Proc. 234/14.0T8AVR – Aveiro – 1ª Secção Cível – J3
Sumário:
I. As acções para cobrança de dívidas municipais devem ser suspensas se tal for solicitado pelo município e se o município provar a abertura de um processo negocial (arts. 39/3 e 38/1 e 2, da Lei 53/2014, de 25/08).
II. A suspensão cessa, para os credores que não aderiram ao processo ou que não firmaram qualquer acordo, após a aprovação ou recusa final do programa de ajustamento municipal (pelo Fundo de apoio municipal) ou após a concessão ou rejeição do visto do Tribunal de contas, quando aplicável (art. 39/4 da Lei 53/2014), independentemente do recurso desta decisão.
III. E daqui não decorre qualquer inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade dos credores.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A, Lda, intentou, em 26/09/2014, uma acção contra R, E.M., pedindo a condenação desta a pagar-lhe 67.645,77€, com juros de mora, alegando para o efeito ter alugado à ré vários equipamentos, incluindo montagem/ desmontagem dos mesmos e a prestação de diversos serviços, não tendo a ré pago as importâncias correspondentes.
A ré contestou apenas o valor de uma das facturas, entendendo que ela não era devida por dever haver compensação em parte e ter havido pagamento noutra parte, o que foi aceite pela autora, que reduziu o montante peticionado para o valor de 68.336,44€.
A 21/11/2014, a ré veio requerer a suspensão da acção, por força do art. 39/3 da Lei 53/2014, de 25/08, pois que em 29/09/2014 teria dado, ao abrigo dessa lei, início a negociações com a autora, nos termos daquele artigo [a ré refere-se por lapso ao art 39/3 da Lei 50/2012] visando definir o pagamento da sua dívida, tendo-lhe proposto que dispensasse a ré do pagamento de juros de mora e o pagamento da dívida até ao final do primeiro trimestre de 2015 e a autora nunca manifestou, junto da ré, o desacordo pela proposta de negociação apresentada, nem sequer manifestou qualquer discordância quanto ao solicitado perdão de juros (a ré não fez qualquer prova de ter iniciado o processo negocial, nem da publicitação do mesmo, nos termos do art. 38/2 da Lei 53/2014).
A autora pronunciou-se, em 26/11/2014, contra a suspensão, negando a existência de qualquer início de negociações quer com a ré quer com o município, tendo apenas sido questionada sobre a sua disponibilidade em negociar, já depois de ter intentada a acção.
Sem decisão do pedido, foi marcada a 06/01/2015 a realização de uma audiência prévia para 28/01/2015, na qual as partes acordaram na suspensão da instância, pelo período de 60 dias.
A 30/04/2015, a ré veio dizer que a câmara municipal tinha aprovado a 31/03/2015 o programa de ajustamento municipal e enviado o mesmo para aprovação para a direcção do FAM, depois o mesmo ainda teria de ser aprovado pela assembleia municipal e visado pelo tribunal de contas. Não faz qualquer referência a qualquer plano de restruturação da dívida, não refere qualquer adesão da autora a qualquer processo negocial, nem invoca quaisquer acordos do município com a autora de regularização de dívidas. Volta a pedir a suspensão da acção.
A 07/05/2015, a autora opõe-se de novo à suspensão. Mas esclarece que foi publicitado, a 08/10/2014, pela ré a existência do processo negocial, nos termos do art. 38 da Lei 53/2014. Diz depois que o município dispunha então de 60 dias para concluir o processo negocial (art. 38/4) e de 90 dias para apresentar o PAM (art. 25/3 da Lei 53/2014), prazos que já foram todos ultrapassados se tiver sido como a ré diz no requerimento anterior, o que constitui ilegalidade grave e dá origem à nulidade do procedimento.
Sempre sem decisão quanto ao pedido de suspensão, foi, a 02/06/2015, determinada a notificação das partes para apresentaram alegações finais, por se entender haver acordo quanto aos factos (fls. 282), o que elas fizeram.
Apesar disso, a 15/07/2015 ainda se notificou a ré para dar mais uma informação sobre o PAM (fls. 296), o que ela fez a 10/09/2015 (fls. 299), dizendo que estava agendada a aprovação do PAM pela assembleia municipal a 16/09/2015 e que a 17/09/2015 o processo seria enviado para o tribunal de contas, prevendo-se a sua emissão [visto] durante Outubro de 2015.
Depois disso, a 22/10/2015, o Sr. juiz, determinou que os autos aguardassem por mais 30 dias e que depois se notificasse a ré para dar mais uma informação sobre o PAM (fls. 301), tendo esta dito, a 03/12/2015 (fls. 303), que o tribunal de contas ainda não tinha dado o visto, tendo ela, ré, prestado vários esclarecimentos ao TC tendo em vista a emissão do visto.
A 04/01/2016, sempre sem decisão sobre o pedido de suspensão, o Sr. juiz ainda determinou que a ré prestasse mais outra informação (fls. 305), o que ela fez a 19/01/2016, dizendo que o visto ainda não tinha sido obtido.
A 18/02/2016 foi proferida sentença, julgando a acção procedente, constando do interior da mesma um despacho em que finalmente – quase 15 meses depois – se decidiu o pedido de suspensão, como questão prévia, indeferindo-se o mesmo.
A ré recorre deste despacho – para que se revogue a “sentença” e se determine a suspensão da acção até ao momento da concessão ou rejeição definitivas do visto do Tribunal de contas ao PAM -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) O Fundo de Apoio Municipal, regulado pela Lei 53/2014, tem por objecto a recuperação financeira dos municípios que se encontrem em situação de ruptura financeira, bem como a sua prevenção e traduz-se na adopção de mecanismos de reequilíbrio orçamental, de reestruturação da dívida e assistência técnica;
B) Aquele diploma é aplicável ao Estado, aos municípios e seus credores, bem como a quaisquer entidades públicas ou privadas que sejam objecto das normas e dos mecanismos nele previstos;
C) A ré é uma empresa municipal a quem é aplicável aquele diploma;
D) Em 29/09/2014, o Município de Aveiro deu início às negociações com a autora, nos termos do n.º 3 do art. 39 da Lei 53/2014, visando definir o pagamento da sua dívida;
E) O início daquele processo negocial permite, nos termos do n.º 3 do art. 39 daquela Lei 53/2014, que se requeira a suspensão das acções para cobrança de dívidas que estejam em curso – o que foi requerido e concedido no âmbito do presente processo;
F) Nos termos [daquela norma], a suspensão das acções para a cobrança de dívidas nos termos do número anterior cessa, para os credores que não aderiram ao processo ou que não firmaram qualquer acordo, após a aprovação ou recusa final do PAM ou após a concessão ou rejeição do visto do Tribunal de Contas, quando aplicável;
G) Tendo sido obtida a aprovação final do PAM, ficou a faltar a decisão definitiva do Tribunal de Contas quanto à emissão do visto, exigível nos termos do art. 44 da Lei 98/97, de 26/08 (Lei de organização e processo do TC);
H) A falta daquela decisão definitiva quanto à emissão do visto implica que não estejam verificadas as circunstâncias previstas [naquela norma] e que determinariam o fim da suspensão prevista [na mesma];
I) A manutenção [d]esta decisão [recorrida] significaria, inclusivamente, a violação do princípio da igualdade previsto no art. 13 da Constituição da República Portuguesa, ao estar a conceder a um credor um tratamento mais favorável em prejuízo dos demais credores;
J) A decisão em causa violou, entre outros, o disposto nos arts. 39 da Lei 53/2014, e 13 da CRP.”
A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questão que importa decidir: se o pedido de suspensão devia ter sido concedido; se se entender que sim, a revogação do despacho recorrido importará, por arrastamento, a revogação da sentença.
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Os factos que interessam à decisão desta questão resultam do relatório que antecede.
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O tribunal recorrido fundamentou assim o indeferimento:
“[…]
Podendo ocorrer a suspensão por força do início do [processo negocial], a mesma, no entanto, sofre as limitações previstas no [art. 39/4], ou seja, a suspensão de acções com vista a cobrança de dívidas – como é o caso – cessa para os credores que não aderiram ao processo negocial ou que não firmaram qualquer acordo no seu âmbito, após a aprovação ou recusa final do PAM ou após a concessão ou rejeição do visto do Tribunal de Contas (quando aplicável).
Ora, no caso vertente, já foi ultrapassada a fase negocial, tendo, segundo alega a ré, sido aprovado o PAM, embora sem concessão (até à data) do competente visto por parte do Tribunal de Contas.
Parece resultar da posição assumida pela autora, […], que a mesma não firmou qualquer acordo com a ré (ainda que possa ter aderido ao processo negocial na sua fase preliminar), o que obsta, em nossa opinião, que possa ser determinada a suspensão dos presentes autos, dados os limites previstos no nº 4 do citado art. 39 da Lei 53/2014.”
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As normas que interessam ao caso são as seguintes:
A recuperação financeira municipal realiza-se através de contrato celebrado entre o FAM e o município, denominado programa de ajustamento municipal (PAM) – art. 23/1 da Lei 53/2014 (esta lei foi alterada pela lei 69/2015, de 16/07, mas não nos artigos que estão a ser transcritos).
A aprovação e recusa (iniciais e finais) do PAM (isto é, a aceitação da proposta) cabe ao FAM, nos termos do art. 28 daquela lei.
O PAM pode incluir um plano de reestruturação da dívida (= PRD) (arts. 26/2, 37/1 e 38/1, daquela lei).
Nos termos do art. 38 da Lei, relativo à tramitação prévia ao plano de reestruturação de dívida:
- Para efeitos de preparação do PRD, o município estabe-lece negociações com os respectivos credores e comunica-lhes que abriu um processo negocial com vista à apresentação de um PRD ao FAM e solicita a sua participação no mesmo.
- A publicitação do processo negocial é efectuada mediante informação disponibilizada no sítio na Internet do município da qual consta a relação das dívidas reconhecidas.
- O credor dispõe de um prazo de 20 dias, a contar da publicitação referida no número anterior, para se pronunciar sobre os respectivos créditos e informar, por meio idóneo, sobre a sua adesão ou não ao processo de negociação.
- O processo de negociação tem lugar no prazo de 60 dias, a contar da data da publicitação da informação referida no n.º 2.
- Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o município pode estabelecer contactos directos com os credores, no sentido de promover a sua adesão ao processo de negociação.
E nos termos do art. 39 da lei, relativo ao processo negocial:
- Durante as negociações, o município fica obrigado a prestar toda a informação, que seja relevante para as negociações, solicitada pelos seus credores.
- No âmbito das negociações, o município pode acordar, com os credores, designadamente moratórias, perdões, reduções de juros de mora e ou um programa calendarizado de pagamentos de dívida, com um limite máximo da vigência do PAM.
- O início do processo negocial obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas e permite que o município solicite, ao juiz do tribunal competente, a suspensão das acções em curso com idêntica finalidade.
- A suspensão das acções para cobrança de dívidas nos termos do número anterior cessa, para os credores que não aderiram ao processo ou que não firmaram qualquer acordo, após a aprovação ou recusa final do PAM ou após a concessão ou rejeição do visto do Tribunal de Contas, quando aplicável.
- […]
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Pressuposto da suspensão e (i)legitimidade para solicitar a suspensão
Decorre claramente do que antecede, que a abertura do processo negocial, só dependente da vontade do município, permite a este, sem mais, pedir ao juiz que suspenda a acção que esteja a correr contra uma sua empresa municipal (art. 38/1 e 2 e 39/3 da Lei 53/2014).
Repare-se, antes de mais, que a legitimidade para o pedido de suspensão é do município e não da empresa municipal, no caso a ré [esta tem personalidade jurídica própria, com plena capacidade jurídica, conforme resulta dos n.ºs 1 e 2 do art. 1 dos respectivos estatutos, publicados no DR IIIª série, de 11/01/2005, pág. 603, não se confundindo, pois, com o município], o que, só por si, deveria levar ao indeferimento do pedido de suspensão.
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Negociações e processo negocial (ou de negociação)
Por outro lado, eventuais negociações do município com a autora não se confundem com a abertura do processo negocial (basta a leitura do n.º 1 do art. 38 daquela Lei para se entender tal).
Ora, a suspensão das acções depende ainda, para além da solicitação do município, do início do processo negocial (art. 39/3 da Lei), início que apenas tem lugar com a publicitação da informação referida no n.º 2 do art. 38 da Lei, como tem resulta dos n.ºs 2, 3 e 4 do art. 38 da Lei 53/2014).
Ora, não se provando a abertura do processo negocial, com a publicitação do mesmo, nos termos do art. 38/2 da Lei 53/2014, a suspensão não podia ser deferida. É para tal completamente irrelevante a existência de negociações entre a autora e o município, que, aliás, também não se provam: uma proposta da entrada em negociações (feita pelo município) não equivale a existência de negociações (entre ele e a autora).
Portanto, na ocasião em que foi formulado o pedido de suspensão, o mesmo devia ter sido indeferido, sem mais, quer por falta de legitimidade da ré (empresa municipal) para fazer o pedido, quer por falta de prova do pressuposto do mesmo (processo negocial).
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Apesar do que antecede, e para não se deixar de apreciar a questão mais substancialmente, diga-se o seguinte:
Do processo negocial
Embora a ré nunca o tenha feito, a própria autora deu elementos aos autos para se poder aceitar a existência do processo negocial, que terá sido devidamente publicitado nos termos do art. 38/2 da Lei 53/2014. Embora o mesmo não esteja provado (nem mesmo, ao menos aparentemente, se consegue, hoje, aceder à publicitação do anúncio no sítio da internet da câmara municipal de Aveiro).
Partindo então da hipótese da existência do processo negocial, a suspensão devia ter sido deferida (ao contrário do que se entende na decisão recorrida), se a solicitação tivesse sido feita pelo município (em vez da ré), pois que ela só depende, como já foi referido, do início do processo negocial (art. 39/3 da Lei).
Da cessação da suspensão (continua)
E, com os dados que existiam no processo, não havia razões para dizer que a suspensão tinha cessado.
É que a suspensão cessa, para os credores que não aderiram ao processo ou não firmaram qualquer acordo, após a aprovação ou recusa final do PAM ou após a concessão ou rejeição do visto do Tribunal de Contas, quando aplicável (art. 39/4 da Lei).
Ora, quer a autora quer o juiz aceitaram que era aplicável a necessidade do visto do TC e não havia nada no processo que dissesse que esse visto já tinha sido concedido ou rejeitado.
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Da cessação da suspensão (continuação)
Entretanto, no corpo das alegações de recurso, a ré informa que o TC, por sentença [sic] de 27/01/2016, recusou o visto aos contratos que constituem o plano em causa e diz que a interposição do recurso tem efeito suspensivo.
E procurando no sítio do tribunal de contas na internet esse acórdão, constata-se que existe, com o n.º 2/2016-27.JAN-1.ª S/SS e está publicado em http://www.tcontas.pt/pt/actos/acordaos/2016/1sss/ac002-2016-1sss.pdf, tendo o conteúdo que a ré invoca.
Ora, sendo esse acórdão anterior à sentença que integra o despacho recorrido, o tribunal já tinha razões para dizer que a suspensão tinha cessado, com a recusa da concessão do visto pelo tribunal de contas.
A ré diz que não, porque é possível interpor recurso desse acórdão e o recurso tem efeito suspensivo. Mas não tem razão.
Com efeito, se a suspensão cessa após a concessão ou rejeição do visto do TC, isto é, se nada importa o sentido positivo ou negativo da decisão do TC, bastando que ela exista, isso quer dizer que é indiferente o resultado de eventual recurso do município da decisão do TC, pois que, mesmo que, perante ele, mude o sentido da decisão, ela terá sempre um daqueles sentidos e, por isso, verificar-se-á sempre esse pressuposto da cessação.
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Da não adesão ao processo negocial ou da falta de acordo
O outro pressuposto da cessação da suspensão é que a autora seja um credor que não aderiu ao processo negocial ou que não firmou qualquer acordo.
Ora, no caso, está na lógica das posições assumidas pelas partes que a autora não aderiu ao processo negocial, nem fez qualquer acordo. As negociações a que a ré se refere, são as que estão em causa no art. 38/1, 1ª parte, até ‘credores’, nada tendo a ver com o processo negocial (a que se refere a 2ª parte do art. 38/1, de ‘credores’ até ‘FAM’). E a ré até alegava que não lhe era possível chegar a acordo com a autora. Mais, na própria conclusão F) do recurso da ré, vê-se que a ré aceita que é essa a situação da autora.
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Da inconstitucionalidade
A prolação da sentença recorrida não dá origem a qualquer situação de inconstitucionalidade. Os credores que estejam na mesma situação da autora – aqueles que não aderiram ao processo nem chegaram a acordo – ficam todos na mesma situação de poderem prosseguir com as suas acções. E aqueles que entraram em negociações ou chegaram a acordo com o município, ficarão com as vantagens daí resultantes (como por exemplo o direito de preferência atribuído pelo art. 41/3 da Lei 53/2014).
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se, embora por fundamento diferente (ilegitimidade), o indeferimento da solicitação da suspensão.
Custas pela ré.
Porto, 30/06/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto