Arrolamento – Cascais – Instância central – 3ª secção de família e menores

            Sumário:

            A hipótese de caducidade de uma providência cautelar, prevista no art. 373/1-c do CPC, não ocorre com a simples decisão da improcedência da acção de que depende, mas sim com o trânsito em julgado de tal decisão.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            A requereu o arrolamento de bens comuns do casal.

            Nesse arrolamento foram, entre outros bens, arroladas três contas bancárias.

            Num inventário intentado subsequentemente, ao qual o arrolamento foi apenso, foi apresentada a relação de bens pelo cabeça-de-casal (o outro ex-cônjuge), da qual não constavam tais contas.

            A interessada A reclamou contra a relação de bens, entre o mais por dela não constarem aquelas três contas.

            A 16/11/2015 decidiu-se no inventário, que as três contas não eram bens comuns do casal e como tal não tinham de ser relacionadas. Decidiu-se, também, determinar que se abrisse conclusão no arrolamento a fim de, aqui, se determinar o levantamento da providência relativamente àquelas três contas bancárias.

            A 18/11/2015 foi aberta conclusão no arrolamento e, atendendo ao que tinha sido decidido no inventário, foi determinado, nesse mesmo dia, o levantamento do arrolamento relativamente às três contas bancárias. Ordenou-se a notificação (da decisão) à respectiva entidade bancárias e às partes.

            A 29/11/2015 a interessada A recorreu da decisão da reclamação no inventário, incluindo a “decisão” de caducidade parcial do arrolamento, concluindo no sentido da não verificação da mesma, por ainda não existir trânsito em julgado da decisão quanto à reclamação.

            E a 09/12/2015, recorreu ainda, no arrolamento, da decisão do levantamento parcial do arrolamento, concluindo o seguinte:

         O despacho proferido no arrolamento padece ainda [e com isto está a remeter para aquilo que já dizia no anterior recurso apresentado no inventário] de nulidade por ter sido proferido sem cumprimento do disposto no art. 373/4 do CPC, que o tribunal a quo omitiu, bem como por ter sido ordenada a sua imediata produção de efeitos (com notificação à entidade bancária) sem aguardar, nestes autos ou nos de inventário, a pronúncia da requerente, o trânsito ou a fixação de efeito a recurso interposto e sem invocar (ausência total de fundamentação legal, neste despacho ou no proferido nos autos de inventário), ao abrigo de que norma ou regime é decretado o levantamento parcial do arrolamento.

            A 18/12/2015, um Sr. escrivão adjunto da secção de processos abriu conclusão à Srª juíza “com a informação […] de que me suscitam dúvidas, quanto ao cumprimento do despacho que antecede, nomeadamente no levantamento do arrolamento, devido ao recurso entretanto entrado dia 09/12/2015.”

            Nesse mesmo dia, 18, foi proferido o seguinte despacho (fls. 881 a 884):

         “Um arrolamento não é um arresto.

         Um arrolamento é uma simples listagem de bens, uma verdadeira relação de bens que, no caso entre cônjuges, serve essencialmente para instruir um processo de inventário, pois é neste processo que se fará a divisão do património comum.

         E a nossa jurisprudência tem sido clara ao longo dos anos quando refere que os saldos das contas bancárias do casal arroladas não podem ser congeladas.”

            Citou-se depois diversa jurisprudência no sentido de confirmar o que antecedia e depois concluiu-se:

        “Ora, em nosso modesto entendimento, face à natureza específica do arrolamento em apreço o seu levantamento em nada acrescenta nem em nada prejudica as partes, pois que o essencial do objecto dos presentes autos, no tocante à questão que ora nos ocupa, era apenas e tão só saber o valor das contas bancárias existente ao tempo da cessação das relações patrimoniais com vista a apurar dos possíveis bens comuns a partilhar no âmbito de um inventário, não podendo, nem devendo os bancos, em caso algum, congelar os respectivos movimentos.

         Em todo o caso, porque a requerente suscita no seu recurso – cuja admissão ainda está por decidir por não terem corrido todos os prazos legais – uma nulidade nos termos do disposto no art. 373 n.º 4 do CPC – afigurando-se-nos, modestamente, e salvo o devido respeito, haver lapso na indicação da norma, uma vez que o art. 373 não tem n.º 4, mas antes o n.º 3 – e porque se reconhece, desde já, que não foi dado cumprimento ao disposto no art. 373 n.º 3 do CPC, com vista a sanar desde já essa nulidade, determino se notifique a requerente deste arrolamento para, querendo, se pronunciar sobre o levantamento do arrolamento ordenado nos autos na sequência da decisão dada no inventário.”

            A interessada A veio então dizer

         “[N]ada ter a acrescentar a quanto consta do recurso apresentado à decisão proferida no processo principal (e no procedimento cautelar por remissão para aquele), para ali remetendo, que, por si só e pelo seu conteúdo impugnatório da decisão fundamento, e por determinar o não trânsito em julgado (independentemente do efeito do recurso), impede o efeito de caducidade do procedimento cautelar.

         Quanto à pretendida sanação da falta de notificação da requerente, tendo-se ordenado a comunicação da caducidade em simultâneo à entidade bancária, não se vê como se possa sanar, nem que tal nulidade seja sanável pelo tribunal a quo. No entanto, e sem conceder, ainda que o seja, tal é apenas um dos muitos vícios apontados ao despacho que determina a caducidade da providência, carecendo de sanação todos os restantes vícios contantes dos recursos apresentados, apenas sanáveis (ou confirmados com trânsito) pelo tribunal superior, o que sempre determina a ilegalidade (e da produção de efeitos) do despacho que ordena o levantamento do arrolamento.”

            A 04/02/2016 foi então recebido o recurso, dizendo-se no despacho que “quanto à […] nulidade invocada no âmbito dos presentes autos a mesma mostra-se sanada atento o nosso despacho de fls. 881 e segs.”

            Não foram apresentadas contra-alegações (nas contra-alegações apresentadas no recurso interposto no inventário o outro interessado diz que nele ainda não havia decisão quanto à providência pelo que o art. 373/1-c não podia ter sido ainda violado).

              Os autos só foram remetidos a este tribunal de recurso no dia 26/07/2016 e aqui distribuídos no dia 13/09/2016.

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            Questão a decidir: se o arrolamento das três contas bancárias podia ter sido levantado, ou seja, se a providência tinha caducado. Esta decisão foi proferida no arrolamento e apenas anunciada no inventário, pelo que é no recurso junto ao arrolamento que ela tem de ser apreciada e não no do inventário, como aliás o outro interessado percebeu.

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            Os factos que interessam à decisão de tal questão resultam do relatório que antecede.

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Da não audição prévia da requerente do arrolamento (art. 373/3 do CPC) e consequências

            Antes de mais, diga-se que o proferimento da decisão de levantamento do arrolamento sem audição prévia da interessada A (requerente do arrolamento), contra o que dispunha o art. 373/3 do CPC, consubstancia uma nulidade processual (art. 195/1 do CPC) e não uma nulidade da decisão (arts. 613 e 615, ambos do CPC) que ordenou o levantamento parcial do arrolamento (assim, Lebre de Freitas: “Neste quadro de vícios específicos da sentença não entram as invalidades decorrentes da sua prolação em momento processual inadequado. Não se trata então de vício de um acto que devesse ter lugar, mas da prática de um acto processual que não devia ter lugar no momento em que foi praticado. Assim, por exemplo, se o juiz pro­ferir a sentença antes das alegações das partes […] a sentença é prematura, ocorrendo anulabili­dade nos termos do art. 195-1, a arguir no prazo de 10 dias do art. 149-1. Assim também, se um acto da sequência processual anterior à sentença esti­ver ferido de anulabilidade (por exemplo, iniciaram-se os debates entre as partes quando faltava ainda produzir determinado meio de prova) e esta tiver sido tempestivamente arguida, a sentença será anulada em conformidade com o disposto no art. 195-2 […]” – A acção declarativa comum…, 3ª edição, Coimbra editora, 2013, pág. 328).

            Se tivesse sido arguida a tempo (arts. 149/1 e 199/1, ambos do CPC) – o que não se sabe se é o caso – poderia acarretar, por arrastamento, a anulação da decisão (art. 195/2 do CPC). O tribunal recorrido terá entendido que a arguição tinha sido tempestiva, considerando-a procedente e tentou saná-la.

            Para o efeito teria que ter proferido nova decisão de levantamento do arrolamento em que ponderasse a posição assumida pela interessada A, ao abrigo do art. 373/3 do CPC. De outro modo, esta audição não teria passado de uma formalidade sem sentido. O tribunal recorrido não o fez expressamente, mas pode-se entender que o fez implicitamente, mantendo a decisão de arrolamento depois da audição da interessada.

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Da nulidade da decisão por falta de fundamentação (arts. 613 e 615 do CPC)?

            A decisão recorrida tem uma fundamentação insuficiente, sem indicação das disposições legais que lhe permitiam o levantamento parcial do arrolamento. Mas isso não corresponde a falta de fundamentação.

            Como diz Antunes Varela, “não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia. Para exemplificar, não se tornará necessário que o juiz diga: “nos termos do disposto no art. 219 do Código Civil”, bastando que indique, nesse aspecto, ser ao abrigo do princípio da liberdade da forma que considera válido o negócio impugnado.” (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 2ª edição, pág. 688).

            Ora, a fundamentação em causa dava a perceber a regra que estava na base da decisão e a interessada A percebeu-o, tanto que ela invocou a disposição legal que se inseria no conjunto das disposições que têm a ver com a questão.

            E o tribunal recorrido veio confirmar, no despacho em que tentou sanar a nulidade, que era esse conjunto de disposições legais que estava na base da decisão que tomou.

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                            Da caducidade e levantamento da providência

            Face agora a todo o processado, percebe-se claramente que o tribunal recorrido entendeu que devia ordenar o levantamento do arrolamento das três contas bancárias, por considerar que a pretensão da interessada A, no inventário de que o arrolamento dependia, tinha sido julgada improcedente. Isto tendo naturalmente em conta o disposto no art. 373/1-c do CPC (na redacção da Lei 41/2013, de 26/06, = ao art. 389/1-c do CPC na redacção anterior àquela última).

            Ou seja, se o tribunal recorrido considerou, no inventário, que aquelas contas bancárias não eram bens comuns do casal, não se justificava o seu arrolamento como bens comuns do casal.

            Trata-se uma causa de caducidade da providência.

            Posto isto, vê-se a vantagem de se indicarem as disposições legais quando se profere uma decisão: é que se o art. 373/1-c do CPC tivesse sido indicado, ver-se-ia que ele dispõe que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 369.º, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca: […] se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado.”

            Ou seja, só o trânsito em julgado da decisão que julga a pretensão da requerente improcedente é que leva à caducidade do arrolamento. E trata-se de uma opção consciente da lei, aliás criticada por vários autores (veja-se a discussão da questão, por exemplo, em Marco Carvalho Gonçalves, Providências cautelares, Almedina, 2015, págs. 404 a 408).

            Ora, no caso, é notório que a decisão de improcedência (da reclamação contra a não relacionação de tais contas) não tinha transitado, pelo que não se verificava a causa de caducidade do arrolamento e por isso este não podia ser levantado.

            Em consequência o despacho recorrido tem de ser revogado e tem de ser dado sem efeito a comunicação do mesmo à entidade bancária, mantendo-se o arrolamento das três contas bancárias.  

            A argumentação do despacho de 18/12/2015, no sentido de que o levantamento do arrolamento das contas em nada prejudica as partes, porque as contas arroladas não são congeladas e os seus titulares podem continuar a movimentá-las, a ser certo – o que não se discute aqui por não ser objecto deste recurso -, pode afastar a queixa da interessada de ter sido prejudicada materialmente com o despacho recorrido, mas não justifica o levantamento do arrolamento. Mesmo que o arrolamento, nestes casos, não signifique o congelamento das contas, não pode deixar de ser diferente, sob pena de a providência não ter lógica nem sentido, a situação de uma conta arrolada e a de uma conta não arrolada.

            Por isso, enquanto não estiver decidido, com trânsito em julgado, que o saldo das contas bancárias não é bem comum do ex-casal, o arrolamento delas não caducou e por isso não pode ser levantado.  

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            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido (proferido no arrolamento a 18/11/2015), mantendo-se o arrolamento das três contas bancárias (devendo esta decisão, com os elementos necessários, ser notificada à respectiva entidade bancária pelo tribunal recorrido).

            Custas pelo outro interessado (pois que seria ele o beneficiado com o levantamento do arrolamento das contas).

            Lisboa, 13/10/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2ª Adjunto