Processo do 1º juízo central cível de Lisboa
Sumário:
A notícia jornalística que dá conta de que um ex-primeiro-ministro está sob investigação no âmbito de um inquérito por crimes de natureza fiscal e económica, lhe foi quebrado o sigilo fiscal e bancário e as autoridades competentes pensam em constitui-lo como arguido e detê-lo para interrogatório judicial, não é um facto ilícito que faça incorrer o seu autor em responsabilidade civil, se for verdadeira – como o é, no caso -, por ter interesse público.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A intentou a 07/08/2014 a acção supra identificada contra B, SA (anteriormente denominada C, SA), D, E, F e G, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe 500.000€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, consequência da publicação de notícias que considera que põem em causa o seu direito à honra e consideração.
Os réus contestaram, no essencial, no que agora importa, dizendo que: o 2º réu, jornalista há mais de 20 anos, investigou devidamente (o que é descrito de forma pormenorizada) e durante meses os factos que noticiou, conseguiu atestar a veracidade desses factos e controlou o rigor das diferenciadas fontes de informação que utilizou, tendo-as a todas, de forma justificada, como sérias; a notícia tinha interesse público, dizendo respeito a suspeitas num inquérito contra um ex-primeiro-ministro; o autor foi confrontado com os factos antes da publicação da notícia e só não se pronunciou sobre eles porque não quis; a notícia foi dada com moderação e objectividade; a liberdade de imprensa é reconhecida quer na Constituição quer em textos internacionais acolhidos naquela e exclui, tendo em conta o alegado acima, a ilicitude da conduta dos réus; para além disso não se verifica a culpa e o autor não alega factos concretos que constituam danos que lhe tenham sido provocados com a notícia em causa, nem o necessário nexo de causalidade entre os factos dados como ilícitos e os danos não alegados.
Realizado o julgamento foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo os réus.
O autor recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que condene os réus – concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Na sua petição inicial, o autor identificou os danos que lhe provocou a notícia dos autos;
- A posterior confirmação do teor da notícia por meros e declarados indícios, nunca confirmados, não afasta a falsidade actual dela;
- Essa notícia, pelo seu conteúdo, pelas circunstâncias próprias do autor, pelo quadro pessoal, social e político dele, é gravemente ofensiva da honra e da consideração do autor e, por isso, ilícita;
- Dos depoimentos das testemunhas ouvidas, designadamente do prestado pelo Dr. H, há-de concluir-se que que provocou no autor os sentimentos a que referiu os danos sofridos;
- Tais danos são, ademais, muito graves, por isso merecedores da tutela do direito, objectivos e notórios, independentemente da sua alegação e prova que, em todo o caso, existem resultam dos autos e do julgamento.
- Esses danos resultaram directamente e necessariamente da notícia dos autos.
- A culpa intensa dos réus está demonstrada e declarada.
- A sentença recorrida viola os arts 483/1 e 496/1 do Código Civil e 412/1 do Código de Processo Civil.
Os réus contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso e, para a hipótese de procederem as questões por este suscitadas, requereram, ao abrigo do art. 636 do CPC, a ampliação do objecto do mesmo, de modo a abranger os fundamentos alegados por eles no sentido da exclusão da ilicitude das notícias publicadas e/ou da culpa dos réus e/ou da falta de danos (quer alegados quer provados).
O autor não respondeu.
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Questões que importa decidir: se há razões para alterar a decisão da matéria de facto e se a decisão de direito deve ser alterada no sentido pretendido pelo autor, tendo em conta quer os fundamentos do autor quer os dos réus, incluindo aqueles fundamentos que não foram considerados na sentença.
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No tribunal recorrido deram-se como provados os seguintes factos considerados como essenciais [em itálico acrescentou-se agora, nos pontos 7 e 8, os restantes subtítulos da peça jornalística; e em 9 acrescentou-se agora […] parte da notícia referida de modo a contextualizar as frases que foram transcritas isoladamente, estando estas sublinhadas; o que foi feito ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, ambos do CPC]:
- A B é uma empresa jornalística proprietária de diversas publicações, entre as quais o jornal diário J e a revista semanal K.
- D é jornalista da K.
- E é o director da K.
- F é jornalista do J.
- G é o director do J.
- O autor exerceu o cargo de Primeiro-Ministro do Governo de Portugal durante seis anos, entre 2005 e 2011.
- A capa da edição de 31/07/2014 da K tem como título «A É SUSPEITO NO CASO L»; Tem o subtítulo em letras mais pequenas: “Depois de M, o Ministério Público pondera deter o ex-primeiro-ministro para interrogatório. Está sob vigilância há vários meses e já lhe quebraram o sigilo bancário e fiscal.’
- Nas páginas 40 a 43 da mesma edição a K publicou um artigo da autoria de réu D, intitulado «A NA REDE DO L»; a anteceder este título consta: “Exclusivo. Investigação quebra sigilo bancário ao político E depois do título consta: “O ex-primeiro-ministro está sob vigilância há largos meses. O MP pondera detê-lo para interrogatório e constituí-lo arguido. Outros suspeitos são o primo que apareceu no caso N e o amigo que comprou as casas da mãe de A.” Na página seguinte está uma fotografia do autor e sobre ela a palavra ‘apanhado’. No canto inferior direito, em letras pequenas: A não quis comentar ao K o facto de ser um dos suspeitos no caso L.”
- Nesse artigo é afirmado, além do mais, o seguinte:
“Nos últimos meses A tem-se multiplicado em contactos políticos, continua a frequentar o restaurante M, nas imediações da sua casa em Lisboa, apareceu nas eleições europeias para dar um abraço e apoiar o cabeça-de-lista do Partido X, viajou para o Brasil durante o campeonato do Mundo de Futebol e retomou os comentários semanais na RTP. Mas, durante todo este tempo, o ex-primeiro-ministro tem também estado sob apertada vigilância do Ministério Público (MP) que o considera suspeito no caso L, a megainvestigação a fraudes fiscais, crimes de falsificação e branqueamento de capitais que, na semana passada, expôs na praça pública o ex-banqueiro M.
A operação L, que já deu origem a vários processos-crime autónomos, incluindo aquele em que é visado A, ameaça tornar-se uma espécie de queda contínua de peças de dominó que arrastará várias figuras públicas do mundo financeiro e da política: o ex-primeiro-ministro deverá ser um dos próximos a ter de dar explicações aos inspectores das finanças, aos procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e ao juiz de instrução O. Ao que a K conseguiu apurar, as suspeitas prender-se-ão com indícios de crimes de natureza fiscal e económica.
“Desculpe, mas vamos ficar-nos por aqui”, disse de imediato A quando, na segunda-feira, dia 28, foi questionado por telefone pela K sobre a investigação judicial em que é um dos alvos prioritários das autoridades. ”Faça o favor de não insistir e de não me ligar ou incomodar mais com isso”, finalizou, antes de se despedir e desligar o telemóvel.
A investigação da equipa de peritos das finanças e de vários procuradores, liderados pelo procurador P está a ser feita há largos meses sob rigoroso sigilo. A tem sido vigiado de muito perto e os investigadores já terão avançado para a quebra do sigilo fiscal, patrimonial e bancário do antigo primeiro-ministro. É a primeira vez que isto acontece a A num processo judicial.
O próximo passo – agora que a primeira fase da investigação está praticamente concluída – deverá ser a constituição como arguido do ex-governante. No MP também se pondera, há várias semanas, a possibilidade de deter A para interrogatório, à semelhança do que aconteceu, na semana passada, com M, o ex-homem-forte do Banco Q.
O primo e os milhões na Suíça
No inquérito-crime onde A é visado e que decorre no DCIAP, um órgão do Ministério Público especializado no combate à criminalidade mais complexa, os investigadores estão a seguir o rasto de diversos fluxos financeiros que se suspeita atingirem milhões de euros. O MP já terá também enviado cartas rogatórias para vários países com vista a identificar a totalidade das transacções financeiras internacionais consideradas suspeitas.
A K não conseguiu apurar se este dinheiro suspeito, ou parte dele, que foi sobretudo encaminhado para contas na Suíça, é efectivamente de A, mas sabe que a investigação judicial tem em cima da mesa, pelo menos, outros dois suspeitos: R, um dos primos do ex-primeiro-ministro ouvido pelo MP no processo N e o empresário S, o amigo que comprou, em 2011 e 2012, três casas à mãe de A.
Contactados por email pela K, R e S não responderam às questões enviadas. […]
[…]
O amigo da AM
Outro dos suspeitos identificados pelas autoridades no processo que visa A é o discreto empresário S. A relação de amizade com o ex-primeiro-ministro é pública há muitos anos. Os dois ter-se-ão conhecido na AM, onde S nasceu e montou os primeiros negócios e onde A viveu e trabalhou como engenheiro técnico. Muitos anos depois, segundo o J, quando A surge nas escutas telefónicas feitas a NA no processo AO, a PJ suspeitou que o ex-primeiro-ministro tivesse usado um telefone do empresário da AM em conversas que ficaram gravadas pelas autoridades e que até hoje não foram tornadas públicas por decisão do então procurador-geral da República e do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
A 25 de Setembro de 2012, foi também o empresário da AM que comprou o apartamento de AP, mãe de A, localizado no andar X, letra X do edifício X, na Rua X, em AG, sem sequer precisar de entrar no cartório da Av. X, para formalizar o negócio. Na escritura do imóvel, que a K consultou, consta que o comprador e o vendedor se fizeram representar por um procurador comum, para fazer o negócio de 600 mil euros.
Segundo o J, um ano antes já o empresário tinha comprado outros dois imóveis que a mãe de A tinha no concelho de AQ.
Dessa vez, as transacções foram menos avultadas em Junho, um dos apartamentos foi adquirido por 100 mil euros; o outro, um mês depois, por 75 mil euros.
[…]
Peritos das Finanças e escutas
Já muito se escreveu na comunicação social sobre a fortuna da família A e os quase dois anos sabáticos que o ex-primeiro-ministro passou a estudar filosofia política no Instituto em AR, como é que vivia, onde morava e os luxos que alegadamente tinha. Por causa disso, o político processou até o J (que integra o grupo B, proprietário da K), exigindo-lhe uma indemnização de 250.000€. Mais tarde colocou-lhe outro processo cível devido aos artigos sobre a sua ligação à empresa AS, a farmacêutica que controla em Portugal, desde 2008, o mercado dos derivados do plasma de sangue. Pede mais 350.000€, mas os processos ainda estão pendentes.
À 3ª vara cível de Lisboa, A disse, através do advogado AT – actual presidente da AU, detentora dos jornais X, X e rádio X -, que nunca teve uma vida luxuosa em França ou rendimentos ilícitos e que os jornalistas lhe tinham invadido a vida privada. Na RTP, quando foi entrevistado em Março de 2013, esclareceu que pediu um empréstimo cujo montante não especificou. “A primeira coisa que fiz quando saí de primeiro-ministro foi pedir ao meu banco um empréstimo para ir viver um ano para AR, sem nenhuma responsabilidade ao nível profissional.” A defesa do CM pediu então ao tribunal que obrigasse A a juntar ao processo todos os pormenores do empréstimo, mas o tribunal não acedeu, invocando o sigilo bancário.
Agora é o DCIAP que está a ver à lupa o património de A entre 1987 e 2010. Segundo as declarações apresentadas pelo próprio no Tribunal Constitucional, não possuiu sequer contas a prazo ou qualquer outra poupança financeira.
O grupo de investigadores das Finanças que está com o processo de A – conhecida como a Equipa M – é a mesma que desempenha há anos um papel fundamental em centenas de processos nascidos das operações AW e AK, em que constam crimes como fraude fiscal, branqueamento de capitais e burlas financeiras […]
[…]”
- No mesmo dia 31/07/2014, na capa da edição em papel do J estão contidos os seguintes dizeres: «L – A SUSPEITO DE METER MILHÕES NA ***»
- Na página 22 da mesma edição, o J publicou um artigo da autoria da ré Diana Ramos, intitulado «JUSTIÇA: EX-PRIMEIRO-MINISTRO ALVO DE INVESTIGAÇÃO» – «A SUSPEITO NO “L”»
- Nesse artigo são, no essencial, reproduzidos os dizeres transcritos em 9.
- No dia 30/07/2014, a Procuradoria-Geral da República emitiu o seguinte esclarecimento:
«Processo L – A
Na sequência de notícias vindas a público nas últimas horas, e ao abrigo do disposto no art. 86º, nº 13, al. b), do Código de Processo Penal, esclarece-se que A não está a ser investigado nem se encontra entre os arguidos no Processo L».
- No dia 22/11/2014 a PGR [divulgou] o comunicado cuja cópia se encontra a fl. 171, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Inquérito DCIAP – Diligências
(…)
No âmbito de um inquérito, dirigido pelo MP e que corre termos no DCIAP, e onde se investigam suspeitas de crime de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção, na sequência de diligências, desencadeadas nos últimos dias, foram efectuadas quatro detenções.
Entre os detidos encontra-se A.
Três dos detidos foram presentes ao juiz de instrução criminal durante o dia de sexta-feira, sendo que os interrogatórios serão retomados este sábado. Também este sábado, o quarto arguido será presente ao juiz de instrução.
Foram ainda realizadas buscas em vários locais, tendo estado envolvidos nas diligências quatro magistrados do MP, e 60 elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Polícia de Segurança Pública (PSP), entidades que coadjuvam o MP nesta investigação.
O inquérito, que investiga operações bancárias, movimentos e transferências de dinheiro sem justificação conhecida e legalmente admissível, encontra-se em segredo de justiça.
Esclarece-se também que esta investigação é independente do denominado inquérito L, não tendo tido origem no mesmo»
- Tal inquérito, a que corresponde o proc. n.º 122/13.8 TELSB, foi registado e iniciado em Julho de 2013.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
O art. 639/1 do CPC dispõe, sob a epígrafe de ‘ónus de alegar e formular conclusões’, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Por sua vez, o art. 640/1 do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’ dispõe que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Segundo jurisprudência actualmente estabilizada do STJ, os recorrentes têm de, nas próprias conclusões do recurso, dar cumprimento aos ónus das alíneas a e c do n.º 1 do art. 640, por força do disposto no art. 639 do CPC. Neste sentido, apenas por exemplo, o ac. do STJ de 27/10/2016, proc. 110/08.6TTGDM.P2.S1: 1 – Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objecto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração. […].
Basta a leitura das conclusões do recurso do autor para se ver que ele não deu cumprimento a estes ónus, não indicando nem uma coisa (os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) nem outra (a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas).
O que só por si imporia a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto.
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De qualquer modo, a benefício da discussão, diga-se que a decisão recorrida deu como não provado que:
- Em consequência das notícias referidas em 7 a 12, o autor viu-se confrontado com o desgosto e a inquietação dos seus familiares, sobretudo da sua mãe e dos seus filhos, a quem dificilmente consegue devolver tranquilidade.
- (…) e sentiu uma enorme indignação.
No corpo das alegações, o recorrente transcreve estes dois pontos e a respectiva fundamentação da decisão recorrida e como diz impugnar a decisão da matéria de facto e nada mais diz quanto aos outros pontos de facto, poderia pensar-se que são estes dois pontos que está a impugnar.
No entanto, percorrendo o corpo das alegações, não é nada claro que assim seja, tanto mais que em lado algum o autor sugere sequer que o que consta daqueles dois pontos esteja provado.
De qualquer modo, sempre a benefício da discussão, diga-se que é claro que o que consta do ponto 1 não corresponde a quaisquer danos não patrimoniais do autor, mas, quando muito, a danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do mesmo, que o autor não diz que se repercutiram nele.
Quanto ao que consta de 2, pode-se, com uma grande dose de generosidade, entender que, com base em considerações genéricas e abstractas, o autor impugna a decisão de não se ter dado como provado que tenha sentido uma enorme indignação, mas a verdade é que, mesmo que assim fosse, não aponta um único elemento de prova no sentido de demonstrar que a sentiu.
Ora, o art. 640/1-b, já citado, dispõe que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. E o art. 640/2-a acrescenta: Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
O que seria mais um motivo para rejeitar a impugnação da matéria de facto.
De qualquer modo, prosseguindo, quanto aos depoimentos das duas testemunhas do autor, os mesmos são perfeitamente inócuos para a prova de quaisquer danos concretos sofridos pelo autor, pois que é correcta a síntese que deles faz a fundamentação da decisão da matéria de facto:
“A testemunha H afirmou ser amigo do autor há cerca de 14 anos. No entanto, depois de o autor ter cessado funções como primeiro-ministro deixou de ter contactos pessoais com ele. Não leu as notícias em causa, embora tivesse sabido delas através de outros meios de comunicação social. Não falou com o autor acerca do teor dessas notícias, uma vez que, reiterou, nessa altura não tinha contactos com ele, até porque, pelo que se recorda, nessa altura, o mesmo residia em AR ou em AR e AG, alternadamente.
Resultou do depoimento da testemunha I, entretanto falecido, que foi amigo de longa data do autor. Resultou do seu depoimento em audiência recordar-se das notícias em causa nestes autos, não tendo, no entanto, a certeza de ter falado com o autor sobre o seu conteúdo, pois afirmou não ter «uma memória muito nítida sobre esse aspecto». Por isso, conclui o tribunal, a testemunha I, que além do mais, demonstrou não saber se o autor se encontrava e residir em França ou em Portugal à data da publicação das notícias a que se reportam estes autos, era desconhecedora da reacção daquele a tais notícias.
Aliás, a referida testemunha limitou-se a afirmar que imaginava como ele próprio teria reagido no caso [de] ser visado com notícias de igual teor, acrescentando, no entanto, que o autor deve ter reagido «mal», pois trata-se de uma pessoa muito impulsiva, muito emocional, que «reage sempre» impulsiva e emocionalmente.”
De qualquer modo, sempre no mesmo espírito de aproveitar tudo o que seja possível do corpo das alegações, veja-se o que o autor diz dos depoimentos destas duas testemunhas:
“[…], no que diz respeito ao que se recolhe da prova gravada, muito embora as duas testemunhas ouvidas, Dr. H e Dr. I, tenham admitido não terem conversado com o Recorrente sobre a notícia (o Dr. H) ou não se recordar se conversou (o Dr. I), nem por isso deixam os dois depoimentos de contribuir para a comprovação dos factos danosos:
O Dr. H, ouvido em 04/11/2011, a partir das 10h08 e, relevantemente, para este efeito, entre os 3:09 do seu depoimento, e até ao final dele, cerca dos 9:00, esclareceu que, não tendo conversado com o Recorrente sobre esta notícia, enfatizou que, anteriormente, conversou com ele sobre notícias – “noutros casos, sim”, frisou – semelhantes e que ele sempre reagiu “mal”, que ficou sempre “abalado”; esclareceu, ainda, que essas notícias foram replicadas pela generalidade dos órgãos de comunicação social; e que essas notícias foram largamente comentadas no círculo de relações sociais, de amizade e políticas, comuns e que foram havidas por todos como “graves” e causadoras de “alarme social”.
O Dr. I, por seu turno, ouvido no mesmo dia 04/11/2014, a partir das 10h36 e relevantemente a partir dos 3:00 e até aos 6:00 esclareceu não se recordar se conversou com o Recorrente sobre, especificamente, esta notícia, mas dando a entender que provavelmente conversou, porquanto, para além de ambos conversarem muitas vezes, era tema recorrente a “guerra” noticiosa que lhe era movida e que a testemunha, com a sua especial experiência, dos anos e do passado, não recordava nenhuma que lhe fosse semelhante. Esclareceu, ainda, que relativamente a essas notícias, que sistematicamente o atingiam, o Recorrente reagia “emocionalmente” e “impulsivamente”, acreditando ser essa, no caso, a sua reacção também.”
Ou seja, as duas testemunhas em causa nada sabem, em concreto, sobre as reacções tidas pelo autor com as notícias em causa nestes autos, limitando-se a especular com base em reacções que ele teria tido perante outras notícias, noutros tempos, que seriam semelhantes. Mas como não se sabe quais são de facto essas notícias, e por isso se elas eram de facto semelhantes, nem em que circunstâncias ocorreram as reacções do autor às mesmas, nem sequer é possível aceitar este tipo de especulação como base suficiente de prova. Para além disso, elas não falam em indignação, pelo que não serviriam para provar do que consta do ponto 2. O que elas falam é de reacções emocionais e impulsivas, o que não é o mesmo, nem é equivalente, por outro lado, a sofrimento provocado no autor. O facto de se ter estas reacções não quer dizer o mesmo que estar a sofrer devido aos factos que as provocaram.
Por fim, o autor invoca a notoriedade dos factos em causa, invocando o art. 412/1 do CPC e que é do conhecimento geral que o teor das notícias em causa são ofensivas. Isto sempre sem precisar que tipo de danos é que estariam em questão, como já não o tinha feito nas conclusões do recurso.
De qualquer modo, percebe-se que, no fundo, o que o autor quer é que se entenda como provado que a publicação da notícia provocou danos na honra e consideração social do autor como tal tipo de notícia provocaria em qualquer outra pessoa. Ora, pode-se aceitar que a imputação da suspeita da prática de crimes, pressuposta na existência de uma investigação num inquérito-crime, pode pôr em causa a honra e consideração social de qualquer pessoa mesmo que ela não a mereça, mas isso não é o mesmo que provocar danos nessa pessoa.
O dano é uma consequência concreta que tem lugar por ter sido posto em causa a honra e consideração social do autor. Aproveitando os exemplos de Iolanda A. S. Rodrigues de Brito (Liberdade de expressão e honra das figuras públicas, Coimbra Editora, 2010, págs. 206-207), o dano seria o facto de ter sido atingido o relacionamento inter-pessoal do autor (v.g. de índole familiar e social); ou a sua saúde física e psíquica (o desgosto derivado da perda de amigos, a dor causada pelo sofrimento dos pais, dos filhos, do cônjuge); ou a sua actividade profissional.
Ora, nada disto tinha sido alegado pelo autor.
De qualquer modo, entendida a honra como pretensão de respeito inerente a qualquer pessoa (Iolanda de Brito, ob. citada, págs. 40-41) e que qualquer imputação de um facto desonroso põe em causa este valor e corresponde a um dano (é esta a construção do autor), então a questão é de direito e não de facto e é quando se tiver a discutir aquele que ela deve ser apreciada.
Em suma, é totalmente improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto.
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Do recurso sobre matéria de direito
A fundamentação da decisão recorrida
A sentença recorrida entende que a publicação das notícias referidas nos pontos 7 a 12 se traduz na prática de actos ilícitos, violadores do direito subjectivo absoluto do autor à sua honra e consideração social.
Para o autor e para a sentença recorrida, a ilicitude dos factos no caso dos autos decorre do confronto entre os títulos e algumas passagens das notícias e o primeiro comunicado da PGR. Este comunicado desmentiria as notícias, por isso estas seriam falsas e a ilicitude estava verificada. E isto seria assim mesmo face aos acontecimentos posteriores que envolveram o autor.
A sentença diz ainda que também se verifica a culpa, na forma de dolo necessário.
Entende, no entanto, que não se verifica um outro pressuposto da responsabilidade civil, isto é, a prova dos danos (arts. 483 e 484, ambos do Código Civil), danos que, aliás, nem sequer tinham sido alegados; e, por isso, absolve os réus.
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Da falta da ilicitude
Do carácter essencialmente verdadeiro da notícia
Mas entende-se que não é assim desde logo no que importa ao pressuposto da ilicitude: primeiro, o comunicado da PGR não desmente, no essencial, a notícia [passa a discutir-se daqui em diante apenas a primeira notícia, a do ponto 7, já que a segunda, a do ponto 10, segundo se diz no ponto 12, reproduz, no essencial os dizeres da anterior]; depois porque, mesmo que os factos noticiados tivessem sido desmentidos, isso não bastaria para a verificação da ilicitude.
O comunicado da PGR de 31/07/2014 limita-se a dizer que o autor não está a ser investigado [no processo L] nem se encontra entre os arguidos desse processo. Ora, desde logo a notícia não dizia que o autor estivesse a ser investigado naquele processo ou fosse arguido nele, porque logo no seu começo dizia “A operação L, que já deu origem a vários processos-crime autónomos, incluindo aquele em que é visado A […]”.
É certo, no entanto, que a notícia sugeria essa ligação àquele processo e do teor da notícia resulta que o jornalista estava convencido da existência dessa ligação.
Mas o que importava para o conjunto de cidadãos, enquanto membros de uma comunidade política que escolhe em eleições os titulares de cargos políticos baseados naquilo que deles podem saber, é o facto de que o autor, que foi primeiro-ministro de Portugal e que continua a ter protagonismo na vida política do país (facto notório que como tal pode ser considerado: arts. 412/1 e 5/2-c do CPC), tinha estado, segundo a notícia, nos últimos meses, sob apertada vigilância do MP por suspeitas que se prendiam com indícios de crimes de natureza fiscal e económica; que no respectivo inquérito-crime, com origem no processo L, já se teria avançado para a quebra do seu sigilo fiscal, patrimonial e bancário; e que o próximo passo deveria ser a constituição do autor como arguido e ponderava-se a possibilidade de o deter para interrogatório; nesse inquérito estava-se a seguir o rasto de diversos fluxos financeiros que se suspeitava atingirem milhões de euros, com transacções financeiras internacionais consideradas suspeitas; acrescentava-se que já muito se escreveu na comunicação social sobre a fortuna da família A e os quase dois anos sabáticos que o autor passou a estudar filosofia política em ARs, como é que vivia, onde morava e os luxos que alegadamente tinha; e que agora o DCIAP estaria a ver à lupa o património do autor entre 1987 e 2010, o qual, segundo as declarações apresentadas pelo próprio no Tribunal Constitucional, não possuía sequer contas a prazo ou qualquer outra poupança financeira.
Ora, dos poucos factos que constam na decisão da matéria de facto, resulta que em Julho de 2013 se iniciou um inquérito, dirigido pelo MP e que corre termos no DCIAP, onde se investigam suspeitas de crime de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção, e no âmbito do qual, na sequência de diligências desencadeadas nos últimos dias (relativamente a 22/11/2014), foram efectuadas quatro detenções, uma das quais do autor, e os detidos foram presentes ao juiz de instrução criminal; foram ainda realizadas buscas em vários locais, tendo estado envolvidos nas diligências quatro magistrados do MP, e 60 elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Polícia de Segurança Pública (PSP), entidades que coadjuvam o MP nesta investigação; o inquérito investiga operações bancárias, movimentos e transferências de dinheiro [o que justifica a inferência de que foram quebrados, para o efeito, uma série de segredos] sem justificação conhecida e legalmente admissível e encontra-se em segredo de justiça; a investigação é independente do denominado inquérito L, não tendo tido origem no mesmo. Sabe-se também, sendo facto notório (art. 412/1 do CPC) que o autor ficou em prisão preventiva depois de ter sido ouvido pelo juiz.
Assim, embora a notícia não seja totalmente coincidente com os factos que constam do comunicado da PGR de 22/11/2014 e se lhe possa apontar um erro (relativamente ao que consta dos dois comunicados da PGR: o inquérito-crime em que o autor é visado não terá tido na sua origem no processo L), as notícias, no essencial, correspondiam àquilo que se estava de facto a passar no momento em que elas foram dadas; sendo que aquele erro era perfeitamente natural dado o segredo de justiça que envolvia os factos (segredo de justiça que não deve impedir “os meios de comunicação […] de desenvolver a sua própria actividade de investigação e publicar as informações por eles recolhidas sobre os processos pendentes ainda que à margem deles” – Jónatas E. M. Machado, Liberdade de expressão, interesse público e figuras públicas e equiparadas, BFDUC, Coimbra 2009, pág. 568) e era perfeitamente irrelevante para aquilo que verdadeiramente importava.
Do que antecede também resulta que o autor e a sentença recorrida não têm razão quando dizem que não importam os acontecimentos posteriores que envolveram o autor. É que importam, e muito, desde logo porque aquilo que é visto como acontecimento posterior não o é, o que é posterior é a notícia deles. Esta aparece – nestes autos – como facto de 22/11/2014, mas reporta-se a factos que são anteriores a Julho de 2013 e estão a ser investigados em inquérito-crime desde tal data. Estes acontecimentos posteriores tidos por irrelevantes pela sentença e pelo autor são, por isso, a prova da verdade da notícia em causa nestes autos feita fora deste processo apesar de consignada nele.
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Da exclusão da ilicitude
Ora, uma notícia que é substancialmente verdadeira, contendo um erro irrelevante (sobre a origem do processo a que respeitam os factos), não corresponde à prática de um facto ilícito desde que ela seja dada no âmbito do exercício do direito à liberdade de informação e haja interesse na divulgação dos factos respectivos, ou seja, desde que a sua divulgação seja do interesse público.
O que é manifestamente o caso dos autos.
O facto de um ex-primeiro-ministro estar a ser alvo de investigação no âmbito de um inquérito relativo a crimes de natureza fiscal e económica, relacionados com a movimentação de milhões de euros, tudo isto pouco depois daquele ter deixado de exercer aquelas funções, é obviamente do mais relevante interesse público e o réus tinham, não só o direito como o dever de o noticiar.
Como diz Jónatas Eduardo Mendes Machado (A Glória, a Honra e o Poder – Observações sobre a liberdade de imprensa em democracia, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3984, Jan/Fev de 2014, págs. 176/177):
“Embora caiba à comunicação social controlar o exercício de todos os poderes socialmente relevantes, incluindo o poder da própria comunicação social, a democracia supõe a sujeição dos titulares do poder político a um escrutínio especialmente rigoroso.
Numa sociedade democrática, espera-se que todos os titulares de cargos políticos sejam objecto de um exame público sistemático e de uma atenção redobrada. Isso vale, por maioria de razão, para o chefe do executivo. Os órgãos de comunicação social devem direccionar os seus focos, as suas câmaras e os seus microfones para todos os aspectos da conduta e actividade dos titulares dos cargos políticos. Mais do que proporcionar-lhes um sentimento de glória e uns momentos de fama, sejam eles permanentes ou fugazes, compete à comunicação social sujeitá-los a um rigoroso e sistemático escrutínio, densificando exigências constitucionais de legitimidade, transparência e prestação de contas. O jornalismo de investigação, preferencialmente no contexto de uma comunicação social economicamente forte e politicamente independente, deve ser uma peça fundamental da esfera de discurso público de uma sociedade democrática.
Longe de poder ser interpretada como expressão de uma qualquer cabala, estratégia conjunta ou de uma campanha concertada orientada para denegrir a imagem ou a reputação deste ou daquele político, essa atenção redobrada é fundamental para o funcionamento da democracia e a garantia do Estado de direito.[…]”
E mais à frente (pág.179):
“Integra a missão de serviço público do jornalismo e da comunicação social, detectar e denunciar todos os indícios que possam razoavelmente permitir a detecção das diferentes patologias do poder, como a ambição, a incompetência, a irresponsabilidade, a insensibilidade social, o clientelismo, o tráfico de influências, o nepotismo, a prepotência ou a corrupção. Um titular de um cargo político sujeito a esse tipo de escrutínio não pode queixar-se dos danos que isso possa implicar para a sua credibilidade, prestígio, reputação ou imagem social e institucional. Trata-se de riscos inerentes à sua função pública e política que só uma conduta pessoal, social e institucionalmente impecável, acompanhada de um discurso transparente e credível, consegue realmente atenuar.”
E ainda mais à frente (pág. 185):
“Trata-se aqui de figuras públicas cuja actuação afecta directa e substancialmente um vasto número de pessoas, se não toda a população do país, havendo por isso um interesse colectivo muito significativo no seu escrutínio e na sua avaliação crítica.
[…]
A presente crise económica que o nosso país atravessa, com paralelo noutros quadrantes, é sintomática de uma profunda crise constitucional de governação e de classe política. Um conjunto de práticas políticas, instrumentos jurídicos e condutas pessoais e institucionais têm permitido a sucessivos executivos tomar decisões políticas em contextos especialmente favoráveis à corrupção e à promiscuidade entre os interesses privados e o interesse público.
Deste modo foram colocadas em risco quantidades substancialmente elevadas de recursos dos cidadãos, pondo em causa a garantia dos direitos sociais constitucionalmente consagrados, perante a passividade e inoperância do sistema constitucional de controlos existente.
Se a este contexto adicionarmos a perspectiva de uma comunicação social inibida, débil e fechada sobre si mesma, e de um jornalismo tímido e subfinanciado, estão criados e combinados os ingredientes propícios a um enfraquecimento significativo das possibilidades de controlo público democrático do exercício do poder.
Uma comunicação social que, nomeadamente por medo da responsabilidade civil, recue na informação detalhada sobre os factos do poder e se refugie na contratação de comentadores, ou, pior ainda, no jornalismo cor-de-rosa ou em “reality shows“, “talk shows“, “quiz shows” ou “game shows“, conduz à capitulação da opinião pública perante a irrealidade mediática fantástica e distorcida, ficando desprovida de meios de controlo do exercício do poder e de dinamização da esfera pública. Neste contexto, os contribuintes encontram-se numa situação de risco elevado.”
Tudo isto, tendo em conta que a responsabilidade civil extracontratual pressupõe [na alternativa que está aqui em causa] a violação de um direito absoluto de outrem (arts. 483 e 484 ambos do CC) mas também a não verificação de qualquer causa de justificação de tal conduta violadora. Tratando-se da violação de um direito fundamental, como é o direito à honra e consideração social, a justificação depende de que esteja em causa também o exercício de um direito fundamental, no caso a liberdade de informação (arts. 37 e 38 da CRP, 10/1 da CEDH), que, neste conflito (arts. 18/3 da CRP e 335 do CC), pesará mais do que aquele quando estiver em causa a prossecução de um interesse público com a publicação da notícia – que é tanto maior quanto maior for o estatuto público do potencial ofendido – e a verdade substancial da informação dada.
Na síntese feita por Iolanda de Brito (obra citada, págs. 137-138) das considerações de Jónatas Machado (Liberdade de Expressão, Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, 2002, págs. 259, 266-267, 268-281 e 768):
“[…E]sta busca do ponto de equilíbrio na ponderação dos dois bens jurídicos é ainda mais acerbada sempre que o agente for um jornalista, a vítima for uma figura pública e a liberdade de expressão entrar no conflito na vertente de liberdade de imprensa. É que o jornalista em particular e a imprensa em geral exercem uma essencial função pública na divulgação de factos e opiniões sobre questões de relevante interesse público, fundamentais para a formação de uma opinião pública e vontade política informadas, para o desenvolvimento de iniciativas políticas, para a garantia da liberdade e da publicidade da vida política, para a protecção das minorias e dos direitos de oposição política democrática. Numa sociedade democrática, a imprensa contribui, de forma inesgotável, para a criação e manutenção de uma “esfera de discurso público aberta e pluralista”, pelo que a protecção da liberdade de imprensa é condição de sobrevivência da própria democracia. Por outro lado, a imprensa desempenha um papel determinante no controlo da actividade governativa e do exercício dos poderes públicos, assumindo-se como um “cão de guarda” (“watchdog“) ao serviço dos cidadãos, sendo que uma parte considerável dos escândalos políticos é desvelada pela comunicação social. Significa tudo isto que a apetência justificativa do exercício do direito à liberdade de expressão deve ser compreendida de forma mais ampla, sempre que o agente for um jornalista e estiver em causa a dimensão da liberdade de imprensa […]”
E mais à frente (págs. 139-140),
“Numa sociedade democrática, a preservação de uma “esfera de discurso público aberta, robusta e desinibida” constitui um imperativo para o funcionamento saudável das instituições democráticas e, consequentemente, para a sua sobrevivência enquanto tais. A denúncia pública, designadamente, da fraude nas relações económicas ou das patologias do sistema político como a prepotência, o preconceito, a corrupção, o clientelismo, o tráfico de influências, a gestão ruinosa ou a incompetência, deve poder realizar-se à margem de quaisquer consequências jurídicas para os seus denunciadores, sempre que os factos imputados sejam verdadeiros (JM, LE, 2002, págs. 770 e 805). A imputação de factos verdadeiros e de interesse público, ainda que ofensivos da honra de uma figura pública, corresponde ao núcleo essencial do direito à liberdade de expressão, maxime na sua dimensão de liberdade de imprensa, pelo que, neste âmbito, a responsabilização civil do seu autor configura uma restrição inconstitucional de um direito fundamental”.
Este interesse público foi reconhecido, por exemplo, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (acórdão de 24/04/2008 – CASO CAMPOS DÂMASO c. PORTUGAL (Queixa n.º 17107/05)) num caso em que estava em causa a divulgação pelo jornal Público de uma acusação de um crime de fraude fiscal e burla qualificada que teria sido praticado por um vice-presidente de um grupo parlamentar da Assembleia da República. O TEDH sublinhou, desde logo, que o tema do artigo que determinou a condenação do requerente respeitava sem dúvida uma questão de interesse geral. A imprensa deve, com efeito, informar o público sobre os processos relativos a eventuais infracções, de natureza fiscal ou de desvio de fundos públicos, imputados a políticos. A este papel da imprensa acresce o direito, para o público, de receber este tipo de informações (Worm, supra, § 50), sobretudo quando estão em causa políticos. E recordou, a este propósito, que estes, diversamente dos cidadãos em geral, estão expostos inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e feitos tanto pelos jornalistas como pelos cidadãos (Dupuis e outros, supra, § 40). E reconheceu-o também no ac. de 07/12/2010 (CASO PÚBLICO – COMUNICAÇÃO SOCIAL, S.A. E OUTROS c. PORTUGAL (Queixa n.º 39324/07)), num caso em que estava em causa a divulgação num jornal de dívidas ao fisco de um clube de futebol da 1ª divisão.
No mesmo sentido, vejam-se os acs. do STJ de 31/01/2017, 1454/09.5TVLSB.L1.S1, do STJ de 09/06/2016, 60/09.9TCFUN.L1.S1, e de 21/10/2014, 941/09.0TVLSB.L1.S1. Bem como o ac. do TRL de 20/03/2014, 783/09.2TVLSB.L1-2: O direito à informação prevalece sobre o direito ao bom nome e reputação, quando a notícia, sendo lícita, porque devidamente investigada, reveste interesse público. Acórdão que lembra que ainda o ac. do STJ de 14/11/2013, proc. 693/10.OTVLSB.L1.S1: V – Tendo um órgão de comunicação social feito diligências que o levaram à comprovada convicção de que certa notícia era verdadeira é lícita a sua publicação.VI – O direito à informação prevalece sobre o direito ao bom nome e reputação, quando a notícia, sendo lícita, porque devidamente investigada, reveste interesse público. VII – Este avalia-se pela sua objectiva relevância social, cultural ou política. VIII – Como é o caso de se noticiar que o advogado de um dos principais arguidos no processo X irá ser também constituído arguido.
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Da necessidade de averiguar circunstâncias que excluiriam a ilicitude e/ou a culpa no caso da notícia estar errada
Mas, mesmo que a notícia contivesse erros que não fossem irrelevantes, isso não bastaria para que ela se pudesse considerar ilícita e/ou culposa.
Na perspectiva da exclusão da ilicitude, neste caso, veja-se Jónatas E. M. Machado (Liberdade de expressão… 2009, pág. 95):
“Do ponto de vista constitucional importa preservar uma margem razoável, inclusivamente, para a existência de erros honestos e de boa fé. Ou seja, não está excluída a protecção de afirmações factualmente erradas, especialmente quando isso puder ser justificável diante das circunstâncias respeitantes à complexidade dos dados de facto, à opacidade da conduta dos visados, à dificuldade em aceder às fontes de informação relevantes e à escassez e fragmentaridade das informações disponíveis para o cabal esclarecimento do caso. Pretende-se, desse modo, assegurar o cumprimento, por parte dos demandados, do dever averiguar previamente a verdade da imputação, de acordo com os deveres deontológicos e jurídicos pertinentes e as circunstâncias e as possibilidades concretas do caso. Como se disse, quando se esteja perante questões de inegável interesse público, não é exigível a verdade absoluta. O direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos contentam-se com a verdade substancial ou parcial das imputações, admitindo até erros factuais de boa fé, passíveis de se repercutirem na reputação das figuras públicas.”
E a págs. 180/181 do estudo publicado na RLJ (A Glória…, 2014):
“[…N]a cobertura jornalística da actividade política, que se reveste de elevada intensidade factual, torna-se praticamente impossível garantir a verdade absoluta de todos os elementos de uma constelação de factos recolhida e difundida, tanto mais que alguns deles ocorrem num contexto reservado que procura conseguir alguma opacidade. Não se pode por isso esperar uma precisão informativa ao detalhe, nem isso seria possível tendo em conta as circunscritas condições temporais, pessoais e materiais em que a comunicação social exerce a sua actividade.
A existência de erros factuais é inevitável, não sendo por si só apta a desencadear a responsabilidade. Este aspecto é relevante quando se trata de interpretar a exceptio veritatis, entre nós expressamente prevista no direito penal e que não pode deixar de estar implícita no direito civil. Em alguma medida, a liberdade de expressão tem que proteger mesmo os factos falsos, ao menos quando não tenham sido difundidos de forma intencionalmente falsa ou displicentemente indiferente a essa falsidade e esta não afecte os elementos substanciais da base factual. A capacidade de absorver e corrigir discursivamente afirmações falsas e juízos de valor injustos também é um indicador da liberdade de expressão e de informação garantida numa sociedade aberta, democrática e pluralista.
[…]
Importa ao menos que esteja assegurada a verdade e a plausibilidade substanciais das afirmações de facto, das inferências e dos juízos de valor formulados. Se porventura forem detectadas imprecisões na base factual ou inferências manifestamente infundadas e implausíveis, que apesar de tudo não ponham em causa o relato global fornecido pela generalidade das suas partes verdadeiras e corretas, essas imprecisões podem e devem ser corrigidas através de mais discurso, mais comunicação e mais informação.
No caso, essa possibilidade encontra-se largamente facilitada, na medida em que um qualquer (ex) Primeiro-Ministro dispõe de amplas possibilidades de acesso à comunicação social, respondendo a perguntas dos jornalistas, concedendo entrevistas, convocando conferências de imprensa ou enviando notas à imprensa. Por estes meios, ele pode facilmente corrigir qualquer percepção errada acerca da sua personalidade, integridade e competência, dando respostas verdadeiras, completas e convincentes. Porque essas oportunidades de resposta existem e porque importa que a comunicação social realize a sua missão de forma desinibida é que se procura restringir significativamente as possibilidades de recurso às acções de responsabilidade ir civil e penal por parte dos titulares de cargos políticos e outros protagonistas sociais.”
Isto é, uma notícia com erros não faz, só por si, incorrer em responsabilidade civil o jornalista que dá a notícia ou o jornal que a publica.
Desde logo porque a lógica da exceptio veritatis, não implica a demonstração da verdade dos factos no sentido absoluto do termo, mas apenas que no apuramento da verdade se fez aquele esforço razoável de objectividade que concretamente era possível e exigível, em termos objectivos e subjectivos, estando-se de boa fé convencido da sua veracidade (parafraseou-se Jónatas Machado, Liberdade de Expressão, 2009, pág. 94).
Ou seja, mesmo uma notícia com erros pode estar a coberto da causa de justificação da prossecução do interesse público, desde que os erros não sejam substancialmente relevantes.
Numa perspectiva diferente, mas com a valoração dos mesmos elementos, Iolanda de Brito (obra citada, págs. 192-193) considera que a actuação pode estar, neste caso, a coberto de uma causa de exclusão da culpa desde que o jornalista estivesse, de boa fé, convencido da veracidade da notícia, lembrando que:
“A jurisprudência do TEDH tem reconhecido a importância da boa fé, sobretudo quando estão em causa imputações de factos, para garantir à imprensa um espaço para o erro (“a breathing space for error“), contanto que o jornalista tenha tido, aquando da publicação, razões suficientes para acreditar na veracidade da informação, pelo que não deve ser sancionado. Para o TEDH, a boa fé compensa a exigência de verdade, pois quando um jornalista tem um interesse legítimo, de natureza pública e houve um considerável esforço da sua parte para verificar os factos, não deve ser punido, ainda que os factos sejam comprovadamente falsos. Considerando esta perspectiva, impõe-se saber como é que a boa fé do agente, em especial do jornalista, pode influir na tutela juscivilística da honra de figuras públicas.
[…]
Se a não observância do dever de informação constitui o cerne da negligência nesta matéria parece-nos que o seu cumprimento, aliado à boa fé do agente em relação à veracidade dos factos que imputou, é um problema de exclusão da culpa e não de exclusão da ilicitude.”
Ora, assim sendo, tudo isto teria de ter sido averiguado nos autos, por tudo isto ter sido devidamente alegado pelos réus na sua contestação (veja-se a síntese desta no relatório deste acórdão). O tribunal não pode dizer que se verifica a ilicitude e a culpa, sem averiguar da existência dos factos alegados pelos réus que excluem a ilicitude e/ou a culpa.
Pelo que, seguindo-se esta perspectiva das coisas, o tribunal teria que ter averiguado se estes factos, alegados pelos réus, se verificavam ou não.
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Da falta de alegação de danos
Seja como for, tendo-se concluído acima que os factos constantes da notícia eram verdadeiros e que se justificava a sua publicação pelo interesse público deles, não sendo por isso ilícitos, eles nunca poderiam justificar a concessão de qualquer indemnização (Iolanda de Brito, ob. citada, pág. 203: “Relativamente à imputação de factos, deve notar-se que se o pressuposto do dano é analisado, é porque ocorreu uma de duas circunstâncias: ou o facto é falso, tendo sido imputado com dolo ou negligência; ou é verdadeiro, mas está desconexionado com a prossecução de um interesse público.”)
Mas não tivesse sido assim, diga-se que, ao contrário do defendido pelo autor, não bastaria o carácter desonroso dos factos imputados, ou seja, não bastaria que eles fossem em abstracto susceptíveis de atingir a honra e a consideração social de qualquer pessoa, para que eles fossem em concreto danosos, não ficando pois o autor dispensado da necessidade de alegação e prova em concreto dos danos que eles teriam provocado e, para além disso, da prova do nexo de causalidade entre os factos ilícitos e os danos concretos.
Isto é assim ao menos quando estão em causa potenciais ofendidos que são figuras públicas.
Como diz Jónatas Machado, A Glória…, pág.184:
“[…V]erifica-se, noutros quadrantes, que alguns políticos que abandonaram o exercício de cargos políticos, sendo acusados de corrupção e da prática de outros actos ilícitos ou imorais, conservam o seu protagonismo mediático, continuando a ganhar eleições, a ocupar cargos de responsabilidade e a obter oportunidades de enriquecimento patrimonial, acabando por beneficiar da reputação da celebridade. Isso significa que na esfera pública das sociedades abertas e pluralistas, mediática e interactivamente estruturadas, os danos à reputação das figuras públicas, sejam elas individuais e colectivas, são frequentemente derivativos e não lineares.
A determinação de um nexo de causalidade entre algumas notícias factualmente infundadas e os alegados danos morais e patrimoniais invocados por figuras públicas só deve proceder se ficar demonstrado, para além de qualquer dúvida razoável, que as mesmas afectaram significativamente a possibilidade de o público formular um juízo colectivo sobre a pessoa visada por essas notícias. Também por esses motivos, os tribunais, na determinação do nexo de causalidade, devem interpretar restritivamente os seus poderes de intervenção na esfera do discurso público, especialmente quando esteja em causa a informação sobre matéria de interesse público e o debate envolvendo figuras públicas no exercício de funções públicas.”
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, embora por fundamentos diferentes desta.
Custas pelo autor.
Lisboa, 16/03/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto