Acção 911/14.6TBAMT – Amarante – Secção Cível – J1
Sumário:
I. Os requisitos legais da anulabilidade (referidos no art. 905 do CC) do erro que atinga os motivos determinantes da vontade, referido ao objecto do negócio da compra e venda (que é o caso dos autos), são as condições gerais da relevância do erro, ou seja, a essencialidade do erro e a propriedade, e a condição especial da cognoscibilidade, para o declaratário/vendedor, da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro do declarante/comprador (arts. 251 e 247 do CC).
II. Não se provando o dolo ou a negligência, a responsabilidade objectiva prevista no art. 909 do CC não deve levar à indemnização de danos não patrimoniais emergentes da celebração do contrato.
III. A repercussão da prática de determinados actos na esfera jurídico-patrimonial de outrem pressupõe, para além do mais, que estes foram praticados por quem é seu representante (art. 258 do CC); ora, o réu não alegou que estivesse a representar ninguém, pelo que deve ser ele o condenado.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A intentou a presente acção comum contra R, terminando a petição dizendo que devia ser declarado que:
a) Entre autor e réu, em finais de Julho de 2013, foi celebrado um contrato verbal de compra e venda de veículo automóvel, através do qual, pelo preço de 5000€, o réu vendeu e entregou ao autor que o adquiriu e recebeu o veículo automóvel de matrícula x;
b) O autor pagou e entregou a totalidade do preço ao réu;
c) Aquando da celebração do negócio, o réu entregou ao autor os documentos necessários para averbamento da propriedade do veículo em seu nome e para cancelamento do ónus de reserva de propriedade que sobre ele incidia;
d) Os documentos para cancelamento da reserva de propriedade e as assinaturas e reconhecimentos neles constantes são falsos;
e) O réu dolosamente induziu o autor em erro, fazendo-lhe crer que tais documentos eram verdadeiros;
f) O erro gera a anulabilidade do contrato de compra e venda;
g) A anulabilidade do contrato de compra e venda do veículo tem efeitos retroactivos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado;
h) A conduta dolosa e ardilosa do réu provocou no autor danos morais;
Consequentemente, devia o réu ser condenado a:
i) devolver ao autor a soma de 5000€, acrescida de juros à taxa legal a contar da citação e
j) a pagar ao autor a quantia de 1500€ a título de danos morais.
Devia ainda ser declarado que o autor apenas entregará o veículo com o recebimento de todas estas quantias.
Para tanto, alegou, em síntese, que: em meados de Julho de 2013 o réu detinha a posse, uso e fruição do veículo e decidiu vendê-lo; depois de negociações autor e réu acordaram na compra e venda do veículo por 5000€; como sobre o veículo incidia um ónus de reserva de propriedade a favor de terceiro, o réu fez saber ao autor que o valor que tal ónus garantia estava liquidado e que possuía os documentos necessários para cancelar a reserva, convencendo-o deste modo a concretizar o negócio; então o autor entregou ao réu os 5000€ e o réu entregou ao autor o veículo, a respectiva chave, os documentos para transferência da propriedade e para cancelar a reserva; o autor confiou na autenticidade de tais documentos; dias depois foi surpreendido com a informação que o registo de cancelamento não podia ser efectuado pela falsidade dos documentos; ao exibir e entregar os documentos de cancelamento da reserva o réu não só sabia que os mesmos eram falsos como induziu dolosamente o autor em erro; com esta conduta o autor, que é um reputado comerciante, sentiu-se enganado e abatido, tanto mais que já tinha cedido o veículo a terceiro e foi obrigado a retomá-lo.
O réu contestou impugnando, dizendo, sob a epígrafe ‘da ilegitimidade” que nunca foi proprietário do veículo, nem possuidor, nem utilizador em benefício próprio e não fez seus os 5000€, nem publicitou a venda do veículo como seu; foi apenas intermediário na venda, não remunerado, tendo recebido toda a documentação do veículo do proprietário do mesmo, factos de que informou o autor, sugerindo-lhe que averiguasse a regularidade da situação documental do veículo; impugna também o essencial dos restantes factos da petição inicial; termina no sentido da improcedência da acção, total ou em conformidade com a prova que se produzisse.
Depois do julgamento foi proferida sentença condenando o réu conforme o pedido, à excepção do referido nas duas últimas linhas subsequentes a j).
O réu recorre desta sentença – para que seja “apreciada a suscitada questão de ilegitimidade, alterada a resposta aos pontos de facto 1 a 7 e 11 a 15, em termos de se concluir pela prova de que o réu actuou como mero representante sem poderes, com a sua consequente absolvição” – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Do cotejo da sentença em crise resulta patente a, nuns casos, insuficiência e, noutros, mesmo a total ausência, de fundamentação para as respostas dadas nos pontos 1 a 7 e 11 a 15.
- Para concluir de uma certa forma, seja ela qual for, o tribunal deve indicar o concreto teor dos depoimentos em que fundou o sentido da sua convicção. Essa obrigação deverá ser ainda mais acrescida quando o tribunal, como foi o caso dos autos, conclui em sentido oposto e/ou diverso daquilo que foram os depoimentos dos intervenientes efectivamente conhecedores da situação em litígio nos autos.
- Quanto aos concretos pontos de facto que o réu considera incorrectamente julgados, sinaliza os seguintes: pontos 1 a 7 e 11 a 15.
- Como poderá constatar-se do teor dos depoimentos e das concretas passagens supra sinalizadas, não foi, nem directa, nem indirectamente, feita prova consentânea com a conclusão de que o réu se quis fazer passar por efectivo proprietário do veículo, ou que tenha, por qualquer forma, querido enganar o autor.
- Quanto aos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida sinalizamos as passagens supra indicadas, respeitantes às declarações do autor e do réu.
- O réu afirmou, repetidamente, que só circulou com o veículo em dois momentos – quando o foi mostrar e quando o foi entregar ao autor; afirmou que recebeu os documentos do veículo do Sr. B e que, depois, os entregou ao autor; que foi ele que averiguou se estava tudo bem com os mesmos e que só “fez negócio” por 5000€ depois de autorizado pelo Sr. B.
- O autor declarou que conhecia muito bem o Sr. B e que só viu o réu com o veículo duas vezes.
- Por isso, não tendo o veículo alguma vez estado registado ou com seguro a favor do réu; não tendo, quem quer que seja, dito que o viu com o veículo mais de duas vezes; nem tendo sido alegado, ou dito por quem quer que seja, que o réu alguma vez pagou reparação do veículo, adquiriu gasóleo para o abastecer ou pagou impostos ou inspecção a ele relativos, havia que ter dado como não provada a matéria supra enunciada.
- Não é por caso que do minuto 19:30 ao minuto 21 o autor refere que até 2/3 meses após o evento estava consciente de que ele (o aqui réu) também tinha sido enganado…
- Face ao exposto, em matéria da decisão que, no entender do réu deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, diremos resumidamente o seguinte:
– quanto ao ponto 1: o tribunal apenas devia ter concluído que o réu usou o veículo duas vezes – uma quando o mostrou e outra quando o entregou ao autor.
– quanto aos pontos 2 a 5 – a resposta a estas questões – atenta a prova testemunhal efectuada e a ausência de suporte documental indiciador de utilização do veículo no seu próprio interesse e à vista de toda a gente – deve ser alterada para “não provado”.
– Se é facto que em julho de 2013 o réu decidiu informar que tinha o veículo para venda, também nos parece indiscutível que em momento algum deu indicação de que ele era sua propriedade – situação, aliás, absolutamente consentânea com a entrega dos seus documentos, com registo a favor de pessoa que não o autor.
– Quanto aos pontos 11 a 15 – não foi efectuado qualquer prova, nem dada qualquer justificação, para se concluir que o réu sabia que o autor só celebrou o negócio de aquisição do veículo por estar convicto da veracidade dos documentos para cancelamento da reserva de propriedade.
Pela prova testemunhal efectuada o que é razoável concluir é que nem o autor, nem o réu sabiam da falsificação do documento necessário a extinção da reserva.
- Ao contrário do decidido, não temos dúvidas de que o réu foi enganado. E por ter sido enganado e ter intervindo no negócio, seguramente apenas como mero representante, é que quis resolver o problema do autor e encetou as diligências referidas na sentença com vista ao seu ressarcimento.
- Os pontos supra enunciados deviam ter merecido resposta negativa e a acção improcedido.
- Concluindo-se como supra se peticiona, e apelando ao instituto da representação, havia que ter percebido que os efeitos do negócio sub judice se reflectem na esfera jurídica do representado – o Sr. B e/ou a pessoa a favor de quem o veículo se encontra registado – uma vez que só por aí é que o autor poderá, quando entender, vir a agir por forma a tentar regularizar a situação do veículo que, aliás, continua a manter na sua posse.
- A alegada ilegitimidade do réu efectuada na contestação, ainda não mereceu a apreciação que lhe é devida, por legal e oficiosamente exigível o que, por isso, se peticiona.
- [15] Ao condenar o réu, com os fundamentos que aduziu, o tribunal violou, designadamente, o disposto nos arts 615, als. b) e d) do CPC, devendo a sentença ser modificada nos seguintes termos [já transcritos acima].
O autor não contra-alegou.
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Questões que importa decidir: da ilegitimidade; da falta de fundamentação; da alteração dos factos e da eventual consequência desta alteração para a decisão de direito; da representação.
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Da ilegitimidade do réu
Na conclusão 14 do recurso o réu estará a referir-se à excepção de ilegitimidade processual.
Só que o réu não deduziu nenhuma excepção dilatória, nem, correspondentemente, pediu a sua absolvição da instância (arts. 30, 577-e, 576/2, 278/1-d, todos do CPC). O réu não disse, ou sugeriu, não ser titular da relação material controvertida tal como era configurada pelo autor (art. 30/3 do CPC).
O que o réu fez foi limitar-se a falar da sua ilegitimidade enquanto impugnava os factos, estando pois a falar da sua ilegitimidade material, que decorreria de não ser o proprietário do veículo, e não da legitimidade processual.
Não havia, assim, qualquer excepção a conhecer, pelo que não se verifica esta nulidade da sentença.
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Da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto
Quanto à matéria das conclusões 1 e 2, pode-se aceitar que, tendo em consideração aquilo que a doutrina diz a partir do art. 607/4 do CPC, sobre a forma como a fundamentação da decisão da matéria de facto se deve fazer, a dos autos não será a mais perfeita.
Assim, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa, embora para a redacção do CPC anterior à reforma de 2013, dizia: “A fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente para cada facto […] Se o facto for considerado provado, o tribunal deve começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostraram inconclusivos e terminar com a referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para infirmar a sua convicção (Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2ª edição, 1997, pág. 348; mais ou menos no mesmo sentido, veja-se Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 653/655; e Remédio Marques, Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2007, págs. 409 a 411).
E Lebre de Freitas diz (já depois da reforma de 2013): “Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes (…) e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.ºs 4, 1ª parte, e 5) (…). O juiz deve, pois, por exemplo, explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, por que razão o depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um relatório pericial divergente ou porque é que, não obstante vários depoimentos produzidos sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente verificado. A sua análise crítica constitui um complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento (…). Por outro lado, a necessidade de fundamentação séria leva, indirectamente, o juiz a melhor confrontar os vários elementos de prova, não se limitando à sua intuição ou às impressões mais fortes recebidas na audiência decorrida e considerando, um a um, todos os factores probatórios submetidos à sua livre apreciação, incluindo, nos casos indicados na lei (supra, n.º 19.2), os relativos à conduta processual da parte” (A acção declarativa,… 3ª edição, 2013, Coimbra Editora, págs. 315/316).
A verdade, entretanto, é que a forma de dar cumprimento a estas exigências pode ser muito variada dependendo de: como os factos foram alegados na petição inicial ou na contestação; como foram impugnados; como foi produzida a prova; bem como da importância relativa dos elementos de prova; da multiplicidade dos factos relevantes; da existência de unidade de sentido quanto a grupos de factos, etc.
Daí que, por exemplo, Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, especialmente págs. 659 a 662, não obstante o que acima foi transcrito de Lebre de Freitas, lembrem que: “A imposição da fundamentação não impede necessariamente que o tribunal motive em conjunto as respostas a mais do que um facto da base instrutória, quando os factos objecto da motivação se apresentem entre si ligados e sobre eles tenham incidido fundamentalmente os mesmos meios de prova. Essa motivação conjunta pode até ser concretamente aconselhável”).
E, por isso, basta para que não se critique a fundamentação da decisão da matéria de facto, que da mesma se possam extrair os elementos que a lei exige.
Ora, no caso dos autos, a matéria de facto com relevo particular (correspondente à que agora foi impugnada no recurso) podia-se dividir em quatro pequenos temas de prova – características da detenção do veículo (factos 1 a 5), decisão da venda e publicidade da mesma (factos 6 e 7), forma como o réu levou o autor à celebração do contrato (factos 11 e 12) e convicção das partes (factos 13 a 15) -, os elementos de prova eram poucos e a prova pessoal de curta duração.
Perante isto, o tribunal fez o resumo completo da prova pessoal prestada (o que se pode dizer dispensável e, por isso, alvo de eventual crítica por excesso e não por defeito) e foi fazendo comentários críticos à mesma ao longo do resumo, fazendo-o de tal forma que se percebe o que é que, de cada um dos elementos de prova, estava a ser aproveitado, para quê e porquê. E a tudo isto o tribunal ainda juntou uma apreciação crítica final.
Tudo isto é suficiente para que se possa dizer que o tribunal deu cumprimento suficiente ao disposto no art. 607/4 do CPC
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Foram dados como provados os seguintes factos (os sob alíneas foram fixados em despacho subsequente ao termo dos articulados; os sob números foram fixados depois da audiência de julgamento):
A) Por intermédio de C, o autor e o réu encontraram-se junto ao edifício X, em X, local onde o autor viu o veículo x de matrícula x pela primeira vez.
B) Nesse primeiro encontro o réu declarou querer vender o veículo pelo preço de 7000€, valor que o autor recusou pagar por entender ser excessivo.
C) Dias mais tarde, autor e réu encontraram-se no cruzamento e lugar de X, freguesia de X, junto ao “Stand X”.
D) O autor acordou então com o réu, adquirir-lhe o veículo o mediante a contrapartida de 5000€, que foi entregue ao réu.
E) O veículo, conforme certificado de matrícula de fls. 15, tinha registada reserva de propriedade a favor do Banco X, SA.
F) O réu entregou ao autor o requerimento de registo automóvel de fls. 16, com assinatura reconhecida do procurador do Banco X, com poderes para o acto, peticionando o cancelamento da reserva de propriedade e a declaração do Banco X de fls. 19 dizendo que a dívida foi regularizada.
G) O reconhecimento de assinatura referido em F) estava feito pelo advogado, Dr. X.
H) O solicitador que apresentou o pedido de registo referido em F) de cancelamento da reserva de propriedade, desistiu do pedido, conforme declaração de fls. 20, datada de 30 de Julho de 2013.
1. Em meados de Julho de 2013, o réu detinha as chaves e usava o veículo automóvel x de matricula x.
2. Utilizando-o no seu próprio interesse e benefício. [este ponto é eliminado por decisão deste acórdão]
3. À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
4. Comportando-se como se fosse o único dono. [este ponto é eliminado por decisão deste acórdão]
5. Por todos os que o conheciam sendo considerado o único dono. [este ponto é eliminado por decisão deste acórdão]
6. Em Julho de 2013 o réu decidiu vender o veículo.
7. Publicitando a sua decisão de vender através de amigos e conhecidos.
8. O réu solicitou a C, seu conhecido e amigo, que lhe arranjasse interessado para aquisição do veículo.
9. Ao que o C anuiu, tendo contactado o autor, questionando-o se estaria interessado.
10. O autor mostrou-se interessado em ver o veículo.
11. O réu garantiu [disse] ao autor que o valor que a reserva de propriedade garantia estava totalmente liquidado [o rasurado e o intercalado resultam da decisão deste acórdão].
12. E que facultaria todos os documentos necessários para cancelar a reserva de propriedade, emitidos pelo Banco X, que exibiu ao autor.
13. E o autor só aceitou concretizar o negócio porque acreditou nas afirmações referidas em 11 e 12 e no que os documentos referidos em F) atestavam.
14. Ao exibir e entregar ao autor os documentos referidos em F), o réu não só sabia que os mesmos eram forjados, como sabia que os mesmos tinham convencido o autor a comprar, por acreditar erroneamente, que o veículo estava livre de encargos [os rasurados resultam da decisão deste acórdão].
15. O réu sabia que o autor só celebrou o negócio de aquisição do veículo por estar convicto da veracidade dos documentos para cancelamento da reserva de propriedade.
16. No mercado, o valor comercial do veículo era equivalente ao preço pago pelo autor ao réu.
17. Há mais de trinta anos que o autor está ligado à actividade de compra e venda de veículos automóveis.
18. O autor é uma pessoa muito conhecida na cidade X, na qual goza de boa reputação, pois é considerado pessoa séria e honesta.
19. O facto de ter sido ludibriado repercute-se negativamente na imagem do autor perante a sociedade.
20. O que muito o entristece e angustia.
21. Tanto mais que, no entretanto, e na ignorância da falsidade dos documentos referidos em F), o autor cedera o veículo a outra pessoa.
22. E na impossibilidade de cancelar a reserva de propriedade, foi obrigado pelo interessado a retomar o veículo.
23. E teve de dar explicações àquele interessado, mesmo sem ter qualquer responsabilidade na feitura de tais documentos.
24. Com o comportamento do réu, o autor ficou triste e abatido e ofendido na sua honra e consideração.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
As conclusões 3 a 12 dizem respeito à impugnação da matéria de facto.
Ao que aí consta, acrescente-se o que o réu disse sobre as declarações de parte do réu e do autor:
“O réu em declarações de parte
02m:28s a 03m:48s
Assume, a instâncias da Srª juíza e do advogado do autor, que só andou no veículo no dia em que o veio mostrar ao autor e no dia em que lho entregou. Que lhe pediram para vender o carro, apenas ligou para um amigo, o Sr. D que tinha um stand e foi-lho mostrar em X.
14m:50s a 16m:47s
Assume, a instâncias do seu advogado do réu [sic] e da Srª juíza que vendeu em nome de outrem.
23m:00s a 24m:10s
A instâncias do seu advogado, explica que recebeu os documentos do veículo do Sr. B. Que os entregou ao autor e que foi ele que averiguou se estava tudo bem com os mesmos.
26m:10s a 26m:27s
Explica que antes de informar se fazia, ou não, negócio com o autor teve que perguntar ao Sr. B se ele aceitava a proposta de 5000€. O Sr. B demorou uns dias até confirmar que o seu “amigo” aceitava a proposta dos 5000€.
O autor em declarações de parte
12m:40s a 12m:55s
Declara que conhece muito bem o Sr. B e que só soube muito mais à frente que o carro tinha a ver com ele.
17m:50s a 20m:20s
A instâncias do Adv. do réu declara que só viu o réu com o carro duas vezes.
Diz igualmente que, em consciência também o réu teria sido enganado.”
[…]
“21m:55s a 19m:47s
A instâncias do advogado do réu e a propósito da relação/ligação entre o réu e o veículo profere a seguinte declaração: não… claro que não tinha nada a ver.
Comentário: ninguém é tão inocente! Comerciante de automóveis, reputado e com mais de 30 anos de experiência, é surreal!
Não é por caso que de 19:30 a 21: o A. explica que até 2/3 meses estava consciente de que ele (o aqui réu) também tinha sido enganado…
24m:40s a 25m:10s
A instâncias da Srª juíza – que lhe pergunta “o Sr. não lhe perguntou nada ao perceber que os documentos eram de outra pessoa” – responde, “candidamente”, que o réu é que lhe disse que o carro era doutro…”
Quanto ao ponto 7 o réu ainda acrescentou:
“A situação de se ter apurado que o réu deu conhecimento de ter o veículo para venda ao Sr. C antes de encetar contactos como o autor, com o devido respeito, deverá ser considerado insuficiente para que o tribunal conclua, nos termos em que o fez, que o réu “publicitou a sua decisão de vender através de amigos e conhecidos”.”
E quanto aos pontos 11 a 15 o réu ainda disse:
Concluir que o réu sabia que o autor só celebrou o negócio de aquisição do veículo por estar convicto da veracidade dos documentos para cancelamento da reserva de propriedade é, há que o reconhecer, facto notório quanto à pessoa do autor.
Todavia, se levarmos em conta a circunstância do ter sido o próprio autor a declarar que o réu só não lhe restituiu os 5000€ recebidos por os ter entregue a outrem (que nunca mais viu) e por falta de meios; e,
por outro lado, que o Sr. B também assumiu perante ele (autor) a responsabilidade pelo frustrar do negócio e que até lhe quis dar um terreno em pagamento,
também nos parece ser de considerar, passe a expressão, facto relativamente notório, que o réu só entregou os documentos ao autor por estar convicto da sua autenticidade, designadamente no que respeitava ao cancelamento da reserva de propriedade sobre o veículo e que, em momento algum, ao contrário do infundadamente, a todos os níveis, decidido, o réu percebeu e/ou soube que o documento de extinção da reserva de propriedade a favor do Banco X era forjado.
Obviamente que, ao contrário do decidido, não temos dúvidas de que o réu foi enganado. E por ter sido enganado e ter intervindo no negócio, seguramente apenas como mero representante, é que quis resolver o problema do autor e encetou as diligências referidas na douta sentença com vista ao seu ressarcimento.
A dado passo das suas declarações o autor afirmou que acreditou que o réu também tinha sido enganado, todavia, de seguida, como não teve interesse nos terrenos que o B lhe queria entregar para o ressarcir, já deixou de acreditar que ele também tinha sido enganado… Não é lógico nem razoável.”
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Posto isto,
Escutados o depoimento de parte do réu, as declarações de parte de ambas as partes (a partir de determinada altura do decurso do depoimento de parte, o réu passou a prestar declarações de parte a pedido do seu mandatário) e os depoimentos das testemunhas que, segundo a fundamentação da convicção do tribunal recorrido, tiveram relevo probatório, ou seja, solicitador, C e B, este tribunal de recurso, tendo presente as alegações do réu e a fundamentação da convicção da decisão recorrida, não tem dúvidas em dizer o seguinte sobre os pontos da decisão da matéria de facto que foram impugnados (que se transcrevem de modo a ser mais fácil a compreensão do que se dirá):
1.Em meados de Julho de 2013, o réu detinha as chaves e usava o veículo automóvel x de matricula x.
Se o réu andou com o veículo pelo menos duas vezes, como ele o admite no depoimento de parte e resulta do depoimento das testemunhas C (do autor) e B (do réu), é evidente que as afirmações de facto aqui em causa estão provadas. E é de afirmações de facto que aí se trata e não de direito ou de construções jurídicas.
Daqui resulta que o réu não tem razão em impugnar a decisão da matéria de facto nesta parte.
O réu fá-lo, no entanto, em primeiro lugar com base no entendimento de que nunca se fez passar por efectivo proprietário do veículo. E para o efeito transcreve algumas das declarações de parte de autor e réu.
Quanto às declarações de parte do réu, este incorre desde logo no equívoco de tomar as passagens que transcreve das suas declarações como se fossem “assunção de factos”, isto é, como se o réu estivesse a confessar… factos favoráveis. Mas não é assim, essas passagens do réu são antes tentativa de convencer de factos favoráveis sem que invoque o mínimo de corroboração por qualquer outro elemento de prova (repare-se que o réu não faz referência concreta a qualquer outro elemento de prova).
Ora, as declarações de parte são prova subsidiária, complemento de outras provas: “a valoração da declaração favorável do interrogado funciona nos apertados limites duma prova subsidiária”, no sentido de que tem a ver com a situação em que “os outros meios de prova disponíveis não possibilitaram ao juiz a formação da sua convicção”, ou seja, pressupõe a existência de outros meios de prova, isto é, “funciona quando não haja outros elementos de clarificação do resultado das provas produzidas” e nunca como o único elemento de prova dos factos favoráveis (é a posição que se retira do que foi escrito por Lebre de Freitas, em A acção declarativa, citada, pág. 278 e nota 11 da pág. 259; na ROA, 1990, II, pág. 750, como relator do parecer da comissão de legislação da AO sob o projecto de CPC, e na tese de doutoramento, A confissão no direito probatório, de 1991, Coimbra Editora, págs. 241/242, nota 15; neste sentido, com outros elementos doutrinários e jurisprudenciais, veja-se o ac. do TRP de 10/09/2015, 6615/11.4TBVNG.P1, não publicado na base de dados do TRP/IGFEJ mas consultável agora em http://outrosacordaostrp.com):
Mas, para além disso, as passagens transcritas, das declarações do réu, em nada põem em causa aquilo que se considerou como prova desta afirmação de facto sob o ponto 1.
O que aliás também sucede com as quatro breves referências que o réu faz às declarações de parte do autor – entre elas uma passagem que o réu cita por quatro vezes: o autor disse que nos primeiros tempos estava ‘consciente’ [= pensou] que o réu também tinha sido enganado (19:29 a 20:25 da gravação) – que não têm, obviamente, nada a ver com o ponto 1 dos factos provados.
Quanto à 3ª passagem das declarações de parte do autor acrescente–se que ela está manifestamente mal interpretada pelo réu: quando o autor diz que ‘não…, claro que não tinha nada a ver’ não se está a referir ao réu e ao veículo, mas sim a uma hipótese que lhe foi colocada pelo advogado do réu em que do registo não constasse o nome do advogado do réu quanto a um veículo que ele, advogado do réu, lhe propusesse vender… (21:02 a 21:55).
Quanto à 4ª passagem, a “da candura do autor”, acrescente-se que, para além de o dito do autor se referir à fase posterior ao negócio, trata-se de mais outra errada interpretação daquilo que o autor está a dizer e que deve ser interpretado de acordo com aquilo que se sabe acontecer normalmente e que é o facto de os compradores habituais de veículos para revenda não registarem os veículos que compram em nome deles de modo a não aumentar, no registo, o número de proprietários anteriores do veículo, o que prejudicará o respectivo preço de revenda. Aliás, a testemunha B, do réu, também respondeu espontaneamente que ele também não perguntaria ao réu de quem é que era o veículo, embora depois, a novas perguntas do advogado do réu, tenha mudado a resposta…
Note-se aqui que, incoerentemente com a crítica que o réu faz à fundamentação da sentença, ele, ao fazer as alegações de recurso e ao fazer referências concretas às declarações de parte do autor e às suas, não as liga especificamente a cada um dos factos cuja decisão impugna (a partir de agora só se farão outras referências às declarações de parte, quanto aos outros pontos de facto, se e quando tal se revelar necessário).
Outra das bases da argumentação do réu, também indistintamente feita, como se dissesse respeito a todos os pontos impugnados, tem a ver com o facto de ele, segundo diz, nunca ter dado indicação alguma de que o veículo era sua propriedade; o que invoca a par e passo com a questão do registo: se o veículo estava registado em nome de outrem, o veículo não podia ser dele.
Mas isto são as tais construções jurídicas constantemente misturadas com a apreciação da prova produzida, o que não deve acontecer. Para além disso, o réu parte de um princípio errado: não há em toda a petição inicial qualquer afirmação de que o réu tivesse dito que era o proprietário do veículo (no art. 9 imputa-se tal afirmação à testemunha C não ao réu), nem a acção se baseia no facto de o réu ter dito que o veículo era dele. E quanto à questão do registo, a mesma já foi explicada.
2.Utilizando-o no seu próprio interesse e benefício.
Como ninguém disse o que aí constava e não há outra prova da afirmação (tanto que a fundamentação da convicção do tribunal recorrido nada refere no sentido da prova deste facto), não se pode dar a mesma como provada.
3.À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
Assim resulta do depoimento das testemunhas C e B e do próprio depoimento de parte do réu – já que nenhum deles disse que o réu estava a conduzir o veículo às escondidas ou com a oposição de alguém que o tivesse visto fazê-lo.
4. Comportando-se como se fosse o único dono.
A testemunha C (do autor) contou que o réu disse enquanto estava no stand X que o veículo era de um indivíduo que ia para o estrangeiro, logo não se pode dizer que o réu se tenha comportado como se fosse dono do veículo. A fundamentação da convicção do tribunal recorrido não diz nada em concreto de contrário.
5. Por todos os que o conheciam sendo considerado o único dono.
Resulta do que já se disse relativamente a 4 que não se pode dar este facto como provado.
6. Em Julho de 2013 o réu decidiu vender o veículo.
O próprio réu o admitiu de imediato à pergunta feita sobre o assunto pela Srª juíza no depoimento de parte. É certo que, depois, a instâncias do advogado do réu, o réu depôs de forma a retomar a lógica do que constava da contestação, mas o que fica é a resposta espontânea do réu confirmando o facto. O que, deixando de lado, para já, as construções jurídicas, está na lógica dos restantes factos: se o réu está a vender é evidente que o faz na base da decisão de o vender. E, neste sentido, o facto – a afirmação de facto – também resulta provado pelo depoimento das testemunhas C e B.
Aqui o réu volta de novo a argumentar com o facto de nunca ter dito que o veículo era sua propriedade, argumento que já acima foi apreciado.
7.Publicitando a sua decisão de vender através de amigos e conhecidos.
Se o réu vai ao stand X e diz a este, de modo a ser ouvido pela testemunha C, que quer vender o veículo, e isto é dito por ele próprio e relatado pela testemunha está-se aqui perante a confissão (por ele) da afirmação de facto em causa e perante a prova testemunhal dessa confissão (pela testemunha). Aliás, veja-se que o réu não põe em causa o ponto 8 dos factos provados (: O réu solicitou a C, seu conhecido e amigo, que lhe arranjasse interessado para aquisição do veículo), o que seria prova suficiente do ponto sob 7.
11.O réu garantiu ao autor que o valor que a reserva de propriedade garantia estava totalmente liquidado.
Na lógica da pretensão de venda de um veículo cuja propriedade estava reservada para outrem em garantia de dívida e em que este facto entra em análise nas negociações entre autor e réu e é exibido pelo réu o documento de extinção da dívida, é evidente (decorre desde logo das regras da lógica e da experiência comum das coisas) que está provado que o réu disse – já não que tenha garantido (esta parte ninguém o disse) – ao autor que o valor que a reserva de propriedade garantia estava totalmente liquidado. A prova do facto resulta, dentro desta lógica, do depoimento de parte do réu mas também do depoimento da testemunha solicitador a quem os documentos foram entregues pelo réu na presença do autor.
12. E que facultaria todos os documentos necessários para cancelar a reserva de propriedade, emitidos pelo Banco X, que exibiu ao autor.
Isto resulta do que já se disse a propósito de 11; as duas afirmações complementam-se.
13.E o autor só aceitou concretizar o negócio porque acreditou nas afirmações referidas em 11 e 12 e no que os documentos referidos em F) atestavam.
Isto é evidente – resulta das regras da experiência comum das coisas face ao que consta de 11 e 12 e dos restantes factos provados – e o próprio réu o admite nas alegações de recurso, chamando-lhe facto notório (embora com referência a 15)
14. Ao exibir e entregar ao autor os documentos referidos em F), o réu não só sabia que os mesmos eram forjados, como sabia que os mesmos tinham convencido o autor a comprar, por acreditar, erroneamente, que o veículo estava livre de encargos.
Tirando as afirmações – que não foram feitas por ninguém – de que o réu sabia que os documentos eram forjados e que o autor estava errado ao acreditar que o veículo estava livre de encargos, o resto – isto é: Ao exibir e entregar ao autor os documentos referidos em F), o réu sabia que os mesmos tinham convencido o autor a comprar por acreditar que o veículo estava livre de encargos – resulta provado pelas regras da experiência comum das coisas, conjugado com a admissão, pelo réu, no depoimento de parte, de que mostrou os documentos, o que também resulta do depoimento do solicitador (a quem foram entregues, pelo réu na presença do autor): quem vê aqueles documentos, com aquele sentido, compra precisamente por ficar convencido que eles representam a realidade, excepto se tivesse sido feito prova do contrário. E quem os mostra, mostra-os precisamente com esse fim.
15.O réu sabia que o autor só celebrou o negócio de aquisição do veículo por estar convicto da veracidade dos documentos para cancelamento da reserva de propriedade.
A prova disto já resulta do que se disse a propósito de 14; aliás, o réu confessou o facto em depoimento de parte. E, apesar de o impugnar formalmente aqui, a verdade é que afirma que o facto é notório (último § da pág. 7 do recurso)
Em suma,
Os pontos 1, 3, 6, 7, 12, 13 e 15 são mantidos sem alteração.
Os pontos 2, 4 e 5 são eliminados.
O ponto 11 passa a ter a seguinte redacção: O réu disse ao autor que o valor que a reserva de propriedade garantia estava totalmente liquidado.
O ponto 14 passa a ter a seguinte redacção: Ao exibir e entregar ao autor os documentos referidos em F), o réu sabia que os mesmos tinham convencido o autor a comprar por acreditar que o veículo estava livre de encargos.
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Do recurso sobre matéria de direito
Anulação por erro qualificado por dolo e por erro simples
Face à alteração dos factos, ou mais precisamente face à alteração do ponto 14 dos factos provados – ficando pois, agora, afastada a prova de que o réu sabia que os documentos eram forjados e que o autor estava errado ao acreditar que o veículo estava livre de encargos -, já não é possível concluir pelo dolo do réu, isto é que ele tenha empregado sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir em erro o autor (art. 253/1 do CC).
O afastamento do dolo, no entanto, não tem consequências quanto à decretada anulação do contrato por erro. Este deixa de ser um erro qualificado, por dolo, mas permanece um erro, erro simples (art. 251 do CC), que também conduz à anulação da declaração (art. 247 do CC), verificados que sejam os demais requisitos legais da anulabilidade (art. 905 do CC). O pedido é de anulação do contrato e a decisão é de anulação do contrato, por isso não se cai fora do pedido. E a causa de pedir, erro qualificado, engloba a causa de pedir erro simples.
Os requisitos legais da anulabilidade do erro que atinga os motivos determinantes da vontade, referido ao objecto do negócio da compra e venda (que é o caso dos autos), são as condições gerais da relevância do erro, ou seja, a essencialidade do erro e a propriedade, e a condição especial da cognoscibilidade, para o declaratário/vendedor, da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro do declarante/comprador (arts. 251 e 247 do CC – Mota Pinto, TGDC, 4ª edição por Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, págs. 507 a 512, 516 a 518 e 494; Calvão da Silva, Compra e venda de coisas defeituosas, Almedina, 2001, pág. 32, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de compra e venda, Almedina, 2007, págs. 246 e 247).
O erro é essencial: trata-se de um erro (a convicção de que o veículo estava livre da reserva de propriedade) que levou o comprador a concluir o negócio em si e não apenas nos termos em que foi concluído (pontos 13 e 14 dos factos provados).
É próprio, no sentido de que “incide sobre uma circunstância que não [é] a verificação de qualquer elemento legal da validade do negócio” (Mota Pinto, obra citada, pág. 509).
E o réu/vendedor sabia que, para o comprador, era essencial o elemento sobre que incidiu o erro (pontos 14 e 15 dos factos provados), ou seja, a ausência da reserva: o réu sabia que o autor só comprou o carro por estar convencido de que estava livre da reserva.
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Exclusão da indemnização
Mas a ausência de prova do dolo tem pelo menos a consequência de retirar ao autor o direito de indemnização.
Para além do dolo, o autor não invocava factos reportados a outra forma de culpa (= negligência) do réu. Vício da vontade provocado por erro simples não é a mesma coisa que erro provocado por negligência.
Não havendo culpa não há obrigação de indemnizar (art. 483 do CC).
É certo que no regime da venda de bens onerados existe uma norma específica que atribui direito de indemnização sem culpa, ou seja, uma responsabilidade objectiva, que é a do art. 909 do CC.
Mas sendo uma responsabilidade objectiva (a questão vem tratada, por exemplo, em Nuno Manuel Pinto Oliveira, obra citada, págs. 250 a 261, com inúmeros elementos doutrinários), sem prova de culpa – efectiva ou presumida – não se justificaria que, com base nos factos correspondentes (na actuação objectivamente considerada do vendedor que não se pode dizer negligente ou dolosa) se atribuísse uma indemnização por danos não patrimoniais eventualmente emergentes daqueles factos, nem que fosse por aplicação, por maioria de razão, do art. 494 do CC.
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Da representação
O réu, no entanto, quer ser totalmente absolvido com base nas conclusões 13 a 15 (que no essencial são iguais ao corpo das alegações), em contradição, diga-se desde já, com a forma como apresentou a sua pretensão neste recurso.
Ou seja, se nesta fala em representação sem poderes, já nas conclusões quer que se repercutam em terceiro – que o réu não sabe quem será… – os actos que praticou…
A repercussão da prática de determinados actos na esfera jurídico–patrimonial de outrem pressupõe, para além do mais, que estes foram praticados por quem é seu representante (art. 258 do CC). Se se admite que não se tem poderes de representação, não se pode pretender a transferência automática (isto é, sem dependência do disposto no art. 1181 do CC) da eficácia dos autos para a esfera de outrem (art. 268/1 do CC).
De qualquer modo, nos autos não se provou qualquer actuação em nome de outrem, que, aliás, o réu, não alegava (veja-se a síntese da contestação feita no relatório deste acórdão).
O facto de o veículo estar registado em nome de terceiro, que não o réu, não torna o réu representante (mesmo que aparente) desse terceiro (que, segundo resulta das conclusões do recurso, o réu também não sabe quem seja… o que torna ainda mais surpreendente toda a argumentação: como é que alguém diz que está a representar outrem sem saber quem é esse outrem? O réu é representante de seja quem for que esteja registado como proprietário? A representação resulta de quê?).
E isso, para além de mais (que resulta do que já antecede), também porque a venda de veículos automóveis pode ser feita verbalmente (art. 219 do CC, já que não existe qualquer norma que obrigue a formalização por escrito) e por isso nada tem de estranho que alguém esteja a vender veículos que não se encontrem em seu nome, simplesmente invocando que comprou a outrem, sem necessidade de exibir qualquer documento de prova nesse sentido.
O réu vendeu um bem ao autor e foi accionado por este na qualidade de vendedor, qualidade que o réu não negava nem nega, embora até possa pensar que está a negar, mas não nega como se vê ao invocar a representação sem poderes (embora na contestação falasse em intermediação).
Não se provando a actuação em nome de outrem, os actos não se repercutem em terceiro, mas apenas no réu (para além das normas já citadas e em coerência com elas, veja-se ainda o art. 1180 do CC: O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes). É o réu a parte contratual do autor, pelo que é o réu que tem de sofrer as consequências da anulação do contrato.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se as alíneas e), h) e j) da decisão recorrida e mantendo-se o restante.
Custas, quer do recurso quer da acção, pelo autor em 23,08% e pelo réu em 76,92%.
Porto, 07/04/2016.
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto (com a seguinte declaração de voto:)
Voto a decisão e a sua fundamentação com a única ressalva que se segue.
Concordo que por regra as declarações de parte não devem ser consideradas suficientes para o tribunal julgar provados factos favoráveis à parte declarante cujo único meio de prova sejam as declarações da própria parte.
Todavia, entendo que não existe norma legal nem princípio jurídico de direito probatório material que exclua este meio de prova ao princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal. Decorre deste princípio que é ao tribunal que cabe decidir, caso a caso, se a prova por declarações de parte é suficiente ou se era exigível outro meio de prova para corroborar o facto declarado pela parte.
Se o facto possuir verosimilhança interna (constituir resultado provável do processo causal demonstrado) e externa (surgir como muito provável no contexto dos demais factos apurados), se a parte não tiver acesso fácil ou não tiver mesmo acesso a outros meios de prova (designadamente porque foi a única pessoa a presenciar o facto – vg. assistente que é a única testemunha do crime cometido pelo arguido – ou as outras pessoas que o testemunharam estão ausentes ou falecidas ou porque desapareceu o documento que o comprovava), se o reconhecimento do direito não estiver exclusivamente dependente desse facto (porque se refere apenas a um dos seus vários pressupostos, estando os demais comprovados por vários meios de prova) e se a parte possuir credibilidade, denotar sinceridade e aparentar razão de ciência (porque, por exemplo, todas as suas demais declarações estão largamente corroboradas por outros meios de prova) creio que as suas declarações poderão – e em muitos casos deverão – aproveitar-se para julgar provado um facto que lhe é favorável, mesmo que não exista outro meio de prova.
A mera circunstância de a parte ter interesse na demonstração dos factos que constituem o pressuposto do direito que reclama na acção não significa que a parte seja desonesta, perca credibilidade ou esteja desprovida de razão de ciência. Caberá ao tribunal, aquando da formação da sua convicção, apreciar esses aspectos e decidir sobre a (in)suficiência do meio de prova das declarações de parte.
Se o legislador pretendesse impor a restrição assinalada no texto do Acórdão, designadamente por razões de segurança jurídica, como a restrição ao princípio da livre apreciação da prova no caso da prova documental, cremos que devia tê-lo consignado de forma expressa no texto da lei. A consagração dessa restrição apenas por considerações dogmáticas ou conceituais representa, a nosso ver, e com todo o devido respeito por posição diversa, uma violação do direito da parte à prova.