Reclamação de créditos – juízo de execução de Vila Nova de Gaia

            Sumário:

              Não é uma hipoteca genérica aquela que é constituída para garantia “de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir perante o mutuante pela mutuária, provenientes do financiamento constante do documento complementar anexo a esta escritura, no montante de 180.000€ e respectivos acessórios, que a mutuária se obriga a amortizar conforme o estipulado no mesmo contrato” – empréstimo que foi utilizado de uma só fez, e nesta data, e o seu montante creditado na conta de depósitos à ordem aberta em nome da sociedade mutuária […] (conforme cláusula segunda do respectivo documento complementar). 

            Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

            Os factos:

         1. No dia 19/07/2007 o Banco R, SA, concedeu a E, Lda, um empréstimo de 180.000€ (que foi utilizado de uma só fez, e nesta data, e o seu montante creditado na conta de depósitos à ordem aberta em nome da sociedade mutuária […] – conforme cláusula segunda do respectivo documento complementar).

         2. Para garantia do pagamento “de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir perante o mutuante pela mutuária, provenientes do financiamento constante do documento complementar anexo a esta escritura, no montante de 180.000€ e respectivos acessórios, que a mutuária se obriga a amortizar conforme o estipulado no mesmo contrato”, esta constituiu hipoteca sobre o prédio urbano registado na CRP de Vila Nova de Gaia sob o nº. X da freguesia de Y, garantindo a hipoteca “o valor máximo de capital e acessórios global de 238.500€.”

       3. Esta hipoteca foi registada provisoriamente sobre aquele prédio em 24/05/2007, inscrição convertida em definitiva em 23/10/2007, com a seguinte teor: garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir perante o credor decorrentes de empréstimo. Valor: capital – 180.000€, juro anual – 5,5% […]; despesas […]. Montante máximo: 238.500€.

         4. No dia 04/04/2011, o Banco R, SA, cedeu ao Banco R1, SA, este crédito, cessão que foi averbada a 12/12/2011 à descrição daquele prédio.

         5. No dia 15/03/2012, foi registada uma hipoteca sobre aquele prédio para garantia de 50.000€, a favor de S, SA.

       6. No dia 26/10/2012 a E, Unipessoal, Lda, confessou-se devedora ao Banco R1 de 388.000€ que a título de mútuo dela recebe [a mudança da plural em unipessoal foi verificada na escritura, com base em certidão do registo comercial]

         7. Para garantia do pagamento das obrigações assumidas neste contrato, a mutuária constituiu hipoteca sobre o prédio urbano já referido.

       8. Esta hipoteca foi registada em 26/10/2012, com a seguinte inscrição: garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no contrato de mútuo. Juro: 20.123€ […]

        9. Na execução 89/13.2TBVNG em que é exequente S, SA, e executada E, Unipessoal, Lda, aquele prédio foi penhorado, através de registo efectuado a 26/02/2013, para garantia do crédito exequendo (de 114.852,17€).

        10. O Banco R1 veio então reclamar, naquela execução, a verificação e graduação dos dois créditos – estando o primeiro reduzido ao valor de 123.909,48€ e o segundo aumentado para 404.777,60€ -, dizendo, para além do mais, que o segundo estava também garantido pela primeira hipoteca que qualificou como genérica.

            A 19/11/2013 foi proferida sentença graduando estes créditos nos seguintes termos:

         1º – Crédito reclamado (capital e juros relativos a três anos) pelo Banco R1, no montante de 123.909,48€, acrescidos de juros de mora vincendos contados desde 25/03/2013 sobre o montante indicado, calculados à taxa contratualmente estabelecida e indicada pelo credor reclamante, acrescida de uma sobretaxa de 4% até efectivo e integral pagamento e até ao montante máximo já indicado;

         2º – Crédito exequendo (capital e juros relativos a três anos) até ao montante máximo assegurado;

         3º – Crédito reclamado (capital e juros relativos a três anos) pelo Banco R1, no montante de 404.777,60€ acrescidos de juros de mora vincendos contados desde 25/03/2013 sobre o montante de 388.000€, calculados à taxa contratualmente estabelecida e indicada, acrescida de uma sobretaxa de 4% até efectivo e integral pagamento;

         4º- Remanescente da quantia exequenda.

         As custas da execução saem precípuas do produto da venda dos bens penhorados (cfr. art. 455 do CPC).”

            O Banco R1 interpôs recurso desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (sintetizadas neste acórdão):

         III. Os créditos reclamados pelo Banco R1 estão garantidos por hipoteca, nomeadamente por uma hipoteca genérica, que garante todas as quantias pelas quais a executada se tivesse tornado ou viesse a tornar devedora do Banco R1, até ao montante de capital de 180.000€ e montante máximo de capital e acessórios de 238.500€, e uma hipoteca específica, que garante os créditos decorrentes do contrato de mútuo celebrado em 26/10/2012.

         IV. Face à existência da hipoteca genérica, verifica-se que a totalidade dos créditos, decorrentes os dois contratos reclamados, está, em primeira linha, garantida pela hipoteca genérica, até ao seu montante máximo.

        V. Estando o remanescente do contrato reclamado em segundo lugar ainda garantido pela segunda hipoteca registada a favor do Banco R1.

      VI. Porém, a sentença de graduação de créditos graduou, em 1º lugar, apenas os créditos decorrentes do contrato de mútuo reclamado em 1º lugar, graduando em 3º lugar os créditos decorrentes do segundo contrato de mútuo reclamado.

          VII. A sentença recorrida ignorou, assim, a natureza da hipoteca genérica registada a favor do Banco R1.

        VIII. A hipoteca genérica garante não só as dívidas decorrentes de um único contrato, mas sim todas as dívidas emergentes de qualquer contrato, incluído na cláusula abrangente, pelo que, neste caso, a hipoteca registada a favor do Banco R1 em 2007, garante todos os créditos reclamados, mesmo os que estão abrangidos por hipoteca específica posterior.

         IX. Neste sentido foi decidido no Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão datado de 14/02/2012, no âmbito do processo 88/11.9TBMGL-E.C1: “Constituída hipoteca global a favor de certa credora hipotecária, são também garantidos pelo produto da venda do imóvel sobre que incide essa hipoteca outros créditos garantidos por hipoteca específica, desde que estes outros créditos tenham como fonte a prevista na hipoteca global, os devedores sejam os aí indicados, a obrigação garantida tenha a natureza prevista no acto de constituição da hipoteca global e se contenham dentro dos limites garantidos pela hipoteca global.”

         X. A certidão de registo predial do imóvel em causa demonstra que a hipoteca genérica está registada antes de qualquer outro ónus, nomeadamente a hipoteca inscrita a favor da exequente.

            XI. Assim, a graduação feita na sentença recorrida viola o disposto no art. 686/1 do Código Civil, que determina que “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis […] com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”

          XII. Deve por isso a mesma ser revogada, sendo substituída por outra onde se graduem os créditos da seguinte forma:

1º Créditos reclamados pelo Banco R1, garantidos pela hipoteca genérica, até ao montante máximo de capital e acessórios garantido;

2º Crédito exequendo até ao montante máximo garantido;

3º Remanescente dos créditos reclamados pelo Banco R1 e decorrentes do contrato de mútuo celebrado em 2012, garantidos pela hipoteca registada a seu favor em 2012, até ao montante máximo garantido;

4º Remanescente do crédito exequendo.

             Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                      *

             Questão a decidir: se o mútuo concedido em 2012 se encontra também garantido pela hipoteca constituída em 2007.

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            A sentença não tomou, de facto, posição sobre a questão que estava levantada pelo Banco R1, que é a questão agora a decidir.

            Mas o Banco R1 não tem razão e é a própria decisão singular do TRC invocada por ela que fornece os dados suficientes para o dizer.

        Com efeito, é pressuposto de tal decisão, como consta do respectivo sumário transcrito, que os “outros créditos tenham como fonte a prevista na hipoteca global, os devedores sejam os aí indicados, a obrigação garantida tenha a natureza prevista no acto de constituição da hipoteca global e se contenham dentro dos limites garantidos pela hipoteca global.”

            O que também resulta claro do confronto entre a previsão da hipoteca genérica que é objecto daquela decisão singular com a destes autos:

            Naquela diz-se: “hipoteca voluntária a favor da Caixa para garantia das obrigações pecuniárias assumidas ou a assumir por X e mulher e sociedade Y, em conjunto ou em separado, decorrentes de quaisquer operações bancárias, nomeadamente mútuos, aberturas de crédito de qualquer natureza, descobertos em conta a ordem, letras, livranças, cheques, extractos de factura, warrants, garantias bancárias, fianças, avales e empréstimo obrigacionistas até ao montante de 150.000€ – juro anual de 11,45% elevável em mais 4% em caso de mora a título de cláusula penal – despesas – 6000€.”

            “Trata-se – continua aquela decisão singular, que faz também as pertinentes citações doutrinárias – de uma hipoteca genérica ou global que se caracteriza por garantir uma dívida que não está inicialmente determinada, nem muitas vezes ainda constituída, apenas sendo indicado o montante máximo garantido.”

            Ora, no caso dos autos a primeira hipoteca garantia uma dívida muito precisamente determinada e já constituída: para garantia do pagamento “de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir perante o mutuante pela mutuária, provenientes do financiamento constante do documento complementar anexo a esta escritura, no montante de 180.000€ e respectivos acessórios, que a mutuária se obriga a amortizar conforme o estipulado no mesmo contrato”.

            Não se trata pois de uma hipoteca genérica mas de uma hipoteca específica, respeitante a um único e concretizado contrato de mútuo, cujo montante já tinha sido concedido e já estava em amortização, pelo que não abrangia o segundo mútuo.

            O que se comprova de outra perspectiva também referida naquela decisão singular: o segundo mútuo não tinha como fonte o contrato previsto na primeira (situações diferentes, correspondentes a contratos de onde podem jorrar, aí sim, outras obrigações garantidas por hipotecas globais, podem ver-se, por exemplo, nos acs. do TRP de 14/02/2007, 0636941, e de 10/04/2008, 0736758, do TRE de 25/06/2009, 419/08.9TBPTG-B.E1, e do TRG de 20/11/2012, 6335/09.0TBBRG-I.G1 – e em todos os acórdãos referidos e doutrina para que eles remetem, pode-se ver discutida também a questão da validade destas hipotecas omnibus, que no caso não se coloca).

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pelo Banco R1.

            Porto, 10/04/2014

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto