de nulidade – que foi no fundo o que a requerente fez – ou mesmo uma qualquer arguição de nulidade tenha que ser autuada por apenso.

             A norma que a requerente, na 1ª conclusão do recurso, invoca, do art. 267 do CPC, depois da reforma de 2013 – já que o art. 267, antes da reforma, tinha ainda menos a ver com esta questão – nada diz sobre a autuação por apenso, dispondo antes sobre a apensação de acções autónomas.

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Requerimento ou oposição – conclusões 8 a 13

            Antes de se pronunciar sobre a nova reclamação de bens, a que a requerente chamou arguição de nulidade, o juiz tinha que determinar a notificação do requerido (cabeça-de-casal) para tomar posição quanto a ela (art. 1349 do CPC). O mesmo, aliás, se teria que passar se se estivesse perante uma efectiva arguição de nulidade, salvo caso de manifesta desnecessidade (art. 207 do CPC). O prazo para o requerido se pronunciar iniciar-se-ia da notificação que lhe fosse feita pelo tribunal. Constando já do processo um requerimento do requerido no qual se podia descortinar a posição que ele tomava perante a pretensão da requerente, o tribunal recorrido, numa atitude de celeridade processual e de evitamento de actos inúteis, aproveitou aquela tomada de posição e decidiu logo. A situação não consubstancia, pois, qualquer extemporaneidade que devesse levar ao desentranhamento do requerimento do requerido.

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Da notificação de terceiro – conclusões 14 a 16

            Entendendo o tribunal que não havia que conhecer da nova reclamação de bens por estar fundamentada numa arguição de anulabilidade substancial que tinha que seguir um outro meio processual, não tinha que dar seguimento a um pedido de notificação de terceiro para junção de provas para a decidir.

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            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pela requerente.

            Porto, 22/01/2015

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto