Embargos de executado – Funchal – Inst. Central – Secção de Execução

            Sumário:

              I – Um título de crédito prescrito, que passe a valer como quirógrafo (art. 703/1-c do CPC), como reconhecimento de dívida ou promessa de prestação (art. 458 do CC), não se confunde com o contrato, escrito particular, que formalizou a causa da relação subjacente.

              II – Ao exequente não cabe o ónus da prova da existência da relação fundamental, cabe-lhe apenas o ónus de a alegar; ao executado cabe o ónus da prova da inexistência da relação fundamental alegada.

              III – Já muito antes da reforma de 2013 do CPC era praticamente unânime a posição doutrinal e jurisprudencial que admitia a força executiva de títulos de crédito prescritos (desde que o título de crédito mencionasse a causa da relação jurídica subjacente, ou, não a mencionando, se o negócio jurídico não fosse formal e a causa da obrigação fosse invocada na petição executiva), limitando-se aquela reforma a consagrar esta posição, portanto sem qualquer violação da segurança jurídica ou da protecção da confiança do devedor.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            O Banco, SA, requereu, em 08/07/2015, execução de uma livrança contra F, Lda, S e R, a sociedade como subscritora da livrança e os executados S e R como avalistas.

            Os executados deduziram embargos de executado, entre o mais excepcionando a prescrição da livrança com a consequente prescrição do direito de acção contra os obrigados cambiários, o que acarretaria a inexigibilidade da obrigação exequenda; e, face ao carácter formal do mútuo cambiário, associado ao facto de a dita livrança haver sido entregue em branco, a manifesta ausência de título executivo.

            A exequente contestou impugnando: ainda que prescrita a livrança tem força de título executivo enquanto documento particular, encontrando-se assinado pelo devedor contendo o reconhecimento de uma obrigação pecuniária; no requerimento executivo, fez-se constar expressamente que a livrança resulta de um contrato de mútuo, o qual consta expressamente mencionado na livrança; esta tem força executória que não decorre da obrigação cartular.

            Foi então proferido despacho saneador julgando os embargos procedentes quanto aos avalistas, por falta de título executivo quanto a eles, e improcedentes contra a sociedade executada.

            A sociedade executada recorre deste saneador-sentença, para que seja revogado e substituído por outra que julgue os embargos procedentes também quanto a si, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte útil):

  1. Para a consideração da improcedência da oposição, entendeu o tribunal a quo que a livrança apresentada à execução, ainda que prescrita, continuava a servir de título de crédito contra a mesma, enquanto mero quirógrafo, por haver sido invocada, no requerimento executivo, a respectiva alegada relação jurídica subjacente, ao abrigo do disposto no art. 703/1-c do CPC.
  2. […]
  3. O regime processual vigente restringiu a exequibilidade dos documentos particulares, ao arrepio do anterior regime processual que a estendia em geral a todos os quirógrafos;
  4. A exequibilidade dos meros quirógrafos no regime actual parece limitada aos títulos de crédito, desde que cumprida a exigência referida no final do mencionado normativo (cfr. trecho supra citado da exposição de motivos da proposta de lei 113/XII).
  5. A solução legislativa desse modo adoptada quanto à exequibilidade dos títulos de crédito como meros quirógrafos, designadamente quando prescritos nos termos da LULL, afigura-se incongruente, porquanto, objectiva e materialmente, nessa circunstância em que deixam de poder valer como título de crédito para todos os efeitos, nada os distingue, enquanto quirógrafo, de qualquer outro documento particular (cfr. ac do TRL de 19/02/2008, proc. 6283/2007-1, in http://www.dgsi.pt, cujo entendimento a respeito dessa identidade objectiva e material entre o título de crédito prescrito e qualquer outro documento particular se mantém plenamente em vigor).
  6. De todo o modo e para além disso, mantendo-se, por força da mencionada disposição, a exequibilidade dos títulos de crédito prescritos, como meros quirógrafos, tal como já antes acontecia, ao abrigo do regime processual anterior, mantém-se também, como válido e aplicável, o extenso labor doutrinário e jurisprudencial então desenvolvido a respeito das concretas condições de exequibilidade dos títulos de crédito prescritos enquanto meros quirógrafos;
  7. Mantém-se assim plenamente válido e aplicável o entendimento segundo o qual a exequibilidade de um quirógrafo se mostra excluída “quando estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título” (ac. do TRL de 27/06/2007, proc. 5194/2007-7, in http://www.dgsi.pt) – o que, à luz da narração do exequente feita no respectivo requerimento Inicial, é objectivamente o caso;
  8. Excluída, nesses termos, a exequibilidade da livrança em causa, porque prescrita, e, por outro lado, enquanto quirógrafo, não pode agora ser admitida a respectiva exequibilidade, nem mesmo face ao teor do art. 703/1-c do CPC, sob pena de violação do princípio da segurança e protecção da confiança, e, ultima ratio, do princípio constitucional do Estado de Direito democrático (cfr. ac do TRL de 26/03/2014, proc. 766/13.8TTALM.L1-4, in http://www.dgsi.pt aplicável mutatis mutandis) – isto, obviamente, considerando o facto de a livrança ter sido emitida e se ter vencido antes da entrada em vigor do dito “novo” CPC.

            O exequente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

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            Questões que importa decidir: se a livrança dada à execução não pode servir de título executivo.

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            Foram os seguintes os factos tidos como provados pela decisão recorrida, com interesse para a decisão daquela questão:

1. Na execução comum para pagamento de quantia certa de que estes autos são um apenso, instaurada pelo exequente, foi dada à execução uma livrança, que apresenta no seu rosto a menção “Contrato de Crédito CLS 0000”, onde consta como subscritora a sociedade executada, no valor facial de 31.131,58€, com data de emissão de 07/01/2007 e de vencimento de 05/08/2011, não paga integralmente na data de vencimento nem em momento ulterior.

[…]

3. A presente execução foi instaurada em 08/07/2015.

4. No requerimento executivo a exequente fez constar que:

         “No exercício da sua actividade bancária, o B celebrou com a 1.ª executada, em 29/01/2007, o contrato de mútuo – CLS 0000, conforme cópia do mesmo que ora junta como documento n.º 1 e dá por reproduzido para todos os efeitos legais. Clausulou-se no citado contrato que o capital mutuado, acrescido dos juros remuneratórios à taxa prevista naquele documento, para o qual se remete, a que acresceria ainda, em caso de mora, a sobretaxa legal em vigor, seria liquidado por débito na conta titulada pela 1.ª executada. Em razão das obrigações emergentes daquele contrato, o B entregou à 1ª executada a quantia acima referida, nos termos ali previstos. Sucede, porém, que a 1.ª executada não cumpriu com as obrigações a que se vinculou, tendo, por isso, o B promovido pelo preenchimento da livrança que lhe havia sido entregue como garantia do bom e pontual cumprimento do aludido contrato, pelo montante total de 31.131,58€, cujo vencimento ocorreu a 05/082011, tudo ao abrigo e nos termos do supra referido contrato junto como documento n.º 1. Os 2.º, 3.º executados declararam, no mesmo contrato, garantir as obrigações assumidas pela mutuária e ora 1.ª executada.

         O exequente é dono e legítimo portador de 1 livrança, subscrita pela 1.ª executada e avalizada pelos 2.º e 3.º executados, emitida em 07/01/2007, com vencimento em 05/08/2011, no montante de 31.131,58€, a qual se junta e se dá por integralmente reproduzida como documento n.º 2.

         Apresentada pelo exequente a pagamento, o montante titulado pela referida livrança não foi pago por nenhum dos responsáveis pelo seu pagamento, facto que até hoje se mantém.

         Os executados são, nos termos da lei, solidariamente responsáveis pelo pagamento ao exequente”.

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            A 1ª conclusão do recurso sintetiza, correctamente, a razão porque se julgaram improcedentes os embargos da sociedade executada.

            Esta executada vem agora sugerir, através da remissão para um acórdão do TRL de 2007, que “na execução estão em causa quantitativos que emergem de situações de incumprimento contratual que dependem da alegação e prova de factos que não têm expressão no próprio título.”

            A executada está a confundir questões distintas, argumentando como se o título executivo fosse o documento n.º 1, contrato de mútuo, em vez de ser o doc. 2, a livrança prescrita, a valer como quirógrafo, por conter uma promessa de prestação (art. 458 do Código Civil).

            Aquilo que a executada diz, é apenas aplicável quando o título executivo é o contrato – no caso o doc. 1 – a propósito do qual se costuma dizer que um escrito só serve de título executivo quanto às obrigações que constitui e não às obrigações de indemnização que venham a ser constituídas depois, por exemplo, em caso de incumprimento contratual.

            Assim, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção executiva, 6ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 44, nota 2: “Não é tão pouco exequível o título que formalize o contrato em cujo incumprimento se funde o direito a indemnização, ainda que as partes tenham nele estabelecido uma cláusula penal.” Ou dito de outro modo “não é exequível, atenta a diversa natureza das obrigações em causa, o documento particular que formalize o contrato objecto de resolução, para o efeito de fazer valer as consequências do incumprimento das obrigações dele derivadas.” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 33)

             O que aliás já era ensinado por Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 79, “O título exibido pelo exequente tem que constituir ou certificar a existência da obrigação, não bastando que preveja a constituição desta… Assim é que o documento particular no qual se fixe a cláusula penal correspondente ao não-cumprimento de qualquer obrigação contratual não constitui título executivo em relação à quantia da indemnização ou da cláusula penal estabelecida, por não fornecer prova sobre a constituição da respectiva obrigação.”

             Ainda neste sentido, o ac. do STJ de 01/07/2004 (04B2118) e o ac.o do TRC de 25/01/2011 (906/10.9TBACB.C1).

             E é apenas isto que o ac. do TRL citado pela executada (de 27/06/2007, proc. 5194/2007-7), diz.

            Nada disto se aplica ao título executivo que é o quirógrafo de uma livrança prescrita, pois que aqui o que vale é a promessa de prestação que dele consta, aplicando-se o art. 458 do CC.

            Na promessa de prestação, constante da livrança, não está em causa a previsão da constituição futura de obrigações, isto é, fazendo a aplicação à alegação da sociedade executada no caso dos autos, não está em causa qualquer indemnização derivada do incumprimento do contrato.

            Está em causa, antes, uma promessa de prestação, feita pelo devedor/sociedade executada, com a consequência de o credor/exequente ficar dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário (art. 458/1 do CC).

            É a isto que o art. 703/1-c do CPC permite servir de título executivo, desde que se cumpram as restantes exigências da sua parte final (: “desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”), exigências estas que, por um lado, permitem o controlo da validade formal do contrato em causa e, por outro, concretizam o ónus de alegação (só de alegação, não de prova) do exequente, ao identificar a relação fundamental, de modo a permitir depois ao executado alegar e provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos da relação fundamental invocada (neste preciso sentido, por exemplo, com referências ao ensino de Lebre de Freitas, o ac. do STJ de 07/05/2014, 303/2002.P1.S1: “1. Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458 do CC quando, atenta a sua natureza material, se consubstanciarem em actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa. 2. Porém, a parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão  tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respectiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458 do CC” – contra, sem razão, porque não tem em conta que o exequente continua a dispor de um título executivo e o disposto no art. 458 do CC, veja-se Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo civil executivo, 2016, págs. 89/90, pondo a cargo do exequente o ónus da prova da existência da relação fundamental alegada; este autor cita no mesmo sentido, para além de outros, Miguel Teixeira de Sousa, A acção executiva singular, Lex, 1998, págs. 68 e 69, mas este Prof. diz exactamente o contrário: “A conclusão de que, quanto às obrigações causais, o exequente deve indicar o respectivo facto constitutivo não deve levar a entender que esse facto se destina a ser provado por essa parte […]; na acção executiva […] não está em discussão a existência da obrigação exequenda, pelo que a causa de pedir só serve para individualizar essa mesma obrigação.”)

              Ou seja, aquelas exigências não transformam o contrato em causa em título executivo; este continua a ser o título de crédito/livrança prescrita.

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            Quanto ao argumento retirado, por raciocínio a contrario, do acórdão do TRL de 2014, isto segundo a executada, ou seja, que o quirógrafo não tinha força executiva antes da reforma de 2013, só a passando a ter com este, e que isso violaria vários princípios constitucionais, entre eles o princípio da segurança e protecção da confiança, é também manifesta a falta de razão da executada.

            Pois que, já há muito uma jurisprudência e doutrina quase unânimes admitiam a força executiva de títulos de crédito prescritos, isto desde que, na lição de Lebre de Freitas (A acção executiva, citada, págs. 43 a 45, 70 a 75, 86 a 90 e 181 e 182), o título de crédito mencionasse a causa da relação jurídica subjacente, ou, não a mencionando, se o negócio jurídico não fosse formal e a causa da obrigação fosse invocada na petição executiva, com o que conseguiriam cumprir aqueles objectivos de controlo e de alegação referidos (assim, apenas por exemplo, com referência a variadíssimos acórdãos, o ac. do TRC de 19/10/2010, 5097/07.0TBVIS-A.C1), sendo que a nova redacção da norma pela reforma de 2013 do CPC veio consagrar aquela posição.

            Portanto, não houve qualquer surpresa na solução consagrada ou qualquer alteração de posições, que pudesse ter posto em causa a segurança jurídica ou a confiança dos devedores em que o credor não tivesse um título com força executiva contra eles.

            Ora, no caso dos autos, a livrança mencionava a causa da relação jurídica (um contrato de crédito bancário, formalizável – art. único do DL 32:765 de 29/04/1943: “Os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante”, como referido, por exemplo, por Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 2001, págs. 361 e 365 – e formalizado por escrito particular), pelo que, mesmo prescrita como título cartular, podia servir de quirógrafo (de promessa de prestação) com força executiva, quer antes quer depois da reforma de 2013 do CPC.

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            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas do recurso pela sociedade executada.

            Lisboa, 16/11/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto