Funchal – Juízo Local Cível – J2
Sumário:
Só se pode condenar no que se vier a liquidar, caso se possa concluir logo pela existência da obrigação, faltando apenas fixar o seu objecto ou quantidade (art. 609/2 do CPC).
Acordam no Tribunal de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A intentou, em 31/07/2015, a presente acção contra B e mulher pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe 21.917,30€ acrescidos de juros de mora vencidos no valor de 547,63€ e vincendos.
Alega, em suma, que a sociedade C, Lda, construiu uma moradia a pedido dos réus, os quais não pagaram parte do preço e que a referida sociedade lhe cedeu o crédito que detinha sobre os réus.
Os réus contestaram, impugnando o contrato, embora o façam sob a forma de excepção dilatória de ilegitimidade activa, e excepcionando a prescrição e o pagamento dos 17.500€ correspondentes ao preço acordado (no contrato que teriam celebrado com outrem e não com a referida sociedade).
Realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando a acção improcedente.
O autor recorre desta sentença, impugnando (i) a decisão da matéria de facto, para que sejam aditados outros factos aos dados como provados, e (ii) a decisão sobre a matéria de direito, defendendo que a acção devia ter sido julgada procedente ou, pelo menos, que se devia ter relegado para liquidação posterior o valor do preço do contrato e, consequentemente, da dívida.
Os réus contra-alegaram, no sentido da improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se os factos devem ser aditados como o autor defende e se, seja como for, a acção devia ter sido julgado procedente ou, pelo menos, os réus deviam ter sido condenados no que se viesse a liquidar como a diferença entre o valor do preço e o valor já pago.
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No tribunal recorrido foram dados como provados os seguintes factos (que se deixam consignados para mais fácil compreensão da matéria da impugnação):
- O autor foi até 13/03/2015, sócio gerente da C, Lda.
- Encontra-se registada a dissolução e encerramento dessa sociedade, pela ap.10/2015.03.13.
- Desde a data da sua constituição, a referida sociedade teve como objecto social “construção civil e obras públicas”.
- O réu solicitou àquela sociedade e a P orçamentos para a construção de uma moradia familiar em tosco.
- A sociedade procedeu à construção da moradia em tosco a pedido dos réus no ano de 2007.
- Os réus pagaram à sociedade a quantia de 17.500€ por conta da construção da moradia.
- O réu contratou posteriormente a sociedade para construção de um muro junto à moradia.
- O réu procedeu ao pagamento do preço relativo à construção do muro no valor de 4909,50€.
- Por documento datado de 19/02/2015, denominado cessão da posição contratual e pagamento de suprimentos, a sociedade, na qualidade de 1ª outorgante, e A, na qualidade de 2º outorgante acordaram que “(…) por seu lado o sócio e gerente e igualmente 2º outorgante desde contrato encontra-se credor desta sua referida sociedade a título de suprimentos, da importância de 87.952,39€ (….) 1º – objecto – Conforme resulta da sua contabilidade devidamente organizada, a 1ª outorgante é legitima titular dos dois seguintes créditos; 21917,30€, cujo devedor trata-se do seu cliente B e esposa (…) Nesta data a sociedade 1ª outorgante não tem quaisquer possibilidades de pagar os legítimos suprimentos a que o 2º outorgante tem direito a exigir-lhe, pelo que ambos ajustaram, que a 1ª cedia ao 2º, a título de pagamento da importância global de 31.799,30€ (…) os seus dois ora identificados créditos, cessão esta efectuada por este exacto valor, compreendo somente os dois identificados créditos e respectivos juros moratórios, vencidos e vincendos.”
I
Da impugnação da decisão da matéria de facto
[…]
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Improcede assim a impugnação da decisão da matéria de facto no seu todo.
Do recurso sobre a matéria de direito
A sentença recorrida considerou, na parte que importa, que,
“Conforme resulta da factualidade assente, não resultou provado qual o valor acordado para remuneração dos trabalhos efectuados pela sociedade sendo que, tendo os réus provado que procederam ao pagamento da quantia de 17.500€, o tribunal apenas consegue concluir que, pelo menos, aquele valor era devido. Tendo o autor incumprido o ónus de prova do valor do preço não é possível concluir que os réus incumpriram a sua prestação. Deve pois a acção improceder.”
O autor diz que:
Sem prejuízo da alteração da matéria de facto supra referida, e concebendo que a resposta dada à referida matéria de facto se mantivesse, sempre diríamos que, sendo o contrato dos autos um contrato de empreitada, segundo as regras processuais de repartição do ónus da prova, cumpria tão só ao autor provar a existência da obrigação, sendo encargo dos réus a prova do cumprimento da obrigação pelo seu pagamento. O autor provou a realização da obra em tosco aos réus e que lhes apresentou a factura junta com a p.i. Cumpria então a estes provarem que procederam ao pagamento desse valor, o que não fizeram, tendo somente ficado provado que foi efectuado um pagamento no valor de 17.500€. Pelo que, sempre teríamos que o valor da valor da obra seria de valor não concretamente apurado, mas seguramente superior a 17.500€. Ora, tal valor não estando apurado, deveria o mesmo ser relegado para execução de sentença, lançando mão do disposto no art. 609/2 do CPC (neste sentido invocam o ac. do Tribunal da Relação do Porto, proc. n.º 329/05.1TBVLC.P1, de 19/03/2009).
Os réus respondem que:
Impendia sobre o autor o ónus de alegação e prova da realização dos trabalhos e do respectivo preço. Ora, a prova produzida pelo autor foi insuficiente para demonstrar a realização de todos os trabalhos que ele alegou a sua empresa ter feito assim como do respectivo preço. Pelo que o Tribunal a quo não podia decidir noutro sentido que não fosse o de julgar a acção improcedente. E, contrariamente ao que alega o autor, não podia o tribunal a quo ter relegado para execução de sentença qualquer valor em dívida, porque isso só seria possível se se tivesse provado que ainda estaria em dívida determinada quantia, mas sem haver possibilidade de se fixar o seu quantitativo.
Decidindo:
O ac. do TRP invocado pelo autor diz respeito a um caso em que uma sociedade provou ter efectuado uma obra ao réus e estes não provaram ter pago fosse o que fosse; naturalmente, como era a eles que cabia provar o pagamento da obra (art. 342/2 do CC), não o tendo feito, tinha que se concluir que ficou por pagar a obra com que os réus ficaram; por isso tratava-se apenas de apurar o preço dela. O erro da sentença desse caso do ac. do TRP foi o de considerar que era a autora que tinha que provar que os réus não lhe tinham pago o preço (escreveu-se nela: “Na verdade, a factualidade supra elencada é insusceptível de alicerçar a pretensão da autora, não tendo ficado provado que os réus não lhe pagaram serviços por ela realizados no valor de 5.385,27€). Repete-se: a autora daquela acção provou ter feito uma obra com que os réus ficaram e estes não provaram ter pago o preço (qualquer preço).
No caso dos autos a situação é completamente diferente: o autor não logrou provar que tivesse efectuado qualquer trabalho aos réus que eles não tivessem pago. O autor provou ter efectuado uma obra e os réus provaram ter pago um preço por ela (um contrato de empreitada, art. 1207 do CC).
O sentido do facto 6, onde se diz que “os réus pagaram à sociedade a quantia de 17.500€ por conta da construção da moradia”, é o de dizer-se que pagaram 17.500€ pela obra, sem mais nada; dizer-se que era por conta dela, se tivesse o sentido de pressupor que era por conta de um preço superior, seria uma conclusão de direito, que teria de estar baseada na prova de um preço superior. Nesse caso, teria de se considerar como não escrita. Mas é só uma questão de redacção; o que se quis dizer, de forma clara já que não resultou provado um preço superior, é que os 17.500€ eram para a construção da moradia, não para outra coisa qualquer.
Posto isto, o autor teve toda esta acção para conseguir provar que o preço da obra era superior ao preço pago pelos réus (art. 342/1 do CC), como facto constitutivo do direito ao recebimento de um preço superior ao já pago. Era ele que tinha que provar esse preço superior (como o teria aliás que fazer numa eventual liquidação posterior a esta sentença). Não o conseguiu fazer.
Ora, o art. 609/2 do CPC, dispõe para o caso de apenas não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, mas de uma obrigação que se sabe que existe, e por isso o tribunal pode e deve condenar no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida. Ora, não é o esse o caso dos autos.
Visto de outra perspectiva: se se deixasse para liquidação posterior o resultado desta acção, teria de se admitir uma de três hipóteses: apurado o preço, o valor já pago pelos réus poderia ser superior, inferior ou igual. Só no caso de ele ser superior, é que os réus teriam de pagar a diferença. Assim, a sentença teria de ter um teor condicional que seria assim: se se provar que o preço da empreitada é superior aos 17.500€ pagos pelos réus, então os réus vão condenados a pagar a diferença. Isto demonstra que a sentença estaria baseada, sem poder, num facto constitutivo do direito invocado pelo autor, que lhe caberia a ele provar mas não provou (art. 342/1 do CC). O ónus da prova, como regra de decisão, não teria funcionado. A sentença teria violado a regra do ónus da prova: apesar de o autor não ter provado todos os factos constitutivos do direito que se arroga, a sentença condenaria os réus. Não pode ser.
Note-se que no caso do ac. do TRP referido pelo autor a questão não se coloca, porque, como os réus dessa acção nada tinham pago, o preço, fosse qual fosse, seria sempre superior. A condenação impunha-se. O mesmo acontece sempre que se prova que os empreiteiros fizeram trabalhos a mais ou adicionais. Ou se se prova que não foi tudo pago. O que não é o caso dos autos.
Aliás, a argumentação do autor, embora ele diga que o recurso sobre matéria de direito não depende da requerida alteração dos factos, parte de um pressuposto de facto não provado, ou seja, que o preço era preço superior aos 17.500€ (como se lê expressamente na respectiva argumentação).
E tanto que não está provado, que ele quis, subsidiariamente, que ao menos esse facto fosse dado como provado, para o caso de não se considerar procedente a argumentação principal contra a decisão da matéria de facto relativa aos factos não provados sob C e D.
Ou seja, o próprio autor está consciente que a alteração da decisão de direito estava dependente da procedência da impugnação da decisão de facto.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas pelo autor.
Lisboa, 19/01/2017
Pedro Martins
1º Adjunto
2º Adjunto