Prestação de caução – Matosinhos – Inst. Central – 3ª Sec. F. Menores
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Sumário:
“1. Os bens comuns do casal constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede um certo grau de autonomia. Pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, sendo os cônjuges titulares de um único direito sobre ela.
2. Tal comunhão não se confunde com a compropriedade.
3. Só depois da partilha é que cada um dos cônjuges poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem do casal.
4. Não é admissível a prestação (espontânea) de caução através de hipoteca não autorizada pelo ex-cônjuge sobre quota de um imóvel pertencente ao património comum do casal, ainda não partilhado.” (sumário do ac. do TRP, salvo erro de 16/06/2016, proferido no apenso U deste processo 1671/14.6TBVCD).
Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:
A interpôs recurso numa oposição à execução que a sua ex-mulher, R, requereu contra si, e, para que fosse atribuído efeito suspensivo a tal recurso, veio requerer a prestação de caução através da hipoteca de um imóvel de que disse ser proprietário, embora vá fazendo referências a quota-parte indivisa.
A ex-mulher veio dizer que o imóvel era do ex-casal [casado no regime da comunhão geral de bens segundo consta do registo predial junto pelo executado, onde também consta o registo a favor deste por compra efectuada já no estado de casado com a exequente] e que não dava o acordo para a hipoteca.
O tribunal julgou a caução oferecida inidónea.
O executado veio recorrer de tal decisão – para que seja revogado e substituído por outro que julgue idónea a caução oferecida -, dizendo que o recurso teria efeito suspensivo e terminando-o com as seguintes conclusões:
1. A caução oferecida é idónea, já que se enquadra na previsão legal: art. 623, n.ºs 1 e 2 do Código Civil (aplicável ex vi do art. 692/4 do Código do Processo Civil).
2. A quota-parte indivisa que o executado tem no prédio urbano, correspondente à fracção B, inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo 1234 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Y sob o número 567-B, corresponde à meação do executado, e, por conseguinte, mostra-se individualizada.
3. Se a mesma pode ser penhorada, nada obsta que a mesma possa ser dada como hipoteca para servir de caução, para que o executado possa obter a suspensão dos ulteriores termos do processo de execução [sic].
4. O facto de a exequente não ter concedido autorização para que seja dado o imóvel como hipoteca não obsta a que a meação (quota parte) do executado no mesmo, seja dada como hipoteca, porquanto,
5. Não é o imóvel que está a ser dado como hipoteca, mas a quota-parte (meação) do executado no referido imóvel.
6. A caução oferecida deve ser aceite, nos termos do art. 909 do CPC, por ser idónea.
7. A sentença recorrida violou e interpretou erroneamente o disposto nos arts. 623, n.ºs 1 e 2 do CC e 909 do CPC.
A exequente não contra-alegou.
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A questão a decidir é a de saber se a caução que o executado quer prestar, através da hipoteca [da metade] de um prédio ainda incluído num património não partilhado entre si e a sua ex-mulher, pode ser admitida mesmo sem o consentimento desta.
Entretanto, o executado, depois de o tribunal recorrido ter mandado subir o recurso com efeito devolutivo, veio arguir a nulidade de tal decisão, porque o efeito devia ser o suspensivo.
E foi junto aos autos um acórdão proferido no apenso V deste mesmo processo, em que se julgou idónea uma caução prestada pelo requerente com uma hipoteca sobre metade do mesmo bem.
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O efeito suspensivo deste recurso
O recurso não tinha efeito suspensivo (art. 647 do CPC): ao contrário do que pretenderá o executado, a decisão que julgou a caução inidónea não é um despacho de indeferimento de um incidente, isto é, não cabe na previsão da alínea c) do art. 647/3 do CPC. É antes uma decisão que põe termo a um incidente, conhecendo do mérito da questão que nele se suscitava, pelo que cabe antes na previsão ampla do art. 647/1 do CPC, por exclusão de partes.
Por outro lado, o executado não pode impugnar o efeito atribuído, no tribunal recorrido, ao recurso (art. 641/5 do CPC). O que ele pode – como fez nos autos – é suscitar logo a questão do efeito do recurso (art. 654/2 do CPC), passando ela a ser uma questão a conhecer pelo tribunal de recurso cuja decisão, aí sim, pode depois ser impugnada.
Decisão que é agora proferida: ou seja, o recurso tem o efeito meramente devolutivo que lhe foi, bem, atribuído pelo tribunal recorrido.
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Quanto à questão de fundo: a idoneidade da caução
A dívida que a exequente (ex-mulher) está a executar é, naturalmente, uma dívida apenas da responsabilidade do executado. Por isso apenas podem ser penhorados bens do executado.
Ora, um executado que é casado no regime da comunhão geral de bens não é proprietário de um prédio que faça parte do património comum do casal (ao contrário do que ele sugeria no requerimento de prestação de caução), nem é proprietário de metade desse prédio (como ele também sugeria naquele requerimento). Ele é, sim, titular de uma meação no património comum (não no prédio) que engloba esse prédio. E por isso não podia constituir uma hipoteca sobre metade de um bem comum sem o consentimento da mulher (art. 1682-A/1-a do CC).
Questão diferente era a de, de ele ser comproprietário, com a sua ex-mulher, de um prédio concreto. Aí sim, ele teria uma quota-parte desse prédio, seria comproprietário do mesmo e essa quota-parte podia ser hipotecada (art. 689 do CC), mas mesmo assim só com o consentimento da ex-mulher (art. 1682-A/1-a do CC – neste sentido, por exemplo, Cristina Coelho Dias, Do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, Coimbra Editora, 2009, págs. 25, 652 e 1083: […] se se tratar de uma hipoteca sobre um bem próprio, esta carece do consentimento do outro cônjuge para a sua constituição […]”).
O acórdão referido acima, proferido no apenso V (acórdão do TRP de 16/06/2016, 1671/14.6TBVCD-V.P1), partiu do princípio que era este o caso dos autos, mas sem base factual para o efeito. O bem não era do executado e da exequente, como comproprietários (ao contrário do pressuposto naquele acórdão), mas sim do património comum do ex-casal por ter sido comprado pelo executado, quando estava casado no regime de comunhão geral de bens com a exequente.
E tudo isto já foi explicado ao executado, no apenso U deste mesmo processo, por acórdão que o agora 1º signatário já subscreveu como 1º adjunto.
Como aí se diz:
“Não podemos confundir a compropriedade com o património conjugal (antes da respectiva partilha).
Na compropriedade, os proprietários são donos de uma determinada quota ideal de um bem determinado (art. 1403/1 do CC). Sendo comproprietários de vários bens, cada titular concorre com uma quota ideal na propriedade de cada um dos bens objeto de compropriedade. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, mas quantitativamente diferentes: as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo – art. 1403/2 do CC.
Diferentemente, os bens comuns do casal constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede um certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela. Os cônjuges não são comproprietários de cada um dos bens comuns. Aquela comunhão não se confunde com a compropriedade.
À semelhança da sucessão hereditária, na comunhão conjugal, até à partilha dos bens comuns do casal, os ex-cônjuges são titulares tão-somente do direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar. Só depois da partilha é que cada um dos cônjuges poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem que pertenceu ao casal.
Adere-se assim à doutrina da propriedade coletiva que é a mais divulgada entre nós. Como defendem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira [Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª edição, pág. 507, que, entre outros, o acórdão do STJ de 21/04/2009, Colectânea de Jurisprudência STJ, II, p. 35, acompanha. Cf. ainda ac. do STJ de 15/01/2013, proc. 6735/09.5YIPRT-B.G1.S1, e ac. do TRC de Coimbra de 08/11/2001, proc. 4931/10.1TBLRA.C1] o património colectivo “pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum”.
À semelhança da herança não partilhada, enquanto os bens comuns do casal estiverem por partilhar, nenhum do membros que constituíram o casal tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
Afirma-se, por exemplo, no ac. do STJ de 18/11/2008 [proc. 08A2620] a existência de um património coletivo na comunhão conjugal: “cada um dos cônjuges tem apenas direito a uma quota ideal do património do casal, pelo que só com a partilha subsequente ao divórcio se vai concretizar em bens certos e determinados”. O cônjuge não é dono de metade de cada um dos bens do casal. Tem direito a metade do casal, o que é diferente.
No caso em apreço, o recorrente não alega que a fracção B do prédio já foi objeto da partilha dos bens comuns do casal e que se encontra numa situação de compropriedade titulada por quotas-partes da exequente e dele próprio. Pelo contrário, tudo aponta no sentido de que o imóvel em causa é um bem comum do casal sem que se tivesse operado ainda partilha.
Assim sendo, não pode o apelante arrogar-se a uma situação de comproprietário do bem para hipotecar metade (ideal) do mesmo.
Uma vez que a partilha se faça, pode acontecer que tal bem não lhe seja sequer atribuído ou, sendo-o, que tal atribuição possa ser em compropriedade com a requerida, em quotas diferentes ou iguais.
A atribuição do bem, em partilha, à recorrida, poderia redundar na perda da garantia da caução que se admitisse por hipoteca do bem ou de parte dele. Noutra perspetiva, a constituição da hipoteca sobre aquele bem do casal poderia levar ao prejuízo da requerida na partilha, desde logo em função da sua oneração ou ao evitar que o mesmo lhe fosse atribuído, com eventual prejuízo da regra da igualação.
A meação dos bens comuns do casal também não pode ser hipotecada (art. 690 do CC). Tais bens estão afetos a um fim, que será comprometido se tal hipoteca se admitisse. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela [CC anotado, 2ª edição, revista e ampliada, vol. I, pág. 639 (anot. ao art. 690)], citando Vaz Serra e Guilherme Moreira, “seria, realmente, anómala a figura que poderia surgir de ficar um dos cônjuges com a metade dos bens comuns do casal, e pertencer a outra metade a um estranho. De resto, enquanto se não dissolve a sociedade conjugal, a meação nos bens comuns é inalienável por vontade exclusiva de um dos cônjuges”.
A impossibilidade de hipotecar a meação dos bens comuns não impede a hipoteca de bens certos e determinados, contanto que haja intervenção de ambos os titulares, ainda que seja para garantir a dívida de apenas um deles. O art. 690 refere-se apenas à hipoteca da meação nos bens comuns (e da quota hereditária).
Não assim numa (diferente) situação de compropriedade de um bem. Nesse caso, também é possível hipotecar uma quota de coisa ou direito comum, ainda que de coisa indivisível se trate (art. 689/1 do CC). A hipoteca da quota não prejudica o direito dos consortes de requererem ou procederem à divisão da coisa (arts 1412 e 1413 do CC). Se, acaso, a coisa hipotecada for vendida judicialmente, em execução, ela continua em regime de condomínio indivisível com o adquirente, se os consortes não exercerem o seu direito de preferência [P. de Lima e A. Varela, ob. e vol. cit., pág. 635].
Por conseguinte, a hipoteca que o recorrente pretende constituir espontaneamente como caução, no seu interesse exclusivo e sem autorização da recorrida, sua ex-mulher e contitular do património comum do casal, mais do que inidónea, é inadmissível e, como tal, a decisão recorrida, que rejeitou a pretensão do recorrente, merece confirmação.”
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo executado (sem prejuízo do apoio judiciário).
Porto, 11/08/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto