Acção 779/14.2TBVFR.P1 – Feira, 4ª secção de família e menores – J1
Sumário:
Se o autor está mais de 6 meses (seja qual for o dia de início do prazo) sem praticar um acto que o tribunal o notificou para praticar (esclarecer se realmente os réus moravam na morada por ele indicada, que era a mesma do autor e para onde tinham sido remetidas as cartas para citação, tendo ele próprio sugerido que as cartas para citação lhe tinham sido entregues a ele e não aos réus) e que era necessário ao prosseguimento do processo, a falta de andamento é-lhe imputável a título, pelo menos, de negligência, e por isso a instância foi bem julgada deserta por falta de impulso processual do autor (art. 281/1 do CPC).
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, dando-se como tendo residência profissional em X, França, intentou uma acção de impugnação/investigação de paternidade contra três réus, sendo os dois últimos GST e MFPT, ambos maiores e dados por ele como residentes também em X, França.
Foi enviada carta registada com aviso de recepção para citação destes réus, tendo o a/r do primeiro (GST) vindo com uma rubrica onde apenas se lê T e sem menção se tinha sido entregou ao destinatário ou a outra pessoa, e o a/r do segundo (MFPT) veio com uma rubrica ilegível e a menção de que tinha sido entregue ao destinatário e um número de identificação que não parece português.
Estes réus não contestaram, não constituíram mandatário nem intervieram de qualquer forma no processo.
A 01/10/2014 uma carta (fls. 32) aparentemente do autor veio informar que este estava a receber correio (ver anexos [fls. 33 e 34 – trata-se das cartas acimas referidas enviadas pelo tribunal para citação daqueles réus]) que lhe dizia respeito mas cujo destinatário ia errado, pelo que agradecia que de futuro a sua correspondência lhe fosse devidamente endereçada, pois estava sujeito a que ela não lhe fosse remetida pelos correios.
A 27/11/2014 foi proferido o seguinte despacho, na parte que ora importa:
“Compulsados os autos (nomeadamente a PI e o teor de fls. 32 a 34), deles parece resultar que a morada dos 2º e 3º réus é a mesma do próprio autor.
Acresce que os ar´s de citação destes dois réus não se mostram, aparentemente, assinados pelos próprios.
Admite-se, pois, a existência de lapso nesta matéria.
Assim, para apurar da necessidade de repetir as citações destes réus, com cópia de fls. 32 e 34, notifique o ilustre mandatário do autor para, no prazo de 10 dias, esclarecer se os referidos réus vivem, ou não, na mesma casa do autor (morada indicada na PI), na negativa onde vivem.”
Este despacho, com as cópias referidas foi notificado através de carta elaborada a 01/12/2014.
Como nada foi entretanto junto, a 28/05/2015 foi proferido o seguinte despacho:
“Ao autor compete responder aos pedidos do tribunal com vista ao andamento do processo. O autor, face à notificação que lhe foi feita, não se dignou a responder. Assim, aguardem os autos que o autor preste os esclarecimentos solicitados, sem prejuízo do disposto no art. 281/1 do nCPC. Notifique.”
Este despacho foi notificado por carta elaborada a 29/05/2015.
Como nada entretanto foi junto, a 22/01/2016 foi proferido o seguinte despacho:
“Atenta a inacção do autor, ao abrigo do disposto no art. 281/1 do nCPC, declaro deserta a instância. Valor da acção: 30.000,01€. Custas a cargo do autor, que deu impulso processual aos autos. Notifique, nomeadamente o autor para os termos do art. 15/2 do RCP.”
Este despacho foi notificado por carta elaborada a 22/01/2016.
A 29/02/2016, o autor veio interpor recurso deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
[…]
2º. Na […] petição [inicial] o autor identificou-se a si próprio e aos réus, indicando o nome completo, estado civil e residência.
3º. Da mesma forma o autor indicou/preencheu no formulário electrónico anexo à petição a correta e completa identificação dos réus, conforme decorre do n.º 1 e 2 do art.º 6 da portaria 280/2013.
4º. Atenta tal identificação, a secretaria procedeu à citação dos réus, os quais receberam as citações nas moradas indicadas, encontrando-se todos citados.
5º. A 1ª ré contestou a acção, não tendo invocado excepção dilatória de falta de identificação dos réus.
6º. Em 2/12/2014, é o mandatário do autor notificado para esclarecer “…se os últimos réus vivem ou não na mesma casa do autor…”.
7º. Nessa sequência é proferido o despacho de que ora se recorre […].
8º. A questão a decidir e que constitui objecto do presente recurso prende-se em saber se, no âmbito do processo em questão e atenta a falta de resposta do autor, podia a Srª juiz julgar deserta a instância. Julgamos que não.
9º. In casu é certo que o processo esteve parado mais de seis meses, contudo não se encontra cumprido o requisito da negligência da parte.
10º. […N]ão poderá ser ao autor assacada essa conduta criticável, negligente, prevista no referido dispositivo legal, pois que este, identificou os réus e indicou a sua morada, tendo os mesmos recebido a citação, na morada indicada.
11º. Nem tal omissão poderá ser considerada como impeditiva do normal andamento do processo.
12º. Aliás se o facto de a morada dos réus ser a mesma do autor e, tal facto ter suscitado, estranheza à Srª juiz, tinha a mesma os meios ao seu dispor para dissipar qualquer dúvida e, nomeadamente, o recurso oficioso à base de dados civil ou outra, por forma a obter a confirmação da morada dos réus.
[…]
14º. Por todo o exposto, verifica-se assim que mal andou o tribunal a quo, em clara violação do disposto no art. 281 do CPC.
15º. Devendo, por isso, ser revogada a sentença recorrida, substituindo-a por outra que determine a procedência da instância, seguindo os seus termos ulteriores até final.
A 1ª ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
A Srª juíza pronunciou-se sobre as alegações do recurso, sem que exista base legal para o efeito, pelo que esta “pronúncia” não será tida em conta.
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Questão que importa decidir: se a acção não devia ter sido julgada deserta nos termos do art. 281/1 do CPC; ou, dito de outro modo, se a falta de andamento do processo é ou não imputável a negligência do autor.
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Os factos que interessam a esta decisão constam do relatório que antecede.
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Diz o art. 281 do CPC, na parte que importa, que: 1: […] considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. Acrescenta o n.º 4: A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.
Por norma, o impulso processual, no decorrer do processo, não incumbe às partes, como decorre do art. 6/1 do CPC, pois que, para o efeito, terá de haver alguma norma que imponha esse impulso.
Isto é, como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, 2014, pág. 22, só excepcionalmente cabe às partes o ónus de impulso processual subsequente. O autor não tem constantemente de impulsionar o desenvolvimento do processo, ideia contrária à anteriormente defendida na prática dos tribunais.
Por isso, é normalmente ao juiz que cumpre dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção.
Mas, por isso mesmo, se o juiz, ao abrigo dos arts. 6/1 e 417/4 do CPC, determinar a prática de algum acto pela parte e ela não recorrer de tal despacho, ela passa a ter de praticar o acto. Ela passa pois a ter, até mais que um ónus, o dever (art. 417/1 do CPC) de praticar um acto para o prosseguimento do processo ou que condiciona o andamento deste. Dever que é também um ónus se a parte estiver interessada no andamento do processo.
Posto isto,
No caso dos autos não está em causa o desconhecimento formal da morada dos 2º e 3º réus, fornecido pelo autor, sendo por isso irrelevantes as conclusões do recurso que têm a ver com isso.
Está, sim, em causa a estranheza provocada pelo facto de (i) estes dois réus terem sido dados como residentes na mesma morada do autor, (ii) os a/r das cartas enviadas para citação deles não darem quaisquer certezas de os réus as terem recebido e (iii) aparentemente o próprio autor, residente naquela morada, ter vindo aos autos informar que tinha recebido aquelas “que lhe dizia[m] respeito[,] mas cujo destinatário ia errado”, o que, apesar do erro em que o autor incorre, sugere fortemente que as cartas enviadas para citação daqueles réus foram recebidas pelo autor ou por pessoa a si ligada e não pelos réus e que as cartas não foram, depois, entregues a estes.
Por fim, os réus não contestaram, não constituíram mandatário, nem intervieram de qualquer forma no processo.
Tudo isto obrigava (art. 566 do CPC) o tribunal recorrido a averiguar a regularidade da citação destes réus, isto é, a verificar se a citação tinha sido feita com as formalidades legais e a ordenar a sua repetição se encontrasse irregularidades.
Diziam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (CPC anotado, vol.º 2.º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 289, com referência à redacção da norma equivalente a esta no CPC na redacção anterior à reforma de 2013, art. 483) que “o juiz tem o dever de verificar se a citação foi regularmente feita, tendo-se nela respeitado todas as formalidades legais. […] Não se distingue aqui a falta […] e a nulidade […] da citação e, não obstante esta só ser, em regra, arguível pelo réu dentro do prazo indicado para a contestação […], o juiz pode, neste momento processual, dela conhecer oficiosamente, o que não deixa de representar alguma incongruência […], mas se impõe em salvaguarda do direito de defesa […].”
E, por tudo isto, nada importa para a questão, ao contrário do que entende o autor numa das conclusões do recurso, que a 1ª ré não tenha vindo levantar a questão da falta de citação destes réus, já que aquela não os representa, nem tem nada a ver com eles. A questão colocava-se oficiosamente ao juiz que a tinha de resolver, sem necessidade de qualquer “impulso processual” da 1ª ré.
Ora, o único modo que o tribunal tinha de esclarecer a situação era pedir informações à pessoa que tinha dado estes réus como residentes na sua morada, isto é, o autor.
Isto é, esta questão – estes réus moravam mesmo naquela morada, com o autor? – não podia ser esclarecida de nenhum outro modo, designadamente através da consulta da base de dados, ao contrário do que o autor sugere. Pois que, mesmo que nesta constasse alguma morada destes réus, a questão não ficaria esclarecida.
Repare-se: não se tratava de averiguar a morada para citação destes réus, mas sim de averiguar se a morada dada pelo autor, como morada dos réus e onde formalmente eles tinham sido citados, era de facto a morada destes réus. Se sim, eles já tinham sido citados [embora relativamente ao réu Guilherme se levantassem questões adicionais, já que o a/r retornou sem menção de ter sido entregue ao destinatário, pelo que ainda se teria que dar cumprimento ao disposto no art. 233/2 do CPC] e não o podiam ser de novo, para outra morada que constasse da base de dados.
Portanto, para que os autos pudessem prosseguir, o autor tinha que esclarecer a dúvida do tribunal.
Recusando-se, na prática, a fazê-lo, durante mais de um ano – de 04/12/2014 a 22/01/2016 – actuou, pelo menos com negligência, que não pode deixar de ser considerada consciente, por estar representado por mandatário judicial, e por isso não poder deixar de saber da necessidade da prestação do esclarecimento que lhe era pedido (Miguel Teixeira de Sousa, no comentário ao ac. do TRP de 02/02/2015, publicado em 10/02/2015 sob jurisprudência 75 no blog do IPPC, lembra que “a falta de impulso poder ser, ela mesma, sinónima de negligência da parte.”)
Sendo isto suficiente, no entanto ainda acresce o facto de o autor ter sido notificado expressamente pelo tribunal de que os autos iam ficar a aguardar que prestasse os esclarecimentos solicitados, sem prejuízo do disposto no art. 281/1 do nCPC, isto é, foi alertado para a possível deserção da instância e apesar disso não fez nada.
Sabia que corria o risco da extinção da instância, por deserção (art. 277-c) do CPC), sabia o que era necessário fazer para o evitar, bastando prestar o esclarecimento pedido pelo juiz – esclarecimento que era necessário – e ainda esteve mais 6 meses sem o fazer e ainda hoje não o fez.
Tudo isto é mais do que suficiente para se poder concluir, sem qualquer dúvida, de que o processo só não anda há mais de um ano apenas por inércia imputável à esfera jurídica do autor.
E, por isso, quer se considere que o prazo de 6 meses do art. 281/1 se iniciou só com a notificação do despacho de 28/05/2015 com o qual o tribunal recorrido teve o cuidado de alertar a parte para a necessidade do impulso processual do autor, ao referir implicitamente a possibilidade da deserção da instância, quer se considere que o prazo se iniciou logo com a notificação do despacho de 27/11/2014, em 22/01/2016 já há muito estava decorrido o prazo de deserção da instância (que não se suspende durante as férias judiciais, por ser de 6 meses: art. 138/1 do CPC) e, por isso, nada há a censurar ao tribunal recorrido. O autor só dele próprio se pode queixar.
(a necessidade do despacho prévio é defendida por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1º, Coimbra Editora, págs. 557; a possibilidade dele, é defendida por Ramos de Faria e Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao CPC, I, Almedina, 2013, pág. 250, n.º 1 da anotação ao art. 281, segundo referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre e Miguel Teixeira de Sousa; este Professor, em comentário ao ac. do TRP de 02/02/2015, 4178/12.2TBGDM.P1, que defende que o dever de prevenção que tinha apoio legal no art. 3 da Lei 41/2013, de 26/06, pode subsistir após o primeiro ano de vigência da reforma do CPC de 2013, já citado acima, lembra que, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes, haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção; e continua: “procurando exemplificar, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual; a desnecessidade do despacho de alerta é defendida pelo ac. do TRP de 28/10/2015, 2248/05.2TBSJM.P2)
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pelo autor.
Porto, 05/05/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto