Acção comum – Loures – Inst. Local – Secção Cível
Sumário:
I – Não deve ser anulado o processo a partir da decisão recorrida para se ouvirem as partes sobre uma questão de direito nova objecto dessa decisão (arts. 195 e 201 do CPC), se a decisão de recurso sobre essa questão dá razão à parte que foi prejudicada com a decisão recorrida e a parte contrária teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão nas contra-alegações de recurso.
II – Se os actos invocados pelas autoras numa acção de petição de herança (art. 2075 do Código Civil) não implicam que o bem tenha passado a ser propriedade da ré, não se pode dizer que não se verifica o pressuposto da pertença dos bens à herança e que a petição é inepta por não fazer o pedido de anulação de tais actos (para que eles passem a pertencer à herança).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A e outras intentaram esta acção contra R, pedindo que (i) esta (= ré) fosse condenada a restituir à herança da mãe delas todas 49.287,65€; (ii) fosse declarada a perda do direito da ré sobre tal quantia; e (iii) a ré fosse condenada a indemnizar aquela herança com o valor dos frutos que aquele bem propiciou e de que a mesma usufrui em exclusividade desde 26/03/2012, indemnização a ser liquidada em execução de sentença.
Alegaram para o efeito, em síntese, que a mãe delas era titular de uma conta de aforro, no valor referido, que foi resgatada com um cheque emitido à ordem dela e depois depositado com um endosso na conta da ré; que este resgate e endosso foram feitos pela falecida, quando a mesma, por virtude de síndrome demencial, já não tinha capacidade psíquica para tal; e que tal apenas sucedeu por a ré se ter aproveitado da debilidade da mãe e lhe ter pedido para assinar o talão de resgate e que lhe endossasse o referido cheque, com o objectivo de se apropriar do dinheiro, em prejuízo das demais herdeiras e que, por consequência, pertencendo esse dinheiro à falecida, faz parte da herança e deverá, ao abrigo do disposto no art. 2075 do Código Civil (CC), ser-lhe restituído; no que concerne ao pedido (ii) sustentaram a sua pretensão no disposto no art. 2096/1 do CC e na circunstância de a ré dolosamente lhes ocultado o resgate e subsequente depósito na sua conta bancária e ter alegado desconhecer o “paradeiro” de tal montante.
A ré contestou, impugnando, quer os factos, no essencial porque o dinheiro não seria apenas da mãe, mas sim dela, do marido (apenas pai da ré) pré-falecido, e dela própria; quer o direito, pois que, diz, sem inventário ou relacionação dos bens, a acção seria destituída de fundamento.
No despacho saneador entendeu-se que a ré tinha excepcionado a existência de um erro na forma do processo e decidiu-se – depois de as autoras se terem pronunciado sobre a matéria da excepção – que esta era improcedente; mas depois entendeu-se que faltava o pedido de declaração de invalidade dos actos praticados pela falecida e que, por isso, a petição era inepta (art. 186/2-a do CPC), pelo que se declarou nulo todo o processo e se absolveu a ré da instância (arts 278/1-b, 576, 577-b e 578 do CPC).
As autores recorrem deste despacho saneador pelo seguinte (em síntese deste tribunal de recurso):
(a) Foi uma decisão surpresa e por isso nula (arts. 3/3 e 201, ambos do CPC), pois que o tribunal a quo se pronunciou sobre a ineptidão da petição inicial, que não tinha sido alegada pela ré, sem dar às partes oportunidade de sobre ela se pronunciarem ou, eventualmente, as autores a suprirem.
(b) Sendo o pedido de declaração de invalidade dos actos praticados pela falecida um pedido instrumental nunca o tribunal a quo poderia concluir pela ineptidão da petição inicial, por falta desse pedido, pois assistia às autoras a possibilidade de alterar e ampliar o pedido, nos termos do disposto no art. 265/2 do CPC.
(c) Para além disso, apesar de na conclusão da petição inicial não ter sido formulado expressamente aquele pedido, o mesmo teria sido formulado ao longo da petição inicial.
(d) Quer a ré quer o tribunal a quo perceberam a natureza do pedido implícito à restituição dos valores monetários, bem como os efeitos que dele as autoras pretendiam extrair, pelo que a petição inicial não podia ser julgada inepta (art. 186 do CPC);
(e) A entender-se que aquele pedido não tinha sido formulado, o tribunal a quo devia ter convidado as autores a suprir a deficiência da petição inicial (arts 6, 7, 411, 547 e 590, todos do CPC).
A ré não contra-alegou.
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Questão que importa decidir: se se verifica a nulidade invocada; e se a petição inicial é inepta.
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Os factos que importam à decisão desta questão resultam do que antecede.
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Quanto à nulidade
Crê-se que era entendimento quase unânime, até há uns anos atrás, que, quando uma decisão era proferida de surpresa, antes das partes terem o direito de se pronunciar sobre a questão de direito nova, o que se verificava era uma nulidade processual (arts. 195 e 201 do CPC) e não uma nulidade da decisão (despacho ou sentença).
Sendo ela uma nulidade processual, não seria recorrível mas sim arguível. Ela teria de ser objecto de uma reclamação e o despacho que sobre ela se pronunciasse é que poderia ser impugnado com um recurso. Dir-se-ia ainda que um despacho ou sentença que cometem uma nulidade processual não a podem estar, simultaneamente, a pôr a coberto deles.
Neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 10, e Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC anotado, vol. 2º, 2ª edição, 2008, págs. 698-699; os acs. do STJ de de 13/01/2005, proc. 04B4031; de 14/05/2009, proc. 09B0677; de 01/02/2011, proc. 6845/07.3TBMTS.P1.S1; de 12/07/2011, proc. 620/1999.C1.S1; de 11/10/2011, proc. 175/2002.P1.S1 [os dois últimos só com sumário publicado no sítio do STJ] e de 06/12/2012, proc. 469/11.8TJPRT.P1.S1; e, por exemplo, ainda, o ac. do TRP de 02/03/2015, 39/13.6TBRSD.P1 (com anotação de Miguel Teixeira de Sousa, no post de 23/03/2015, sob o título jurisprudência 105).
Mas, actualmente, existe uma forte corrente em sentido contrário, com o apoio de Miguel Teixeira de Sousa. As autoras, invocam, por exemplo, três acórdãos (do TRL de 11/03/2008, proc. 2051/2008-7, de 04/06/2009, 67/00.1DSTB-B.L1-2, e de 02/07/2013, proc. 7892/10.3TBCSC.L1-7) que entendem que esta nulidade processual está coberta por um despacho (ou sentença quando for o caso) pelo que pode ser objecto de um recurso. No mesmo sentido, se pronunciou o ac. do TRE de 10/04/2014, 500/12.0TBABF-K.E1, com anotação favorável daquele Prof. no post de 10/05/2014, sob o título ‘decisão-surpresa; nulidade da decisão’, onde entende que há um excesso de pronúncia da decisão, causa do vício previso no art. 615/1-d do CPC. O ac. do TRE cita dois outros que vão no mesmo sentido: ac. do TRL de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1; e ac. do TRP de 18/06/2007, proc. 0732861; no mesmo sentido, ainda, vai o ac. do TRE de 19/05/2016, 124/14.7T8ABT.E1, com outra anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa, no post de 14/10/2016, jurisprudência 450; e ainda o TRL de 09/10/2014, 2164/12.1TVLSB.L1-2.
No caso dos autos não se considera necessário tomar posição sobre a questão, face ao que se vai decidir de seguida.
É que, a admitir-se que seria de conhecer o recurso de tal nulidade processual [ou de tal decisão nula] e a que impugnação seria procedente, a verdade é que, sendo também de decidir o recurso do despacho (que decidiu a ineptidão) no sentido favorável às autoras e tendo a ré tido a oportunidade de se pronunciar sobre essa questão nas contra-alegações de recurso, não teria sentido anular o processado, para que as autoras se pudessem pronunciar, na primeira instância, sobre a ineptidão da petição inicial. Tem aplicação a razão de ser da regra da parte final do n.º 3 do art. 278 do CPC.
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A fundamentação da decisão do tribunal recorrido, para considerar inepta a petição inicial, é a seguinte (em síntese deste tribunal de recurso):
A acção de petição da herança tem como causa de pedir a alegação do óbito, da qualidade de herdeiro e da subsequente apropriação de bens pertencentes ao acervo hereditário.
Ora, segundo as autoras, a apropriação ocorreu em 26/03/2012 e o óbito ocorreu passado mais de um ano, em 21/09/2013; pelo que à data do óbito os bens já não pertenciam à falecida mas sim à ré.
É certo que as autoras alegaram que a ré, numa atitude dolosa, se aproveitou da incapacidade de exercício da mãe, para obter da mesma a assinatura do talão de resgate e o subsequente endosso do respectivo cheque a seu favor, para assim se apropriar do montante cuja restituição pretendem.
Mas as autoras não retiraram destas alegações qualquer efeito útil, nem fizeram o pedido de declaração de invalidade dos actos praticados pela mãe sem ter capacidade para tal.
Só a procedência deste pedido faria com que o valor do resgate passasse a integrar a herança da falecida e só assim os outros pedidos poderiam ser apreciados e proceder.
A ineptidão da petição inicial, no caso, não é sanável.
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Transmissão da propriedade ou prática de actos de apoderamento com intenção de apropriação
Nos termos com que usualmente a questão é posta – por exemplo, ac. do STJ de 07/03/1991, proc. 078339 –, numa acção de petição de herança (art. 2075 do Código Civil) é necessário alegar e provar (i) factos para o reconhecimento da qualidade sucessória, (ii) que o bem cuja restituição é pedida pertence à herança do de cujus e (iii) que a detenção deste se faz sem titulo legitimo (também decorre, dos acs. do STJ de 10/07/2003, proc. 04A126, e de 29/10/2009, proc. 577/04.1TVLSB).
O despacho saneador tem como pressuposto que os actos praticados pela mãe das autoras e ré transmitiram a propriedade do valor do resgate para a ré. E que por isso os bens já não pertenciam ao património da mãe à data do seu óbito. E que aqueles actos deveriam ser objecto de um pedido de anulação pelas autoras (provavelmente com base na invocação de algumas das normas dos arts. 247, 251, 252, 253, 254, 257 e 282 do CC).
Mas não é assim.
Nos termos em que as autoras os alegaram, os actos que a ré terá levado a mãe a praticar não foram actos de transmissão da propriedade, mas actos através dos quais, com outros da ré, esta se apoderou da posse do dinheiro e com os quais se tenta apropriar da propriedade dele, sonegando-o à herança da falecida.
As autoras, na petição, não alegam que a mãe transmitiu o dinheiro do cheque para a ré. E a data de 26/03/2012, invocada pelo despacho recorrido, refere-se ao momento a partir do qual as autoras entendem que a ré passou a usufruir do dinheiro com exclusividade, o que não implica que as autores entendam que a ré tenha passado a ser dona dele por ter adquirido a sua propriedade através de actos praticados pela mãe, mas por se ter apoderado da posse dele.
Dito de outro modo: na lógica da petição das autoras, a ré não passou a ser proprietária do dinheiro, mas sim a estar na posse dele, através de actos da mãe e outros da ré, estes praticados com a intenção de se vir a apropriar dele, o que virá a conseguir com a sonegação do mesmo à herança.
Os actos praticados pela mãe foram só o resgate da conta de aforro e o endosso do cheque derivado desse resgate. Ora, o resgate não transmitiu quaisquer direitos, da autora para a ré, sobre o valor do aforro, e o endosso do cheque respectivo transmitiria, quando muito, para a ré, o direito cambiário e a propriedade do cheque (neste sentido, Carolina Cunha, Letras e livranças…, Almedina, 2012, págs. 77 a 95, especialmente logo nas págs. 77/78), já não a propriedade da quantia titulada pelo cheque.
Ou seja, mesmo que a mãe tenha feito um endosso para que o cheque fosse depositado na conta apenas da ré, o que não se sabe sequer se foi o caso ou se foi a ré que o aproveitou para o efeito, nem isso, só por si, transferiria a titularidade do dinheiro para a ré. Lembre-se aquilo que, por exemplo, é dito, a propósito de um caso paralelo, por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 451: “o facto de um cônjuge depositar certa quantia numa conta que está aberta apenas em seu nome não lhe dá a titularidade do bem. Isto é: se essa quantia for um bem comum, ou um bem próprio do outro cônjuge, de acordo com as regras do regime de bens, não muda de qualidade só porque se encontra depositada numa conta do cônjuge depositante.”
Assim sendo, como as autoras não alegaram que a propriedade do dinheiro tenha sido transmitida para a ré, muito menos apenas com base nos factos que dizem ter sido praticados pela mãe, não havia qualquer necessidade de (nem interesse em) anular qualquer dos actos praticados pela mãe.
E tudo isto independentemente do que as autoras agora dizem nas alegações de recurso, tentando adaptar a lógica da petição à argumentação do despacho recorrido, pois que, por exemplo, é evidente que não fizeram qualquer pedido de invalidade daqueles actos, implícito ou não.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, embora com fundamentos diferentes dos defendidos pelas autoras, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que o processo prossiga os seus termos normais, com o resto que falta do despacho saneador.
Custas por quem ficar vencido a final.
Lisboa, 10/11/2016
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto