Acção sumária

Torres Vedras – Juízo Local Cível

            Sumário:

              Construídas em 1988 janelas em contravenção ao art. 1360/1 do CC, com conhecimento e sem oposição dos réus até 2011, constituiu-se por usucapião uma servidão de vistas a favor do prédio a que pertence a fracção D dos autores (art. 1362/1 do CC), onde estão construídas, não podendo os réus, depois, elevar um seu muro a menos de 1,5m daquelas janelas (art. 1362/2 do CC).

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            M e filho, intentaram, em Dezembro de 2012, a presente acção contra J e mulher, pedindo que os réus sejam condenados a demolir a construção que veda a servidão de vistas, ar e luz ao prédio dos autores e a pagar-lhes 250€ [mensais] desde Março de 2012 até demolição da referida construção.         

            Para o efeito, alegam, em síntese, que: numa fracção predial de que são titulares e onde existem janelas há mais de 20 anos, os réus construíram há algum tempo um muro a menos de 50 cm das janelas, o que impede que entre a luz do sol e ar pelas mesmas; e que por essa razão a autora desde Fev2012 já não consegue arrendar a fracção, o que antes faziam por 250€ mensais.

            Os réus contestaram, impugnando os factos alegados: o muro foi construído em 1981 e só uns anos depois disso é que os autores construíram um barracão e umas janelas encostadas àquele muro; sendo certo que só a altura a partir de 1,80 metros, isto é, cerca de 1,20 m, é que foi completada há cerca de 1 ano e meio, ou seja, Outubro/Novembro de 2011.

            Os autores “replicaram” (entre o mais invocando o acrescento de 1,20m em 2011 sobre o muro 1,80m, a data de 1988 para a sua obra e para a existência das janelas, e a tapagem das janelas) e pedem a condenação dos réus como litigantes de má fé.

            Realizado o julgamento (sem qualquer produção de prova testemunhal), acabou por ser proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente.

            Os autores recorrem (recurso que referem ter efeito suspensivo sem dizerem porquê) desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (os sublinhados foram colocados por este tribunal de recurso, assinalando os factos, com relevo para a decisão sobre matéria de direito, que, na lógica do recurso, se querem ver aditados):

“A) Do processo resulta que as janelas dos autores, em causa nos autos, existem desde 1988,

B) Facto que é até alegado pelos próprios réus

C) Facto que é provado desde logo pelo doc. n.º 4 que o réus juntam com a sua contestação donde resulta a sua autorização para a abertura de janelas.

D) Aquela fracção era inicialmente o artigo de construída ao abrigo da licença n.º,

E) Mais tarde veio a dar origem a quatro novas fracções, estando nos autos em causa a fracção D.

F) E se é certo que a construção em propriedade horizontal só ocorre em 2010, certo é também que as janelas que os réus taparam construindo o muro de que se fala, já existiam desde 1988.

G) A câmara municipal de X, veio aos autos explicar que ordenou a demolição do (prolongamento) do muro que os réus construíram em 2011.

H) Pelo que não há sequer sombra de dúvidas sobre a constituição de servidão de vistas que onera a propriedade dos réus.

[…]

J) Os réus negam a servidão de vistas quando os próprios autorizaram a que se constituísse em 1988.

K) Afirmam que a construção da autora é ilegal quando são os réus que desobedecem a embargos camarários à construção do muro,

L) E tudo isto afirma nos autos mesmo sabendo que, para que não fossem condenados pelo crime de desobediência (a ordem camarária), tiveram que entregar donativo a IPSS.

M) Os réus ludibriam o poder judicial e demonstram viver no mais absoluto desprezo pelo ordenamento jurídico que manobram a seu bel-prazer.

N) Com efeito, violam as disposições camarárias e nada acontece, pois que a obra que tapou as vistas aos autores prossegue,

O) O processo-crime por desobediência foi suspenso com a entrega do donativo

P) E o tribunal a quo obnubila provas e mesmo as declarações dos réus declarado improcedente a acção e absolvendo-os da condenação como litigantes de má fé.

[…]”

            Os réus contra-alegam para que o recurso seja julgado improcedente; levantam as questões prévias da falta de pagamento da taxa de justiça e do modo de subida (em separado, sem dizer porquê) do recurso.

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            Questões que importa decidir: falta de pagamento da taxa; junção de documentos; aditamento de factos referidos pelos autores; se o pedido de reconhecimento da servidão de vistas devida ter sido julgado procedente; e se os réus devem ser condenados como litigantes de má fé.

            Note-se que as conclusões dos autores (ou, aliás, o corpo das alegações) não têm uma linha que seja sobre o pedido de indemnização deduzido por eles contra os réus; assim sendo, a improcedência desse pedido não foi posta em causa (arts. 639/1 e 635/4, ambos do CPC) e está transitada em julgado, não sendo objecto deste recurso (art. 635/5 do CPC).

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Da falta de pagamento da taxa de justiça

            Ambos os autores pediram apoio judiciário, pelo que os réus não têm razão ao dizerem o contrário; o erro deles dever-se-á a alguma falta de notificação. Por outro lado, nada existe no processo que leve este tribunal de recurso a pôr em causa a formação do acto tácito do diferimento do pedido (art. 25/4 da Lei do apoio judiciário), tendo os autos sido remetidos a este tribunal já depois do prazo para a mesma.

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Do modo de subida e efeitos do recurso

            O tribunal recorrido, bem, fez subir o recurso nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, como tinha de ser (arts. 645/1-a e 647/1, todos do CPC), não tendo razão, os réus, para defender a subida em separado e, os autores, para defender o efeito suspensivo.

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Da junção de documentos

            Com o seu recurso os autores apresentam 4 documentos (a que dão os n.ºs 7 a 10), sem dizerem uma palavra que fosse sobre o assunto. E já com o recurso a caminho deste tribunal, apresentam mais um documento, também sem qualquer alegação de factos.

             Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento (art. 425 do CPC), ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância (art. 651/1 do CPC).

             Ora, os autores não alegaram os factos que permitiriam o preenchimento destas normas, pelo que os documentos em causa não podem ser agora juntos.

             Os autores serão condenados numa UC de multa (arts. 443/1 do CPC e 27/1 do RCP), dado a multiplicidade de documentos, a repartição por dois actos e a total ausência de tentativa de justificação da apresentação tardia.

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         Os factos provados são os seguintes (os pontos 4-A, 6-A e 6-B foram aditados por este acórdão, em consequência da impugnação da decisão da matéria de facto):

  1. Mostra-se registada na Conservatória do Registo Predial de X, pela apresentação n.º 27 de 28/07/1998, a aquisição, por dissolução conjugal e sucessão hereditária, a favor de C, da autora e do autor, do prédio sito na Rua X, n.º 24, descrito naquela CRP sob o número xx da freguesia da xx e, inscrito na matriz sob o artigo xx.
  2. Por escrito notarial lavrado no Cartório Notarial de X em 28/04/2011, de fl. 1 a fl. 2v do Livro de Notas n.º 161-A, os autores e aquela C declararam que o prédio referido em 1) “(…) reúne as condições necessárias e exigidas por lei para a sua constituição em regime de propriedade horizontal, em virtude de as fracções, de que o mesmo se compõem, constituírem unidades independentes e autónomas, suficientemente distintas e isoladas entre si, com saída própria para um espaço comum e deste para a via pública, conforme certidão camarária, adiante arquivada, dela constando ainda que o prédio se situa na dita Rua X, nº. 24, freguesia de xx, pela presente escritura, submetem este prédio ao regime de propriedade horizontal, composto por quatro fracções autónomas designadas pelas letras A a D, e que são as seguintes:

         (…) Fracção D – Casa de rés-do-chão direito posterior, para habitação, coma área coberta de 61,60m2, composta de um quarto, casa de banho, sala, hall, cozinha e logradouro com 35,60m2, com o valor atribuído de 34.317,99€, a que corresponde a permilagem de 133 do valor total do prédio; (…)”.

  1. Para a fracção D referida em 2, foi emitida a licença de utilização com o n.º xx/2010, em 06/12/2010 pela Câmara Municipal de X.
  2. A fracção referida em 2 tem 3 janelas (dos 2 quartos e cozinha) que confinam com prédio dos réus.

      4-A as janelas da fracção dos autores existem desde 1988.

  1. Com base no alvará de licença n.º xx – processo n.º xx/81, emitido no dia 13/10/1981, a favor de yy, foi construído por este e pelo réu, muro com a altura de cerca de 1,80 metros.
  2. O muro referido em 5 foi construído no ano de 1981.

     6-A. Os réus, em Out/Nov2011, elevaram o muro do seu prédio.

    6-B. O muro, agora com 3,49m de altura (= 1,87 + 1,62) está frente àquelas janelas que têm a altura (até ao cimo delas) de 2,26m (a da cozinha) e 2,12m (as dos quartos).

  1. As janelas referidas em 4 só foram abertas e construídas como hoje estão, porque os réus, sendo solicitados, a isso se não opuseram.
  2. Os réus não procederam à demolição do muro referido em 5.

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Da impugnação da decisão da matéria de facto

            Como resulta da comparação das conclusões do recurso dos autores com os factos dados como provados, estes entendem que devia ter sido dado ainda como provado (para além de outros dois factos referidos a seguir) que:

        – as janelas da fracção dos autores existem desde 1988,

         – os réus, em 2011, elevaram o muro do seu prédio.

         – com isso taparam as janelas da fracção dos autores.

              Segundo os autores, a prova destes factos resulta do seguinte (transcreve-se a argumentação do corpo das alegações do recurso, com numeração agora introduzida para permitir remissões, evitando repetições):

  1. O tribunal deslocou-se ao local e verificou que o muro construído pelos réus tem uma construção antiga até 1,87m e que esse muro tem depois uma construção mais recente com mais 1,62 de altura em cima da referida construção antiga; verificou ainda que as três janelas da habitação referida nos autos possuem caixilharias em alumínios com mais de vinte anos e já algo degradadas.
  2. Os próprios réus referem no artigo 11.º da sua contestação que “as janelas dos autores só foram abertas e construídas como hoje estão porque os réus sendo solicitados a isso se não opuseram conforme declaração que lhes foi pedida e que entregaram na Câmara Municipal de X no dia 02/09/1988”.
  3. Na verdade, os próprios réus juntam o documento n.º4 com a sua contestação na qual se lê que embora a “casa de M diste 0,5 metros da sua”, autorizam a legalização da obra.
  4. Pergunta-se: haverá alguma casa sem janelas que uma câmara municipal possa legalizar?
  5. Dos autos resulta também que a constituição da propriedade horizontal que deu origem à fracção descrita nos autos ocorreu por escritura pública lavrada em 2011, mas resulta igualmente que essa propriedade horizontal foi construída a partir da habitação com a respectiva licença camarária emitida OP/xx/80 – ver doc. n.º 2 junto com a P.I e cfr doc. 4 (escritura de propriedade horizontal) a qual no 1.º parágrafo da 2.ª folha explica donde proveio o actual artigo matricial xx: proveio do yy que era uma casa de habitação).
  6. Ora se juridicamente é verdade que a propriedade horizontal foi constituída nesse momento, certo é que as janelas já lá existiam e foram construídas ao abrigo da referida licença OP/xxx/80, aliás, foi no âmbito desse mesmo processo que os réus notificados pela Câmara Municipal de X, emitiram declaração não se opondo à abertura de janelas.
  7. Na verdade, através da referida licença a autora transformou uma adega (artigo matricial xx) em habitação, data em que realizou obras e abriu as janelas com autorização do vizinho aqui réu.
  8. Mais tarde em 2009, decide transformar essa casa (artigo xx descrito sob o n.º yy de zz) em quatro fracções, o que fez obtendo as respectivas licenças que deram origem às fracções A, B, C e D, do artigo matricial n.ºxx da freguesia da z, concelho de X.
  9. Isto resulta até da própria caderneta predial, essas fracções tiveram origem no artigo da mesma freguesia que se trata de uma casa de habitação. – cfr doc. 9 e 10.

            E mais à frente, acrescentam:

  1. Os próprios réus assumem que apenas em 2011 construíram 1,20 metros de muros em acréscimo ao 1,80 que já existiam.
  2. Por esse motivo, não poderia o tribunal recorrido ter fixado como não provado o ponto 2 dos factos não provados, ou seja, que a licença de construção da fracção não teve por base a OP/xxx/80.
  3. E muito menos o ponto 3 dessa matéria, ou seja, que as janelas da fracção não existem há mais de vinte anos.
  4. Incorrectamente foi ainda considerado não provado que o OP/xx/2007 culminou na decisão camarária de demolição do muro construído pelo réu, pois esta é a referência camarária do ofício enviado ao ré e junto aos autos em Novembro de 2015.

            Os réus, naquilo que pode ser aproveitado para o assunto, invocam os factos provados sob 3 e 5.

            O tribunal recorrido disse, quanto aos factos não provados, que, a sua convicção sedimentou-se na circunstância de não ter sido efectuada prova dos mesmos, isto é, à excepção dos documentos juntos aos autos pelas partes e da inspecção ao local realizada pelo tribunal, nenhuma outra prova foi produzida pelas partes.

            Decidindo:

            À data da contestação, o art. 490 do CPC, na redacção anterior à reforma de 2013, dispunha, nos seus n.ºs 1 e 2, que os réus, ao contestarem, deviam tomar posição definida perante os factos articulados na petição e que se consideravam admitidos por acordo os factos que não fossem impugnados, salvo se estivessem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto.

            Os autores diziam, na petição inicial, que as janelas existem há mais de 20 anos, o que, estando a escrever a petição inicial em fins de 2012, remete para fins de 1992. Ou seja, segundo eles, as janelas existiam antes de 1992.

            Os réus, na contestação diziam, que: as janelas do prédio dos autores foram construídas alguns anos depois do muro dos réus, aliás com a não oposição destes; muro que tinha sido construído no ano de 1981, sendo certo que só a altura a partir de 1,80 metros, isto é, cerca de 1,20 metros, é que foi completada há cerca de 1 ano e meio, ou seja Outubro/Novembro de 2011. E acrescentam que a janela dos autores só foram “abertas” e construídas como hoje estão, porque os réus, sendo solicitados, a isso se não apuseram, conforme declaração que lhes foi pedida e entregaram na Câmara Municipal de X no dia 02/09/1988 (doc.nº.4); neste documento o réu disse: “não se opõe à legalização de uma moradia construída pela sua vizinha, M, e que se encontra afastada apenas 0,50 cm do limite da propriedade.” Esta declaração está datada de 02/09/1988.

            Assim, os réus não impugnaram a afirmação, feita pelos autores, de que as janelas existiam antes de 1992, o que corresponde à admissão, por acordo, de tal facto. E essa data pode ser concretizada, em 1988, porque a declaração, de 1988, se refere ao passado (‘a moradia construída’).

            Na petição inicial os autores afirmavam, de novo de forma parcialmente indefinida, que “há algum tempo, os réus construíram ilegalmente um muro, a menos de 50 cm dessas janelas.”

            A resposta dos réus já se viu qual foi, e dela resulta que os réus admitem que há algum tempo (que até concretizam: Out/Nov2011), construíram – ou melhor, elevaram – um muro a menos de 50 cm daquelas janelas. Quanto a esta mudança, de construir para elevar, entende-se que não é relevante, ou seja, que pode ser consignada, pois que não altera, no essencial, o pretendido pelos autores: o muro de que eles se queixam deixa de ser um muro construído desde o chão, para passar a ser construído a partir de um outro muro.

            Aquilo que consta dos factos provados sob 3 e 5 não impede nada disto, ao contrário do sugerido pelos réus: o facto da fracção dos autores só ter sido legalizada em 2010 não quer dizer, claramente no caso, que não tenha sido construída antes ou em 1988. E o facto de o muro dos réus ter sido construído em 1981 não impede que tenha sido elevado em 2011.

            Assim, está provado, em relação aos factos que os autores querem que se adite, que as janelas da fracção dos autores existem desde 1988 e que os réus em Out/Novembro de 2011 elevaram o muro do seu prédio.

            As concretizações das datas podem ser feitas nem que seja porque os autores, na “réplica” manifestam a inequívoca vontade de delas se aproveitarem (art. 5/2-b do CPC).

            Quanto ao terceiro facto que os autores pretendem aditar, em tom conclusivo, ele resulta, em termos concretos (e o facto não é essencial e por isso pode ser concretizado: art. 5/2-a do CPC), daquilo que foi consignado no auto de inspecção ao local [que, diga-se aqui, não tem o conteúdo referido pelos autores na parte que se refere à caixilharia] feito pelo tribunal recorrido (inspecção judicial a uma situação de facto, arts. 390 do CC e 490 do CC), ou seja, que o muro, com 3,49m (1,87 + 1,62) está frente às janelas que têm a altura (até ao cimo delas) de 2,26 (a da cozinha) e 2,12m (as dos quartos). É isto que deve ser aditado.

                                                      *

            Quanto à ordem de demolição do muro dos réus, que os autores dizem ter sido dada pela CM, diga-se que os vários documentos juntos aos autos – por exemplo, documento 5 junto com a petição inicial, da CM de 04/07/2012, nossa referência OP/xx/2007: “informo que nesta data foi notificado o Sr. J para no prazo de 90 dias, proceder à demolição das obras e proceder à reposição da legalidade”; doc. n.º 3 apresentado pelos réus: um valor pago à CM relativa à OP xx/2007 pela área de construção de 65m2; doc. n.º 4: um alvará de obras de construção, relativo ao proc. OP/xx/2007, uso a que se destina: construção de anexo, área de construção 65m2 – etc., não permitem a certeza de que a ordem seja dada por causa do muro e não por outra questão relativa ao anexo, embora se saiba que o muro é uma das paredes do anexo. Os autores podem perceber a diferença facilmente, se tiverem em conta que os réus usaram sistematicamente, nos autos, uma ordem de demolição dada pela CM em relação ao edifício a que pertence a fracção dos autores, como se fosse ordem de demolição da fracção D e não, como era de facto, de meros pormenores de outras fracções do mesmo.

            Quanto ao facto dado como não provado em 2 da sentença recorrida, decisão posta em causa no n.º 11 do recurso dos autores, o mesmo não tem qualquer interesse para a decisão das questões postas, pois que não interessa ao abrigo de quê, mas quando, é que as janelas foram construídas realmente.

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Do recurso sobre matéria de direito

            A sentença recorrida entende que não resulta provado que as janelas tenham sido construídas antes do muro em apreço, antes pelo contrário, já que só foram abertas como hoje estão porque os réus, sendo solicitados, a isso não se opuseram, e a fracção D apenas adquiriu existência jurídica em 28/04/2011, como unidade independente e autónoma.

            Entendem os autores que (i) tendo os réus autorizado a abertura de janelas numa habitação não podem vir mais tarde obstrui-las construindo um muro, sob pena de incorrerem em abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade de venire contra factum proprium: ou seja, dão azo a uma servidão de vistas e depois recusam-se a aceitá-la; (ii) existindo as janelas há mais de 20 anos, formou-se sobre elas uma servidão de vistas, tanto mais que tal ocorreria mesmo que elas fossem irregulares, conforme o diz o ac. do TRC de 03/03/2015, proc. 335/13.2TBAGN.C1; invocam ainda o ac. do STJ de 15/05/2008, proc. 08B1368.

            Os réus dizem que o muro foi construído em 1981, com 1,80m de altura, e a fracção dos autores foi construída e licenciada em 2010, pelo que não pode ter-se constituída por usucapião a alegada servidão de vistas, o que seria totalmente absurdo e ilegal.

            Decidindo:

            Em 1981 os réus construíram um muro de 1,87m de altura.

            Desde 1988 existem três janelas (com alturas de 2,26m e 2,12m) na fracção dos autores a 50 cm do muro em causa e os réus aceitaram tal situação.

            Desde 1988 existem três janelas (com alturas de 2,26m e 2,12m) naquela que é agora a fracção D dos autores, depois de constituída a propriedade horizontal, a 50 cm do muro em causa e os réus aceitaram tal situação.

            Em 2011, os réus elevaram o muro em cerca de 1,62m de altura.

            Como o muro ficou com 3,49m e as janelas, que estão a 50cm do mesmo, têm uma altura de 2,26m e 2,12, conclui-se que os muros tapam as janelas, tirando-lhes as vistas.

            Segundo o art. 1360/1 do CC, o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.

            Mas, acrescenta o art. 1362 do CC, a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. E, constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no nº 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.

            Foi o que se passou no caso dos autos:

            No prédio a que pertence a fracção D dos autores foi construído, sem se poder, um prédio com janelas a deitar directamente para o prédio vizinho, isto é, sem respeitar a distância de 1,5m entre eles. A situação manteve-se durante mais de 20 anos (pelo menos de Out1988 a Out2011) de forma pública e pacífica (os réus aceitaram a situação logo em 1988). Por isso, em Out2008 já estava constituída, a favor do prédio dos autores, por usucapião (arts. 1316, 1317-b, 1260 a 1262, 1296 e 1297 do CC), uma servidão de vistas (ou, noutra perspectiva, extinto o dever do art. 1360/1 do CC – trata-se de uma servidão desvinculativa). Em consequência, os réus deixaram de poder levantar no seu prédio, no caso sobre o muro que já lá tinham, um outro muro sem deixar entre este e a extensão das janelas já existentes, 1,5m.

            Elevando o muro em contravenção do art. 1362/2, os réus agiram ilicitamente e os autores têm o direito de pedir a demolição da construção feita em Out/Nov. de 2011 (arts. 1311 e 1315 do CC). Não de todo o muro, como eles queriam, mas da parte elevada e apenas na extensão das janelas existentes.

            A posição contrária dos réus não tem em conta os factos dados como provados: os réus esquecem, para poder dizer o que dizem, que eles próprios admitiram que as janelas já estavam construídas em 1988, na moradia da sua vizinha M, quando eles, em finais de 2011, elevaram o muro. Não tem pois nada de absurdo e ilegal a pretensão dos autores em quererem ter por constituída a servidão de vistas.

            Quanto à objecção que resulta da sentença: o facto de a fracção D só ter existência independente a partir de 2011, não impede que a servidão já existisse e tenha continuado a existir, como decorre claramente do que se diz quanto ao princípio da inseparabilidade das fracções (art. 1546 do CC: As servidões são indivisíveis: se for dividido o prédio dominante, tem cada consorte o direito de usar da servidão sem alteração nem mudança. Explicam Antunes Varela e Pires de Lima, CC anotado, vol. III, 1984, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 625: “também não pode haver a menor dúvida de que, se for dividido um prédio urbano que seja titular de uma servidão de vistas, resultante, por exemplo, da existência de uma janela situada a uma distância da linha divisória inferior à legal, só a fracção onde a janela se localize ficará, pela própria natureza das coisas, com direito à servidão.”)

            Procede, pois, em parte esta pretensão dos autores.

              [sobre tudo isto, teve-se em conta principalmente a anotação de Henrique Mesquita ao ac. do STJ de 03/04/1991, publicada na RLJ 128, págs. 119 a 128 e 149 a 154; e também Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, págs. 212 a 216 e 218 a 222, que entre o mais explicam que, com a limitação do art. 1360 do CC, se pretende evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos e impedir que seja facilmente devassado com o arremesso de objectos; Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra,1967, págs. 148 a 156; Oliveira Ascensão, Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 255; Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, págs. 349/350; José Alberto R. Lorenzo González, Limitações de vizinhança (de direito privado), SPB, 1997, págs. 140 a 147, e Restrições de vizinhança (de interesse particular), Quid Juris, 2003, págs. 106 a 113; Mónica Jardim e Margarida Costa Andrade, Direito das coisas, casos práticos resolvidos, Coimbra Editora, 2015, págs. 75/76; Mota Pinto, Direitos Reais, Almedina, 1972, págs. 246-247; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, págs. 184-186; Menezes Leitão, Direitos Reais, 2013, 4ª edição, Almedina, págs. 182 a 185; e os acs. do STJ de 07/02/2002, proc. 02B2406; de 01/04/2008, proc. 07A3114; de 15/05/2008, proc. 08B862; e de 14/07/2016, proc. 128/12.4TBSBG.C1.S1; para além dos dois acórdãos citados pelos autores desta acção (do TRC de 03/03/2015, proc. 335/13.2TBAGN.C1, e do STJ de 15/05/2008, proc. 08B1368), o último com particular interesse por dizer respeito a uma situação semelhante às dos autos.

              Face ao que resulta destes autores e acórdãos, importa ainda esclarecer que a qualificação como janelas das aberturas da fracção dos autores era uma conclusão jurídica para a qual os autores deviam ter alegado os factos necessários, designadamente de forma a distingui-las das frestas e das frestas irregulares; mas, como os réus não puseram em causa a qualificação dessas aberturas, como janelas, não se vê razão para dar relevo à questão; de qualquer, diga-se que nas várias peças desenhadas entregues à Câmara Municipal e juntas aos autos antes da sentença, vê-se claramente que o que está em causa são janelas e não frestas ou frestas irregulares; e no auto da inspecção judicial fala-se em janelas e mesmo no parapeito da janela da cozinha e isto são coisas objectivas que o tribunal recorrido viu, não tendo feito nenhuma reserva quanto a tratarem-se de janelas e não de outras aberturas; a questão ainda teria menos relevo, se se seguir a posição de Menezes Leitão, obra citada, págs. 184/185 – que invoca no mesmo sentido Antunes Varela/Pires de Lima e ac. do TRC de 26/01/2010, CJ.I, págs. 18-21 -, de que o proprietário que levante frestas irregulares pode adquirir por usucapião uma servidão atípica que lhe permite reagir contra qualquer acto do proprietário do prédio serviente que estorve o uso dessa servidão, designadamente a realização de construção que desrespeite os limites do art. 1362/2].

                                                      *

                                      Da litigância de má fé

              […]

                                                           *

            Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida apenas na parte que julgou improcedente o pedido de demolição da construção, substituindo-se a mesma, nessa parte, por esta decisão que julga agora esse pedido parcialmente procedente, condenando os réus a demolir a parte do muro que elevaram a partir da altura de 1,87m, na parte correspondente à extensão das janelas da fracção predial dos autores.

            Custas da acção e do recurso pelos autores e pelos réus em partes iguais, e sem prejuízo do que tiver sido decidido quanto ao pedido de apoio judiciário.

            Os autores vão condenados em 1UC de taxa de justiça pela apresentação dos documentos com o recurso (fls. 275 a 280 e 283 a 286) e depois dele (fls. 325 e segs) que se mandam desentranhar e restituir aos mesmos.

            Lisboa, 19/01/2017

            Pedro Martins

            1º Adjunto

            2º Adjunto