Ac. do STJ de 23/09/2010. Foi o 2ª acórdão do STJ que recaiu sobre o ac. do TRL de 24/11/2009, publicado aqui. O 1º está publicado aqui. O sumário deste acórdão do STJ está publicado aqui. Os factos, as alegações do arguido e do MºPº, na 1ª instância e na Relação, constam do 1º acórdão do STJ e, os factos, também do ac. do TRL.
[…]
9. Foi o recurso julgado, neste Tribunal, em conferência, por acórdão de 15/04/2010, totalmente improcedente. Todavia, uma vez que o recorrente havia requerido o julgamento do recurso, em audiência, no que, por lapso, não se atentara, veio, por despacho do primitivo relator, a ser declarada a nulidade do julgamento do recurso efectuado em conferência bem como do acórdão subsequente, e tanto o primitivo relator como o primitivo adjunto declararam-se impedidos de intervir no julgamento do recurso em audiência o que originou a distribuição do processo para efeitos de mudança de relator.
10. Tendo o recorrente requerido a realização da audiência (n.º 5 do artigo 411.° do CPP), colhidos os vistos, realizou-se a audiência, com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.
Da deliberação que se lhe seguiu procede o presente acórdão.
II
1. Quanto à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, na resposta ao recurso interposto para este Tribunal, do acórdão da relação, relativa à inadmissibilidade do recurso, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agostos, sendo que a decisão de primeira instância foi proferida na vigência dessa Lei, apenas haverá que reafirmar a solução, que, aliás, já decorre do exame preliminar, da admissibilidade do recurso.
Segundo a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.° do CPP, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. Ora, como se vê do relato feito, no caso, o acórdão da relação não confirmou a decisão da 1.ª instância na medida em que procedeu a uma alteração da qualificação jurídica dos factos que tinha sido operada na 1.ª instância. Nessa medida, não se verifica a “dupla conforme” que, a par da medida da pena (pena de prisão não superior a 8 anos), constitui pressuposto da inadmissibilidade de recurso do acórdão condenatório da relação para o Supremo Tribunal de Justiça
2. Como emerge das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, pelas quais se define e delimita o objecto do recurso (artigo 412.°, n.º 1, do CPP), a questão fulcral que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal é a definição da relação que ocorre entre o crime de roubo, na forma tentada, e os crimes de sequestro e de detenção de arma proibida.
Sustentando que se verifica uma relação de concurso aparente entre o crime de roubo, na forma tentada, e os crimes de sequestro e de detenção de arma proibida, o recorrente impugna a solução de concurso efectivo adoptada no acórdão recorrido e suscita ainda a questão da medida da pena exclusivamente (em congruência com a tese que sustenta) quanto ao crime de roubo, na forma tentada.
São estas, por conseguinte, as questões que constituem o objecto do recurso e que o recorrente definiu como aquelas que, na audiência, pretende ver debatidas.
3. Os factos que se devem ter por assentes – por dados por provados na 1.ª instância e não alterados pelo acórdão da relação e sem que neles se detecte vício de que cumpra oficiosamente conhecer – são os seguintes:
[…Os factos constam do 1º acórdão do STJ, já referido acima]
4. Como já enunciámos, a questão fulcral posta no recurso é a da definição da relação que, no quadro dos factos provados, se verifica entre o crime de roubo, na forma tentada, e os crimes de sequestro e de detenção de arma proibida por que o recorrente foi condenado, em concurso efectivo.
Na qualificação jurídica dos factos provados, decidiu a 1.ª instância condenar o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de roubo, qualificado pelas circunstâncias das alíneas a) e f) do n.º 2 do artigo 204.° do CP, seis crimes de sequestro e um crime de detenção de arma proibida.
No recurso interposto para a relação, e no plano da qualificação jurídica dos factos, o arguido suscitou as questões de não ter havido consumação do crime de roubo e de os crimes de sequestro (todos) e de detenção de arma proibida estarem consumidos pela tentativa de roubo.
A relação, no parcial provimento do recurso, decidiu que o crime de roubo, qualificado pelas mesmas circunstâncias, não ultrapassou a fase da tentativa e que, em concurso efectivo com o crime de roubo, na forma tentada, o arguido praticou cinco (e não seis) crimes de sequestro e um crime de detenção de arma proibida.
No recurso, para este Tribunal, e, ainda, quanto à qualificação jurídica dos factos, o recorrente suscita a reapreciação da relação que ocorre entre o crime de roubo, na forma tentada, e os crimes de sequestro e de detenção de arma proibida, sustentando que ela é de concurso aparente e não de concurso efectivo, como foi decidido no acórdão recorrido.
5. Questão de que passamos a conhecer.
5.1. O roubo é um crime autónomo ou independente (delictum sui generis) com o seu próprio tipo (classe) de ilícito. Contém, certamente, no seu seio, todos os elementos de outro ou outros tipos de ilícito, todavia, mediante a sua combinação, converte-se num novo tipo de ilícito independente (Assim, CLAUS ROXIN, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, SA, 1997, p. 340, § 10, VIII, 9, 134).
No crime de roubo existe uma pluralidade de bens jurídicos protegidos.
Por isso, em atenção ao bem jurídico (tutela de vários bens jurídicos), o roubo é um crime complexo. O tipo de ilícito não visa a tutela de apenas um bem jurídico mas, antes, alcançar a protecção de vários bens jurídicos. Bens jurídicos patrimoniais – o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis – mas também bens jurídicos pessoais – a liberdade de decisão e acção, até a própria liberdade de movimentos e mesmo a integridade física -, sendo que a ofensa aos bens pessoais surge como meio de lesão dos bens patrimoniais.
Afirmando-se, também, que o roubo é um crime que engloba o furto (o crime-fim) e a violência, que precede ou acompanha a sua execução, podendo esta traduzir-se na prática de outros crimes que protegem bens jurídicos pessoais (os crimes-meio).
Os meios para a subtracção de coisa móvel alheia ou para o constrangimento à sua entrega, especificados no tipo legal, ofendem bens jurídicos pessoais de natureza heterogénea, podendo ser, por si mesmos, se isoladamente considerados, aptos a preencher outros tipos de ilícito (ameaça, coacção, sequestro, ofensa à integridade física e o próprio homicídio negligente).
Nesta compreensão, “o tipo legal de roubo provém, por assim dizer, de um concurso efectivo. Unificado pelo legislador, é certo, mas concurso. Não se torna difícil imaginar as combinações de delitos que pode conter. A um elemento constante, o furto – ainda que em rigor se contemplem ataques à propriedade que estão para além da subtracção prevista no artigo 203.° do Código Penal -, juntam-se ora a coacção, ora a ameaça, ora ofensas à integridade física ou à própria vida (neste caso apenas negligente)”, sem que se sustente, embora, “que todos os tipos nele estejam presentes com os exactos elementos que os configuram isoladamente” (CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, «Roubo e Sequestro em Concurso Efectivo», anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 2003, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 15, n.º 3, Julho-Setembro de 2005, p. 494).
Todavia, enquanto meios típicos de realização do crime de roubo, não podem ser autonomamente valorados jurídico-penalmente.
Justamente, porque nos tipos complexos o que se pretende é alcançar a protecção de vários bens jurídicos. E, no roubo, está fundida a protecção de bens patrimoniais e de bens eminentemente pessoais.
“O roubo é um crime autónomo, no sentido de desenhado com independência pela lei. ( … ) Por isso o legislador oferece, com o tipo do roubo, uma protecção também plural. Ninguém contesta, pois, que esse crime congrega vários bens jurídicos que se mostram, por sua vez, aptos para fundar, individualmente, outras incriminações. Se assim é, deverá o intérprete redobrar a cautela, desconfiar, sempre que se trate de desunir o que a lei combinou, de devolver à efectividade o concurso que o tipo pretendeu aparente.” (Ibidem).
5.2. No roubo a relação que se verifica entre o crime-fim e o crime-meio é de concurso legal, aparente ou impuro.
Por isso, os meios tipificados da violência usados para a acção de subtrair ou para a acção de constrangimento, ainda que em si mesmos fossem aptos a preencher outros tipos legais, não adquirem significado autónomo e são totalmente abrangidos pela protecção conferida pelo tipo de roubo.
Verifica-se uma relação de especialidade entre os tipos simples e o tipo complexo em que aqueles se integrem.
Assim, FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 994, 42.° Capítulo, II, 1., § 6):
“De especialidade será também a relação que intercede entre o tipo simples e o tipo complexo em que aquele se integre.”
Apresentando como um dos critérios de determinação do concurso aparente precisamente o critério do crime instrumental ou crime-meio. O qual possuirá virtualidades bastantes para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos (Ibidem, p. 1018, Capítulo 43.°, II,2.2.2., § 21).
5.3. Mas isto é assim, sempre que e desde que a violência seja usada como meio para subtrair a coisa ou constranger à sua entrega.
Ou seja, enquanto se possa estabelecer uma relação de causa-efeito entre a violência e o constrangimento da vítima a uma acção específica – a entrega da coisa (um facere) – ou a uma omissão específica – a tolerância da subtracção (um non facere).
Se o sequestro é usado como meio para subtrair a coisa ou constranger à sua entrega não pode ser valorado como crime autónomo porque conforma o tipo complexo de roubo.
Sujeito passivo do crime de roubo é o detentor da coisa, seja ou não o seu proprietário ou o seu possuidor, no sentido do direito civil.
O detentor é aquele que exerce um poder de facto ou de domínio sobre a coisa no sentido social da palavra, a pessoa que tem a guarda do bem. Concretizando, CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA dá como exemplos o caixa do supermercado que é amarrado para não opor resistência à subtracção de bens ou dinheiro, a empregada doméstica que é agarrada violentamente como forma de quebrar a resistência à subtracção de bens que se encontram na casa, os empregados de um banco (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 163, § 13).
Ora, os clientes do banco, quer os que já se encontravam na agência bancária quando o recorrente e N lá entraram (D e P) quer os que entraram na agência já depois de o recorrente e N se encontrarem no seu interior (C e M) manifestamente não eram os detentores do dinheiro existente na agência bancária (no cofre, na máquina ATM e na caixa de depósitos em numerário).
A privação da liberdade de locomoção a que foram sujeitos (obrigados, por meios violentos, a entrar e permanecer, com as mãos amarradas atrás das costas, voltados para a parede, num gabinete da agência bancária) não constituiu, por conseguinte, meio para constranger os detentores do dinheiro existente na agência – considerando-se como tais os dois empregados bancários (A e V) – a tolerarem e, mesmo, a possibilitarem (através do fornecimento dos códigos, de um e de outro, de abertura do cofre), a entrega do dinheiro existente na agência.
Ainda que se alargue o conceito de sujeito passivo do crime de roubo a qualquer pessoa que, não sendo o detentor do bem, oponha resistência à subtracção do bem, sendo por isso, exercida violência contra ela (assim, CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, ob. cit, p. 164, §14), é evidente que, no quadro dos factos provados, está excluída a possibilidade de compreender os clientes do banco em tal conceito amplo.
O decisivo é que a violência contra as pessoas constitua um meio de realização do acto de subtracção ou de constranger à entrega, não se dando a conexão típica se a violência contra as pessoas não se traduz em um meio de subtrair ou constranger à entrega.
Os clientes do banco mantiveram uma total passividade (tolerância) em relação à actuação do recorrente e acompanhante.
Daí que a violenta privação da liberdade a que os quatro clientes do banco foram sujeitos integre a prática de quatro crimes de sequestro (tantos quantas as pessoas ofendidas, por a protecção típica ser conferida a um bem jurídico pessoal), em concurso efectivo com o roubo, porque esses crimes não foram meio (crimes-meio) daquele e, como tal, não estão compreendidos na protecção conferida pelo roubo.
5.4. Questão mais delicada é a de saber se também a violenta privação da liberdade a que os próprios empregados do banco foram sujeitos pode/deve conformar, em concurso efectivo com o roubo, o crime de sequestro e, ainda, um ou dois crimes de sequestro.
5.4.1. A solução divergente das instâncias assenta primacialmente no diferente entendimento sobre a questão da consumação do crime de roubo.
Concluiu a 1.ª instância que o crime de roubo se consumou.
Em suma, porque:
«(…)
«No caso presente, deverá entender-se que as importâncias monetárias visadas pela conduta do arguido e de N saem da disponibilidade do Banco a partir do momento em que os dois assaltantes lhes deitam a mão e as guardam no interior de um saco que trazem consigo, passando eles, a partir daí, a exercer o domínio factual sobre tais quantias.
«A acção das forças policiais é exterior a esta alteração de domínio factual e não chega a obstar a que se constitua sobre a coisa a disponibilidade do novo detentor de facto, apenas podendo, como efectivamente veio, impedir que esse nova situação se prolongue.
«Nesta ordem de ideias, a conduta do arguido e do seu acompanhante é de molde a ter completado, ainda que em termos precários e não pacíficos, a subtracção das quantias monetárias a que eles deitaram a mão, no interior da agência bancária, devendo, como tal, ser reconduzida ao cometimento de um crime de roubo na forma consumada.»
Solução que é maioritariamente contrariada no acórdão recorrido, em síntese, pelo seguinte:
«(…)
«Ou seja: o acórdão recorrido [da 1ª instância] faz coincidir a subtracção com o domínio do facto, contra a advertência expressa da doutrina que cita; diz que o crime se consuma com a subtracção (e por isso considera consumado o roubo com a colocação do dinheiro no saco) quando a doutrina que cita diz que ele se consuma com o domínio do facto (e rejeita a colocação no saco como momento da consumação); sugere que a perseguição imediata [e, nos termos em que põe as coisas, também ininterrupta] da polícia não impede a consumação (ou melhor, o domínio do facto/a disponibilidade) do roubo, o que é contrariado por todo a doutrina citada acima, bem como da jurisprudência espanhola, argentina e peruana (contra existe apenas a maioria da jurisprudência brasileira e a menos recente jurisprudência portuguesa); e desconsidera o facto de o arguido e o seu co-autor nunca terem saído da esfera de domínio do detentor anterior contra a posição de toda a doutrina citada (e aqui, em especial, da portuguesa).
«Não procede assim a argumentação do acórdão recorrido [da 1ª instância], devendo o arguido ser condenado apenas pela tentativa de roubo»
Depois de amplo estudo, com recurso a subsídios doutrinários e jurisprudenciais, nacionais e estrangeiros, a síntese da posição defendida no acórdão recorrido passa pelo seguinte:
«(…)
«Do que antecede pode-se extrair que a doutrina portuguesa que se pronunciou substancialmente sobre a questão da consumação do furto (Faria Costa e Paulo Matta), parte da distinção entre subtracção e domínio de facto para concluir que o furto se consuma quando a coisa entra, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infracção, ou seja, quando este adquiriu um pleno e autónomo domínio sobre a coisa, sendo que este não é o instantâneo domínio de facto, já que exige um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa. E, por isso, o ladrão que já colocou as coisas num saco e está a tentar sair pela porta traseira da casa, ainda não consumou o furto e o dono da casa pode exercer a legitima defesa contra ele quando entra na casa e o surpreende nesses preparos. O simples tocar na coisa e removê-la do lugar onde estava não é disponibilidade dela, não permite falar num mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa, pelo que não há consumação. Mais, a subtracção não acontece antes da remoção da coisa para fora da identificada esfera de domínio do fruidor do espaço em que a coisa se encontra.
«É também esta a posição da doutrina espanhola – com a teoria da disponibilidade (que distingue da subtracção) – e, com base nos desenvolvimentos e concretizações que esta faz, pode-se acrescentar ao que antecede que também não se verifica a consumação do furto/roubo quando o agente é surpreendido no momento em que subtrai coisa, sem existir possibilidade real de disposição ou quando é efectuada uma perseguição sem solução de continuidade [ininterrompida] e coroada de êxito pelo perseguidor; já haverá consumação se a perseguição tiver lugar depois de descoberto o furto, isto é, quando o agente pôde hipoteticamente dispor do subtraído (e, postas as coisas assim, quando se dá o exemplo do ladrão que depois da subtracção lança o relógio para o lixo – exemplo utilizado com adaptação na resposta ao recurso por parte do MºPº – está-se a pressupor que os actos de execução já foram todos praticados e que o agente já não se encontra na esfera de domínio do fruidor do espaço em que a coisa se encontrava, ou seja, uma situação distinta dos autos em que o arguido e o seu co-autor nunca deixaram de ameaçar os detentores anteriores e estiveram, mesmo desde antes da subtracção do dinheiro, sempre sob vigilância da polícia, tendo esta intervindo quando eles estavam a sair das instalações do banco, levando consigo, arrastados, os empregados do banco como escudos humanos).
«(…)
«Isto posto, pode-se desde já concluir que o caso do roubo dos autos não ultrapassa o estádio da tentativa. E isso mesmo que com base apenas nos dois autores portugueses citados: o arguido e o seu co-autor nunca chegaram a estar no domínio de facto do dinheiro, nem sequer chegaram a sair da esfera de domínio do fruidor do espaço onde a coisa se encontrava [a polícia interveio quando eles saíram arrastando os empregados do banco como escudos … – factos 29 e 30 – e na fundamentação de direito do acórdão diz-se: “o arguido e N, depois de terem deitado a mão às referidas importâncias, não saíram imediatamente da agência, em virtude da presença no exterior de forças policiais, e, quando tentaram a fuga, foram de imediato interceptados”]. Eles tentaram entrar subtrair o dinheiro que estivesse no banco, mas não o conseguiram. Os factos enquadram-se, em termos normativos, na qualificação que o MºPº lhes tinha dado logo na acusação: tentativa de roubo.
«(…)
O que, ainda, se reafirma, nos seguintes termos:
«(…)
«Posto isto, conclui-se que o crime de roubo praticado pelo arguido W não ultrapassou a fase da tentativa, porque o arguido e o seu co-autor nunca chegaram a ter a disponibilidade do dinheiro que queriam subtrair, ou seja, o dinheiro nunca esteve, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infracção (nunca este adquiriu um pleno e autónomo domínio sobre a coisa, domínio que pressupõe um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa que nunca se chegou a verificar) como decorre de ele ainda se encontrar na esfera de domínio do fruidor do espaço onde a coisa se encontrava e a exercer, ainda, violência sobre os detentores anteriores da coisa. E, poderia acrescentar-se, a polícia estava a controlá-lo desde antes da subtracção da coisa e qualquer fuga do local seria de imediato objecto de perseguição.»
É do diferente entendimento sobre a questão de ter, ou não, havido consumação do crime de roubo que parece derivar a solução a que as instâncias chegaram sobre terem sido praticados dois crimes de sequestro, nas pessoas dos empregados do banco, em concurso efectivo com o roubo consumado (conforme decidiu a 1.ª instância), ou apenas um crime de sequestro, na pessoa do empregado do banco, V, em concurso efectivo com o roubo tentado (conforme decidiu a relação).
5.4.2. A determinação do momento da consumação do furto e também do roubo, na medida em que integra um furto como crime-fim, tem sido uma questão longamente debatida, na doutrina e na jurisprudência, e diversos têm sido os entendimentos dados à solução do problema.
Uma análise, com preocupações de traçar, de forma exaustiva, a evolução da doutrina e da jurisprudência, no tema, não é, agora, requerida por desprovida de interesse prático. Interessará, isso sim, saber qual é a resposta que, no momento actual, é dada ao problema, pela doutrina (especialmente a nacional) e pela jurisprudência deste Tribunal.
5.4.2.1. Com ilegítima intenção de apropriação, o agente subtrai coisa móvel alheia ou constrange o detentor à entrega de coisa móvel alheia.
Tanto a subtracção como o constrangimento à entrega traduzem-se em condutas que fazem com que a coisa saia do domínio de facto do detentor, implicando a eliminação do domínio de facto do detentor sobre a coisa, e entrada da coisa no domínio de facto do agente. Ou seja, o agente da infracção lança sobre a coisa um novo poder de facto. Afirmando-se a subtracção como condição da possibilidade de gozo e fruição das utilidades da coisa.
A subtracção e o constrangimento à entrega caracterizam-se, assim e sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que as detinha.
A consideração de que a consumação do crime de furto e, portanto, também do crime de roubo exige que a coisa entre no domínio de facto do agente do crime não parece, hoje, sofrer qualquer contestação. A discussão centra-se em saber que tipo de domínio de facto se exige. Se basta o instantâneo domínio de facto ou se se deve, ao menos, exigir “um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa”.
5.4.2.2. Para FARIA COSTA não será suficiente o instantâneo domínio de facto sobre a coisa, porquanto isso seria um critério que faria, incorrectamente, coincidir ou fazer sobrepor subtracção com domínio de facto (ou até com o apossamento/ apropriação), afigurando-se-lhe irrecusável aceitar que “tem de haver um mínimo de tempo que permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente”, sem que defenda, porém, que esse domínio de facto se tenha de operar em pleno sossego ou estado de tranquilidade e advertindo de que não há nem deve haver uma medida certa e exacta para o preenchimento daquele mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, especialmente, pp. 50-51, §§ 71,72,73).
Concretizando, exemplifica:
“Assim se A, em um supermercado, escondeu no bolso uma máquina fotográfica e andou a vaguear durante meia hora antes de passar as caixas e se é aí e nessa altura apanhado é evidente que o crime de furto ainda não está consumado. E não o está, muito embora já tenha decorrido um lapso de tempo bastante dilatado, desde que o agente operou a subtracção e considerou a máquina fotográfica como coisa sua. Em contrapartida, se A furta um objecto da loja X e o proprietário desta (B) só se apercebe do acto criminoso depois de A já estar na rua, ainda que só por breves instantes, é claro que o crime se consumou. A deverá ser punido por crime de furto consumado e B já não poderá exercer o direito de legítima defesa.”
Em sentido próximo, PAULO SARAGOÇA DA MATTA (“Subtracção de Coisa Móvel Alheia” Os efeitos do admirável mundo novo num crime “clássico”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 994 e ss., especialmente, pp. 1025-1027) afirmando que, de um ponto de vista geral, o furto se consuma quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infracção, com tendencial estabilidade, i. e., não pelo facto de ela ter sido removida do respectivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito, adverte que cabe mentalmente distinguir-se o momento de entrada da coisa alheia na esfera de domínio de facto do agente da infracção (saindo da esfera de domínio que preteritamente sobre ela se exercia), do momento em que o novo domínio ganha uma mínima estabilidade.
Embora reconheça que, na maioria dos casos, a remoção da coisa do local em que se encontra é concomitante com a transferência da mesma para fora da esfera de domínio do fruidor anterior, devendo o furto ter-se por consumado, nesse momento, o que de certo modo corresponde à teoria da amotio (o remover da coisa do lugar onde se encontra), destaca que outros casos há em que, para a sua resolução concreta, se terá de lançar mão e articular as teorias da amotio e da ablatio (a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do pretérito fruidor). Convocando, como exemplo, todas as situações em que a remoção da coisa do lugar em que se encontra não a transfere para fora do domínio do seu fruidor, como ocorrerá, em geral, sempre que o agente, para proceder à subtracção, entra num espaço que está, no respectivo conjunto, sujeito ao poder de domínio do fruidor da coisa; assim, os furtos praticados em espaços comerciais. E, nessas situações, o crime não se consuma antes da remoção da coisa para fora da esfera de domínio do fruidor do espaço em que a coisa se encontra.
Adverte, ainda (nota 58, p. 1026), para “o perigo de haver quem entenda que aquele agente que remove do respectivo lugar o quadro ou a jóia, ou aquele indivíduo que tire uma peça de arte do expositor em que se encontrava, num museu ou numa galeria, consumou integralmente a subtracção, e, assim, o furto. Com efeito, se assim se entendesse, a reacção dos guardas do museu ou da galeria, em princípio, não estaria justificada pela legítima defesa, pelo simples facto de a agressão patrimonial já haver cessado quando a defesa era oposta”. Para precisar que num museu, num banco, numa galeria, numa igreja, ou qualquer espaço em que as coisas estão dispostas em certo lugar de onde não devem ser, e por regra não são, removidas, são espaços em que a própria remoção é início de uma execução que só termina aquando da ultrapassagem do limite exterior último imposto pelo respectivo titular. Ou seja, se o furto num supermercado pode ter o seu início detectável, e a sua consumação, no momento da passagem da linha das caixas, já nos demais espaços referidos, a consumação do furto prolonga-se por todo o período e processo em que a coisa é removida e transportada até à ultrapassagem dos limites de segurança do espaço.
5.4.2.3. Do que vem de se expor, e com atenção aos exemplos dados, parece poder inferir-se que tanto FARIA COSTA como PAULO SARAGOÇA DA MATTA são, de algum modo, influenciados, no desenvolvimento das teorias que explanam sobre a definição do momento de consumação do furto tanto por razões de dificuldade prática da prova da “intenção de apropriação” como para obviar à inoperância da causa de justificação da legítima defesa.
Com efeito, a exigência de que, por exemplo, no furto em supermercado – e o mesmo será válido para qualquer outro tipo de estabelecimento comercial em que as coisas estejam livremente (sem barreiras físicas) ao alcance dos clientes -, a consumação só se tenha por verificada após a ultrapassagem das caixas de pagamento (obviamente sem que o agente proceda ao pagamento das coisas que já detém consigo) tem, ainda, a função utilitária da inequívoca demonstração da intenção de apropriação.
Significativa, neste sentido, é a seguinte referência de PAULO SARAÇOÇA DA MATTA a propósito de a consumação não ocorrer, no exemplo do furto em espaços comerciais, antes de o agente ultrapassar a linha extrema demarcada pelas caixas destinadas ao pagamento:
“Mesmo assim, antes desse momento, poderá em alguns casos ser difícil detectar a prática de actos de execução inerente à tentativa, posto que se o agente se direcciona para as linhas das “caixas” com a coisa de que tenciona apropriar-se visível, só a prova da intenção poderá permitir distinguir entre o cliente que se prepara para pagar a coisa, e o gatuno que se apresta a consumar o furto. Ao invés se a coisa seguir ocultada com o agente, parece claro e inequívoco existir indício de que a intenção é a de subtrair, estando por isso facilitada a prova de que se trata da prática de um acto de execução do crime em análise” (P. 1026, nota 56).
Interfere, também, na solução de não fazer coincidir o momento da consumação com o instantâneo domínio de facto e reclamar, antes, o decurso de um mínimo de tempo que permita afirmar que o agente exerce um efectivo domínio de facto sobre a coisa o que passará, ainda, por a coisa ser transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito, a ideia de que, a não ser assim, qualquer acção de defesa do pretérito fruidor já não estaria justificada por legítima defesa.
Recorde-se o afirmado por PAULO SARAGOÇA DA MATTA, a propósito da reacção dos guardas do museu ou da galeria quando se deparam com o agente já depois de realizada a remoção da coisa.
Impressivas, a propósito, as palavras de FARIA COSTA quando destaca que uma “compreensão que tenha em conta o sentir comum obriga a que se perceba que o domínio de facto exige, ao nível da consciência colectiva, representações que afastem o preciosismo da instantaneidade como elemento único e preponderante para classificarmos o real e efectivo domínio de facto. Na verdade, ninguém compreenderia que ao entrar em sua casa e ao ver um ladrão que tentava escapar peja porta traseira com um saco cheio de coisas furtadas não pudesse exercer o direito de legítima defesa na medida em que o furto já estaria consumado, isto é, o ladrão já teria o instantâneo domínio de facto sobre a coisa. Nada de mais irreal e sem qualquer aderência à substância da vida e das coisas (12 P. 50, § 72).
5.4.2.4. Se rejeição do instantâneo domínio de facto como momento da consumação do crime evita problemas de prova da intenção de apropriação e consequências indesejáveis especialmente ao nível da desistência da tentativa, já não se nos afigura fundado afastar o instantâneo domínio de facto como momento da consumação do crime em razão de, estando esse momento ultrapassado, já não poder ter lugar a defesa por legítima defesa.
Com efeito, a defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste e assim nem sempre pode fazer-se coincidir esse momento com o da consumação (formal), uma vez que são numerosos os crimes em que a agressão e o estado de antijuricidade perduram para além da consumação típica (formal).
Segundo FIGUEIREDO DIAS, relevante para este efeito é o momento até ao qual a defesa é susceptível de pôr fim à agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para repelir aquela. Até esse último momento a agressão deve ser considerada actual (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 390; também assim, na 2.ª edição da obra, de 2007, pp- 413414).
Sustentando que “é à luz deste critério que devem ser resolvidos os casos que mais dúvidas levantam neste ponto, os dos crimes contra a propriedade, nomeadamente o do crime de furto. Ex.: A dispara e fere gravemente B, para evitar que este fuja com as coisas que acabou de subtrair. Poder-se-á considerar a agressão de B como ainda actual? A solução não deve ser prejudicada pela discussão e posição que se tome acerca do momento da consumação do crime de furto. O entendimento mais razoável é o de que está coberta pela legítima defesa a resposta necessária para recuperar a coisa subtraída se a reacção tiver lugar logo após o momento da subtracção, enquanto o ladrão não tiver logrado a posse pacífica da coisa”.
No mesmo sentido, da actualidade da agressão entre a consumação (formal) e a terminação (consumação material), JESCHECK (Tratado de Derecho Penal, Parte General, tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, Bosch, Casa Editorial, SA, p. 466, § 32, II, d).
Também ROXIN sustenta que é possível actuar em legítima defesa contra uma agressão que, ainda que esteja formalmente consumada, não esteja materialmente esgotada ou terminada; embora haja consumação formal do crime a agressão continua sendo actual até à consumação material. “Assim se o ladrão foge com o produto do crime, já há um furto consumado; mas apesar disso a agressão à propriedade da vítima continua a ser actual enquanto aquele não o tenha posto a bom recato. Por conseguinte se o proprietário recupera a posse das suas coisas impedindo o ladrão de escapar com um tiro nas pernas está amparado por legítima defesa” (Derecho Penal, Parte General, Tomo I, tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Editorial Civitas, SA, 1997, pp. 621-622, §15, V, 27).
Ainda, TAIPA DE CARVALHO, sobre a actualidade da agressão requerida para a justificação por legítima defesa, reconhece que “os casos que mais dúvidas podem levantar são os de agressões contra coisas móveis, nomeadamente o furto e o furto uso. Exemplo: o ladrão que, após a subtracção da coisa, foge, apesar do aviso para largar o objecto pois, caso contrário, o dono ameaça disparar para as pernas para impedir a perda efectiva da coisa furtada (ou que, posto em fuga, é perseguido pelo dono do objecto ou por uma terceira pessoa). Ora, nestes casos de furto (ou, obviamente, de roubo), é ensinamento geral que a agressão só deixa de ser actual quando o ladrão ficar com a detenção “pacífica” do objecto furtado. Assim, os actos praticados, imediatamente a seguir à subtracção, ainda são considerados actos de legítima defesa. Só após o ladrão conseguir a detenção pacífica do objecto furtado é que a agressão deixa de ser actual, deixando, a partir daí, o dono de poder, pela força, recuperar o objecto furtado. (Direito Penal, Parte Geral, 2.a edição, Coimbra Editora, 2008, pp. 366-367).
Com a doutrina recenseada o que se quer significar é que: se a solução da questão da actualidade da agressão, para efeitos da legítima defesa não deve ser prejudicada pela posição que se tome acerca do momento da consumação do crime de furto, também a opção entre a instantaneidade do domínio de facto e um mínimo de lapso de tempo de domínio sobre a coisa, para afirmar a consumação formal do crime de furto, não deve ser influenciada pela questão da actualidade da agressão para efeitos de legítima defesa.
5.4.2.5. A exigência do tal mínimo de tempo que permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente não se deve, porém, confundir com um domínio de facto em pleno sossego ou estado de tranquilidade (Como adverte FARIA COSTA, loc. Cit. §73).
E há muito tempo que este Tribunal abandonou a tese de que a consumação do furto reclamava a posse pacífica, em pleno sossego ou estado de tranquilidade.
Mas já não estão assim tão longe os tempos em que a jurisprudência aceitava, para afirmar a consumação, o instantâneo domínio de facto.
Concretamente, não exigindo um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa também não exigia que a coisa fosse transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito para ter por consumado o furto.
Exemplificaremos o que acabámos de dizer com os seguintes acórdãos deste Tribunal, respectivamente, de 26/01/1995 (processo n.º 47451) e de 12/02/1998 (processo n.º 1272/97) (ambos publicados na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, respectivamente, Tomo 1, 1995, p. 190 e 55., e Tomo 1-199a, p. 208 e 55).
O seguinte o sumário do primeiro:
“Comete um crime de furto qualificado aquele que se introduz numa residência por arrombamento e escalamento e, aí, revista as gavetas e os armários, de onde retira uma pulseira em ouro e um relógio de pulso de que se apodera, escondendo-os no sapato.
“Não obsta à consumação do crime o facto de o arguido ter sido surpreendido quando ainda se encontrava dentro de casa e, tendo sido revistado por um agente de autoridade, terem-lhe sido apreendidos aqueles objectos.”
O único problema posto no recurso era, justamente, o de saber se o furto era consumado ou meramente tentado. Fundamentando-se a decisão em anterior jurisprudência do Supremo, sobre o tema, no sentido de que “logo que a coisa subtraída passa da esfera de poder do seu detentor para a esfera de poder do agente, o crime tem-se por consumado, nesse momento se verificando o evento jurídico da lesão do interesse tutelado (o crime de furto é instantâneo)”.
O segundo está sumariado como segue:
“Comete um crime consumado de furto qualificado o arguido que entra numa residência pela janela do quarto de banho que se encontrava aberta, pega em anéis e pulseiras que estavam num guarda-jóias, colocou-os no interior das meias e veio a ser surpreendido pelos proprietários que o detiveram e entregaram à GNR.”
Também neste, a questão que se discutia estava em saber se o crime se tinha consumado ou se não tinha ultrapassado a fase da tentativa.
O acórdão reconhece a imprecisão da matéria de facto dada por provada, não concretizando a dimensão temporal da expressão «pouco depois», nem especificando as circunstâncias em que o arguido «veio a ser surpreendido» mas não a considerou relevante para a decisão, na medida em que “o «pouco depois» corresponde a um momento posterior àquele em que o arguido «pegou em dois anéis e quatro pulseiras que encontrou num guarda-jóias» e àquele em que o mesmo arguido «colocou aqueles objectos no interior das suas meias». Ou seja, a decisão não reconheceu qualquer importância ao facto de não se saber se o arguido tinha sido “surpreendido” pelos proprietários no interior ou no exterior da habitação, pois “estava já, portanto, consumado o crime quando «pouco depois o arguido veio a ser surpreendido»”. Solução que é expressão do entendimento de que o crime de furto se consuma “com a violação do poder de facto de guardar ou de dispor da coisa que tem sobre ela o proprietário e seu detentor e com a substituição desse poder pelo do agente, independentemente de a coisa ficar ou não pacificamente, por mais ou menos tempo, na posse do agente”.
Porém, a partir de certa altura, a jurisprudência deste Tribunal passa a acolher, mais ou menos certeiramente, a doutrina a que já fizemos referência.
Marco do ponto de viragem (dos conhecidos, por ter merecido publicação), o acórdão de 16/01/2002 (processo n.º 3653/01- publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribuna/ de Justiça, Tomo I – 2002, p.170 e ss).
Nele, embora se afirme a inclinação para seguir a jurisprudência, à data dominante da qual contém uma resenha bastante exaustiva -, no sentido de que para haver consumação o assento deve ser colocado na instantaneidade da amotio (remoção do lugar onde o objecto se encontra), julgou-se oportuno fazer algumas precisões que passaram, justamente, pela explanação das posições de FARIA COSTA, vindo-se depois a concluir:
“Posto que a matéria de facto sobre o circunstancialismo da fuga e da captura dos arguidos, bem como das condições de tempo e lugar da recuperação dos objectos pudesse ser mais detalhada, é suficiente para constatar que os objectos passaram da esfera patrimonial do seu dono para a dos arguidos. Embora a intervenção da autoridade policial, em trânsito pelo local, tivesse sido bem oportuna e levasse à recuperação dos objectos, estes haviam sido transferidos para a posse dos arguidos pelo mínimo de tempo que permite afirmar um efectivo domínio de facto sobre a coisa”.
Fundamentação que, porém, ainda suscitou uma declaração de voto, na qual se consignou: “o crime de furto – e o mesmo se passa com o de roubo – é de consumação instantânea, ficando perfeito o delito logo que o ofendido perde o poder de disposição do bem em causa, independentemente do tempo em que tal ocorre”.
5.4.2.6. Sobre o momento da consumação do furto e do roubo, pode, hoje, afirmar-se que, nas decisões deste Tribunal, está, sem divergências, presente a exigência da estabilidade da coisa no domínio de facto do agente para que se tenha o crime por consumado (cfr., dos mais recentes, o acórdão, justamente citado no acórdão recorrido, de 16/10/2008 (publicado sob o n.º 08P221).
Critério este que está muito próximo, se é que não é coincidente na resolução dos casos da vida, com a tese da disponibilidade (a disponibilidade da coisa pelo agente como requisito mínimo para dizer que o crime está consumado).
Na doutrina espanhola, com a aceitação geral da jurisprudência, é praticamente unânime o critério que entende que a consumação, nos crimes de furto e de roubo, ocorre quando o autor logrou uma mínima disponibilidade sobre a coisa subtraída.
Diz, a propósito, MUNOZ CONDE (Derecho Penal, Parte Especial, undécima edición, revisada e puesta al dia conforme al Código Penal de 1995, Tirant lo blanch libros, Valencia, 1996, p. 320):
A tese da disponibilidade “é a mais aceite pela jurisprudência sobretudo quando se refere à perseguição do ladrão. A jurisprudência dominante inclina-se para castigar por furto consumado se a perseguição ocorre depois de descoberto o furto, quer dizer, quando o agente pode hipoteticamente dispor do subtraído e como tentado quando se inicia a perseguição desde o momento a subtracção. De acordo com esta teoria pode dizer-se que o não chegar a tocar a coisa, ou a apropriação material sem disponibilidade, por o agente ser surpreendido em flagrante ou seguido de perseguição ininterrompida constitui tentativa; e a disponibilidade ainda que momentânea, consumação. Para a consumação não se requer, todavia, que o sujeito activo chegue a lucrar com a coisa subtraída”.
A aceitação deste critério tem importantes consequências: não basta que o autor tenha a coisa e fuja com ela para que se possa entender consumado o crime, é preciso que tenha tido, ainda que no curso dessa fuga, a mínima disponibilidade a que se fez referência (T. S. Vives Anton et allii, Derecho Penal, Parte Especial, 2.ªa edición revisada e actualizada conforme al Código Penal de 1995, Tirant lo Blanch libros, Valencia 1996, pp. 329-331).
5.4.2.7. No caso em apreço, dúvidas não haverá, por conseguinte, de que o crime de roubo se quedou pela tentativa.
De acordo com os factos provados, o recorrente e N retiraram do cofre, da caixa ATM e da caixa de depósitos em numerário o dinheiro existente, que perfazia a quantia global de € 95.790, e colocaram-no dentro de um saco (sendo incontroverso que, relativamente aos dois empregados bancários usaram, para o efeito, dos meios típicos do roubo).
Os factos provados dão, ainda, conta de que:
– o recorrente e N, depois de recolherem o dinheiro, permaneceram na agência, porque a mesma estava a ser vigiada pela polícia;
– pelo menos, entre as 16.20 horas e as 23.20 horas, o recorrente e N mantiveram “negociações”, por telefone, com a PSP, com vista a ser-lhes “facultada” a fuga;
– e quando finalmente saíram da agência, deu-se a intervenção dos agentes do Grupo de Operações Especiais da PSP.
Neste quadro, não se pode considerar que o recorrente e N tivessem chegado a ter um efectivo domínio de facto sobre o dinheiro.
5.4.3. A confirmação da decisão recorrida, no aspecto de o crime de roubo não ter ultrapassado a fase da tentativa, não implica, porém, a sua confirmação quanto à solução encontrada relativamente à privação da liberdade dos funcionários bancários, no período que mediou entre o momento em que o recorrente e N já tinham o dinheiro recolhido num saco e a sua libertação, por acção dos agentes do Grupo de Operações Especiais da PSP (GOE).
Retomando os factos provados, deve ter-se em conta que:
– o recorrente e N, depois de terem recolhido o dinheiro existente na agência bancária, só não a abandonaram, imediatamente, porque a mesma estava a ser vigiada pela PSP;
– pelo menos, entre as 16.20 horas e as 23.20 horas, o recorrente e N permaneceram no interior da agência, mantendo com eles os funcionários A e V;
– durante essas sete horas, o recorrente e N, estabeleceram contactos telefónicos com a PSP, por intermédio de A, exigindo que lhes fosse fornecida uma viatura de alta cilindrada com o depósito de combustível atestado;
– o recorrente chegou a falar, ele próprio, por telefone, com a PSP, afirmando que se a exigência não fosse satisfeita, no prazo que indicou (15 minutos), o V seria morto; e reiterando a mesma exigência e a mesma ameaça;
– o recorrente, ouvindo um telefonema da PSP para A, sobre a demora na entrega do veículo, efectuou um disparo, com a arma de que estava munido, enquanto gritava “que teria de eliminar um dos funcionários aprisionados e exibir a respectiva cabeça para serem levados a sério e para que a fuga lhes fosse permitida”;
– tendo decidido fugir, no veículo de V, levando, com eles, V e A, o recorrente e N saíram das instalações da agência, arrastando com eles esses funcionários;
– só nessa altura A e V foram libertados, em consequência da intervenção dos agentes do GOE.
Em nosso entender, a privação da liberdade dos funcionários bancários, durante o período de, pelo menos, sete horas, que mediou entre a recolha do dinheiro, por parte do recorrente e N, e a intervenção da PSP, ao longo do qual eles (a vida deles) tanto serviram de “meio” para forçar a PSP a aceitar as exigências do recorrente e acompanhante como de “escudo protector na fuga”, quando o recorrente e acompanhante decidiram sair da agência, integra dois autónomos crimes de sequestro.
Sendo certo que já não serviram de meio (crime-meio) de realizar a subtracção do dinheiro ou de constranger à sua entrega, não integram a “unidade típica de acção” do roubo.
5.4.3.1. O roubo constitui um delito de vários actos, pois ao primeiro acto (violência ou intimidação) há-de seguir-se uma subtracção como segundo acto (ROXIN, ob. cit., p. 337, §10, VIII, 7, 126).
O tipo legal integra, por necessidade, uma pluralidade de actos (actos de coacção + actos de subtracção) (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp, 983-984, 41º capítulo, II,2.2., §15).
Os meios no tipo legal de roubo (violência contra uma pessoa, ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física ou colocação na impossibilidade de resistir) têm como finalidade a subtracção de coisa móvel alheia ou o constrangimento à sua entrega.
Se, presente a resolução criminosa, o agente, usando desses meios, não logrou a subtracção ou a entrega da coisa móvel alheia há tentativa.
“Tentativa haverá se não se consumou a subtracção ou a entrega da coisa móvel alheia e/ou se não conseguiu o efectivo constrangimento (à entrega do bem ou a suportar a subtracção) através dos meios usados (os descritos no tipo legal), havendo resolução criminosa e tendo-se praticado actos de execução do crime de roubo (artigo 22 do CP) (Comentário cit., p. 174)
Aqui, tentativa inacabada (distinguem-se as hipóteses em que o agente não chega a praticar todos os actos de execução que seriam indispensáveis à consumação, daquelas outras em que o agente pratica a totalidade daqueles actos e todavia a consumação não vem a ter lugar. Respectivamente, tentativa inacabada e tentativa acabada ou tentativa, propriamente dita, e frustração. Neste ponto, cfr., v.g., FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., 2.ª edição, p. 710).
Já haverá tentativa acabada (frustração) se, no domínio da resolução criminosa, o agente, usando desses meios, logrou a subtracção da coisa móvel alheia ou a sua entrega mas o crime não se consumou por o agente não ter chegado a exercer sobre a coisa um efectivo domínio de facto (quando o agente ainda não adquiriu um pleno e autónomo domínio sobre a coisa).
Com interesse para esta questão, refere VIVES ANTON, que, tendo em consideração o critério da disponibilidade enunciado, tanto doutrinal como jurisprudencialmente, em ordem à consumação, é desde logo possível a tentativa (ob. e loc. cit.).
“A tentativa inacabada não levanta qualquer problema dado que a deslocação patrimonial da coisa requer geralmente uma série de actos: se se realizam alguns mas não todos haverá um furto ou um roubo tentados.
“Maiores dificuldades levanta a admissibilidade da tentativa acabada (antes frustração). Para aceitá-la é preciso admitir que a mínima disponibilidade, a que se fez referência, constitui um resultado do crime.
“O conceito de resultado, em sentido estrito, implica que o tipo exija a produção de certas consequências, separáveis, ontológica e cronologicamente, da manifestação da vontade. Desde este ponto de vista, pode afirmar-se que a disponibilidade das coisas subtraídas é, com efeito, independente da acção de subtrair e que, portanto, constitui um autêntico resultado desta, ainda que a solução seja discutível porque a disponibilidade não resulta da acção de subtrair mas de uma conduta ulterior.”
Com interesse, na matéria, é a seguinte anotação da jurisprudência espanhola:
“A consumação produz-se quando há «apreensão e disponibilidade ainda que seja meramente potencial» (SSTS 17.2.92 e 15.4.92). O comportamento é tentado «se não se logra apreender as coisas móveis alheias» e frustrado (tentativa acabada) «quando apesar da apreensão efectiva não chegou a haver disponibilidade potencial dos objectos (STS 20.9.89) (GONZALO RODRIGUEZ MOURULLO et allii, Comentarios al Codigo Penal, Editorial Civitas, SA, p. 687).
5.4.3.2. A aceitação da tentativa acabada (frustração) tem ínsita a ideia da distinção entre a subtracção ou a entrega constrangida, por um lado, e o domínio de facto, por outro, sendo pertinente, a propósito, recordar que FARIA COSTA (comentário cit., pp. 52 e 50) adverte para a imprescindibilidade de “levar a cabo a separação entre subtracção e domínio de facto” e para a incorrecção de um critério, quanto à consumação do furto, que tivesse por efeito “coincidir ou fazer sobrepor subtracção com domínio de facto (ou até com o apossamento/apropriação).”
E, fazendo-se essa distinção entre a subtracção e o domínio de facto com um mínimo de estabilidade, parece-nos que os meios típicos de violência especificados no tipo são aqueles que visam a finalidade de subtrair ou constranger à entrega de coisa móvel alheia e nessa finalidade se esgotam ou, dito de outro modo, aqueles que são necessários e indispensáveis a conseguir a subtracção ou o constrangimento à entrega.
O que já não acontece quando o agente usa esses meios violentos após a subtracção ou a entrega da coisa (após a tentativa acabada) para lograr a fuga e, como fim último, a apropriação da coisa (a consumação). No momento ulterior à subtracção mas anterior ao domínio de facto, a violência de que o agente use para conseguir esse domínio de facto já não constitui meio (violento) compreendido no tipo legal.
5.4.3.3. Esta interpretação parece ser a mais harmoniosa com a previsão típica da “violência depois da subtracção (artigo 211.° do CP); o chamado roubo impróprio (Na versão primitiva do CP (artigo 307.°) o tipo englobava, ainda, a conduta que visasse eximir o agente ou algum dos seus comparticipantes à acção da justiça, a qual foi eliminada na revisão de 1995, por se ter reconhecido não existir razão para essa especifica previsão que “não tem a ver com a tutela da propriedade”; “em muitos outros crimes o problema coloca-se nos mesmos moldes” (cfr. acta n.º 30 da Comissão de Revisão, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, p. p. 337).
As penas do roubo são, conforme os casos, aplicáveis a quem utilizar os meios previstos no artigo 210.º para, quando encontrado em flagrante delito de furto, conservar ou não restituir as coisas subtraídas”.
O tipo legal delimita espácio-temporalmente a conduta através da expressão “quando encontrado em flagrante delito de furto”, a qual remete para a noção de flagrante delito dada pelo artigo 256.º do CPP. É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer (n.º 1); reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostram claramente que acabou de o cometer ou nele participar (n.º 2).
Importa, contudo, efectuar algumas precisões (ponto em que seguiremos, de perto, CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, Comentário cit., Tomo II, p. 196 e 55., §§ 13 a 17).
A expressão flagrante delito usada no tipo não poderá abarcar o momento em que o agente ainda está a subtrair, sem ter conseguido subtrair, pois, em tal momento, não se poderá falar em usar de violência para “conservar ou não restituir as coisas subtraídas” mas sim para “conseguir subtrair”, o que integra o âmbito do crime de roubo.
Assim, pressuposto do tipo é que já tenha havido subtracção. Se a utilização da violência é levada a cabo no intuito de conseguir subtrair, o que temos é um roubo (consumado ou tentado).
Por outro lado, parece que ainda poderá haver violência depois da subtracção até à existência de uma certa estabilidade no domínio do agente sobre o bem.
A delimitação espacial vem também restringir o âmbito do tipo legal. Ainda que não se tenha dado a posse pacífica do objecto, deixará de haver flagrante delito se o agente não é descoberto no local da subtracção ou nas suas imediações, mas a uma distância relevante desse local e aí usa de violência para garantir a subtracção.
Feitas estas precisões, parece ter de se concluir que este crime pode surgir entre a subtracção (realizada) e o domínio de facto sobre o bem, o qual pressupõe, como vimos, um certo lapso de tempo de domínio. Como, também, adverte a Autora que estamos a seguir, afigura-se, assim, essencial, a distinção entre subtracção e “domínio de facto”.
Por conseguinte, se os meios previstos no artigo 210.° não integram o crime de roubo mas o tipo de ilícito de violência depois da subtracção, quando usados, pelo agente, “em flagrante delito”, para conservar ou não restituir as coisas subtraídas, ainda que se dirijam contra o proprietário ou detentor do bem (Sujeito passivo do crime pode ser qualquer pessoa que esteja em situação de intervir, sendo vitima da violência praticada pelo agente, no intuito de conservar ou não restituir o bem. Assim, a vitima tanto pode ser o proprietário ou detentor do bem, como um terceiro, nomeadamente a policia ou uma qualquer pessoa que descubra o agente em flagrante ou, ainda, qualquer pessoa que se encontre em situação de poder intervir no sentido de tentar impedir a conservação do bem na posse do agente), parece irrecusável a conclusão de que os meios previstos no artigo 210.º já não integram o crime de roubo quando, realizada a subtracção violenta do bem, são, ainda, usados para conservar o bem, ou seja, dito de outro modo, para que o agente, quando encontrado em flagrante delito, consiga um efectivo domínio de facto sobre a coisa.
A posição adoptada quanto ao momento da consumação do crime de roubo (a implicar a distinção entre a subtracção e o domínio de facto) implica, consequentemente, que não se considerem englobados no crime de roubo os meios previstos no artigo 210.º quando usados pelo agente, “em flagrante delito”, não com a finalidade de subtrair as coisas móveis alheias ou constranger à sua entrega, mas com a finalidade de lograr o domínio de facto sobre elas.
Neste entendimento, a violência exercida após a subtracção e até à consumação (domínio de facto sobre a coisa com tendencial estabilidade) deve ser autonomamente valorada jurídico-penalmente. Integrando um ilícito típico, o agente cometerá, em concurso efectivo, um crime de roubo (consumado ou tentado, consoante logre, ou não, o domínio de facto sobre a coisa com tendencial estabilidade), em concurso efectivo com o crime (ou crimes) que a violência usada após a subtracção (violenta) integre.
5.4.3.4. Mesmo no caso de tentativa inacabada, autores há que admitem o concurso efectivo entre o roubo e o sequestro se a duração da privação da liberdade de locomoção ultrapassa a medida naturalmente associada à prática do crime-fim, como tal já considerada pelo próprio legislador na descrição típica e na estatuição da pena.
Assim, TAIPA DE CARVALHO (), quando escreve:
“Sabe-se que a violência é prevista como meio típico da realização de uma multiplicidade de crimes. Tal o caso, p. ex., da coacção, da coacção sexual, do roubo, da extorsão. Também é evidente que esta violência pode traduzir-se na privação da liberdade de movimentos. Ora essa consideração é decisiva para a questão do concurso; para resolver, em muitos casos, a questão da unidade ou pluralidade de crimes. Com efeito, sempre que a duração da privação da liberdade de locomoção não ultrapasse aquela medida naturalmente associada à prática do crime-fim (p. ex., o roubo, a ofensa corporal grave, a violação) e como tal já considerada pelo próprio legislador na descrição típica e na estatuição da pena deve concluir-se pela existência de concurso aparente (relação de subsidiariedade) entre o sequestro («crime-meio») e o crime-fim: roubo, violação, extorsão, etc. respondendo o agente somente por um desses crimes (assim, p. ex., Schwaighofer, WK §99 31 ss.). Já haverá um concurso efectivo, quando a duração da privação da liberdade de movimento ultrapassar aquela medida. Assim, se, p. ex., A, para constranger S a realizar a cópula com ele, prendeu S, durante mais de 24 horas, responderá pelo crime de violação e de sequestro, e se não chegou a consumar a violação (art. 164.º), porque, ao fim de 4 horas de sequestro, apareceu uma terceira pessoa, responderá pelo crime de sequestro (art. 158.º-1) e pelo crime de violação tentada. O mesmo se diga para o caso de C, querendo constranger D a vender-lhe um terreno, o encarcerar durante algumas horas: C responderá pelo crime de sequestro (art. 158.º-1) e pelo crime de coacção (art, 154.°-1).” (comentário cit., Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 415, §35).
5.4.3.5. Como já referido, o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, com constância, que o crime de roubo consome o crime de sequestro quando este serve estritamente de meio para a prática daquele, isto é, quando o sequestro se tiver esgotado como crime-meio. Onde se detecta divergência é, afinal, na apreciação da matéria de facto fixada. Perante a mesma situação de facto, sustentam uns que a privação da liberdade se conteve na medida reclamada para que se integre no tipo de roubo mas já sustentam outros que essa medida foi ultrapassada de modo a verificar-se um concurso efectivo de crimes (Elucidativo do que acabámos de dizer, o acórdão de 14/03/2002, processo n.º 4249101, e o respectivo voto de vencido, com abundante resenha jurisprudencial, sobre o tema, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo I -2002, p. 222 e ss.).
Afirmando-se, em tese de geral aceitação, que “um acto de privação da liberdade de movimentação de qualquer pessoa só poderá ser consumido por uma actividade enquadrável na figura criminal de roubo quando essa privação de liberdade se mostre absolutamente indispensável para se poder efectuar a subtracção violenta em que o roubo se concretiza, e, além do mais, unicamente enquanto essa subtracção estiver a ocorrer, pois só assim corresponde unicamente ao conceito de violência contra as pessoas que tipifica o crime de roubo. Caso contrário, a conduta em que se traduz aquela privação de liberdade, desnecessária e excessiva para a prática de actos de subtracção violenta, autonomiza-se, e passa a constituir a comissão do crime de sequestro” (Acórdão de 04/07/1996, processo n.º 155/96, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo II – 1996, p, 220 e ss.)
É certo que, com frequência, a mesma é aplicada com referência à consumação do crime de roubo.
Afirmando-se, por exemplo:
“Daí que, (…) os crimes de sequestro concorram, em concurso real, com o de roubo, ultrapassando a privação da liberdade, pelo tempo, modo e fim como se processou, a natureza de simples e causal meio de consumação do crime de roubo, integrando crime autónomo de sequestro (…)” (Acórdão de 22/09/2004 (processo n.o 1795104), publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo JlI – 2004, p. 159 e ss., no qual, aliás, se afirma expressamente, a adesão, justamente, à tese contida no acórdão identificado na nota antecedente).
Mas, as mais das vezes, em casos que não convocam uma expressa tomada de posição sobre a questão do momento da consumação do roubo e em que ela, verdadeiramente, não se chega a colocar, apresentando-se o sequestro, inquestionavelmente, como crime-meio” (Frequentemente, casos em que a subtracção integra, ainda, levantamentos de numerário, em caixas ATM, com cartões multibanco das vítimas, mantendo-se estas privadas da liberdade enquanto decorre essa acção. Cfr., dentre os mais recentes, o acórdão de 12/02/2009, publicado sob o n.º 09P0110).
Daí que a posição que adoptamos não contenha uma qualquer divergência essencial com a que tem sido a jurisprudência constante deste Tribunal.
5.4.3.6. A condenação do recorrente por dois crimes de sequestro, nas pessoas dos empregados do banco, A e V, conformados pela privação da liberdade ambulatória destes, no período de, pelo menos, sete horas, que mediou entre o momento em que o recorrente já tinha “recolhido” o dinheiro e aquele em que eles foram libertados por acção dos agentes do Grupo de Operações Especiais da PSP, em concurso efectivo, com o roubo tentado, comportaria, porém, uma violação da proibição de reformatio in pejus (artigo 409.º, n.º 1, do CPP).
A implicar que se mantenha a condenação do recorrente apenas por um crime de sequestro (de um dos empregados bancários).
5.5. O crime de detenção de arma proibida concorre também, em concurso efectivo, com o roubo tentado (No ponto, cfr. jurisprudência e doutrina citadas por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, anotação 33. ao artigo 210.º, p. 581. Ainda, acórdão citado no acórdão recorrido, de 16/11/2006, publicado sob o n.º 06P2546, e o recente acórdão de 19/05/2010, processo n.º 474/09.4PSLSB.L1.S1, 3.ª secção).
Com efeito, o bem jurídico protegido pelo crime dos artigos 86.°, n.º 1, alínea c), e 3.°, n.º 2, alínea l), é eminentemente público. O bem jurídico protegido é a segurança da comunidade face aos riscos (em última instância para bens jurídicos individuais) da livre circulação e detenção de armas proibidas. Pretende o legislador proteger, através da punição dum comportamento potencialmente perigoso, a ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes sabido que existe uma relação directa entre as manifestações de violência criminal e a detenção incontrolada de armas (Sobre o bem jurídico, mantém actualidade, a anotação ao artigo 275.° do CP, na redacção da Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto – oitava alteração ao CP, aprovado pelo Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro -, entretanto revogado pela alínea o) do artigo 118.° da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro) de PAULA RIBEIRO DE FARIA, in Comentário cit., Tomo II, p. 891. 11, §4)
Muito embora o roubo tentado tenha sido agravado, designadamente, em função da circunstância qualificativa da alínea f) do n.º 2 do artigo 204.° do CP (“trazendo [o agente], no momento do crime, arma aparente ou oculta”), a condenação do recorrente, em concurso efectivo, pelo crime de detenção de arma proibida não implica qualquer violação do princípio jurídico-constitucional – artigo 29.º, n.º 5) da proibição de dupla valoração (ne bis in idem).
Com efeito, para o preenchimento daquela circunstância qualificativa do furto basta a detenção de uma arma, no sentido definido pelo artigo 4.° do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março (“Para efeito do disposto no Código Penal considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.”). Assim, qualquer tipo de instrumento, usado ou com potencialidade para ser usado como meio de agressão preenche a circunstância qualificativa; qualquer arma, ainda que a sua detenção seja permitida, preenche a circunstância qualificativa. Por isso, a detenção de uma arma proibida, acção que viola um bem jurídico não protegido nem pelo furto nem pelo roubo, conforma um “mais” relativamente à previsão típica.
Por outro lado, a detenção da arma proibida não se esgota no uso dela no “momento” da prática do crime. A detenção da arma, pelo recorrente, não é, sequer, cronologicamente coincidente com o seu uso como arma do crime (no momento do crime, durante a execução do crime). Precedeu-o, necessariamente.
6. Na tese, que defende, de dever ser condenado, tão só, pelo crime de roubo, na forma tentada, suscita, ainda, o recorrente a questão da medida da pena, por esse crime, e enuncia a pretensão da ligeira redução da pena por que, por ele, foi condenado.
6.1. As finalidades das penas são, como paradigmaticamente declara o artigo 40.º n.º 1, do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Com este texto, introduzido na revisão de 95 do CP (inexistente na versão primitiva do CP, foi introduzido com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), o legislador instituiu no ordenamento jurídico-penal português a natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas (Sobre a evolução, em Portugal, do problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss).
Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.» (Ibidem, p. 105).
Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos» (FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1993, p. 228). Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.» (Ibidem, p. 241)
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exigências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial.
Se a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.°, n.º 2, do CP), a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso» ((FIGUEIREDO DIAS, Temas, cit., p. 109), constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas.
A aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. E o que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam (FIGUEIREDO DIAS, «Sob re o Estado Actual da Doutrina do C rima» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2. Fase. 1 , Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias, p. 14).
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
6.2. Quanto aos crimes de roubo, em geral, as exigências de prevenção geral positiva são especialmente intensas porque desencadeiam fortes “sentimentos” de insegurança e intranquilidade na comunidade. No caso, particularmente acentuados, pelo modo de execução do crime e grau elevado de destemor e violência nele posta, conformando um elevado grau de ilicitude, na vertente do desvalor da acção. Por isso, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma, da confiança comunitária na prevalência do direito.
No plano das exigências de prevenção especial destacam-se, negativamente, as qualidades desvaliosas da personalidade do recorrente que se manifestam na prática do crime (a intensidade da vontade criminosa, do planeamento à execução do crime, a violência usada, de elevado grau, e a persistência nele postas) e na actuação posterior, também elas adequadas a elevar a culpa do recorrente pelos factos.
Acentuam as exigências de prevenção especial, ainda, algumas dificuldades de integração social do recorrente, em Portugal (instabilidade profissional) e os traços da sua personalidade, conforme factos provados de 70. a 74.
Na ponderação das exigências de prevenção geral e especial e da culpa do recorrente pejos factos não pode merecer qualquer crítica, por ser excessiva, a pena cominada pelo roubo, na forma tentada.
Como não a merece nem nenhuma das outras penas parcelares cominadas nem a pena conjunta pelo “ilícito global”.
III
Razões por que se nega provimento ao recurso, confirmando, também na medida imposta pela proibição de reformatio in pejus, o acórdão recorrido.
Por ter decaído, é o recorrente condenado nas custas, com 7 UC de taxa de justiça.
Supremo Tribunal de Justiça, 23/09/2010
Relatora: Isabel Pais Martins
Manuel Joaquim Braz (voto a decisão no entendimento, quanto aos sequestros, de que o roubo foi consumado, pois, nas concretas circunstâncias, a disponibilidade do dinheiro não dependia da saída dos agentes para o exterior do banco).
Carmona da Mota, c/ declaração de voto de desempate:
A relatora distingue entre violência antes ou quando da subtracção (instrumento característico do «roubo») e violência após a subtracção pacífica (caso em que se estenderão ao furto – se ainda não consumado – as penas previstas para o roubo). Daqui parte depois a ilustre relatora para, no âmbito do roubo, distinguir entre a violência anterior ou contemporânea da subtracção ou da entrega da coisa e violência posterior («mas anterior ao domínio do facto»), caso em que «a violência de que o agente usasse para conseguir o domínio de facto já não constituiria meio (violento) compreendido no tipo legal».
No caso, apoio o voto da relatora na qualificação do roubo como tentado (e não como consumado, como votou, vencido, o seu adjunto), mas, até por isso mesmo, sinto as maiores dificuldades em distinguir, num crime tentado, entre a «violência» usada «contra uma pessoa» para subtrair coisa móvel alheia (Tanto mais que o art. 210/1 fará equivaler «subtracção» (“Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair (…) coisa móvel alheia») – a «apropriação») e a utilizada pelo agente «para [a seguir] conseguir o domínio de facto» sobre a coisa subtraída.
No caso, e tal como a Relação, tenderia, pois, a distinguir entre um crime de roubo tentado (contra, materialmente, o dono da coisa [o Banco] e, pessoalmente, o seu detentor [o gerente da agência assaltada]), cinco crimes de sequestro (contra a liberdade – bem eminentemente pessoal – do funcionário subalterno e de cada um dos quatro clientes da agência) [No entanto (cfr. STJ 2358/02 de 4JUL02), “a importância do elemento pessoal no tipo legal de roubo» («que protege não só bens patrimoniais como também bens jurídicos pessoais» – Comentário, II, 164) haverá de implicar – não obstante a unidade do «crime/fim» – a autonomização dos crimes/meio (excepto os que, mercê deste necessariamente artificioso tratamento técnico-jurídico, venha a ser contabilizado como essencialmente – e não apenas acessoriamente – constitutivo do «roubo»), nomeadamente dos crimes contra a liberdade pessoal (cfr. art.s 24.º e ss. – e, maxime, o art. 27.1 – da Constituição), como, entre outros, os de ameaças, coacção ou sequestro (Art. 154.º (coacção) – 1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante constranger outra pessoa a uma acção ou omissão é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Art. 155.º (coacção grave) – 1. Quando a coacção for por meio de ameaça com a prática de crime punível com prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. Art. 158.º (sequestro) – 1. Quem de qualquer forma privar outra pessoa da liberdade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.)] e um crime de detenção de arma proibida.
O juiz presidente,
(J. Carmona da Mota)