Acção ordinária – Loures – Instância Central – Secção Cível
Sumário:
I. Se o credor tem as coisas na sua disponibilidade material e não as liberta sem que o devedor lhe pague a dívida que tem para com ele, relativa ao transporte e armazenamento dessas mesmas coisas, está a exercer o direito de retenção das mesmas (arts. 754 e 755/1-a-e, ambos do Código Civil).
II. O exercício do direito de retenção pode ser abusivo (arts. 334 e 762/1 do CC) “em casos excepcionais, em que a desproporção entre o valor da coisa e o do crédito seja considerada contrária à boa fé”, mas para tal nunca bastará a simples desproporção, porque a diferença de valores é um pressuposto da função de coerção que o direito de retenção também desempenha.
III. Se as coisas retidas forem bens de consumo deterioráveis e em grande parte com prazos de validade reduzidos e de que não se sabe o valor, não se pode dizer que seja excessiva a sua retenção para garantia de um crédito de mais de 21.000€ e que continua a aumentar.
IV. O credor não pode ser censurado simplesmente por não exercer o direito que tem de promover a venda executiva das coisas retidas (arts. 675/1 e 758, do CC).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A, Lda, requereu uma injunção contra R, Lda, para obter desta o pagamento 37.026,80€ de capital, com 1118,31€ de juros de mora, por serviços de armazenamento de mercadoria e logística que prestou à ré.
A ré deduziu oposição reconhecendo parte da dívida, no montante de 21.356,63€, dizendo que o restante, que efectivamente foi facturado, se reporta à altura em que a autora reteve ilicitamente a mercadoria, sendo que, por isso, não pode exigir esse pagamento à ré. Mais refere que a retenção foi ilícita porque a mercadoria era de valor muito superior à dívida da ré para com a autora, a qual ascendia a 162.557,07€, que a ré nunca conseguiu levantar. Por causa disso emitiu uma nota de débito nesse montante, pretendendo exercer a compensação na parte correspondente à dívida que reconhece para com a autora; formula pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora no pagamento de 141.200,39€, correspondente ao valor remanescente da nota de débito depois de operada a compensação.
A autora respondeu impugnando a matéria da excepção e da reconvenção: não reteve a mercadoria (que aliás não tem o valor referido), apenas tendo deixado de prestar os serviços de transporte e preparação; continuou sempre a prestar os serviços de armazenagem, tendo o seu espaço ocupado com essas mercadorias, impedindo-a de armazenar as de outros clientes e por isso exigiu o seu pagamento à ré.
No decurso da causa foi decretada a insolvência da ré por sentença proferida em 03/12/2014 e transitada em julgado em 24/12/2014.
(utilizou-se, neste relatório, quase na íntegra o feito na 1ª instância)
Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença, (i) declarando a extinção da instância por inutilidade superveniente quanto ao pedido da autora em virtude da declaração de insolvência da ré; e (ii) julgando improcedente por não provado o pedido reconvencional formulado pela ré, absolvendo a autora do pedido.
A ré recorre desta sentença, (i) impugnando a decisão quanto a três temas de prova e concluindo, com base na alteração que dali decorreria, que (ii) se pode falar na retenção ilegítima, pela autora, da mercadoria da ré, (iii) com prejuízo igual ao valor da mercadoria retida, sendo estas as questões a decidir.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
*
A sentença autora deu como provados os seguintes factos, que interessam à decisão daquelas questões:
- A autora é uma sociedade comercial que se dedica, à actividade de exploração de todas as actividades relacionadas com a indústria de frio, designadamente, a armazenagem, embalagem, rotulagem, transporte e distribuição de produtos congelados e refrigerados.
- No âmbito da sua actividade, a autora apresentou à ré uma proposta para a prestação de serviços de logística e transporte para o ano de 2009, que foi aceite pela ré.
- No âmbito da referida prestação de serviços, a autora prestou à ré, a pedido desta, diversos serviços de transporte e armazenagem.
- Os serviços de armazenagem eram prestados nas instalações da autora, sitas na X e em Y, e os serviços de transporte eram prestados nos locais de recolha ou entrega indicados pela ré.
- Os serviços prestados pela autora eram solicitados pela ré, por escrito, através do envio de e-mails, bem como por telefone em certos casos, com a descrição dos produtos a recolher, bem como o local de entrega dos mesmos.
- A autora prestou à ré os serviços constantes das seguintes facturas, emitidas e vencidas nas seguintes datas e correspondentes aos seguintes serviços e valores:
Factura n. | Serviços de | Emitidas em | Vencidas em | No valor de |
C003998 | Transporte | 15-04-2009 | 15-05-2009 | 5,66€ |
C011881 | Transporte | 15-04-2009 | 15-05-2009 | 411,12€ |
C004099 | Transporte | 30-04-2009 | 31-05-2009 | 477,79€ |
C012105 | Transporte | 30-04-2009 | 31-05-2009 | 602,74€ |
C004146 | armazenagem e preparação de mercadoria | 30-04-2009 | 31-05-2009 | 819,22€ |
C012305 | armazenagem e preparação de mercadoria | 30-04-2009 | 31-05-2009 | 6871,09€ |
C012612 | Transporte | 15-05-2009 | 15-06-2009 | 846,56€ |
C004343 | Transporte | 31-05-2009 | 30-06-2009 | 28,90€ |
C004344 | armazenagem e preparação de mercadoria | 31-05-2009 | 30-06-2009 | 288€ |
C013024 | Transporte | 31-05-2009 | 30-06-2009 | 1089,37€ |
C013203 | armazenagem e preparação de mercadoria | 31-05-2009 | 30-06-2009 | 7191,68€ |
C013292 | Transporte | 15-06-2009 | 15-07-2009 | 194,20€ |
C013777 | Transporte | 30-06-2009 | 31-07-2009 | 113,88€ |
C004614 | armazenagem e preparação de mercadoria | 30-06-2009 | 31-07-2009 | 66,80€ |
C014061 | armazenagem e preparação de mercadoria | 30-06-2009 | 31-07-2009 | 2760,74€ |
C014823 | Armazenagem | 31-07-2009 | 31-08-2009 | 2632,46€ |
C005075 | Armazenagem | 31-08-2009 | 30-09-2009 | 63,12€ |
C015606 | Armazenagem | 31-08-2009 | 30-09-2009 | 2632,46€ |
C005311 | Armazenagem | 30-09-2009 | 31-10-2009 | 62,50€ |
C016405 | armazenagem e preparação de mercadoria | 30-09-2009 | 31-10-2009 | 2518,88€ |
C005562 | Armazenagem | 31-10-2009 | 30-11-2009 | 62,80€ |
C017131 | Armazenagem | 31-10-2009 | 30-11-2009 | 2392,80€ |
C005815 | Armazenagem | 30-11-2009 | 31-12-2009 | 62,39€ |
C018036 | Armazenagem | 30-11-2009 | 31-12-2009 | 2376,04€ |
C006067 | Armazenagem | 31-12-2009 | 31-01-2010 | 62,80€ |
C018853 | Armazenagem | 31-12-2009 | 31-01-2010 | 2392,80€ |
- Pelo menos em 03 de Julho a partir de Setembro de 2009 a autora suspendeu os serviços de transporte e preparação da mercadoria, mantendo os serviços de armazenagem, o que fez porque a ré não pagava os serviços anteriormente prestados [o itálico a e rasura resultam do que se decidirá à frente, neste acórdão].
- Os serviços de armazenagem dos congelados da ré ocuparam espaço nos armazéns de frio da autora não permitindo que esse espaço fosse ocupado com mercadoria de outros clientes.
- A ré não efectuou o pagamento dos serviços atrasados, tendo enviado cartas e e-mails a pedir que os serviços voltassem a ser prestados e a mercadoria disponibilizada.
- A mercadoria da ré armazenada na autora tinha o prazo de validade que variava entre 16/06/2009 e 20/04/2011.
- A mercadoria armazenada em setembro de 2009 valia pelo menos 10.000€.
- Em 17/02/2010 foi arrestada toda a mercadoria da ré que se encontrava armazenada nos armazéns de frio da autora, à ordem do processo cautelar n.º xx/10.0xxxx do juízo cível de x, em que é requerente a Z, SA, tendo a autora conhecimento do arresto nessa data.
- No âmbito do arresto a mercadoria foi avaliada em 10.000€.
- Foi decretada a insolvência da ré por sentença da Instância Central, secção de Comércio, da comarca de Lisboa, proferida em xx/xx/2014 e transitada em julgado em xx/xx/2014.
I
Da impugnação da decisão da matéria de facto
*
Ponto 7 dos factos provados
[…]
Pelo que a impugnação procede e o ponto deve ser alterado no sentido proposto pela ré, com a precisão que resulta dos dados que antecede, ou seja, que já em 03/07/2009 os serviços estavam suspensos.
*
Da retenção da mercadoria
Na decisão da matéria de facto diz-se que não se provou “tudo o demais relativo à invocada “retenção” da mercadoria pela autora e que [a ré] se viu impedida por esta de levantar a mercadoria.”
A fundamentação desta decisão foi a seguinte:
“[…] Não se provou que a autora tenha retido a mercadoria. Apenas se provou que ela suspendeu os serviços de preparação da mercadoria para entrega aos clientes e transporte da mesma até estes. O depoimento de JQ foi contrariado pelo das outras testemunhas, nomeadamente JT, que disse que nunca recebeu pedidos de levantamento da mercadoria. Acresce que a ré nem sequer explicou onde é que ia colocar a mercadoria depois de a levantar das instalações da autora, pois tratava-se de mercadoria que tinha de estar necessariamente em instalações de frio, não podia ser colocada em qualquer sítio.”
A ré entende que se deve dar como provado a retenção invocada pela ré e que esta estava impedida de levantar as mercadorias nos armazéns da autora e isto com base na seguinte fundamentação, sintetizada nas conclusões do recurso (que se transcrevem na parte minimamente útil):
[…]
Decidindo:
Trata-se de saber se a autora apenas deixou de prestar serviços de preparação da mercadoria para a entregar à ré, ou se, mais do que isso, reteve a mercadoria, impedindo a ré de a ir buscar/levantar, bloqueando a saída da mesma (para utilizar as expressões que a ré utilizou, por exemplo, nos artigos 13, 15, 17 e 21 da contestação).
Se a autora tivesse a mercadoria da ré colocada ao ar livre, em local de acesso livre ao público, ou pelo menos aos seus clientes, bastando a estes ir até lá, pegar nela e levá-la consigo, o facto de a ré suspender os serviços de preparação da mercadoria não se podia ser entendido como retenção da mesma.
No entanto, não era disso que se passava, mas sim de a autora ter a mercadoria da ré colocada num seu (dela, autora) armazém, em locais precisos para acesso aos quais era necessário saber os códigos dos locais e depois ter os meios para aceder a eles; e de, depois de localizados os locais e deslocada a mercadoria, ter de ser preparada e colocada em caixas e depois levada até à ré.
Assim, a ré não podia ir até ao armazém da ré, entrar no local onde a sua mercadoria estava colocada, pegar nela e levá-la; tudo isto tinha que ser feito pela autora, no dia anterior, para que no dia seguinte a mercadoria da ré estivesse disponível para esta
[…]
Pelo que, a suspensão dos serviços de preparação da mercadoria, que tinha um custo cobrado pela autora à ré, equivale à retenção da mercadoria.
Daí que seja o próprio teor dos e-mails da autora, ou dos depoimentos prestados pelas suas testemunhas, a revelar inequivocamente, a retenção da mercadoria, quando, para além do que antecede, referem que “a retirada do stock implica a liquidação integral dos valores” (e-mail de fl. 171, já transcrito acima) ou, citado pela própria autora, “o resto teríamos libertado” (depoimento do director financeiro da autora, parte da passagem de 00:22:17 a 00:24.45, pág. 12 das contra-alegações da autora).
É pois inequívoco que a mercadoria estava retida, presa. O mais que as testemunhas da autora ou as contra-alegações tentam fazer é explicar o inexplicável.
Assim, deve ficar a constar dos factos provados, um 9-A, com a seguinte redacção:
A autora respondeu, numa das vezes, que só retomaria os serviços de preparação da mercadoria contra o pagamento total dos valores vencidos – sendo que, sem esses serviços, que só podiam ser realizados pela autora, não era possível retirar a mercadoria -, e noutra que a retirada do stock implicaria a liquidação integral dos valores num único pagamento.
*
Do valor da mercadoria
Na decisão da matéria de facto diz-se que não se provou o valor da mercadoria alegado pela ré de 162.557,07€.
[…]
A fundamentação desta decisão foi a seguinte:
“Quanto ao valor da mercadoria, apenas foi possível apurar o valor dado no arresto uma vez que não se podia dar como provado o valor indicado pela ré, uma vez que parte da mercadoria já estava fora do seu prazo de validade, outra já estava a atingir esse prazo, o que obviamente afectava a determinação do valor da mesma.”
A ré entende que se deve dar como provado o valor da mercadoria de 162.577,07€, com a seguinte fundamentação sintetizada nas conclusões de recurso (que se transcrevem na parte útil):
[…]
A autora responde que:
*
Decidindo:
[…]
Como se vê, a ré não tem razão, nada havendo a censurar à decisão recorrida por não ter conseguido dar como provado o valor da mercadoria da ré retida pela autora em inícios de Julho de 2009.
II
Do recurso sobre matéria de direito
As razões da sentença:
“Pretendia a ré obter o pagamento da mercadoria armazenada na autora, tendo invocado que houve uma ilícita retenção da mesma, porque abusiva.
Reconhecendo que assistia razão à autora na retenção da mercadoria em virtude do incumprimento da ré, veio no entanto alegar que a autora não podia reter a mercadoria uma vez que a mesma era de valor muito superior ao da dívida.
Acontece porém que a ré não provou os factos que alegou e que sustentavam a sua pretensão, nomeadamente não provou que houve retenção da mercadoria e que esta era de valor superior ao da dívida.
Acresce que, ainda que assim não fosse, o pedido reconvencional tinha de improceder.
A ré não podia simplesmente, como fez, vir dizer que houve retenção ilícita e que emitiu uma “nota de débito” com vista a que a autora lhe pagasse a mercadoria. Desde logo parece que a ré erigiu à categoria de causa de pedir a referida “nota de débito”. A ré tinha de alegar que prejuízos em concreto teve com a invocada retenção. Deixou de vender a mercadoria a determinados clientes em concreto não tendo por isso recebido o preço? Nada disso alegou, não se percebendo pois a que título veio exigir o pagamento da forma como o fez, ou seja, imputando à autora o preço da mercadoria, como se existisse algum contrato de compra e venda. A única causa de pedir configurável era a responsabilidade civil, neste caso contratual, que implicava que a ré alegasse e provasse a existência de prejuízo, o que não fez (provavelmente porque não existia).
[…]”
Diz a ré nesta parte:
- […] Ainda que fosse legítimo à autora o exercício do direito de retenção, esta sempre pecaria pela sua excessividade e por não ter sido diligente e cumprido o dever do credor pignoratício.
[…]
- A retenção implica necessariamente os deveres de diligência de conservação da mercadoria, pois os deveres da retenção equiparam-se aos deveres do credor pignoratício, vide arts 671 e 674 do Código Civil.
- A autora não foi diligente, conforme lhe competia, pois reteve as mercadorias e deixou ultrapassar o prazo de validade.
- Se havia uma divida, e a ré não a nega, a autora tinha uma de três alternativas: (i) vendia a mercadoria até perfazer o valor da divida; (ii) retinha apenas a mercadoria que perfizesse o valor da divida e libertava a restante; (iii) libertava a totalidade da mercadoria e instaurava uma acção judicial contra a ré.
[…]
- O prejuízo da ré é o valor das mercadorias que por culpa da autora deixou de comercializar.
[…]
- […] Face ao valor em divida de 37.026,80€, e tendo em contraposição o valor da mercadoria, parece que é evidente a excessividade da retenção.
Responde a autora:
FF. Conforme ficou sobejamente demonstrado e provado, a autora em nenhum momento impediu que a ré retirasse a sua mercadoria das instalações, não exercendo nenhuma retenção de mercadoria.
GG. A ré não conseguiu provar a alegada retenção de mercadorias.
HH. A autora provou que a ré não tentou em nenhum momento proceder ao levantamento da mercadoria e que, se o tivesse feito, a autora teria autorizado o seu levantamento.
II. A ré nunca tentou reaver a mercadoria que se encontrava nas instalações da autora.
*
Do direito de retenção
Alterados os factos e deles resultando evidente que a autora reteve a mercadoria da ré que tinha em seu poder, falta agora saber se tal corresponde ao exercício do direito de retenção e se este foi utilizado de forma excessiva. E, no caso positivo, se isto provocou danos à ré que a autora deva indemnizar.
A autora prestou à ré serviços de armazenagem e transporte de mercadoria. Em consequência disso, a ré ficou a dever-lhe pelo menos cerca de 21.000€ (valor aceite na contestação), já vencidos em 03/07/2009, e a autora com mercadoria da ré em seu poder (que tinha que entregar a pedido desta).
Para forçar a ré a pagar aquilo que já lhe estava a dever (e que a ré não pagava já depois de vencido), a autora, a partir daquela data, reteve, “prendeu”, a mercadoria da ré e só a “libertaria” se a ré lhe pagasse, de uma vez, tudo aquilo que já estava vencido.
Isto corresponde ao exercício do direito de retenção, por algum das várias vias configuráveis com base nas normas dos artigos, todos do Código Civil, 754 (o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados), 755/1-a (gozam ainda do direito de retenção: O transportador, sobre as coisas transportadas, pelo crédito resultante do transporte) e 755/1-e ([e] o depositário e o comodatário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes).
A argumentação em contrário da autora baseia-se na falta de prova de factos que agora se deram como provados, pelo que já não tem relevo.
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Do excesso ou do abuso do direito de retenção
Com base no art. 334 do CC (abuso de direito: é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito) por via implicitamente do art. 762/2 do CC (No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé), a ré vem dizer que o direito de retenção foi exercido pela autora de modo excessivo e que por isso é ilícito.
O excesso resultaria da comparação entre o valor da divida da ré à autora, pouco mais de 21.000€ na lógica da contestação (embora nas alegações de recurso a ré fale num valor um pouco superior a 37.000€) e o valor da mercadoria da ré retida pela autora, mais de 161.000€ segundo a ré.
Esta diferença de valores talvez permitisse discutir o carácter abusivo do exercício do direito (desenvolvendo a questão, Júlio Gomes, Do direito de retenção, arcaico mas eficaz…, CDP n.º 11, pág. 21, e Ana Taveira da Fonseca, Da recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito…, Almedina, 2015, págs. 356 a 358 e 390), sendo certo, entretanto, que o excesso do valor da coisa sobre o valor da dívida é um pressuposto da função de coerção que o direito de retenção exerce; como diz, Pestana Vasconcelos (Direito das Garantias, Almedina, 2011, págs. 314/315), “[e]le é tanto mais eficaz quanto haja uma diferença de valor entre a coisa retida e o crédito do retentor, assim como a necessidade que o devedor, dono dessa coisa, dela tenha para a sua actividade.” (Ana Taveira da Fonseca lembra nesta parte o ac. do TRL de 15/12/2011, publicado na CJ.2011, tomo 5, pág. 132 e segs).
De qualquer modo, por um lado, não se provou o valor da mercadoria em causa e, por outro lado, a mercadoria em causa era composta de bens de consumo, com prazo de validade, ou seja, bens deterioráveis, sendo que os prazos de validade variavam entre 16/06/2009 (data já ultrapassada em 03/07/2009) e 20/04/2011.
Aliás, estes dois aspectos estão relacionados entre si e ambos afastam a excessividade do exercício do direito de retenção com base na comparação entre os valores da dívida e da mercadoria.
A autora estava a reter mercadoria de valor incerto e deteriorável (parte com prazo já ultrapassado e outra parte, presumivelmente – já que os prazos variavam entre os limites assinalados – com prazos muito reduzidos ou reduzidos significativamente), pelo que o seu valor ia diminuindo, para pressionar o pagamento de uma dívida de mais de 21.000€, dívida essa que iria aumentando (porque a armazenagem da mercadoria era precisamente um dos serviços contratados e que necessariamente teriam que continuar a ser prestados dada a natureza da mercadoria).
Nestas condições, com a dívida a aumentar e o valor da mercadoria a diminuir (o que corresponde às regras da experiência comum das coisas: uma mercadoria com prazo de validade vale tanto menos quanto menor for o prazo de validade que restar), não se pode dizer que a retenção da mercadoria de valor incerto fosse manifestamente excessivo para forçar o pagamento da dívida em causa.
[note-se que:
– não se está a utilizar aquilo que na fundamentação da decisão da matéria de facto se escreveu acima para dar os factos como provados, pois que aquela fundamentação não equivale a factos provados; aqui, na parte de direito, estão-se a utilizar só os factos provados ou as regras da lógica e da experiência comum das coisas; daí que não se aproveite agora, por exemplo, aquilo que acima se disse em concreto sobre os prazos de validade e sobre a variação dos preços em relação com os prazos de validade e se tenha que chegar lá, ou perto, com base noutra argumentação;
– os factos que servissem para caracterizar o exercício do direito de retenção como excessivo, por via do art. 334 ou 762/2 do CC, como factos impeditivos do exercício do direito da autora, teriam que ser provados pela ré: art. 342/2 do CC: A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita;
– quanto ao relevo da desvalorização da coisa, veja-se, por exemplo, o art. 674/1 do CC, também invocado pela ré mais abaixo, a propósito do qual Antunes Varela e Pires de Lima dizem: “Ao lado da perda ou deterioração material, cabe aqui também a hipótese de receio de perda ou deterioração jurídica ou de valor […] (pág. 663 do vol. I do CC anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982; os sublinhados foram introduzidos agora)].
*
*
Da falta de cumprimento dos deveres do retentor
Invoca a ré, por outro lado, que a autora não cumpriu os deveres do credor pignoratício (remete para os arts. 671 e 674 do CC), isto porque não teria sido diligente – reteve as mercadorias e deixou ultrapassar o prazo de validade –, devendo ter tomado entretanto uma de três atitudes (i) vender a mercadoria até perfazer o valor da divida; (ii) reter apenas a mercadoria que perfizesse o valor da divida e libertar a restante; (iii) libertar a totalidade da mercadoria e instaurar uma acção judicial contra a ré.
Desde logo, tendo-se chegado à conclusão de que a autora podia exercer, como exerceu, o direito de retenção das mercadorias e que esse exercício não era, no caso, abusivo, se o prazo de validade das mercadorias foi ultrapassado no decurso do exercício lícito do direito de retenção, tal seria em princípio imputável à ré, que não cumpriu antes, como devia, a obrigação que tinha para com a autora.
De qualquer modo, veja-se o resto da argumentação da ré:
O art. 671 do CC pode, realmente, ser invocado pela ré, por força do art. 758 do CC (: Recaindo o direito de retenção sobre coisa móvel, o respectivo titular goza dos direitos e está sujeito às obrigações do credor pignoratício, salvo pelo que respeita à substituição ou reforço da garantia).
O art. 671-a diz: O credor pignoratício é obrigado: a) A guardar e administrar como um proprietário diligente a coisa empenhada, respondendo pela sua existência e conservação.
Ora, esta norma impunha que a autora conservasse a mercadoria, o que ela fez, mantendo a mercadoria nos seus armazéns. Norma esta, aliás, que já foi utilizada acima, implicitamente, como fundamento do aumento da dívida da ré. Se a autora estava obrigada a conservar a mercadoria e se esse era um serviço pelo que ela se cobrava e tinha como tal sido contratado pela ré, a dívida ia aumentando.
Já o art. 674 do CC não é aplicável, porque – como é explicado por Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 749, em anotação ao art. 758 do CC -, o direito de retenção só existe quando estiver vencida a obrigação (ou como se já estivesse vencida na hipótese do art. 757/1 do CC – veja-se aqueles autores em anotação ao art. 757, pág. 747), sendo que o art. 674 dispõe para a hipótese de a obrigação ainda não estar vencida.
Em contrapartida seria aplicável o art. 675/1 do CC, de que a ré não fala, mas que, este sim, rege para a hipótese de a obrigação já estar vencida. Diz esta norma: Vencida a obrigação, adquire o credor o direito de se pagar pelo produto da venda executiva da coisa empenhada, podendo a venda ser feita extraprocessualmente, se as partes assim o tiverem convencionado.
Ora, daqui resulta o seguinte:
Primeiro: trata-se de um direito, não de um dever (já agora, o art. 674 também não obrigava a nada, antes atribuía uma faculdade). Ou seja, a autora não tinha a obrigação ou o dever de proceder à venda.
Segundo: é perfeitamente compreensível que a autora não tenha feito uso de tal direito: porque se tratava de uma quantidade enorme de produtos que exige naturalmente uma organização de meios predisposta à venda de mercadorias por meios de distribuição, meios esses não disponíveis a pessoas fora da área de actividade em causa; porque exigiria a propositura de uma acção no tribunal – já que não existia, logicamente, qualquer convenção das partes a prever a venda extraprocessual -, com o inevitável risco de enorme demora – este processo, por exemplo, vem de 2010 e foi decidido em 1ª instância em 2016 -, que não permitiria acautelar o risco de ultrapassagem do prazo de validade da mercadoria; porque tudo isto acarretaria o pagamento de custos elevados; porque a autora não teria meios para saber se conseguiria cobrir com a eventual venda, quando a fizesse, a dívida e os custos em que incorresse; porque, se a autora via que a ré não tratava, ela própria, da venda da mercadoria, a autora podia muito bem pensar que ela não a conseguiria fazer por si própria; etc, etc.
Terceiro: a ré também tinha o direito de vender a mercadoria. O facto de ela estar retida não tira ao proprietário a disponibilidade jurídica da coisa (tal como resulta, a contrario, do disposto no art. 695, aplicável por força do art. 758, todos do CC – como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 687, em anotação ao art. 695, com a alienação ou oneração da coisa, em nada são prejudicados os direitos do credor, dados os direitos de sequela e de prioridade que lhe são atribuídos; referindo a sequela e a inerência do direito de retenção, veja-se Oliveira Ascensão, Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 552; falando na hipótese de a coisa ser vendida depois da garantia ter sido constituída e da oponibilidade erga omnes do direito de retenção, veja-se Ana Taveira da Fonseca, obra citada, págs. 368/369). Vendendo-a pelo preço que a ré diz que ela valia, podia pagar logo a dívida à autora, que assim deixava de ter o direito de retenção e a ré logo podia ir buscar a mercadoria para a entregar ao comprador. Pelo que, podendo a ré fazer aquilo que censura à autora não ter feito, a causa do prejuízo que dai decorresse seria imputável a ela, e não à autora.
Posto isto, é também já agora possível responder à argumentação da ré quanto às alternativas de atitudes da autora (referidas no início desta parte do acórdão sob (i) a (iii)):
(i) nada autoriza a pensar que a autora pudesse vender, realmente, em termos práticos, a mercadoria; que tivesse meios para o efeito, que tivesse razoáveis expectativas de o fazer com eficácia, tanto mais que se teria de tratar de uma venda processual; etc.
(ii) ela não podia reter apenas a mercadoria que perfizesse o valor da divida e libertar a restante, porque não era possível saber qual a parte da mercadoria necessária para um e para outro efeito, como resulta de tudo o que se disse acima: nada garantia à autora que a mercadoria que retivesse não ficaria sem validade (e por isso sem valor) num curto espaço de tempo, deixando de servir de garantia do pagamento da dívida já vencida;
(iii) não se pode exigir a nenhum credor que desista de uma garantia do seu crédito e de um meio de coerção ao cumprimento das obrigações, que é do que se trata no direito de retenção (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 4ª edição, Almedina, 1990, pág. 561; Pestana Vasconcelos, obra citada, págs. 313 e 314).
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Em suma, são improcedentes as conclusões da ré quanto à matéria de direito: embora, contra o que concluiu a sentença, a autora tenha realmente exercido o direito de retenção que a ré dizia que ela tinha exercido, fê-lo de modo legítimo, sem que se prove excesso dos limites impostos pela boa fé, isto é, sem abuso de direito (art. 334 do CC), ou a violação de outros deveres que sobre ela impendiam.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, embora com outra fundamentação.
Custas pela ré.
Lisboa, 27/10/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto