Insolvência – Sintra – Instância Central – Secção Comércio

            Sumário:

I. O requerimento de insolvência feito pelo administrador judicial provisório (art. 17-G/4 do CIRE) não equivale ao pedido de insolvência por apresentação do devedor, pelo que não há reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.

II. Feito esse requerimento e autuado e distribuído como processo de insolvência, os devedores devem ser citados entre o mais para deduzirem, querendo, oposição, no prazo de 10 dias (arts. 29/1 e 30/1, ambos do CIRE).

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            A e mulher, M, requereram a abertura de um processo especial de revitalização.

      Encerrado o processo negocial (com aprovação do plano, plano que não foi homologado), o Administrador Judicial Provisório emitiu parecer no sentido de não ser previsível que os devedores consigam resolver a situação de todo o seu passivo e de que, por isso, deveria ser decretada a sua insolvência.

            Na sequência e sem citar os devedores, o tribunal declarou a insolvência dos mesmos (por ter entendido que, da conjugação das normas dos arts. 17-G, n.ºs 3 e 4, e 28, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decorria que encerrado o processo negocial cabe ao AJP nomeado emitir parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, no caso de o AJ requerer a insolvência do devedor, o processo converte-se em processo de insolvência por apresentação).

            Os requerentes interpõem recurso de tal decisão dizendo (com alguma síntese deste TRL):

I. A declaração imediata da insolvência não pode operar automaticamente, sem que aos recorrentes seja assegurado o direito de defesa, devendo ser-lhes concedido o direito de se pronunciarem sobre o pedido de insolvência do AJP, sem o que sai claramente ofendido o direito a um processo equitativo em que o direito de defesa esteja assegurado, forçando os requerentes a aceitarem uma situação de insolvência sem serem previamente ouvidos, nem confessarem encontrar-se em tal situação.

II. A inconstitucionalidade da norma do art. 17-G/4 do CIRE leva a que, no caso dos autos, se deva conceder aos recorrentes o direito de se defenderem e de provarem a sua solvência, aplicando-se, por analogia, o disposto nos arts 30 e 35 do CIRE (ex vi artigo 10/2 do Código Civil).

III. Tem sido, de resto, esta a posição seguida pela jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente, os acórdãos do TRP de 26/03/2015, proc. 89/15.8T8AMT-C.P1, do TRC de 08/07/2015, proc. 801/14.2TBPBL-C.C1, confirmado pelo ac. do STJ de 17/11/2015, proc. 801/14.2TBPBL-C.C1.S1, e do TRC de 03/05/2016 [não se encontrou este acórdão em qualquer das relações… – parenteses deste ac. do TRL]

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                      *

           Questão que importa decidir: encerrado o processo negocial da revitalização, se o AJP emitir parecer no sentido de devedor se encontrar em situação de insolvência, o processo converte-se num processo de insolvência por apresentação, com reconhecimento, pelo devedor, da situação da insolvência, tudo por força dos arts. 17-G e 28 do CIRE?

                                                      *

            As normas que interessam ao caso são as seguintes:

              Do CIRE:

           Art. 17-G – Conclusão do processo negocial sem a aprovação de plano de recuperação

          […]

         2 – Nos casos em que o devedor ainda não se encontre em situação de insolvência, o encerramento do processo especial de revitalização acarreta a extinção de todos os seus efeitos. 

       3 – Estando, porém, o devedor já em situação de insolvência, o encerramento do processo regulado no presente capítulo acarreta a insolvência do devedor, devendo a mesma ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, contados a partir da recepção pelo tribunal da comunicação mencionada no n.º 1. 

           4 – Compete ao administrador judicial provisório na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a informação de que disponha, após ouvir o devedor e os credores, emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial de revitalização apenso ao processo de insolvência. 

           Artigo 28.º Declaração imediata da situação de insolvência

          A apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento.

            Artigo 29 – Citação do devedor

      1 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 31.º, se a petição não tiver sido apresentada pelo próprio devedor e não houver motivo para indeferimento liminar, o juiz manda citar pessoalmente o devedor, no prazo referido no artigo anterior. 

         2 – No acto de citação é o devedor advertido da cominação prevista no n.º 5 do artigo seguinte e de que os documentos referidos no n.º 1 do artigo 24.º devem estar prontos para imediata entrega ao administrador da insolvência na eventualidade de a insolvência ser declarada

           Artigo 30 – Oposição do devedor

          1 – O devedor pode, no prazo de 10 dias, deduzir oposição, à qual é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º

          […]

          Artigo 35 Audiência de discussão e julgamento

        1 – Tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir. 

     Art. 20 da Constituição da República Portuguesa – (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)

          1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

         […]

        4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

        Art. 3 do CPC Necessidade do pedido e da contradição (um dos princípios fundamentais do processo civil segundo o título I do livro I do CPC).

         1 — O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.

         2 — Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.

         3 — O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

         4 — Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

                                                      *

            A interpretação declarativa de tais normas

            As normas dos arts. 17-G, n.ºs 3 e 4, e 28 do CIRE têm uma leitura linear imediata, que foi a feita e aplicada pelo tribunal recorrido: emitindo o AJP parecer no sentido de os devedores se encontrarem em situação de insolvência e requerendo, em consequência, a insolvência, o juiz, no prazo de três dias úteis contados a partir da recepção pelo tribunal da comunicação do encerramento do processo negocial da revitalização, declara, sem mais nada, a insolvência dos devedores, considerando que o requerimento do AJP equivale à apresentação à insolvência por parte do devedor e que esta apresentação implica o reconhecimento pelos devedores da sua situação de insolvência.

            Foi esta a interpretação inicial da jurisprudência com o apoio de vária doutrina, toda ela referida nos acórdãos citados pelos devedores nas conclusões do seu recurso.

                                                      *

         Necessidade de uma interpretação conforme ao sistema (à CRP e aos princípios gerais do processo civil)

           Tendo em consideração, no entanto, a necessidade de respeitar o direito à dedução da oposição que a CRP – e o CPC em concretização da CRP – assegura a todos em qualquer processo, a declaração de insolvência de um devedor não pode ser feita sem antes se dar a este a possibilidade dessa oposição.

          Pelo que aquelas normas do CIRE não podem ser interpretadas isoladamente, devendo antes sê-lo tendo em conta a unidade do sistema jurídico, isto é, no caso, tendo em conta também as normas da CRP e do CPC, do que decorre a necessidade de se ordenar, antes da declaração da insolvência, a citação do devedor, nos termos dos arts. 29 e 30 do CIRE, para, querendo, deduzir oposição (foi já isto que se pressupôs que ia acontecer no caso do ac. do TRP de 10/09/2015, 547/14.1TYVNG.P1, onde se escreveu, na parte final: “o encaminhamento para um processo de insolvência, a requerimento do AJP, é uma consequência da putativa situação de insolvência […], segundo entendimento daquele AJP, situação que ainda terá de ser apreciada pelo tribunal […]”).

            O entendimento de que o requerimento do AJP equivale à apresentação à insolvência do devedor, equivalência que parece decorrer dos arts. 17-G/4 e 28 do CIRE – o que não é obrigatório que assim seja, já que o art. 17-G/4 diz que a aplicação do art. 28 deve ser feita com as necessárias adaptações -, e que esta apresentação implica o reconhecimento, pelo devedor, da sua situação de insolvência, como diz esta última norma, corresponde a uma ficção (que não tem qualquer razão de ser, pois, como diz o ac. do TRP de 26/03/2015, proc. 89/15.8T8AMT-C.P1, o AJP não é representante do devedor com poderes para confessar a situação de insolvência em nome dele) que tem o efeito de retirar ao devedor o direito à dedução de oposição, o que é particularmente grave dadas as pesadas consequências que uma declaração de insolvência tem, para mais nos termos em que ela é feita, sem se dar ao devedor a possibilidade de exercer várias das faculdades previstas na lei para o caso.

            E, ao menos neste aspecto, mesmo parte dos autores que apoiam a desnecessidade da citação dos devedores entende que o requerimento do AJP não pode ser visto como o equivalente da apresentação do devedor à insolvência para mais com aquele efeito de reconhecimento da situação de insolvência (por exemplo e também citados pelos acs. já referidos, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2015, 3ª edição, pág. 173, Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, 2015, pág. 77, Nuno Casanova e David Sequeira, PER- O Processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, 2014, págs. 164 a 167)

            E a tentativa de salvar a inconstitucionalidade de tal interpretação com a invocação do direito dos devedores deduzirem embargos à declaração de insolvência ou de interporem recurso contra ela, esquece que estes actos são posteriores à declaração e que, por isso, não podem cumprir a função de conferir o direito de dedução de oposição antes da declaração de insolvência (no entendimento “duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em pela igualdade, poderem influenciar todos os elementos – factos, provas, questões de direito – que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 7).

            É tudo isto que actualmente é dito por parte significativa da jurisprudência, agora também do STJ, e da doutrina (principalmente Alexandre Soveral Martins, Um curso de direito da insolvência, Almedina, Fev2015, págs. 492 a 497; jurisprudência que, num e noutro sentido, é citada pelos acórdãos já referidos e que, por isso, não se repete aqui; por último, veja-se o trabalho de Iolanda Pereira, A conversão do PER em insolvência, Dez2015, on line; e foi também esta a razão de decidir no ac. do STJ de 17/11/2015, proc. 1250/14.8T8AVR-A.P1.S1:

         “Pressupondo o n.º 3 que o devedor já está em situação de insolvência, importa ter em conta, no que tange ao parecer do AJP a remissão para o art. 28 ‘com as necessárias adaptações’.

         O art. 28 do CIRE consagra que ‘a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência (…)’. Ora, como é bom de ver e resulta do próprio art. 17-A, a utilização de um PER por iniciativa do devedor (e de pelo menos um dos seus credores, como decorre do art. 17-C, n.º 1) não tem esse sentido – pelo contrário o devedor procurará, precisamente, com o PER, amiúde, tentar evitar uma situação de insolvência.

         Como não parece que o AJP deva ser considerado um representante legal do devedor, a remissão realizada pelo n.º 4 do art. 17.º-G para o art. 28 do CIRE implica que não será suficiente que o AJP emita um parecer no sentido da insolvência do devedor para que esta deva ser declarada pelo tribunal. Necessário se torna que haja um comportamento do devedor equiparável à sua apresentação à insolvência, como seja ter o devedor manifestado a sua concordância com o parecer do administrador, verificado o insucesso das negociações.

         Esta interpretação é, de resto, a mais conforme com a Constituição e com o direito de defesa do devedor e de acesso aos tribunais. A este respeito, aliás, o TRP, em acórdão de 26/03/2015 (Leonel Serôdio) decidiu já que […]

         Aliás, uma parte da doutrina manifestou já dúvidas fundadas quanto à constitucionalidade do artigo 17.º-G/4 se interpretado no sentido de que o parecer do administrador judicial provisório no sentido da insolvência do devedor acarretaria inelutavelmente a declaração de insolvência apesar da oposição do devedor.

         Remeter o devedor para embargos – aliás ao arrepio da letra muito restritiva do art. 40 do CIRE – ou para um recurso não parece suficiente para assegurar o contraditório e a defesa do devedor, considerada, também, a gravidade dos efeitos da declaração de insolvência.”

         Por fim, a audição prévia dos devedores pelo AJP, para além de não se dizer ter sido observada no caso, não equivale à possibilidade de dedução da oposição no processo judicial, isto é, perante quem tem de facto de decidir a questão, que é o juiz e não o AJP (por isso, diz Miguel Teixeira de Sousa, no seu comentário de 12/01/2016, jurisprudência (260), no blog do IPPC: 3. Num plano geral, a audição de uma parte antes da realização de um acto nada tem a ver com o contraditório dessa parte depois da realização desse acto. A audição prévia não pode constituir fundamento para retirar esse contraditório. Basta lembrar a audição prévia da parte de molde a evitar uma decisão-surpresa: não é pela circunstância de a parte ter sido previamente ouvida pelo tribunal que não poderá impugnar a decisão deste órgão, nomeadamente com o argumento de que os termos em que o juiz proferiu a sua decisão nada têm a ver com os termos em que se realizou a audição prévia. Nesta óptica, mesmo a aceitação pelo devedor de que se encontra em situação de insolvência na sequência da sua audição realizada pelo AJP não parece constituir fundamento para que lhe possa ser retirado o contraditório depois da apresentação do requerimento de insolvência por esse administrador. Isto porque, para além do mais, nunca pode estar garantido que o requerimento de insolvência reproduz os termos da audição prévia do devedor e as condições em que este devedor aceitou, perante aquele administrador, encontrar-se em situação de insolvência. Imagine-se, por exemplo, que o requerimento do AJP invoca dívidas que o devedor não reconheceu ou até negou perante esse administrador. Sendo assim, parece dever concluir-se que deve estar assegurado ao devedor o exercício do contraditório, mesmo quando este devedor tenha sido previamente ouvido pelo AJP e, no âmbito dessa audição, tenha aceitado que se encontra em situação de insolvência).

            Assim sendo, não se dando oportunidade aos devedores para deduzirem oposição ao requerimento do AJP, verifica-se a violação do princípio do contraditório e do direito à defesa, por erro de julgamento, pelo que a sentença deve ser revogada, devendo ser substituída por despacho que ordene a citação dos devedores (note-se que, no caso, se entende que existe erro de julgamento e não nulidade processual, porque a desnecessidade da observância do contraditório dos devedores está a coberto da sentença com base no entendimento jurisprudencial implícito de que não há lugar ao mesmo).

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida (com a inerente anulação por arrastamento do processado subsequente que não possa vir a ser aproveitado), substituindo aquela decisão por esta outra que determina a citação dos devedores para, querendo, no prazo de 10 dias, deduzirem oposição ao requerimento de insolvência apresentado pelo AJP, com, entre o mais usual, a cominação e a advertência do art. 29/2, a indicação e advertência do art. 253 e a indicação do art. 236/2, todos do CIRE.

            Sem custas.

            Lisboa, 07/12/2016

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto