Acção 91/11.9TBBAO de Penafiel – Secção Cível – J1
Sumário:
I. Os danos emergentes do contrato, para efeitos do art. 909 do CC, são apenas os prejuízos causados com a celebração do contrato anulado, e não os lucros cessantes ou os danos não patrimoniais.
II. A indemnização pelos prejuízos causados com a celebração de contratos invalidados de coisas defeituosas, rege-se pelos arts. 908, 909 e 915 do CC e não pelas regras da responsabilidade civil por factos ilícitos.
III. A eventual responsabilidade por outros danos que não os causados pela celebração do contrato anulado, dependeria do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil (arts. 70 e 483 do CC) e aí estaria em causa a necessidade da prova da culpa do réu na provocação ilícita e adequada desses danos, não podendo o ilícito ser o simples facto que deu causa à anulação do contrato.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, Lda, intentou contra R, a presente acção pedindo que: (a) se declare anulado um contrato de compra e venda, declarando-se ainda que, em virtude dessa anulação, cada uma das partes deve restituir à outra o que dela recebeu; (b) se condene o réu a restituir à autora 28.000€, acrescida dos juros vencidos desde o termo de Setembro de 2005, que montam a 5972,40€, até ao efectivo pagamento, liquidando-se os vincendos no final; (c) se condene o réu a pagar à autora 40.000€, a título de indemnização, pelos danos causados ao seu bom nome.
Para tanto, e em resumo, alega que comprou ao réu um veículo automóvel, sendo que esse automóvel apresentava no conta-quilómetros quilometragem inferior à real, o que o réu bem sabia, sendo esse facto essencial para que a autora comprasse o veículo ao réu. A autora vendeu o veículo, sem saber que os quilómetros haviam sido alterados e, por ter sido demandada judicialmente pelos compradores, foi anulada a compra e venda operada pela autora a esses terceiros, tendo sido a autora condenada a restituir-lhes o preço. A conduta do réu, que deu origem àquela acção, causou danos no bom nome comercial da autora que quer ver reparados com a indemnização pedida (invoca os artigos 251, 247, 483, 562 e seguintes do Código Civil).
O réu contestou impugnando os factos alegados pela autora.
(neste relatório utilizou-se, no essencial, o relatório feito pelo tribunal recorrido)
Depois de realizado o julgamento, foi então proferida sentença em que se decidiu reconhecer à autora o direito a ver reduzido o preço do contrato de compra e venda celebrado com o réu, para o valor de 17.500€; e ii) considerando o preço originário do negócio, 28.000€, condenou o réu a entregar à autora 10.500€, acrescidos de juros de mora; e iii) absolveu o réu de tudo o mais quanto foi peticionado pela autora.
Autora e réu recorreram desta sentença.
O acórdão do TRP de 28/10/2015, julgando os recursos interpostos acabou por julgar a acção improcedente no seu todo.
A autora recorreu deste acórdão para o STJ, tendo este, por acórdão, de 28/04/2016, revogado o acórdão do TRP e declarado anulado o contrato de compra e venda e, sem embargo da entrega do veículo por parte da autora ao réu, condenou o réu a pagar à autora 28.000€ com juros de mora desde a citação. Para além disso, anulou o acórdão do TRP na parte em que se absteve de reapreciar a impugnação da decisão da matéria de facto relativamente aos pontos III a VIII enunciados na apelação, determi-nando-se essa reapreciação e a “reapreciação do pedido de indemnização respeitante aos danos morais.” (o sublinhado é do ac. do STJ).
Na parte que ainda interessa aos autos, as conclusões do recurso da autora eram as seguintes:
- O tribunal […] não podia ter absolvido o réu do pedido formulado na alínea c) da petição, pois provaram-se factos suficientes para que esse pedido procedesse, ou pelo menos, que só ficasse o montante da indemnização para liquidar em execução de sentença.
- Os factos que justificam essa condenação são os constantes dos pontos 11, 12 e 14 a 25 dos factos julgados provados, e os factos das alíneas i) a viii) dos factos julgados não provados, visto que estes devem ser julgados provados, com base na prova produzida, e até com base no facto do réu, que foi chamado na acção referida no ponto 5 dos factos provados e foi demandado na presente, daquela não ter interposto recurso, e em ambas nunca ter chamado a demandada a sociedade a quem diz ter comprado o veiculo.
- A alteração dos factos julgados não provados para provados deve ser feita por força do disposto no art. 662/1 do CPC.
- E a condenação do réu no pedido da alínea c) deverá ser proferida por força do disposto nos arts. 798, 799, 562, 564, 566 e 569 do CC.
O réu não apresentou contra-alegações.
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Questões que importa decidir: se deve ser alterada a decisão da matéria de facto, relativamente aos pontos III a VIII enunciados na apelação; e se, face à eventual alteração da decisão da matéria de facto ou mesmo sem ela, o pedido de pedido de indemnização deve ser agora julgado procedente.
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Factos provados (que se transcrevem com algumas simplificações e evitando-se algumas repetições; colocam-se por ordem cronológica, mas mantem-se a numeração dos factos que vem da sentença recorrida para compreensão das alegações e da fundamentação da convicção):
1.º A autora dedica-se ao comércio de automóveis, com fins lucrativos.
2.º O réu dedica-se ao comércio de automóveis usados, com fins lucrativos.
3.º No exercício da sua actividade comercial, em 20/12/2004, o réu declarou vender à autora, e esta declarou comprar para revenda no seu comércio, o Mercedes-Benz, modelo C200 CDI, matrícula xx-xx-xx, pelo preço de 28.000€.
12.º No acto referido em 3, o réu declarou à autora que o veículo ali descrito apresentava uma quilometragem de cerca de 82000 quilómetros.
15.º O réu não podia ignorar que, ao dar a garantia referida em 4, provocava a convicção na autora que o veículo descrito em 3, apenas tinha percorrido cerca de 82.000 km [face ao que já se decidiu no anterior acórdão, a parte rasurada foi substituída pelo seguinte: ‘ao fazer a declaração referida em 12’].
16.º A autora ficou convencida que o veículo apenas havia percorrido o número de quilómetros descrito em 12.
17.º O valor de um Mercedes-Benz, com o modelo referido em 3, com pouco mais de 2 anos após o fabrico e com pouco mais de 80.000 tem um valor superior a igual veículo, com igual tempo de fabrico, com 138.410 km.
18.º O que o réu não ignorava.
19.º Um Mercedes-Benz, com características idênticas ao descrito na alínea 3 e com 138.410 km, tinha em Dezembro de 2004, um valor de cerca de 17.500€.
20.º A autora nunca aceitaria pagar o valor referido em 3 se tivesse conhecimento que o veículo referido tinha 138.410 km.
21.º O réu não ignorava que o número de 82.000km, que constava do conta-quilómetros do veículo descrito em 3, na data de 30/12/2004, determinou a autora a comprar o mesmo veículo pelo preço de 28.000€.
13.º Em Janeiro de 2005, a autora declarou vender o veículo descrito em 3 a C, e este declarou comprar o mesmo veículo, pelo preço de 30.925,47€.
14.º Na altura da entrega do veículo ao comprador C, o veículo registava, no seu conta-quilómetros, ter percorrido cerca de 82.000 km.
11.º Com data de 18/04/2005, o réu subscreveu, nele apondo a sua assinatura, o escrito de folhas 16, intitulado Declaração com o seguinte teor: declara, sob compromisso de honra, sem quaisquer reservas e para todos os devidos e legais efeitos, ter procedido, no dia 20/12/2004, à venda de um veículo automóvel… à A… pelo preço de 28.000€, importância que recebeu desta, da qual lhe dá a correspondente quitação. Mais declara que, à data da referida venda à A, o veículo apresentava uma quilometragem de cerca de 82.000 km. Por ser verdade e corresponder à sua vontade, vai a presente declaração ser datada e assinada, em sinal de plena e total concordância com o seu teor. X, 18/04/2005.
4.º Em 05/09/2005, o adquirente do veículo, C, e sua mulher, intentaram uma acção contra a autora, na qual pediram a anulação do contrato de compra e venda desse veículo à autora, com base no alegado facto do veículo, à data do negócio, ter percorrido muitos mais quilómetros que os indicados no respectivo mostrador (conta-quilómetros).
5.º Essa acção correu seus termos nos autos do processo nº 183/05.3TB… do Tribunal Judicial de ….
6.º A autora foi citada para os termos dessa acção, tendo apresentado a sua contestação, na qual requereu a intervenção do ora réu, que nela interveio e apresentou a sua contestação.
7.º Na sentença proferida nesse processo foram provados os factos seguintes:
1. Encontra-se inscrita na Conservatória…, a sociedade comercial A…, com o objecto social de comércio de automóveis;
2. É sócio e gerente da referida sociedade A;
3. A propriedade do veículo automóvel de matrícula xx-xx-xx encontra-se registada na Conservatória a favor de C.
4. Em Dezembro, a A… declarou comprar e R declarou vender o veículo xx-xx-xx.
5. Aquando do referido em 4, o veículo já apresentava cerca de 82000 Km no conta-quilómetros.
6. No exercício da sua actividade comercial, e no início de Janeiro de 2005, a A… declarou vender aos autores e estes declararam comprar o veículo […] do ano de fabrico de 2002 […] xx-xx-xx.
7. Pelo preço de 31.500€.
8. Para pagamento de parte do preço, os autores entregaram à A… o veículo x, com a matrícula xx-xx-xx, sua propriedade.
9. Que as partes avaliaram em 5.000€.
10. Tendo os autores nessa data entregue à A… as chaves, o título de registo de propriedade, livrete e requerimento-declaração para registo de propriedade do referido veículo.
11. Para pagamento de parte do preço, os autores celebraram ainda um contrato com T…, mediante o qual esta empresa emprestou àqueles 24.000€, com obrigação de estes restituírem outro tanto, nos termos e condições gerais que constam a fls.37 e 38.
12. O montante do empréstimo foi entregue à A.
13. O restante pagamento do preço, no montante de 2500€, foi efectuado em dinheiro.
14. Os autores adquiriram o veículo automóvel referido em 6 para fazerem a viagem de regresso à U, onde estão emigrados.
15. E para ali se deslocarem no dia-a-dia.
16. Desde a data referida em 6, os autores têm circulado diariamente no referido automóvel e praticado todos os actos de conservação e manutenção necessários.
17. Na data referida em 6, o veículo xx-xx-xx apresentava no mostrador do conta-quilómetros a distância percorrida de 82.000 Km.
18. Em 06/04/2005, o autor marido procedeu a uma revisão do veículo xx-xx-xx numa garagem da Mercedes sita em U.
19. Nessa revisão, o funcionário da Mercedes efectuou uma busca informática ao histórico do veículo e verificou que este, numa intervenção mecânica realizada em 28/11/2003, na Alemanha, apresentava no conta-quilómetros 138.410 km.
20. Tendo sido retirados do mecanismo de conta-quilómetros do veículo, pelo menos, 56 410 Km (…).
36. R compra e vende veículos automóveis novos e usados.
37. R importou o veículo xx-xx-xx da Alemanha, onde tinha a matrícula xxxxxx.
38. À data da aquisição referida em 4, o veículo já tinha matrícula portuguesa.
39. Tendo sido R que requereu a atribuição de matrícula portuguesa à viatura junto da Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo.
40. Foi R que submeteu a viatura à inspecção técnica periódica cujo certificado consta a fls. 44.
41. Aquando do referido em 4 e 6, o motor da viatura não denotava qualquer problema de funcionamento.
42. A carroçaria e o interior da viatura encontravam-se em bom estado de conservação, como novos.
43. O R adquiriu o veículo automóvel em apreço na Alemanha.
8.º Com base em tais factos, o Tribunal, em sentença proferida nesse processo, declarou “a anulabilidade do contrato de compra e venda que teve como objecto o veículo, celebrado entre a A… e os autores, condenando a A… a pagar aos autores 31.500€, acrescidos dos juros vencidos desde a data da citação e dos vincendos até integral pagamento, devendo ainda os autores restituir àquela o veículo.
9.º Na contestação que apresentou no processo acima referido, o réu alegou que, “quando vendeu o automóvel em causa“, “o conta-quilómetros indicava de facto cerca de 82.000 km“, e que “Havia-o adquirido na Alemanha em finais de Outubro de 2004 à V, com sede em I, e o seu conta-quilómetros indicava cerca de 79.000 km”, pelo que, se acaso o conta-quilómetros foi adulterado ou mexido”, esse facto não foi praticado por si, e que nisso não tem também qualquer responsabilidade“.
10.º Da sentença referida em 8 não foi interposto recurso quer pela autora quer pelo réu.
22.º A autora confunde-se com o seu sócio e gerente, na praça em que actua, no concelho de X e concelhos vizinhos.
23.º Qualquer compra ou venda feita à sociedade, é compra ou venda feita ao A.
24.º O curso da acção referida em 7 e 8 tornou-se conhecido na praça, bem como o seu resultado, nas localidades referidas em 22.
25.º E por isso passou a correr, nos meios do comércio de automóveis usados, com reflexos na clientela, que o A vendeu um veículo com o conta-quilómetros adulterado por isso foi condenado em Tribunal.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Factos não provados que a autora quer que fiquem provados
O tribunal recorrido entendeu que não ficaram provados uma série de factos, o que fundamentou devidamente.
A autora discorda, dizendo que eles devem ser tidos por provados.
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A autora entende que os factos (iii) – o réu não podia ignorar que, caso se viesse a descobrir o facto que a autora ignorava, tal facto provocaria danos a autora” – e (iv) – designadamente por ficar a sua actividade sob suspeita de alterar, para menos, os conta-quilómetros dos veículos usados que comercializava, para obter proveitos ilícitos em prejuízo dos seus clientes –, estão provados porque “a experiência comum mostra-nos que, constando numa dada praça que, num estabelecimento de venda de automóveis usados, foi falsificado o conta-quilómetros de um automóvel aí à venda, de modo a que esse conta-quilómetros mostre, enganando os interessados na compra, que o veículo apenas percorreu 59% dos quilómetros dos que efectivamente percorrera, esse estabelecimento fica sob suspeita de que falsifica os conta-quilómetros. E, no caso dos autos, essa suspeita ficou bem marcada, como os depoimentos o confirmam.”
Antes de mais, diga-se que o raciocínio da autora está claramente inquinado. Diz ela: “constando numa dada praça que, num estabelecimento de venda de automóveis usados, foi falsificado o conta-quilómetros de um automóvel aí à venda […] fica sob suspeita de que falsifica os conta-quilómetros.” Se consta que o conta-quilómetros foi falsificado no estabelecimento fica a suspeita? Não. Não haveria suspeita, haveria sim a certeza. Ou seja, a autora argumenta com uma máxima da experiência que não existe visto ser uma contradição.
Seja como for…, aquilo que agora está em causa são estes dois conjuntos de afirmações:
(iii) o réu não podia ignorar que, caso se viesse a descobrir o facto que a autora ignorava [que o veículo tinha 138.410km em vez de 82.000km], tal facto provocaria danos a autora” (iv) designadamente por ficar a sua actividade sob suspeita de alterar, para menos, os conta-quilómetros dos veículos usados que comercializava, para obter proveitos ilícitos em prejuízo dos seus clientes
A autora fazia estes dois conjuntos de afirmações num único artigo da petição inicial (o 16) e não incluía a expressão ‘designadamente’, pelo que aquilo que a autora afirmava é o que resulta da conjugação de (iii) e (iv) sem a expressão designadamente. Aliás, esta expressão, introduzida pelo tribunal no despacho de condensação, conduziria a uma afirmação genérica e indeterminada, sem se saber qual a causa concreta que a autora estava a afirmar ser a causa dos prejuízos invocados, pelo que não poderia ser dada como provada.
Lido agora o conjunto (sem aquela expressão), aceita-se que o mesmo corresponde à experiência comum das coisas mas apenas no sentido de que tal poderia provocar os danos invocados, não que os provocasse com certeza. Note-se que se está a dizer que o réu não podia ignorar o que ali se diz, como qualquer outra pessoa não o podia ignorar (daí a referência à regra da experiência); não se está a dizer que o réu tivesse conhecimento do facto em causa.
E o que foi dito pelas três testemunhas invocadas genericamente pela autora no seu recurso não serve para ir mais além disso, porque: a 3ª testemunha nada disse sobre o assunto; ela depôs sobre matéria que nada tem a ver com estas afirmações (ou sobre as subsequentes, avance-se desde já); e as testemunhas 2ª e 1ª limitaram-se a falar da suspeita, não sobre o que o réu sabia ou não sabia ou não podia deixar de saber, nem sobre a probabilidade de tal causar danos à autora.
Entretanto, note-se que, ao contrário do que a autora sugeriu, ela não transcreveu, na íntegra, o depoimento destas três testemunhas, mas apenas o interrogatório que o seu mandatário lhes fez, já não a instância feita pelo mandatário da ré, nem as respostas que as testemunhas deram às perguntas do tribunal recorrido.
Em suma, considera-se provado apenas que (iii) o réu não podia ignorar que, caso se viesse a descobrir o facto que a autora ignorava [que o veículo tinha 138.410km em vez de 82.000km], tal facto poderia provocar danos à autora” (iv) por ficar a sua actividade sob suspeita de alterar, para menos, os conta-quilómetros dos veículos usados que comercializava, para obter proveitos ilícitos em prejuízo dos seus clientes.
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Depois a autora entende que os factos (v) – igualmente corre no meio comercial que a autora terá falsificado muitos mais conta-quilómetros – e (vi) – o meio comercial em que a autora opera é um meio pequeno, o que facilita as informações negativas do meio comercial -, estão provados com base nos “mesmos elementos probatórios.”
Ora, quanto a (v), pode-se dizer que as duas primeiras testemunhas invocadas pela autora confirmam genericamente a afirmação, mas sem demonstrarem terem razões para o dizer, designadamente que alguém (quem) lhes tenha referido essa suspeita, e por isso não convencem.
E quanto a (vi), diga-se que no ponto 22 dos factos provados ficou a constar, sem impugnação, que o meio comercial em que a autora opera não é só o concelho de R, como a autora pretende, mas sim também os concelhos vizinhos. E do interrogatório da 2ª testemunha pelo mandatário da autora, decorre que a população dessa área será superior a 10 vezes a população do concelho de R, invocada pela autora. Com isto já fica a dúvida sobre qual o meio comercial em que a autora opera. Por outro lado, a autora diz que nele só existiam dois stands de automóveis e as duas testemunhas da autora falam em 2 ou 3 stands, e isto só por si já demonstra que, afinal, o conhecimento das coisas não é tão certo, se num meio que será pequeno nem sequer se acerta quanto ao número de comerciantes de carros. Por outro lado, se as pessoas, por ser um meio muito pequeno, se conhecem bem, uma informação negativa sobre uma pessoa só se espalhará se a fama dessa pessoa não for segura. Se as duas testemunhas da autora, que conhecem bem o A, não acreditaram que ele tivesse feito a alteração do conta-quilómetros, todas as outras pessoas, se o conhecem bem, por ser um meio pequeno, também não acreditariam. E daí que, afinal, não seja fácil a circulação de informações negativas. Neste contexto não deixa de ser significativo o que se dirá abaixo sobre a total falta de prova concreta (por exemplo, documental) sobre a quebra de clientes da autora.
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Por fim, a autora considera que os factos (vii) – a autora, desde há meses a esta data, quase não tem clientes – e (viii) – sendo certo que nos últimos meses de 2007, houve aumento de compra de veículos automóveis –, estão provados “pelas razoes já apontadas, mas devendo ser tomado em especial conta o facto de, no concelho de R haver apenas 2 comerciantes de automóveis – a autora e outro – e os negócios que a autora deixou de firmar por via bancária (quanto a estes aspectos revejam-se os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, e muito especificamente o depoimento da 2ª testemunha).”
Ora, quanto a (vii) há que precisar que que a acção foi intentada em 21/01/2011 e que é com esta referência que ela tem de ser entendida.
A primeira testemunha da autora fala numa perda de clientes no período subsequente à venda, ou seja, 2005/2006, até agora (2015). Mas as afirmações que produz são perfeitamente genéricas; por exemplo, relativamente à pergunta, do mandatário da autora: “O Sr. concretamente, pergunto: sabe se ele terá perdido algum negócio com isto?”, o que responde é: “Hum…, assim perdido… Acredito é que…”, nada afirmando de concreto. E mais à frente: “A pessoa fica com o pé atrás e é capaz de deixar de ir ao stand” (6:34 a 6:55). Ou seja, hipóteses, especulações, nada mais. E depois, na instância do mandatário do réu, continua a ser genérica e indeterminada, admitindo que não pode precisar uma única pessoa que tenha deixado de fazer negócios por causa do caso, invocando apenas o que ouvia dizer pela rua.
Quanto à segunda testemunha da autora o que fala é numa perda de clientes no período subsequente à venda, ou seja, 2005/2006 (12:56). Não se refere a 2010 (ou a qualquer melhoria nos últimos meses de 2010, o que releva para (viii)). O que decorre, principalmente da parte não transcrita do depoimento desta testemunha (começa a 12:39). E, por exemplo, se primeiro, ao mandatário da autora, quando lhe perguntou se a quebra foi de 20, 30, 40, 50% responde logo que é provável que seja mais (10:42 a 10:48), logo a seguir, ao mandatário do réu, responde que não sabe (13:39 a 14:58,) qual a percentagem, embora lá acabe por voltar aos 50% “do meu ponto de vista”…, fazendo apenas afirmações genéricas, sem precisar um único negócio concreto ou uma única pessoa em concreto que tenha deixado de fazer negócios (como também responde ao mandatário da autora: 11:43 a 11:51, embora logo a seguir volte às afirmações genéricas), nem apresentando (a testemunha), nem a autora o fez, quaisquer dados bancários (apesar de os invocar) para demonstrar essa quebra.
Pelo que as testemunhas invocadas não dão suporte à afirmação quesitada.
Por outro lado, não existem quaisquer documentos que provem qualquer quebra de rendimentos derivada da actividade comercial da autora que possa provar ter a autora perdido clientes. E se a afirmação fosse certa haveria evidentemente – mas não há – prova documental (como, por exemplo, já se viu, documentos bancários).
Quanto a (viii) diga-se que se quis escrever, não nos últimos meses de 2007, mas sim nos últimos meses de 2010, como a autora alegava na petição inicial.
Ora, nenhuma das duas testemunhas invocadas pela autora (já foi dito que a 3ª não se pronunciou nem sobre esta nem sobre as anteriores afirmações agora em causa) disse fosse o que fosse sobre o aumento da venda de automóveis nos últimos meses de 2010 (e, já agora, também não o disseram relativamente a 2007).
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Em suma: da impugnação da decisão da matéria de facto resulta apenas que podem ser aditadas, às afirmações de facto dadas como provadas, as seguintes:
- O réu não podia ignorar que, caso se viesse a descobrir o facto que a autora ignorava [que o veículo tinha 138.410km em vez de 82.000km], tal facto poderia provocar danos à autora” por a sua actividade ficar sob suspeita de alterar, para menos, os conta-quilómetros dos veículos usados que comercializava, para obter proveitos ilícitos em prejuízo dos seus clientes.
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Do recurso contra a absolvição da indemnização
O contrato de compra e venda dos autos foi anulado pelo STJ com base em erro essencial sobre o objecto do negócio (arts. 247, 251, 905 e 913, todos do CC).
À anulação do contrato pode acrescer, diz ainda o STJ, o direito a uma indemnização pelos danos emergentes do contrato, independentemente da culpa do vendedor, nos termos dos arts. 909 e 915, ambos do CC.
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A indemnização prevista no art. 909 do CC
Segundo o art. 909 do CC, nos casos de anulação fundada em simples erro, o vendedor […] é obrigado a indemnizar o comprador, ainda que não tenha havido culpa da sua parte, mas a indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato.
O art. 915 do CC acrescenta: A indemnização prevista no artigo 909 […] não é devida, se o vendedor se encontrava nas condições a que se refere a parte final do artigo anterior, ou seja, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece. Ao réu, no caso, não aproveita esta causa de cessação da sua responsabilidade (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 211), porque não se provaram os respectivos pressupostos: o réu nada alegou nesse sentido (e era dele o ónus da alegação e de prova: veja-se Calvão da silva, Compra e venda de coisas defeituosas, Almedina, 2001, pág. 49).
Assim, volta-se ao art. 909 do CC, que prevê a responsabilidade mesmo sem culpa (alguns autores – como Calvão da Silva, obra citada, págs. 34/35, e Sónia Moreira, As relações entre a responsabilidade pré-contratual por informações e os vícios da vontade…, Almedina, 2010, na síntese das págs. 384/385 – incluem na previsão da norma também os casos de negligência, enquanto outros remetem o caso da negligência para o art. 908 e restringem o art. 909 à responsabilidade objectiva – a questão vem tratada com desenvolvimento, por exemplo, em Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de compra e venda, Almedina, 2007, págs. 250 a 261, com inúmeros elementos doutrinários, podendo ver-se também no sentido de incluir o vendedor meramente culposo no âmbito da previsão do art. 908 do CC, Paulo Mota Pinto, O interesse contratual negativo e o interesse contratual positivo, Coimbra Editora, 2008, vol. II, pág. 1202 e segs; e também Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 3ª edição, págs. 122 e 123, lembrando, criticamente, no entanto que esta responsabilidade, em sede de vendas defeituosas, já não será integralmente objectiva porque o artigo 915 vem restringir as condições em que pode ser exigida a indemnização; nesta parte, e com o mesmo sentido mas sem crítica, Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados acima).
No caso dos autos não está feita a prova da culpa (o que se fundamentará melhor mais à frente), pelo que a questão não se põe, sendo aplicável o art. 909 do CC.
Esta é então uma responsabilidade que não depende da prova da culpa (nos termos de Carneiro da Frada, “a obrigação de indemnizar encontra-se nestes casos desligada de qualquer comportamento censurável” do alienante da coisa – obra citada pág. 835) e protege a confiança do comprador, ou seja, a frustração da confiança num negócio eficaz (Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Coimbra, 2004, pág. 835 e nota 695 das págs. 644/645 e nota 711 da pág. 657: “os arts. 899 e 909 […] não se deixam explicar como decorrentes de uma violação de deveres de comportamento, pelo que está fora de causa a sua recondução ao instituto da culpa in contrahendo. Neste aspecto, a obrigação de indemnizar aí consignada parece antes fundamentar-se na necessidade de protecção da confiança num tatbestand negocial, indutor das correspondentes expectativas, mas que é inválido e não surte os efeitos esperados”) e por isso a indemnização só abrange os danos emergentes (da celebração) do contrato, ou seja, os danos referidos na 1ª parte do n.º 1 do art. 564 do CC, isto é, só o prejuízo causado (com a celebração do contrato anulado), não abrangendo pois os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da anulação do contrato (Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 201, e Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 1198 a 1224).
O prejuízo causado ou danos emergentes do contrato (Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 1071 a 1087) são “as despesas realizadas pelo próprio lesado – isto é, aqueles danos que resultam de uma actuação voluntária do lesado, aplicando recursos (financeiros ou de outro tipo, incluindo a sua força de trabalho), por ter confiado na celebração de um negócio válido ou eficaz ou no seu cumprimento” e “as despesas que também seriam realizadas se o contrato se tivesse formado e se tivesse cumprido, mas se tornaram inúteis, ou desaproveitadas”, ou na formulação de Calvão da Silva (obra citada, pág.34) são apenas aquelas “que se traduzem na diminuição do património existente, nele incluindo as despesas tornadas necessárias”, o que não tem a ver com os danos no direito ao crédito ou no bom nome comercial do comprador (a que o STJ chamou danos morais), que são os danos invocados pela autora (no mesmo sentido, aliás, a sentença que julgou a acção que opôs a autora ao comprador C, também considerou que a norma do art. 909 do CC não abrange os danos não patrimoniais, ou quaisquer outros que – na formulação dessa sentença, que não é inteiramente coincidente com a deste acórdão do TRP – “não sejam os sofridos directamente em consequência do erro determinante da anulação do negócio”, o que justificou a não condenação da autora por outros danos alegados por aquele comprador – pág. 58 daquela sentença, de que a autora obviamente teve conhecimento e tomou como base desta acção).
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A eventual responsabilidade civil
Prevendo os artigos 908, 909 e 915 do CC, a indemnização pelos prejuízos causados com a celebração de contratos invalidados de coisas defeituosas, a autora só poderia recorrer ao regime da responsabilidade civil por eventual responsabilidade decorrente de outros danos se alegasse e demonstrasse o completo preenchimento de todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (arts. 70 e 483 do CC) e aí estaria em causa a necessidade da prova da culpa do réu na provocação ilícita e adequada desses danos e o facto ilícito não poderia ser o simples e único facto que deu origem à anulação do contrato, sob pena de se estar a defraudar o regime daqueles artigos.
Na construção da autora, feita no essencial apenas na petição inicial, que não no recurso, a actuação ilícita e culposa do réu resultaria dele ter garantido à autora que o veículo tinha apenas 82.000km, confirmando por escrito o facto, pelo que teria agido, pelo menos, com grave negligência, violando o dever objectivo de cuidado.
Só que, desde logo, não se provou que o réu tenha dado aquela garantia à autora (fez apenas a declaração que consta do facto 12); por outro lado, o facto de o réu ter feito a declaração de que o veículo tinha 82.000km, só por si, sem mais nada – e nada mais se provou no sentido de se poder dizer que o réu devia ter conhecimento de que o veículo tinha mais de 82.000km -, não permite dizer que ele tenha actuado com culpa, culpa que, na responsabilidade civil por factos ilícitos, não se presume (art. 483 do CC). O que, por outro lado, afasta também a violação do dever objectivo de cuidado com que a autora preenchia a ilicitude e também o potencial nexo de causalidade baseado nessa violação.
Mas, quanto a este último, acrescente-se ainda o seguinte: a possibilidade de fazer responder o autor por uma eventual lesão no direito ao crédito da autora, como direito de personalidade da mesma (arts. 484 e 483 do CC – Filipe Matos, Responsabilidade civil por ofensa ao crédito ou ao bom nome, Almedina, 2011, especialmente págs. 170 a 179 e 363 a 383), dependeria ainda de se poder imputar ao réu todos posteriores eventos que levariam àquela lesão: a posterior venda do carro (com o conta-quilómetros adulterado) pela autora ao terceiro comprador e a subsequente propositura da acção por este contra a autora em que fazia as afirmações ofensivas daquele direito. O que se considera que não é possível porque, como já se disse, não se provou sequer que o réu soubesse, ou devesse saber (tanto como a autora), que o conta-quilómetros estava adulterado.
De qualquer modo, parece claro que a invocação do regime da responsabilidade por factos ilícitos, funcionou no caso apenas como sucedâneo do recurso às normas dos arts. 908, 909 e 915 do CC, que já se sabia não servirem para obter a condenação, como resulta do que já se disse acima sobre o resultado da outra acção.
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Em suma: o art. 909 do CC não tem a ver com os danos invocados pela autora – danos no direito ao crédito ou no seu bom nome comercial -, não tendo aliás a autora invocada essa norma para fundamentar o seu direito à reparação; e o art. 483 do CC, depende da prova de um acto ilícito e culposo adequadamente causador dos danos, pressupostos estes que não se verificam.
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Entretanto, note-se que a construção da autora, com base na responsabilidade civil, pode ser lida de outra perspectiva, ou seja como forma de preencher a previsão do art. 253 do CC: o réu teria provocado com negligência consciente ou inconsciente o erro da autora, sendo de aplicar, directamente no primeiro caso ou por analogia no segundo, o regime do art. 253/1 do CC (neste sentido, Nuno Manuel Pinto Oliveira, obra citada, págs. 152 a 154; Sónia Moreira, por sua vez, aplica por analogia o regime do dolo nos casos de indução negligente em erro – obra citada, na síntese das págs. 385/386).
Mas a solução seria, no entanto, no caso concreto, a mesma, visto que os factos provados não permitem concluir que o réu tivesse, ou devesse ter, consciência de que o conta-quilómetros estava adulterado. Aliás, isto não pode deixar de ser claro para a autora, porque ela também vendeu o mesmo veículo a outrem, aparentemente com os mesmos 82.000km, e não aceita que tenha tido culpa nessa venda defeituosa (nem foi condenada com base na culpa).
No caso, esta chamada de atenção para o regime do art. 253 do CC, serve, no entanto, para lembrar que a eventual responsabilidade por danos provocados com a celebração de um contrato de compra e venda de coisa defeituosa anulado, está ligada à causa da anulação do contrato, pelo que um contrato que tenha sido anulado simplesmente com base nos arts. 251 e 247 do CC, sem prova de culpa do vendedor, só deve dar lugar a indemnização, pelo vendedor, nos termos do art. 909 do CC.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto (com o acrescento do facto 26), mas julga-se improcedente o recurso quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais.
As custas do recurso já estão fixadas no ac. do STJ.
As custas da acção ficam a cargo da autora e do réu, na proporção do decaimento, tendo em atenção que relativamente ao pedido sob (a) e (b) da petição inicial, a procedência foi parcial (improcedeu parcialmente quanto aos juros) e quanto ao pedido sob (c) foi improcedente.
Porto, 30/06/2016.
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto