Acção 1468/15.6T8PVZ – Póvoa de Varzim – Secção Cível – J1

            Sumário:

I. A obrigação da ré era uma obrigação sem prazo que, com a carta dos autores, ficou transformada numa obrigação com prazo certo (art. 805/2-a do CC); a ré, não cumprindo a sua obrigação nessa data, entrou apenas em mora (art. 804 do CC) e não em incumprimento definitivo (art. 808/1 do CC).

II. Não há decisões-surpresa se o tribunal se limita a ter um entendimento contrário ao das partes sobre a interpretação do mesmo conjunto de normas jurídicas.

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            A e A intentaram a presente acção contra R, Lda, dizendo que deve [sic] a) declarar-se resolvido o contrato de promessa outorgado entre as partes; b) condenar-se a ré a restituir aos autores o montante de sinal em dobro no valor de 25.000€, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação e até integral pagamento; c) reconhecer-se o direito de retenção dos autores sobre o imóvel identificado.                         

            Devidamente citada, a ré não contestou, pelo que foram considerados “confessados” (melhor: provados por admissão) os factos alegados pelos autores, nos termos do art. 567/1 do CPC e foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do mesmo normativo. Os autores prescindiram expressamente das alegações.

            Cinco dias depois, os autores apresentaram um aditamento ao contrato promessa – o que deu origem ao facto 15 referido abaixo -, em relação ao qual o tribunal ordenou “o cumprimento do contraditório”, tendo sido então enviada uma carta para a ré, para a mesma morada onde tinha sido citada (carta esta que veio devolvida, com o motivo ‘não atendeu’).

            Cerca de um mês depois, os autores ainda vieram requerer a rectificação de um erro de escrita, relativo ao mês que consta do facto 12 (referido abaixo).

            Foi depois proferida sentença que julgou a acção improcedente.

            Os autores recorrem desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

         I – […] a sentença […] considerou improcedente a acção […], por considerar, em síntese, que dos factos dados como provados, não resulta qualquer incumprimento definitivo do contrato promessa, outorgado, porquanto, a carta registada com a/r, que os autores enviaram à ré, a 18/02/2014, em que indicam dia, hora e local para a realização da escritura publica de compra e venda “… mais não seria do que a conclusão do contrato tal como estipulado pelas partes. Pelo que não configurava interpelação admonitória capaz de transformar a mora em incumprimento definitivo – nos termos preceituados no art. 808 do CC”

         II/III/IV – […O] tribunal a quo, ao proferir a referida sentença, violou […] o disposto nos arts. 805/1 e 808/1 do CC, porquanto e pese embora não tenha sido fixado no contrato promessa outorgado prazo para a celebração do contrato prometido, tendo as partes apenas […], estipulado uma obrigação pura ou sem prazo, o certo é que o cumprimento de tais obrigações, é exigido por via da interpelação, a qual pode ser feita judicial ou extrajudicialmente, constituindo-se o devedor a partir desse momento, caso não cumpra, em mora, tal como preconiza o art. 805/1 do CC.

         V – No caso dos autos, deu-se como provado que os autores por diversas vezes interpelaram verbalmente a ré para que outorgasse a escritura pública (cfr. pt. 7 dos factos assentes), podendo e devendo tais interpelações verbais, ser consideradas como suficientes, para que se verifique o vencimento da obrigação, incorrendo a ré em mora, tal como consignado no supra referido normativo. Com efeito, e

         VI – Como refere Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, págs 251 e 253“ Interpelação é o acto pelo qual o credor comunica ao devedor a sua vontade de receber a prestação, é por outras palavras, a reclamação de cumprimento dirigida pelo primeiro ao segundo… A interpelação pode revestir carácter judicial ou extrajudicial (art. 805/1), acrescentando ainda “quanto à interpelação extrajudicial, pode o credor fazê-la de qualquer modo, verbalmente ou por escrito.”

         VII – Regressando ao caso dos autos, constata-se que ambas as partes, tinham simultaneamente a qualidade de credores e devedores, uma vez que qualquer uma delas podia exigir à outra, o cumprimento da obrigação, outorga da escritura. Assim os autores na qualidade de credores da obrigação, interpelaram a ré para cumprir, ao que esta se recusou, tal como considerado provado pela sentença proferida.

         VIII – Note-se que os autores, ainda no âmbito dos factos dados como provados, efectuaram não um, mas vários pedidos/interpelações verbais à ré,  que mesmo assim não cumpriu, ou seja, deu–se como provada a existência de sucessivas interpelações para cumprimento, razão pela qual, a ré já se encontrava em mora em momento anterior ao da recepção da missiva dos autos.

         IX – Após estes factos, os autores, através da carta registada com a/r, que enviaram à ré a 18/02/2014 (cfr. doc. n.º 4 junto com a PI e pt. 8 dos factos assentes), não só lhe fixaram novo prazo para cumprir a obrigação a que estava adstrita – outorga do contrato prometido, mas também realizaram a interpelação admonitória, como decorre do teor do escrito, considerando as anteriores interpelações verbais para a outorga de escritura e cuja existência se deu como provada. De facto

         X – Da referida carta, decorria, ainda, a cominação de que a mora se converteria em incumprimento definitivo (interpelação admonitória – art. 808/1 do CC), dado referir expressamente que: Mais informo que na falta de comparência à referida escritura será considerado como definitivamente incumprido o contrato. Na verdade

         XI – A missiva enviada pelos autores a 18/02/2014, reunia e reúne, todos os elementos que segundo a doutrina e a jurisprudência caracterizam a interpelação admonitória; a saber: i) intimação formal ao devedor para que cumpra a sua obrigação; ii) dentro de certo prazo determinado; iii) sob pena de se considerar o seu incumprimento como definitivo (vide neste sentido Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, 382; e ainda ac. do STJ, de 20/05/2010, proc. 1847/05.TBVIS.C1, disponível in www.dgsi.pt).

         XII – Todos os supra referidos elementos, estão presentes na carta enviada pelos autores, uma vez que não só indica cartório, dia, data e hora onde vai ser celebrada a escritura publica de compra e venda do imóvel, intimando assim a ré a cumprir a obrigação, dentro de prazo certo e determinado; mas também

         XIII – Refere expressamente, para que não restem duvidas, que a falta de comparência da ré na data designada “…será considerado como definitivamente incumprido o contrato.” Desta forma

         XIV – A ré, ao não comparecer na data e hora aprazada – 10/03/2014 pelas 15h (cfr. pt. 9 dos factos assentes), para a outorga da escritura pública de compra e venda do imóvel, estava plenamente ciente de que a sua falta determinaria a conversão da mora, em incumprimento definitivo. Efectivamente

         XV – Não há nada na lei que obste a que a interpelação extra- judicial para cumprimento, a que se refere o art. 805 do CC e a interpelação admonitória a que se refere o art. 808/1 do mesmo diploma, sejam feitas em simultâneo, numa única missiva/comunicação, como ocorreu no caso sub iudice; conquanto, a interpelação seja efectuada com a indicação de um prazo razoável para o cumprimento do contrato, sendo certo que essa interpelação escrita, é a ultima, na sequência de outras que já haviam sido feitas verbalmente, tal como se considerou provado – cfr. pt. 7 dos factos provados.

         XVI – Não é assim, atentatório da lei nem do principio fundamental da boa fé – art. 762 do CC, que numa mesma missiva/comunicação se cumulem interpelação extrajudicial para cumprimento, e a interpelação admonitória na medida em que seja fixado nesta um prazo razoável para o cumprimento, encontrando-se assim a ré, perante as razões supra aduzidas, numa situação de incumprimento definitivo e não de mora, o que possibilita aos autores resolverem, o contrato promessa outorgado, com as consequências legais que dai advêm.

         XVII – Mas mais relevante, é ainda o reconhecimento, por parte da própria ré que incorreu em incumprimento definitivo do contrato, uma vez que regularmente citada, não apresentou contestação, conformando-se, e confessando os factos alegados pelos autores, com relevo, para a existência das sucessivas e anteriores interpelações verbais extrajudiciais para cumprir o contrato e outorgar a escritura.

         XVIII – Saliente-se que a ré, para além de citada aquando da apresentação da PI; foi ainda notificada para se pronunciar acerca da junção aos autos do aditamento ao contrato promessa, celebrado em 17/07/2013 (requerimento ref.ª 21843022 e despacho proferido a 16/02/2016).

         XIX – Ainda assim a ré não apresentou qualquer resposta/ /defesa.

         XX – Por outro lado, na sentença proferida resultou também provado que a ré, para além de não comparecer na data aprazada para a celebração da escritura de compra e venda, também não designou novo dia para a outorgar, nem manifestou qualquer vontade de a outorgar, nem mesmo se opôs às pretensões deduzidas pelos autores (cfr. pt. 11 dos factos assentes).

         XXI – Não pode o tribunal a quo, substituir-se a ré, que nada alegou (confissão ficta), julgando improcedente a acção, por esta incorrer apenas em mora, quando é patente a sua recusa em não cumprir o contrato.

         XXII – A sentença violou também o princípio do contraditório, consagrado no art. 3 do CPC, violação cominada com nulidade – art. 195/1 do CPC.

         XXIII – Entre os princípios instrumentais do processo civil, ou seja aqueles que procuram optimizar os resultados do processo, encontra-se o principio da cooperação intersubjectiva, consagrado no art. 7 do CPC, de acordo com o qual as partes e o tribunal devem colaborar entre si na resolução do conflito de interesses. Por conseguinte

         XXIV – O tribunal está vinculado a um dever de colaboração com as partes, dever que se desdobra, entre outros, no dever de consulta; ou seja o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito, sobre a qual não tenham tido a oportunidade de se pronunciarem, evitando assim decisões surpresa. Dever, esse, que se encontra consagrado no art. 3, n.ºs 2 a 4 do CPC – principio do contraditório; e que se impõe nomeadamente quando o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente, daquela que é perspectivada pelas partes. Vide neste sentido Prof. Lebre de Freitas in CPC anotado, vol. 1, 1999, pág. 8.

         XXV – No caso sub iudice, o tribunal a quo, violou o principio do contraditório, ao julgar improcedente a acção intentada pelos autores, dado considerar que a carta registada com a/r, que aqueles enviaram, a intimar a ré, a celebrar o contrato prometido, constitui uma mera interpelação para cumprimento, e não uma interpelação admonitória apta a transformar a mora em incumprimento definitivo; sem todavia dar as partes, autores e ré, a oportunidade de se pronunciarem sobre tal questão, sendo certo que os autores não a invocaram/discutiram na PI; nem a mesma foi suscitada pela ré, que não apresentou contestação, nem era razoável presumir, perante a confissão dos factos pela ré, que a questão era controversa.

         XXVI – A violação do princípio do contraditório, constitui nos termos do disposto no art. 195/1 do CPC, uma nulidade processual, na medida em que se traduz na omissão de um acto imposto por lei. Tal nulidade, que expressamente se argui, pode ser suscitada por via recursória, uma vez que que se trata de nulidade coberta por decisão judicial (vide a este respeito, Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, 1984, reimpr., pág. 424; também Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 183, no mesmo sentido vide, ainda, ac. da Relação de Lisboa de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1, disponível in www.dgsi.pt).

         XXVII – Perante as razões acima explanadas, constata-se que o contrato promessa de compra e venda outorgado, foi definitivamente incumprido pela ré, atendendo ao vencimento da obrigação após os vários pedidos verbais formulados, dados como provados, reforçada pela interpelação admonitória efectuada pelos autores; pelo que lhes assiste o direito de que seja declarada a resolução do contrato, por incumprimento definitivo, e ainda o direito de lhes ser restituído em dobro, o montante do sinal prestado (acrescido de juros de mora), bem como lhes ser reconhecido direito de retenção sobre o imóvel, nos termos do disposto no art. 755/1-f do CC.”

            A ré não contra-alegou.

                                                      *

            Questões que importa decidir: se os factos provados impunham que se declarasse resolvido o contrato-promessa outorgado entre as partes, com a consequente condenação da ré a restituir aos autores o sinal em dobro com juros, tendo até lá os autores direito de retenção sobre o imóvel identificado; e se, ao decidir-se o contrário, tinha que ter sido dado oportunidade às partes de se pronunciarem sobre essa hipótese de decisão.          

                                                       *

            Foram dados como provados o seguintes factos com relevância para a decisão daquelas questões:

1. Por escrito particular, datado de 01/10/2012, os autores celebraram com a ré o contrato junto com a p. i., cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.

2. Através do acordo referido em 1 a ré prometeu vender aos autores, que por sua vez se comprometeram a comprar à ré, a fracção autónoma designada pela letra E, destinada a comércio, correspondente ao r/c no gaveto sul/nascente, sita na freguesia de x, x, constituída em regime de propriedade horizontal, descrita na CRP de x e inscrito a favor da ré sob o nº x e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 7373 da união das freguesias de x e x – doc. junto com a p.i., cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

3. Para a referida compra e venda foi estipulado o preço de 25.000€.

4. Na data de assinatura do referido acordo foi pago a título de sinal a quantia de 12.500€, de que a ré deu quitação.

5. A restante quantia seria paga aquando da celebração da escritura pública de compra e venda.

6. Nos termos do referido acordo, na sua cláusula terceira, “qualquer dos contraentes poderá proceder à marcação da escritura pública de compra e venda, do que deverá para o efeito avisar os outros do dia, hora e cartório onde esta se realizará, com oito dias de antecedência; contudo, a escritura em causa será outorgada até ao dia 31/12/2013, sob pena de, não sendo outorgada a presente escritura, ocorrer a caducidade do presente contrato, perdendo os promitentes compradores o sinal ora constituído”.

7. Não obstante os sucessivos pedidos verbais efectuados pelos autores, a ré foi protelando a realização da escritura pública.

8. Os autores, por carta registada com a/r, datada de 18/02/2014, interpelaram a ré, indicando dia, hora e local para a realização da escritura pública de compra e venda, nos termos que constam do documento n.º 4 junto com a petição inicial e que aqui se considera reproduzido para os devidos e legais efeitos [na carta era informado o que consta do ponto 9 a seguir, acrescentando-se, num outro parágrafo: “Mais informo que na falta de comparência à referida escritura será considerado como definitivamente incumprido o contrato.” – esta parte em parenteses recto foi acrescentada por este acórdão do TRP.]

9. A escritura pública de compra e venda da fracção que a ré prometera vender iria realizar-se no dia 10/03/2014, pelas 15h, no Cartório Notarial Privado de x, sito em x.

10. Na data referida em 8 a ré não compareceu, razão pela qual a referida escritura não se realizou.

11. Desde tal data e até ao presente, não foi, pela ré, designado novo dia para outorgar a escritura, e da mesma forma, não manifestou qualquer vontade de a outorgar.

12. Não obstante o disposto na cláusula 5ª do contrato promessa referido em 1, a ré entregou as chaves do imóvel aos autores em Janeiro de 2014.

13. Os autores em Abril de 2014 arrendaram imóvel à ré, mediante o pagamento da renda mensal de 150€, até presente data.

14. Os autores suportam a manutenção e conservação do imóvel em causa de forma exclusiva, exercendo a posse sobre o mesmo na convicção de que se trata de coisa sua, e com exclusão de outros, nunca tendo sido perturbados no exercício dessa sua posse, nem pela ré, nem por terceiros.

15. Ao referido contrato foi efectuado aditamento constante de fls. 47 – cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido [Cláusula 1ª Que por na presente data, a promitente vendedora, apesar de tal não suceder com os promitentes compradores, não se encontrar em condições de proceder à compra e venda da fracção objecto do contrato, acordam as partes alterar a redacção dada à cláusula terceira do contrato promessa de compra e venda que outorgaram, a qual passará a ter a seguinte redacção: 3ª: Qualquer dos contraentes poderá proceder à marcação da escritura pública de compra e venda, do que deverá para o efeito avisar os outros do dia, hora e cartório onde esta se realizará, com 8 dias de antecedência. Cláusula 2ª Que com a presente alteração, afastam qualquer caducidade do contrato promessa celebrado, não caducando este. Cláusula 3ª Em tudo o resto, manter-se-á o estipulado no contrato promessa outorgado. As partes declaram aceitar o presente documento nos seus precisos termos. X, 17/07/2013 – esta transcrição foi feita por este acórdão do TRP]

                                                       *

Da conversão da mora em incumprimento definitivo e da resolução do contrato

            Como os autores dizem, a sentença considerou a acção improcedente no essencial por entender que, no caso “não ocorreu incumprimento definitivo d[o] contrato [promessa], porquanto a carta registada enviada pelos autores à ré [facto 8], mais não seria do que a conclusão do contrato, tal como estipulado pelas partes. Pelo que, não configurava interpelação admonitória capaz de transformar a mora em incumprimento definitivo – nos termos preceituados no art. 808 do CC –[, pelo que] não ocorreu […] verdadeira interpelação admonitória – a conversão da simples mora em incumprimento definitivo do contrato.”

            O regime do incumprimento definitivo e da resolução do contrato, inclusive de contratos-promessa é, hoje em dia, no sistema jurídico português, alvo de entendimento uniforme, sem discrepâncias. E para situações não complexas, como a dos autos, o regime é simples e linear, podendo ser descrito – sem variantes que ao caso não interessam – do seguinte modo:

            Quando alguém está obrigado a cumprir uma obrigação, essa obrigação pode ter um prazo ou não (art. 777/1 do CC).

            Não tendo um prazo, a forma de determinação dele pode resultar ou não do contrato (art. 777/1, 1ª parte, do CC – de resto, ao contrário do suposto pelos autores, o cumprimento do contrato promessa não pode bastar-se com a simples interpelação, sendo necessário sempre um prazo; pelo que, se as partes não previrem a forma de ele ser determinado, ele teria de ser fixado nos termos do art. 777/2 do CC: Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 77).

            Se constar do contrato a forma de determinação, as partes têm de dar cumprimento ao estabelecido (art. 406 do CC).

            Determinado o prazo nos termos do contrato, o devedor da prestação terá de cumprir nesse prazo (art. 805/2-a do CC).  

            Se o obrigado, podendo cumprir, não cumpre na data fixada, entra em mora (art. 804 do CC).

            A mora pode vir a produzir naturalmente a perda do interesse do credor da obrigação, caso em que se converte em incumprimento definitivo. Ou então, o credor pode fixar um prazo suplementar ao devedor para cumprir e, se este não o fizer no prazo suplementar, a mora converte-se em incumprimento definitivo (art. 808 do CC).

            Perante o incumprimento definitivo, o credor pode – não é obrigado a fazê-lo – resolver o contrato (arts. 808 e 801 do CC). Para o efeito tem de comunicar a resolução ao devedor (art. 436 do CC).

            Posto isto:

            No caso dos autos, a ré não tinha prazo para fazer a declaração de vontade que, conjugada com a dos autores, consubstanciaria a celebração do contrato-definitivo (art. 410 do CC)

            Assim, os autores, querendo que a ré ficasse obrigada a fazer, numa dada data, a declaração de venda, teriam, de acordo com o contrato, de marcar a escritura (factos 6 e 15).

            Se na data marcada a ré não fizesse a declaração de vontade, entraria em mora.

            Só então os autores poderiam fixar um prazo suplementar – no caso: marcar uma nova data para a escritura – para a ré participar na celebração do contrato definitivo, fazendo-lhe a cominação de que considerariam a nova falta de comparência como um incumprimento definitivo (a tal interpelação admonitória de que os autores falam, a que também se pode chamar cominatória – descrita, por exemplo, em Brandão Proença, obra citada, págs. 326 a 328).

            Trata-se pois, de uma segunda (e derradeira) oportunidade para cumprir, tendo que se verificar depois da mora e sendo necessário um prazo razoável depois dela.

            Se a ré, nessa nova data, faltasse, a mora converter-se-ia em incumprimento definitivo e os autores (só então) poderiam resolver o contrato, dando conhecimento à ré dessa resolução

            (o que se admite ainda, é que àquela fixação de prazo suplementar se acrescente que se resolve desde logo o contrato perante aquele incumprimento definitivo, passando então a haver, mais do que uma interpelação admonitória, uma interpelação resolutória; mas não é obrigatório que assim aconteça – veja-se, sempre por exemplo, Brandão Proença, Lições e páginas citadas; sobre várias hipóteses de interpelações admonitórias e resolutórias, veja-se também o ac. do TRP de 23/06/2015, 646/11.1TBSTS.P1, publicado em www.outrosacordaostrp.com; Januário Gomes, Em tema de contrato-promessa, AAFDL, 1990, por exemplo, nas págs. 12, 13 e 71, esclarece que depois do incumprimento definitivo, resultado da conversão da mora – que não equivale a perda de interesse -, o credor ainda poderá exigir o cumprimento do contrato; no mesmo sentido, vai agora, naquelas, lições, também Brandão Proença que tem o cuidado de assinalar a alteração da posição que tinha sobre a questão; no mesmo sentido, ainda, vai Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contributo para a interpretação do art. 808 do CC, Cadernos de Direito Privado, n.º5, Jan/Março de 2004, págs. 10/17, que explica desenvolvidamente o funcionamento da interpelação do art. 808 do CC que não tem de ser necessariamente admonitória).

            Quanto àquilo que os autores chamam as anteriores interpelações: a ré não estava obrigada a marcar a escritura pública. O que estava obrigada era, quando a escritura estivesse marcada, comparecer e celebrar a escritura. Ora, o facto 7, invocado pelos autores, não diz que em qualquer outro momento tivesse sido marcada uma escritura e a ré tenha faltado. O que o facto 7 afirma é apenas que a ré foi protelando a realização da escritura pública, mas nunca que ela já tivesse sido marcada antes. Por isso é irrelevante. Com base nele não se pode dizer que a ré tivesse, antes, faltada a qualquer escritura que tivesse sido marcada por qualquer das partes.

            Dito de outro modo: o que os autores escrevem nas conclusões V a VIII não corresponde ao facto provado sob 7: basta a sua leitura para se ver que nele não consta, ao contrário do que os autores dizem, que os autores por diversas vezes interpelaram verbalmente a ré para que outorgasse a escritura pública.

            E eram os autores que tinham – como ónus – que marcar nova escritura, com interpelação admonitória, para que a mora se convertesse em incumprimento definitivo, sendo irrelevante para o efeito o que os autores dizem quanto ao subsequente comportamento da ré na conclusão XX.

            E como o tribunal tem de aplicar o direito aos factos provados – ou seja, tem de julgar a causa conforme for de direito (parte final do art. 567/2 do CC) -, é irrelevante – ao contrário do que os autores pretendem nas conclusões XVII, XX e XXI – que, por exemplo, a ré tenha admitido os factos por não os ter impugnado e nada tenha oposto às pretensões deduzidas pelos autores.

            Decorre do que antecede que a sentença tem toda a razão em sugerir que a carta do facto 8 corresponde só à fixação de prazo certo duma obrigação que até aí não tinha prazo, e não a uma interpelação admonitória. E que, por isso, a ré com a falta de comparência na data marcada para a escritura entrou apenas em mora e não em incumprimento definitivo. Os autores tinham que lhe ter dado uma segunda oportunidade de cumprimento, com uma interpelação admonitória. A primeira, do facto 8, apesar de se pretender apresentar como tal (nesse sentido as conclusões dos autores, de IX a XIII), não o era.

            Não havendo incumprimento definitivo, os autores não podiam resolver o contrato, o que, aliás, nem sequer fizeram.

            E não o tendo feito, nem o podendo ainda fazer, não têm direito à restituição do sinal em dobro (art. 442/1 do CC) e por isso não se põe a questão do direito de retenção.

            Pelo que a acção tinha de improceder no seu todo, como foi decidido.

                                                      *

Da (inexistência da) nulidade pela decisão-surpresa

            Também aqui os autores não têm razão.

            Os autores consideravam que a carta do facto 8 corresponde a uma interpelação admonitória e basearam nesse entendimento a sua pretensão. A sentença recorrida tem o entendimento contrário, não dando razão à construção feita pelos autores. A sentença podia estar errada e os autores certos, sobre a precisa construção jurídica que fizeram, caso em que a sentença teria incorrido em erro de julgamento e deveria ser revogada. Mas trata-se apenas disso, não de uma decisão-surpresa, que faça a sentença provocar uma nulidade que poderia originar, por arrastamento, a revogação da sentença (art. 195 do CPC). O tribunal não fez um enquadramento jurídico diverso do dos autores, fez sim um enquadramento jurídico contrário, oposto ao dos autores: disse-lhes que a interpretação feita por eles das normas jurídicas em causa estava errada e que a certa era a oposta. Não há decisão-surpresa: as normas aplicadas são as invocadas (algumas expressa e outras implicitamente) pelos autores. Foi-lhes apenas dado um outro sentido.

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pelos autores.

            Porto, 30/06/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto