Juízo central cível de Lisboa
Sumário:
Estando a ré empreiteira atrasada na execução de um sistema informático, se ela, perante uma comunicação da autora dona da obra – a dizer-lhe que não paga a próxima prestação a que estava obrigada (quando já tinha pago mais do que aquilo que a ré tinha feito) e a instá-la a alojar no servidor da autora aquele sistema nas condições em que se encontrasse – apresenta à autora uma nova proposta de preço para o restante desenvolvimento do sistema de informação e, perante a não aceitação de tal proposta pela autora, desactiva o sistema e devolve à autora as informações dela que tinha em seu poder, tal corresponde a uma recusa de cumprimento que dá à autora o direito de o resolver o contrato.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A intentou em Agosto de 2012 a presente acção contra B, Lda, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato em causa nos autos e a ré condenada a restituir à autora 31.725€ a acrescidos de juros de mora.
Para tanto alegou, em síntese, que: por acordo entre a autora e a ré, esta obrigou-se a construir para a autora um sistema de Informação, dividido em dois módulos, gestão pedagógica e gestão de orquestra; a ré executou parcialmente e de forma defeituosa o sistema de informação, o que fez com que a autora, repetidamente, a instasse a reparar os defeitos e a concluir a obra, o que a ré não fez; então a autora deixou de pagar as facturas emitidas pela ré e a ré, por sua vez, destruiu tudo quanto tinha construído para a autora, incumprindo definitivamente a sua prestação, o que confere à autora o direito à resolução do contrato e à restituição de tudo quanto prestou.
A ré contestou, impugnando os factos alegados pela autora para concluir pelo incumprimento definitivo do contrato; o incumprimento deveu-se à autora que, apesar de ter solicitado várias alterações ao projecto inicialmente acordado e sem justificação para tal, deixou de efectuar o pagamento das facturas emitidas e apresentadas pela mesma ré; conclui que a autora revogou o contrato sem justa causa; e, por tudo isto, concluiu pela improcedência do pedido e reconvencionou que fosse declarado como revogação sem justa causa a revogação efectuada pela autora por e-mail de 14/02/2011 e a autora fosse condenada ao pagamento, com juros, das facturas em divida no valor de 10.500€, bem como numa indemnização nunca inferior a 25% dos valores facturados pela ré, motivada pela quebra sem justa causa do contrato.
A autora replicou, impugnando os factos base da reconvenção deduzida e concluiu pela improcedência da reconvenção.
Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença a (i) decretar a resolução do contrato de empreitada, condenando a ré a restituir à autora 31.725€, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal e contados da data de 04/09/2012 até integral pagamento, absolvendo-a na parte restante e (ii) julgar improcedente a reconvenção.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que, no caso, e pelas razões dadas adiante, se transcrevem na íntegra a partir da 2 (a 1ª não tem interesse); os sublinhados foram colocados por este acórdão para assinalar os factos que a ré quer que sejam aditados aos factos provados e em relação aos quais indicou prova):
2. A autora resolveu o contrato celebrado com a ré com fundamento na construção defeituosa do sistema de informação contratado e na destruição do mesmo pela ré.
3. A ré entende que os atrasos na sua prestação dos serviços acordados com a autora se ficaram a dever à actuação da própria autora que:
3. solicitou trabalhos adicionais não previstos na proposta inicial, tendo-lhe conferido carácter de urgência;
4: nunca pagou atempadamente o preço acordado com a ré, existindo a esta data facturas por pagar.
5: quando instada a prestar informações necessárias ao desenvolvimento e implementação do sistema de informação nem sempre prestava a informação em tempo útil e de forma a que a ré conseguisse cumprir os prazos inicialmente acordados.
6. Em Setembro de 2009 a funcionalidade do sistema informático que permitia as inscrições dos alunos já estava a funcionar bem.
7 e 8. As inscrições dos alunos foram feitas através do sistema informático construído pela ré no ano lectivo 2009/2010, 2010/2011 e no ano lectivo 2011/2012.
9. A facturação foi feita através do sistema informático construído pela ré no ano lectivo 2010/2011.
10. Foram solicitados pela autora à ré trabalhos adicionais não previstos na proposta inicial [repete as conclusões 3 (até inicial), 12 a 15 e a parte intermédia (de ‘e foi’ até ‘previstos) de 16].
11. A autora solicitou à ré, e esta executou um trabalho adicional consistente num módulo de exportação de ficheiro XML para o Ministério da Educação [é o facto provado sob 16].
12 a 15. A autora solicitou à ré trabalhos adicionais consistentes:
– em casos especiais de facturação a clientes.
– na comunicação e na geração de códigos multibanco.
– na emissão de relatórios e listagens não previstas na proposta inicial.
– numa Biblioteca/Mediateca [é o facto provado sob X].
16. Os trabalhos inicialmente contratados foram sendo sucessivamente alterados e foi sendo solicitado pela autora à ré o desenvolvimento de outras funcionalidades e serviços que não estavam inicialmente previstos nem foram considerados pela ré na fixação do preço e calendarização [as partes não sublinhadas são repetição das conclusões 3, 12 a 15 e 23].
17. Na proposta inicial a ré apenas fez uma estimativa de preços e de prazos mediante as solicitações apresentadas.
18. Todas as testemunhas confirmaram que nenhum dos pagamentos acordados entre autora e ré foram pagos pela autora na data de vencimento [repete a conclusão 4]
19. À data de hoje existem ainda facturas por pagar [repete a conclusão 4].
20. A ré, não obstante o não pagamento do preço pela autora nos prazos acordados, continuou a responder às solicitações da autora, a alojar o sistema informático nos seus servidores e a acarretar os custos inerentes ao armazenamento e protecção de dados da autora.
21. Todos os trabalhadores da autora, com acesso autorizado, acederam e trabalharam no sistema informático até Agosto de 2011 [é no essencial, o facto provado sob 23]
22. A ré só veio a suspender o serviço em Agosto de 2011, não obstante o não pagamento do preço pela autora desde Julho de 2010 [a 1ª parte, até 2011, é no essencial, o facto provado sob 13-14]
23. A calendarização fixada pela ré na proposta inicial teve como pressuposto o pagamento atempado e na data de vencimento das facturas emitidas pela ré; a cooperação da autora na prestação da informação necessária à ré para o desenvolvimento e implementação do sistema de informação; as solicitações feitas na proposta inicial.
24. Os atrasos verificados no desenvolvimento do sistema informático pela ré ficaram a dever-se a atrasos na prestação de informações e introdução de dados pela autora no sistema informático quando necessárias e solicitadas pela ré à autora; pedidos adicionais; atrasos nos pagamentos das facturas emitidas pela ré.
25. Foi convencionado o pagamento do preço antes da aceitação da criação do sistema de informação pela ré.
26. O não pagamento prévio do preço pela autora na altura convencionada legitimou a ré a invocar a excepção de não cumprimento.
27. Não há fundamento legítimo para a resolução do contrato pela autora uma vez que não se verifica a prestação defeituosa pela ré, nem tão pouco se verifica a destruição pela ré do sistema de informação construído pela ré.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, para além de ter defendido que o mesmo não devia ser admitido por extemporâneo e caso contrário devia ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto.
*
Questões que importa decidir: a admissibilidade do recurso; a rejeição da impugnação da matéria de facto; se devem ser aditados os factos referidos pela ré; e se a acção devia ter sido julgada improcedente.
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Questão prévia:
Diz a autora – com alguma síntese feita por este acórdão – que:
O prazo para o recurso é de 30 dias (art. 638/1 do CPC); este prazo é acrescido de 10 dias se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada (art. 638/7 do CPC); o recurso da ré foi interposto 7 dias depois do termo do prazo de 30 dias, mas não tem efectivamente por objecto a reapreciação da prova; logo é intempestivo (o que invoca ao abrigo do art. 638/6 do CPC).
“Com efeito, a ré elenca vários factos dados como provados pela sentença recorrida, a respeito dos quais transcreve excertos da prova gravada e elabora algumas conclusões de facto, omitindo que diversa valoração da prova gravada deverá ser realizada pelo tribunal a quem.
Não se ignore que o prazo adicional […] é justificado principalmente pela maior onerosidade que para o recorrente representa o cumprimento do ónus processual imposto pelo art. 640/2-a do CPC.
Se o recorrente faz uso deste prazo adicional, espera-se que efectivamente esteja em causa um erro de apreciação da prova gravada e que não se abuse desta extensão de prazo como mero expediente dilatório.
Num caso como o presente, em que seja invocado erro na apreciação da prova gravada e o recorrente nem sequer se digna a indicar em que consistiu esse erro e qual o diferente sentido decisório que o tribunal a quem deverá apreciar, então o recurso é manifestamente intempestivo e como tal deverá ser liminarmente indeferido.”
A autora poderia ter razão se a ré não tivesse feito, no seu recurso – seja no corpo das alegações seja nas conclusões das mesmas – qualquer referência à prova gravada ou a qualquer depoimento (assim, por exemplo, o recente ac. do STJ de 06/12/2016, proc. 424/12.0TTFUN.L1.S1 [que tem de ser lido com as necessárias adaptações, já que se trata de um acórdão de uma secção social do STJ e está a falar dos prazos do Código do Processo de Trabalho].
Mas no caso não é assim e nem sequer foi como a autora disse, pois que, como se pode constatar se se confrontarem os factos que a ré invoca como provados nas conclusões do seu recurso (o que já justifica a transcrição integral que foi feita das mesmas) e aqueles que foram dados como provados, das conclusões resulta, mais ou menos linearmente, quais os factos que a ré entende que deviam também ter sido dados como provados, e a propósito deles a ré indica prova documental e testemunhal que, segundo ela, permitem tê-los como provados e transcreve mesmo passagens de depoimentos.
É verdade que não é esta a forma correcta de concluir um recurso, pois que os factos que a ré entende que deviam ter sido dados como provados e não foram, deviam ser devidamente assinalados pela ré, não deixando para o juiz e para a parte contrária o trabalho de o fazerem.
Mas tal é apenas uma irregularidade formal que não equivale ao vício assinalado pela autora.
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Da rejeição da impugnação da impugnação da matéria de facto
A autora entende que o recurso – mas deve-se estar a referir apenas à impugnação da decisão da matéria de facto – deve ser rejeitado por incumprimento do ónus imposto pelo art. 640/1-a do CPC, invocando vários acórdãos do STJ que apoiariam tal conclusão.
A verdade, no entanto, é que, como já acima se disse, se se confrontarem os factos que a ré invoca como provados nas conclusões do seu recurso (o que volta a justificar a transcrição integral que foi feita das mesmas) e aqueles que foram dados como provados, pode-se chegar facilmente à conclusão de quais os factos que a ré entende que também deviam ter sido dados como provados e não o foram.
Também já se disse que esta não é a forma correcta de concluir um recurso, mas tal trata-se apenas de uma irregularidade formal que não deve obstar ao conhecimento da impugnação.
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Para a decisão da impugnação da decisão da matéria de facto e para a decisão das outras questões que importa decidir, interessa deixar já consignados os factos que foram dados como provados no tribunal recorrido e que foram os seguintes (os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob números vêm da resposta aos quesitos da base instrutória; neste acórdão deu-se alguma ordem cronológica aos pontos de facto):
A) A autora é uma pessoa colectiva de utilidade pública de natureza associativa e com carácter cultural e pedagógico, sem fins lucrativos.
B) Na prossecução dos seus fins, a autora promoveu a criação de uma orquestra profissional permanente, que adoptou a designação de X, bem como promove a educação e ensino musical através do Y, da W e da Z – adiante colectivamente designadas por Escolas.
C) A ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras, ao desenvolvimento de projectos de internet, bases de dados e sistemas de informação.
D) Em 18/06/2009, a ré enviou à autora um e-mail, respeitante ao sistema de informação que a mesma ré propôs construir para a autora, dividido em dois módulos: gestão pedagógica e gestão de orquestra.
E a K). Nos termos dessa proposta…
E) O módulo de gestão pedagógica aplicar-se-ia às Escolas e permitiria a inscrição dos alunos para o ano lectivo subsequente quer presencialmente na secretaria, com introdução directa no sistema ou mediante entrega física do formulário, quer através da internet, sendo gerados todos os documentos necessários para a facturação dos emolumentos devidos pelo aluno, sendo que a operacionalização de tal funcionalidade ficaria calendarizada para a 1.ª semana de Setembro de 2009, sendo considerado um processo urgente.
F) Esse módulo permitiria, ainda, a introdução, processamento e emissão de documentos relacionados com as classificações dos alunos e todo o processo comunicativo com os encarregados de educação, sendo que a operacionalização de tal funcionalidade ficaria calendarizada para a 1.ª e 2.ª semana de Setembro de 2009, sendo também considerado urgente.
G) Tal módulo permitiria, também, auxiliar na construção e gestão dos horários, mediante a criação de uma base de informação ligada a um processo de gestão das salas, instrumentos disponíveis e recursos humanos, que consideraria as suas disponibilidades e variabilidade, sendo que a operacionalização de tal funcionalidade ficaria calendarizada para a 2.ª e 3.ª semana de Setembro de 2009.
H) Este módulo viria a automatizar a integração com o sistema de emissão de facturas em uso, até à sua substituição, previsível para a 1.ª e 2.ª semanas de Janeiro de 2010.
I) O módulo de gestão de orquestra permitiria facilitar a gestão da orquestra, dos espectáculos e dos seus intervenientes, alocando os orçamentos e as tarefas necessárias aos eventos em que a orquestra participa, bem como asseguraria o relacionamento com os fornecedores.
J) O aludido sistema de informação seria suportado num software pré-existente – o fm – sendo dotado de uma apresentação e de funcionalidades que faziam dele único e diferente do sistema que lhe estaria subjacente, estando adaptado às necessidades e características da actividade da autora.
K) Os custos associados ao módulo de gestão pedagógica estimavam-se num intervalo entre 12.500€ e 15.000€, pagos da seguinte forma, a primeira a título de entrada inicial e as restantes a título de reforço:
a) 5000€, na 1.ª semana de Julho de 2009;
b) 2500€, na última semana de Setembro de 2009;
c) 2500€, na última semana de Novembro de 2009;
d) 1250€, na última semana de Janeiro de 2010;
e) 1250€, na última semana de Fevereiro de 2010.
L) Os custos associados ao módulo de Gestão de Orquestra não estavam ainda indicados nessa proposta
19. Nos termos da proposta referida em D, ficou acordado que “Os seis primeiros meses de alojamento no servidor da B serão grátis. Após este período poderão optar por alojar o sistema nos nossos servidores por 100€/mês com backups horários e redundâncias de redes. As migrações de sistemas prévios são cobradas a 50€/hora.”
20. O pacote de manutenção teria ainda de ser acordado pelas partes.
M) Após a autora ter enviado o e-mail de 18/06/2009, a ré enviou o e-mail de 30/06/2009, onde, para o módulo de gestão pedagógica, indicou a seguinte calendarização financeira:
a) 2500€, na 1.ª semana de Julho de 2009;
b) 2500€, na última semana de Setembro de 2009;
c) 2500€, na última semana de Novembro de 2009;
d) 2500€, na última semana de Janeiro de 2010;
e) 2500€, na última semana de Março de 2010.
N) No mencionado e-mail de 30/06/2009, a ré, quanto ao módulo de gestão de orquestra, referiu que: “Orquestra e gestão global com as integrações necessárias: avença de desenvolvimento limitada a 12 meses pelo montante mensal bruto de 1250€”.
O) A 01/07/2009, a ré exprimiu a vontade de realizar uma reunião de kick-off do projecto, constando da agenda da mesma uma enumeração de todos os aspectos previstos para o módulo de gestão pedagógica.
P) Em 01/07/2009 e por e-mail, a ré expressou o seu acordo em relação à contra proposta formulada pela autora, sugerindo apenas a subdivisão da segunda parcela – referente a Setembro de 2009 – de 2500€, numa parcela de 1500€, a ser paga na última semana de Agosto, e noutra de 1000€, a ser paga na 2.ª semana de Setembro, bem como fixando o montante da avença de desenvolvimento do módulo de gestão de orquestra num intervalo entre 1000€ e 1250€.
Q) Durante Julho de 2009, deu-se o início dos trabalhos de construção e desenvolvimento do aludido sistema de informação.
24. Em Setembro de 2009, a funcionalidade do sistema informático contratado à ré permitiu inscrições dos alunos nesse mês para o ano lectivo de 2009/2010, tal como as do ano lectivo 2010/2011.
16. [Em Setembro de 2009] a autora solicitou à ré, e esta executou, um trabalho adicional consistente num módulo de exportação de ficheiro [MISI em formato] XML para o Ministério da Educação [para ser concluído até ao fim do mês] [as partes entre parenteses rectos foram colocadas por este acórdão, por força do decidido mais à frente].
X) Os trabalhos adicionais, não previstos na proposta inicial, foram os seguintes: a) casos especiais de facturação a clientes; b) comunicação e geração de códigos multibanco; c) emissão de relatórios e listagens não previstas na proposta inicial; d) biblioteca/mediateca.
6. A conclusão dos trabalhos adicionais referidos em X) [nas alíneas a), b) e c)] foi prevista para Setembro de 2010.
1. Em 11/12/2009, a ré declarou à autora não poder cumprir com a conclusão da funcionalidade respeitante às classificações dos alunos, o que ocorreu.
2. A 26/01/2010, o sistema de autonomização da facturação a partir do sistema de informação ainda não estava operacional, situação que se mantinha em 02/03/2010, esclarecendo-se que tal funcionalidade só ficou operacional em Julho de 2010.
25. A facturação das propinas para o ano lectivo de 2010/2011 foi feita, a partir de Set2010, através desse sistema, embora com deficiências/problemas.
R) Em 29/04/2010, a ré propôs, para o módulo de gestão de orquestra, nos quatro meses subsequentes, duas prestações mensais de 1250€, acrescidos de IVA, sendo uma paga na 1.ª e outra na 3.ª semana de cada mês.
S) Bem como, para o módulo de gestão pedagógica, a ré propôs a fixação de um valor máximo mensal de 1500€, para os 3 ou 4 meses subsequentes e que incluía trabalhos não compreendidos na proposta original, designadamente: extensão da facturação a clientes; casos especiais na facturação; comunicação e geração de códigos multibanco e biblioteca/mediateca, que entretanto haviam sido solicitados pela autora.
T) Em 06/05/2010, a autora aceitou clarificando que, quanto ao módulo de gestão de orquestra, que nos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto haveria lugar ao pagamento de 1500€ na 1.ª e na 3.ª semana, bem como um pagamento no mesmo montante na 1.ª semana de Setembro, dando-se logo de seguida a conclusão do projecto.
U) Bem como, no que concerne ao módulo de gestão pedagógica, a autora aceitou nos exactos termos da proposta.
3. A 08/10/2010, em face da inoperacionalidade [parcial, quanto ao módulo de gestão pedagógica, e total quanto ao módulo de gestão de orquestra] do sistema, a autora instou a ré a pronunciar-se sobre se estaria em condições de cumprir com o acordado até ao final do mês de Outubro.
V) Em 19/10/2010, a autora recebeu a factura n.º 140/2010 com o descritivo “Desenvolvimento de Gestão da Orquestra 13”.
4. Em 22/10/2010, a autora questionou a ré sobre a previsão de conclusão da implementação do módulo de gestão pedagógica e, em resposta, a ré tornou a manifestar incapacidade de cumprir os prazos previstos, bem como em prever com rigor o objecto do seu trabalho.
W) Em 11/11/2010, a autora solicitou a certificação do software de facturação, em virtude das exigências legais; no mesmo dia, a ré informou que tal solicitação seria atendida durante Janeiro; em 11/01/2011, a autora indagou a ré sobre quando estaria disponível a certificação das facturas.
AA) Ao longo do desenvolvimento do sistema de informação, e no que concerne ao módulo de gestão pedagógica, a ré emitiu as seguintes facturas, nos termos do contrato inicial:
Factura | Valor | |
2009/127 | 2500€ | (1.ª parte de 6) Sistema de Gestão Pedagógica Y, W, Z |
2009/139 | 1500€ | (2.ª parte de 7) Sistema de Gestão Pedagógica Y, W, Z |
2009/160 | 1000€ | (3.ª parte de 7) Sistema de Gestão Pedagógica Y, W, Z |
2009/178 | 2500€ | (4.ª parte de 7) Sistema de Gestão Pedagógica Y, W, Z |
2010/014 | 2500€ | (5.ª parte de 7) |
2010/037 | 2500€ | (6.ª parte de 7) |
BB) Ainda no que concerne ao módulo de gestão pedagógica, a ré emitiu as seguintes facturas, não previstas no contrato inicial:
Factura | Valor | |
2010/040 | 1200€ | Migração e configuração de dados MISI |
2010/071 | 1050€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
2010/095 | 1000€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
2010/106 | 1000€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
CC) Com respeito a migrações de dados associadas ao módulo de gestão pedagógica, foram emitidas as seguintes facturas pela ré:
Factura | Valor | |
2009/152 | 400 | Migração e Remapeamento de Dados até 090909 |
2009/161 | 250 | Migração de Dados |
2009/189 | 830 | Migração e Remapeamento de Dados Plugin Web Services FM |
DD) No que concerne ao módulo de gestão de orquestra, foram emitidas as seguintes facturas pela ré, previstas no contrato:
Factura | Valor | |
2010/027 | 1.250€ | Desenvolvimento (1 de 12) |
2010/038 | 1.250€ | Desenvolvimento (2 de 12) |
2010/055 | 1.250€ | Desenvolvimento (3 de 12) |
2010/070 | 1.250€ | Desenvolvimento (4 de 12) |
2010/074 | 1.250€ | Desenvolvimento (5 de 12) |
2010/091 | 1.250€ | Desenvolvimento (6 de 12) |
2010/104 | 1.250€ | Desenvolvimento (7 de 12) |
2010/105 | 1.250€ | Desenvolvimento (8 de 12) |
EE) A ré emitiu ainda as seguintes facturas:
Factura | Valor | |
2010/062 | 2485€ | Licenças do software FM (…) |
2010/064 | 1000€ | Migração e configuração de dados no âmbito do módulo de Gestão de Orquestra |
FF) Ao longo do desenvolvimento do sistema de informação, e no que concerne ao módulo de gestão pedagógica, a ré emitiu as seguintes facturas, não previstas no contrato inicial:
Factura | Valor | |
2010/129 | 1000€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
2010/133 | 1000€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
2010/141 | 1500€ | Desenvolvimento do Sistema de Informação X |
GG) No que concerne ao módulo de gestão de orquestra, foram emitidas as seguintes facturas pela ré, previstas no contrato:
Factura | Valor | |
2010/108 | 1250€ | Desenvolvimento (9 de 12) |
2010/128 | 1250€ | Desenvolvimento (10 de 12) |
2010/131 | 1250€ | Desenvolvimento (11 de 12) |
2010/132 | 1250€ | Desenvolvimento (12 de 12) |
HH) No que concerne ao módulo de gestão de orquestra, foram, ainda, emitidas as seguintes facturas pela ré, não previstas no contrato:
Factura | Valor | |
2010/140 | 1250€ | Desenvolvimento (13) |
2010/146 | 1250€ | Desenvolvimento (14) |
JJ) As facturas referidas de AA) a EE) foram pagas pela autora [este acórdão introduziu, ao abrigo dos arts. 607/4 e 663/2 do CPC, as facturas CC) e EE) porque a ré admitiu expressamente o pagamento, conforme resulta do art. 72 da contestação, para as primeiras, e do doc. de fls. 141, para as segundas – isto apesar da resposta negativa dada aos quesitos 17 e 18 que não tem em conta esta admissão].
II) As facturas referidas em FF), GG) e HH) não foram pagas pela autora.
26. Nenhum dos pagamentos acordados entre autora e ré foi feito na data de vencimento.
27. O último pagamento feito pela autora ocorreu em Outubro de 2010.
28. Quando instada pela ré a prestar informações necessárias ao desenvolvimento e implementação do sistema de informação, a autora nem sempre dava respostas imediatas.
29. Os pedidos adicionais provocaram alguns atrasos no desenvolvimento do sistema informático contratado à ré.
30. Em 21/01/2011, a autora propôs uma reunião com a ré, na medida em que ainda não estava completa a implementação do módulo de gestão pedagógica.
Y) Em 03/02/2011, a autora propôs pagar à ré, e esta concordou, os seguintes montantes:
a) 4235€, no dia 15/02/2011 [respeitante a 3 facturas de Julho de 2010];
b) 4235€, no dia 02/03/2011 [respeitante a 3 facturas de Setembro de 2010];
c) 3327,50€, no dia 30/03/2011 [respeitante a 2 facturas de Outubro de 2010];
d) 1512,50€, no dia 15/04/2011 [respeitante a uma factura de Novembro de 2010].
7. Em 08/02/2011, a totalidade do módulo de gestão de orquestra e parte do módulo de gestão pedagógica ainda não estavam operacionais, sendo que a componente de tesouraria era a que se encontrava em estado mais desenvolvido.
9. Em 08/02/2011, a autora solicitou à ré que concluísse os trabalhos acordados até ao dia 31/03/2011.
8. Em 10/02/2011, perante o atraso da ré na execução dos trabalhos, a autora declarou à ré desistir dos trabalhos adicionais necessários ao sub-módulo de biblioteca.
10. Em 11/02/2011, a ré confirmou que não dispunha ainda da certificação do Ministério das Finanças para a facturação.
11. Em 14/02/2011, a autora informou a ré que, devido ao não cumprimento dos prazos para a conclusão dos trabalhos acordados e das previsões de custos por parte da ré, não procederia ao pagamento da prestação referente ao dia 15/02/2011, bem como instou a ré a alojar o sistema de informação no servidor da autora nas condições em que tal sistema se encontrasse.
Z) Em 01/04/2011, a ré submeteu nova proposta de preço para o restante desenvolvimento do sistema de informação; nos termos de tal proposta, teria a autora de optar:
a) por um serviço ‘pré-pago’, consistente num pacto de 10 horas, no valor de 65€/hora;
b) por um serviço ‘pré-pago’, consistente num pacto de 15 horas, no valor de 65€/hora, com duas horas gratuitas;
c) por um serviço ‘pay as you go’, no valor de 95€/hora, com pagamento mensal; no âmbito destes serviço, a ré reservava-se o direito de definir o que estava ou não incluído no serviço.
12. A autora não aceitou a proposta da ré referida em Z).
13-14. No decurso de Agosto de 2011, a ré desactivou todo o aludido sistema de informação, bem como devolveu à autora a informação alojada nos seus servidores em formato CD [compact disc].
15. A autora nunca logrou atingir o grau de funcionalidade que constava da proposta da ré, não acedendo desde Agosto de 2011 a nenhuma das funcionalidades mencionadas no acordo celebrado com a autora.
23. A autora utilizou o referido sistema de informação até dia não concretamente apurado de Agosto de 2011.
28. A ré continuou a responder às solicitações da autora e a alojar o sistema informático nos seus servidores, o que acarretava os custos inerentes ao armazenamento e protecção de dados da autora.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Note-se que, por força do disposto nos arts. 639/1 e 640/1-a-c do CPC, apenas se consideram os factos que foram indicados nas conclusões do recurso como estando provados mas que não constam como tal nos pontos de facto dados como provados na decisão da matéria de facto.
Por outro lado, e por força do art. 640/1-b do CPC, só se vão considerar os factos contidos nas conclusões em relação aos quais a ré apontou prova concreta. O que desde logo afasta aquilo que consta de 17 – se é que pode ser considerado facto – e 25. Por fim, os factos das conclusões 3, até inicial, 10, 11, 12 a 15 correspondem aos factos provados sob X) e 16 pelo que não interessam aqui.
O julgamento foi feito em 2014, já depois da entrada em vigor da reforma de 2013 do CPC. Por força do art. 5/1 da Lei 41/2013, de 26/06 (a lei da reforma), o julgamento já era regulado pelas regras da versão reformada do CPC. Assim, apesar de haver uma base instrutória, com quesitos, o tribunal recorrido devia fazer constar dos factos provados [devia relatar] tudo aquilo que de relevante fosse apurado (e sem qualquer preocupação quanto à distribuição do ónus da prova) (adapta-se, a esta questão, a posição de Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 3ª edição, Set2013, Coimbra Editora, pág. 198). Por isso, apesar de quase todos os factos que a ré quer que sejam aditados (à excepção, como se verá, de dois deles) não constarem dos quesitos e de a ré não ter tentado, sequer, dizer como é que se propunha ultrapassar a questão, vai-se ver se eles estão ou não provados.
Assim:
[…]
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Do recurso sobre matéria de direito
A situação de facto
Em termos gerais a situação dos autos é a seguinte:
A autora contratou com a ré a construção de um sistema que informatizasse toda a sua actividade, qual seja, a de três escolas de música e de uma orquestra. O contrato foi celebrado em fins de Junho de 2009. Foi dividido em dois módulos, um deles a ser construído até meados de Janeiro de 2010 e pago em fases até ao fim de Março de 2010, e um outro a ser construído e pago até Junho de 2010, através de uma avença anual. O custo dos dois módulos era de 12.500€ + 15.000€. Depois disso, foram pedidos mais cinco trabalhos adicionais, um a ser desenvolvido em Setembro de 2009 e os outros até Setembro de 2010 [factos B, D, E a K, L, M, N, P, 16, X e 6].
Em 29/04/2010, quando tinham decorrido 10 meses desde o início da execução do contrato, foi acordado que o 2º módulo seria pago nos 4 meses subsequentes em duas prestações mensais de 1500€ + 1500€ em Setembro e o projecto terminaria. E o 1º módulo teria ainda de ser pago, no máximo, por mais 1500€ por 3 ou 4 meses subsequentes, o que incluia o pagamento dos pedidos adicionais. Assim, o total, para tudo, era, no máximo, de 12.500€ + [10 x 1250€, em vez de 12 x 1250€] + [4 x 3000€] + 1500€ + [1500€ x 3 ou 1500€ x 4] = 43.000€ ou 44.500€ [factos R, S, T e U].
Assim, em fins de Abril de 2010, já a situação estava toda assente: o que havia a fazer, a pagar e até quando (no máximo até Setembro de 2010).
A autora pagou 31.715€ até Outubro de 2010 [factos AA a EE, JJ e 27].
Segundo o que antecede, para pagar todos os valores acordados poderiam faltar então, em Outubro de 2010, no máximo, 11.285€ ou 12.785€. Mas como de facto a ré só facturou um total de 42.715€, o que faltava pagar era 11.000€ (note-se que na contestação/reconvenção a ré até diz que só faltavam pagar 10.500€), que é precisamente o valor das facturas FF, GG e HH e que é, por outro lado, exactamente aquilo que foi mais tarde acordado pagar, segundo o facto Y, ou seja, 11.000€ + 21% = 13.310€. Já agora daqui decorre que a última factura emitida pela ré refere-se a Novembro de 2010 [facto sob II para além dos acabados de invocar].
Mas, devendo estar tudo feito até, no máximo, Setembro de 2010, o sistema contratado ainda estava, em Outubro de 2010, assim (o que se passa a dizer reporta-se ao período entre Novembro de 2010 e meados de Fevereiro de 2011, ou seja, mais de 3 meses e meio do último pagamento da autora; mas se era assim então, não podia deixar de ser assim também em Outubro de 2010 – até porque, repare-se de novo, a ré já não emitiu mais facturas a partir de Nov2010): a certificação do software de facturação, necessária em virtude das exigências legais, ainda não tinha sido feita em Fevereiro de 2011; o 1º módulo funcionava apenas parcialmente; o 2º módulo não funcionava de todo; em Outubro de 2010 e Fevereiro de 2011 a autora solicitou à ré que concluísse os trabalhos até finais de Outubro de 2010 e depois até finais de Março de 2011, sem êxito; a ré não conseguia cumprir os prazos previstos, nem prever com rigor o objecto do seu trabalho (tudo isto são factos provados não impugnados pela ré neste recurso [: W, 1, 2, 3, 4, 5, 7, 9, 10]).
Perante isto a autora informou a ré que não procederia ao pagamento da prestação referente ao dia 15/02/2011 e instou-a a alojar o sistema de informação no servidor da autora nas condições em que tal sistema se encontrasse [facto 11].
Na sequência, a ré faz, em 01/04/2011, nova proposta de preço para o restante desenvolvimento do sistema de informação, proposta que a autora não aceita [factos Z e 12]. E então, no decurso de Agosto de 2011, a ré desactiva todo o sistema de informação e devolve à autora, num CD, a informação da autora alojada nos seus servidores, em consequência do que a autora deixou de poder aceder às funcionalidades construídas [factos 13 a 15].
Em Agosto de 2012 a autora intenta esta acção a pedir a declaração da resolução do contrato.
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O enquadramento jurídico
O que antecede corresponde a um contrato (celebrado em fins de Junho de 2009) de empreitada (art. 1207 do Código Civil – tal como defendido pela autora e pela sentença recorrida; a ré aceita que as questões que estão em jogo são reguladas pelo regime da empreitada, embora entenda que o contrato podia ser qualificado como de desenvolvimento de software, cujo regime seria complexo, interligando aspectos da empreitada, propriedade intelectual/industrial e prestação de serviços).
O contrato em causa estabeleceu uma relação entre as partes, que dava à autora o direito de esperar que, no fim de um ano, tivesse toda a sua actividade informatizada pela ré. Apesar disso, ao fim de 10 meses (fins de Abril de 2010) já se sabia que tal não viria a acontecer, tal como não viria a acontecer ao fim de um outro prazo de mais 4 meses (até Setembro de 2010); e, decorridos outros 5 meses e meio (até meados de Fevereiro de 2011), a ré continuou a não acabar o sistema que tinha contratado com a autora, nem conseguia prever com rigor o objecto do seu trabalho.
Perante isto, justificava-se, por um lado, que a autora deixasse de pagar mais facturas (excepção de não cumprimento do contrato – art. 428 do CC) – já tinha pago 31.715€ dos 42.715€ que eram devidos, ou seja, mais de 74,24%, e nessa altura a finalização da obra não estava já nessa percentagem, tanto mais que o valor total já incluía o de um pedido adicional de que a autora entretanto desistiu por força do atraso [facto 8] – e pretendesse terminar a relação com a ré, no estado em que esta se encontrava (embora não seja claro os moldes em que o queria fazer).
E aquilo que a autora comunica à ré não se afasta disto: pede-lhe que instale o sistema no seu servidor no estado em que se encontrava e não pede a devolução dos valores que pagou, o que não aponta minimamente para uma resolução do contrato, tanto mais que a instalação do sistema nos servidores da autora era já uma alternativa prevista no contrato, como resulta, a contrario, do facto 19, e o pedido dessa instalação implica a aceitação do sistema no estado em que se encontrava (poderia assim, por exemplo, estar em causa apenas uma desistência com indemnizações recíprocas parcialmente compensáveis: veja-se, por exemplo, Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, Contrato de empreitada, 2012, Almedina, págs. 490-497, especialmente 497).
Em contrapartida à comunicação da autora (que, repita-se, não se traduzia minimamente na resolução do contrato), a ré – cuja realização da obra estava no estado já descrito apesar de, desde há muito, estar ultrapassado o prazo final (Setembro de 2010) acordado para o efeito, o que, para além do mais, revela uma incapacidade para cumprir o acordado -, faz (em Abril de 2011) uma proposta de novos preços, para o restante desenvolvimento do sistema de informação; e, como a autora não a aceita, desactiva todo o sistema e devolve à autora a informação alojada nos seus servidores, em consequência do que a autora deixa de poder aceder às poucas funcionalidades construídas. Ou seja, a ré na prática termina com o contrato, mas fica com tudo aquilo que dele resultou: o dinheiro e a obra, enquanto a autora fica sem nada.
Perante isto, justifica-se que a autora peça agora a extinção retroactiva do contrato – ou seja, a resolução do contrato (arts. 432 e 434, do CC) -, para que a situação entre elas fique ao menos próxima da que existia antes da celebração do contrato, reavendo o preço pago à ré em contrapartida de a obra ficar para a ré, que aliás lhe poderá dar uso como obra intelectual (e é certo que a autora podia resolver extra-judicialmente o contrato: art. 436 do CC, mas também é certo que pode, à cautela, deixar que a questão seja decidida pelo tribunal, depois de exercido o contraditório, evitando uma resolução do contrato que se viesse a julgar injustificada).
E justifica-se porque esta actuação da ré é, realmente, uma recusa de cumprimento do contrato nos termos acordados. A ré apenas se propõe reatar a execução do contrato se a autora aceitar a modificação do mesmo nos moldes impositivos propostos pela ré, a partir de uma posição de força por ter em seu poder a obra (que ainda teria de ser acabada por ela) e o dinheiro. E não a tendo a autora aceite, a ré põe termo ao contrato e fica com tudo para si. Trata-se de um comportamento mais grave ainda do que o abandono da obra pelo empreiteiro quando este tem sido visto como recusa categórica de cumprimento do contrato, por ela ficar com a obra (o abandono verifica-se normalmente quando se deixa um local onde se estava a trabalhar, a meio da obra, levando-se todos materiais consigo, e faz-se isso com características definitivas e sem qualquer justificação nem comunicação – assim por exemplo nos vários acórdãos do STJ que o ac. do TRP de 16/06/2014, 5910/11.7TBMAI.P1, recolheu em nota: de 06/03/2007, proc. 07A074; de 09/12/2008, proc. 08A965, de 12/03/2009, proc. 08A4071, de 08/09/2009, proc. 3743/04.6TBMTS.S1 e de 09/12/2010, proc. 3803/06.9TBAVR.C1.S1).
Este tipo de comportamento concludente de uma vontade inequívoca do devedor não cumprir o contrato, antecedida de pretensões injustificadas de alterações contratuais, já depois de a ré ter demonstrado uma evidente incapacidade de cumprir o acordado, davam à autora a certeza de que a ré já não queria cumprir o contrato, para além de já ter razões suficientes para ter perdido toda a confiança na capacidade da ré de o cumprir. E, por isso, o conjunto de tudo isto corresponde a uma clara violação contratual específica que dá ao credor o direito à resolução do contrato mesmo não sendo um incumprimento definitivo e sem necessidade de interpelação admonitória.
[neste sentido, veja-se especialmente: Brandão Proença, A hipótese da declaração (lato sensu) antecipada de incumprimento por parte do devedor, em estudos em Homenagem a Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003 = Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, págs. 256 a 279, com inúmeras referências doutrinárias e jurisprudenciais no mesmo sentido; a perda de confiança é um dos elementos da justa causa como fundamento resolutivo do contrato de mandato (art. 1170/1 do CC), que é uma das modalidades do contrato de prestação de serviços (art. 1155 do CC), que serve de regime supletivo às outras (art. 1156 do CC), entre elas a da empreitada (nesta parte, veja-se Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em homenagem a Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, págs. 343-411, especialmente 356 a 363, e na anotação publicada no ano 118 da Revista de Legislação e Jurisprudência, págs. 274-282, 317-320, 328-332; de algum modo neste sentido, também Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, obra citada, pág. 493)].
Quase no mesmo sentido do que se está a decidir, veja-se o acórdão do STJ de 17/11/2015, 2545/10.5TVLSB.L1.S1:
I – O contrato de empreitada é um contrato bilateral ou sinalagmático de que resultam prestações correspectivas ou correlativas (a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço), isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra e intercedendo entre ambas um nexo de causalidade e de reciprocidade.
II – Ao contrato de empreitada aplicam-se as regras especiais para ele definidas nos arts. 1207 e segs. do CC, mas também as normas gerais relativas aos contratos e às obrigações com elas compatíveis.
III – A invocação da exceção de não cumprimento do contrato, nas hipóteses de cumprimento defeituoso ou parcial, deve ser restringida aos casos em que não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos arts. 227 e 762/2 do CC e desde que sejam observados critérios de proporcionalidade a aferir segundo as circunstâncias do caso, tendo em conta não só o valor da prestação que ficou por pagar, mas também as relações negociais entre as partes, a gravidade do incumprimento na economia do contrato, a atitude do demandado e do demandante, as causas da execução parcial ou defeituosa, a tolerância ou intolerância revelada por cada uma das partes no contrato, os seus interesses, etc.
IV – A recusa da ré em entregar a obra por falta de pagamento de uma pequena parcela do preço relativo a obras novas, quando não cum-priu sistematicamente o prazo de entrega da obra e de completar alguns trabalhos já pagos, excede a finalidade e os critérios de proporcionalidade da exceptio, ainda mais tratando-se de uma exceptio atípica, situada fora do contrato bilateral inicial porque relativa a obras novas.
V – É de admitir a resolução do contrato por recusa de cumprimen-to, decorrente de um comportamento concludente, quando este se insere num quadro de comportamentos sintomáticos que, sem colocarem direc-tamente em causa o cumprimento, o tornam improvável e de molde a criar no declaratário a convicção que o devedor não realizará a prestação no prazo fixado ou no decurso de uma subsequente interpelação admonitória.
VI – Trata-se de um «direito de resolução por justa causa», por analogia com outras disposições do Código Civil a propósito do mandato ou (art.1170/2) e do contrato de depósito (art. 1194), para os casos em que se verifica uma ruptura da confiança essencial ao normal desenvolvimento da relação, susceptível de a inviabilizar no futuro.”
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Outras defesas da ré
A ré, ao contrário do que pretende, não tem razão em invocar o “não pagamento prévio do preço pela autora na altura convencionada”, ou seja, o atraso com que as facturas eram pagas, para excepcionar o não cumprimento da sua parte do acordo. Desde logo, não consta dos factos provados, qualquer invocação, pela ré, de que tinha deixado de trabalhar na obra, e desde quando, por falta do pagamento das facturas. Depois porque a ré está a invocar a excepção, em relação ao valor total, de 42.715€, quando se sabe que a autora já tinha pago quase 75% desse valor e no entanto a realização da obra não estava, nem de perto, numa percentagem equivalente (o 1º módulo estava apenas parcialmente operacional, não tendo sido também acabados os trabalhos adicionais à excepção do referido no facto 16, e o 2º módulo estava totalmente inoperacional).
A ré diz que não destruiu a parte do sistema que já estava feita e pode-se aceitar que assim é. A ré tirou-o apenas do acesso da autora e provavelmente poderá restaurá-lo, tal como é sugerido pelo tipo de argumentação em causa. Mas o que está agora em discussão não é isso, mas o facto de tal retirada de acesso poder ser vista como uma recusa de cumprir o contrato.
A ré diz também que os atrasos na sua prestação se ficaram a dever à actuação da própria autora, dada a solicitação de trabalhos adicionais com urgência, a falta de pagamento pontual de facturas e a falta de resposta atempada às informações que a ré pedia à autora, mas nada disto de provou com o efeito pretendido, ou seja, como causa dos atrasos da ré. Apenas um trabalho adicional foi urgente e terá sido efectuado – o da exportação do ficheiro, pedido em e para Setembro de 2009. O resto foram atrasos em relação aos quais nada se provou de significativo (tanto mais que a ré também não acabou os pedidos adicionais).
Por fim, a continuação da resposta às solicitações da autora e do alojamento do sistema informático nos servidores da ré, no período Fevereiro 2011 a Agosto de 2011, não tem relevo para afastar o incumprimento e a quebra de confiança em causa: designadamente porque, como já se viu, a ré nem sequer facturou essa continuação de resposta a partir de Novembro de 2010 e a continuação do alojamento foi contra a vontade da autora que instou a ré a colocar o sistema nos seus servidores logo em Fevereiro de 2011 (sendo que a continuação das solicitações da autora provavelmente deveu-se a isso, ou seja, ao facto de a parte do sistema construída continuar a estar alojada nos servidores da ré).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pela ré.
Lisboa, 19/01/2017
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto