Juízo de Comércio de Sintra

            Sumário:

I. Um devedor não pode, enquanto está a incumprir um plano de recuperação homologado num processo de revitalização, requerer um novo PER, nem o pode fazer num período posterior de 2 anos (por aplicação analógica do art. 18/1-d do SIREVE e do art. 17-G/6 do CIRE).

II. Nesta situação o tribunal tem razão em indeferir liminarmente o requerimento de novo PER.

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

 

            S, SA, veio, a 27/01/2017, requerer um processo especial destinado à sua revitalização.

            Alega para tanto que: num outro PER (n.º 4084/14.6T8SNT) a requerente conseguiu o acordo dos credores para um plano de recuperação, que foi homologado com trânsito em 28/09/2015; está a incumprir esse plano; está em situação económica difícil, mas não irrecuperável; precisa de um novo plano.

            O tribunal indeferiu liminarmente o pedido.

            A requerente recorre desta decisão – para que seja anulada e/ou revogada e em sua substituição o pedido de PER seja admitido e nomeado Administrador Judicial Provisório nos termos do disposto no art. 17-C/3-a do CIRE – dizendo que (transcreve-se a parte útil das respectivas conclusões, em síntese feita por este TRL):

         I – Não foram apreciados os pressupostos legais da admissibilidade do PER.

         II – A decisão recorrida limita-se a apreciar a oportunidade do PER e não é isso que é suposto.

         III – Ao contrário do que foi o entendimento do tribunal a quo, a decisão apenas se pode cingir à apreciação dos pressupostos legais de admissibilidade do processo, pois que, quanto mais, sempre colidiria com a natureza essencialmente negocial do PER.

         IV – Logo, verifica-se uma situação de (i) omissão de pronúncia quanto à verificação dos requisitos que admitem a existência de um segundo PER; e, claramente, uma situação de (ii) excesso de pronúncia quanto à apreciação do mérito e oportunidade do recurso a este procedimento.

         V – Assim, outra não pode ser a conclusão que não a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto na primeira e segunda parte da alínea d do n.º 1 do art. 615 do CPC, aplicável ao PER por via do art. 17 do CIRE.

         VI – A lei é clara quando tipifica os casos em que uma empresa se encontra impedida de recorrer pela segunda vez ao PER – art. 17-G/6, do CIRE: “o termo do processo especial de revitalização de harmonia com os números anteriores impede o devedor de recorrer ao mesmo pelo prazo de dois anos”.

         VII – A requerente não se enquadra em qualquer uma das situações previstas nos n.ºs 1 e 5 do art. 17-G: (i) não ultrapassou o prazo previsto no nº 5 do art. 17-D; (ii) não pôs termo às negociações; (iii) alcançou um acordo com os seus credores; e (iv) o plano aprovado foi homologado judicialmente.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questão que importa decidir: se é possível requerer um segundo PER depois do requerente entrar em incumprimento do primeiro.

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            Os factos que importam à decisão desta questão são os que resultam do que antecede – estando certo o que diz a requerente quanto à existência do anterior PER e data da homologação, com trânsito – e ainda aqueles que são referidos na fundamentação do despacho recorrido que se vai transcrever a seguir.

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            A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação:

        De acordo com os factos alegados pela requerente no que toca à existência de um PER anterior, que se comprovam por via dos elementos existentes no proc. 4084/14.6T8SNT, que tramitou neste juízo de comércio, retira-se que, por sentença proferida a 05/09/2015, transitada em julgado, foi homologado o PER apresentado pela devedora.

        Ora, não regulando expressamente os arts. 17-A a 17-I as consequências do incumprimento de um plano de revitalização aprovado e homologado, a aplicação por via analógica (art. 10 do CC) das disposições previstas para o plano de insolvência (cuja estrutura em termos finalísticos é semelhante), em particular do art. 218, determina que as prerrogativas nele previstas fiquem sem efeito. O que vale por dizer que o tal mecanismo de revitalização esgotou as suas finalidades impossibilitando a sua utilização repetida e sucessiva (tratando-se dos mesmos créditos), com a agravante de, caso contrário, permitir constantes suspensões de acções judiciais tendentes à satisfação de interesses legítimos, uma eternização de incumprimentos e sem permitir aos credores a satisfação dos créditos no limite pela via da liquidação do património do devedor, depois de as possibilidades de recuperação terem resultado frustradas.

        Aliás, perante a informação supra [a dada na conclusão], constata-se que o proc. 22912/16.0T8SNT, que tramita neste juízo de comércio, é uma acção de insolvência proposta em Dezembro passado por um dos credores da requerente e que, após contestação apresentada por esta, tem julgamento designado para breve (01/02/2017).

        Refira-se ainda que, segundo alega a própria requerente (63 e 64 da p.i.) o valor dos atrasos nos pagamentos devidos somente aos fornecedores considerando o que ficou previsto no PER, supera nesta data os 10.500.000€, o que permitiria, por si só, questionar o verdadeiro propósito da requerente em apenas nesta data, à beira do julgamento de uma acção de insolvência instaurada por um dos seus credores, pretender recorrer a um segundo PER.

        Pelo exposto, por inadmissibilidade legal, indefere-se liminarmente a abertura de processo especial de revitalização.

                                                     ***

            Posto isto,

            Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (parafraseia-se o disposto no art. 406/1 do Código Civil).

            Por regra, pois, os devedores devem cumprir as suas obrigações, no tempo e no lugar devidos e, não fazendo voluntariamente, têm os credores o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património dos devedores (parafraseia-se o disposto no art. 817 do CC).

            Só excepcionalmente, portanto – nos tais casos admitidos na lei… – é possível que, contra ou sem a vontade do credor, o devedor passe a dever menos ou a dever coisa diferente do que devia ou possa deixar de cumprir quando o devia fazer.

            Não está, por isso, dentro da lógica do sistema – ao contrário do defendido pela requerente -, que existisse uma lei que permitisse que um devedor – continuando obrigado a pagar – pudesse impedir sistematicamente, para todo o sempre, o exercício do direito do credor (que é nisso que se traduz, também, um processo de revitalização: art. 17-E/1 do CIRE).

            [como exemplo de direito comparado, em Espanha, a Ley 22/2003, de 09/07, Concursal, no título X, relativo ao acordo extrajudicial de pagamentos, diz, no art. 231/3, que “no podrán formular solicitud para alcanzar un acuerdo extrajudicial de pagos: […] 2.º Las personas que, dentro de los cinco últimos años, hubieran alcanzado un acuerdo extrajudicial de pagos con los acreedores […].” E na disposición adicional cuarta, relativa à homologação dos acuerdos de refinanciación, diz-se, no n.º 12: “Solicitada una homologación no podrá solicitarse otra por el mismo deudor en el plazo de un año.” (consultável em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2003-13813&p=20151002&tn=1#a231 – a informação de que aquela lei é uma das fontes de inspiração do CIRE é dada, por exemplo, por L. Miguel Pestana Vasconcelos, Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização, 2017, Almedina, pág. 23)]

            Antes pelo contrário: para impedir essa possibilidade existe a norma do art. 17-G/6 do CIRE que dispõe: O termo do processo especial de revitalização efectuado de harmonia com os números anteriores impede o devedor de recorrer ao mesmo pelo prazo de dois anos.

            As situações previstas nos n.ºs anteriores, que dão origem ao termo do processo, são quatro: (i) e (ii): caso o devedor – ou a maioria dos credores – concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo; (iii) caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 5 do artigo 17-D; (iv): caso o devedor ponha termo às negociações.

            O que estes quatro casos revelam é que, se por alguma razão, num PER não se chega a um acordo, o devedor fica impossibilitado de, durante dois anos, requerer um novo PER. E isso quer não se chegue a acordo por facto não imputável ao requerente, como por facto que lhe seja imputável, designadamente por ele pôr termo às negociações qualquer que seja a forma que esse termo assuma (como, por exemplo, a desistência do processo).

            Para a aplicação desta regra no caso de desistência, vejam-se os seguintes acórdãos, bem significativos das razões de ser dessa aplicação:  

         – do TRL de 26/02/2005, proc. 1807/14.7TYLSB-A.L1-6: – A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico. – O art. 612 do CPC consagra um princípio segundo o qual as partes não se podem servir do processo para conseguir um fim proibido por leis. – No processo especial de revitalização não está na disponibilidade do devedor fazer cessar esse processo pondo termo às negociações e recorrer novamente a esse processo quando lhe aprouver, pois, estando já em situação de insolvência, o encerramento do processo acarreta a sua insolvência e, se não estiver nessa situação, fica impedido por um período de dois anos a iniciar novo processo de revitalização. -Interpretar-se o nº 6 do art. 17-G do CIRE como excluindo da proibição do recurso a um novo processo especial de revitalização pelo prazo de dois anos, o caso de o devedor utilizar a figura processual da desistência da instância prevista no CPC, é permitir defraudar aquela proibição legal, encontrando-se por essa via, o meio para o devedor instaurar e fazer cessar sucessivos processos especiais de revitalização, sem se sujeitar àquela limitação temporal e assim conseguir obstar à instauração de acções para cobrança de dívidas e obter a suspensão das acções em curso com idêntica finalidade ao abrigo do art. 17-E/1 do CIRE.

         – do TRG de 25/06/2015, proc. 1315/14.6TBGMR.G1: Atento o disposto no art. 17-G, do CIRE, não é permitido ao devedor instaurar sucessivos processos de revitalização sem ter que observar o referido período legal de carência, mesmo no caso de desistência da instância, sob pena de estar encontrada a forma ideal daquele fazer paralisar indefinidamente todas as acções judiciais para a cobrança de dívidas, pendentes ou a instaurar, assim como os processos de insolvência anteriormente instaurados;

         – do TRG de 19/01/2017, proc. 132/16.3T8VFL.G1: De acordo com o n.º 6 do art. 17-G do CIRE, encerrado o processo de revitalização com fundamento no reconhecimento antecipado da impossibilidade de obtenção do acordo de revitalização ou pelo decurso do prazo das negociações sem a sua obtenção, podendo qualquer destas situações traduzir-se numa desistência, o devedor, ainda que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas susceptível de recuperação, não poderá, pelo prazo de dois anos, iniciar um novo processo de revitalização, mesmo que nos autos anteriores não tenham chegado a ser desenvolvidas negociações nem tenha sido apresentado plano de recuperação e não obsta à extinção do segundo processo (onde foi conhecido esse facto anterior) o facto de o devedor já ter efectuado diligências, já ter sido nomeado administrador judicial provisório e já terem sido cumpridas as formalidades de citação e publicidade.

            Ora, conseguir-se-ia defraudar este impedimento legal se, uma vez obtido o acordo, o mesmo deixasse de ser cumprido – voluntária ou involuntariamente – e, apesar disso, o devedor pudesse requerer um novo PER. Se assim fosse, o devedor que previsse que não ia ser obtido o acordo, ou que quisesse pôr termo às negociações, em vez de o fazer directamente (dando conhecimento daquela conclusão ou pondo termo às negociações) deixaria o processo prosseguir, aceitando qualquer acordo, e depois deixaria de cumprir o plano que tivesse sido acordado. Com isso, tentaria ele evitar a consequência legal de impedimento de requerer um novo PER durante dois anos.

              Se isto fosse possível, então aquele impedimento legal seria frustrado por simples artifício do devedor.

              Não pode ser.

       Desistir de obter um acordo e deixar/desistir de o cumprir, acabam por ser, materialmente, para estes efeitos, a mesma coisa.

           Ou, de qualquer modo: se pôr termo às negociações impede um pedido de um novo PER durante um determinado prazo, pôr termo ao cumprimento de um PER acordado é um comportamento mais grave ou revela uma situação económica mais grave ainda; assim, por maioria de razão se teria de entender que também nesta hipótese o devedor fica impedido de requerer um novo PER durante aquele período legal.

            Aliás, deixar de cumprir um plano acordado, revela uma de duas coisas: ou uma vontade deliberada de não o cumprir, e não se vê porque é que o devedor, nesse caso, poderia iniciar um novo PER sem o decurso daquele prazo, ou uma impossibilidade de cumprir obrigações já modificadas para lhe possibilitar o cumprimento, e então estar-se-ia perante uma situação de insolvência, caso em que o PER não é admissível.

         [assim, por exemplo, em Espanha, a já referida Ley 22/2003, de 09/07, no título X, relativo ao “acuerdo extrajudicial de pagos”, prevê no art. 241/3, relativo ao “cumplimiento e incumplimiento del acuerdo” que “si el acuerdo extrajudicial de pagos fuera incumplido, el mediador concursal deberá instar el concurso, considerándose que el deudor incumplidor se encuentra en estado de insolvência.” E na disposición adicional cuarta, relativa à homologação dos acuerdos de refinanciación, diz-se: 11. En caso de no cumplir el deudor los términos del acuerdo de refinanciación, cualquier acreedor, adherido o no al mismo, podrá solicitar […] la declaración de su incumplimiento […] Declarado el incumplimiento, los acreedores podrán instar la declaración de concurso de acreedores o iniciar las ejecuciones singulares. […]]

            Ora, ou por incapacidade de previsão legal, ou por a situação nem sequer fazer sentido como decorre do que antecede [materialmente o incumprimento revela insolvência, logo não é possível o PER], a lei portuguesa não previu esta hipótese expressamente aquando da elaboração do CIRE.

            Mas entretanto – revelando inequivocamente a existência da lacuna e a solução para ela – já o fez para uma situação paralela, equiparando o incumprimento do plano à não obtenção do acordo como hipóteses de impossibilidade de o devedor requerer um SIREVE no prazo de 2 anos. Isto é, segundo o art. 18/1-d do SIREVE, “obsta à utilização do SIREVE: […] a conclusão, sem aprovação do plano de recuperação ou verificando-se o incumprimento dos termos do plano de recuperação, do processo especial de revitalização nos dois anos anteriores à apresentação do requerimento de utilização do SIREVE, nos termos do artigo 17-G do CIRE” (do Decreto-Lei 178/2012, de 03/08, na redacção que lhe foi dada pelo art. 2 do DL 26/2015, de 06/02, tendo sido acrescentada a parte sublinhada).

            Ora, o SIREVE é, nos próprios dizeres da lei, um PER não judicial (do preâmbulo: “Desde logo, o SIREVE constitui um processo de revitalização acompanhado pelo IAPMEI e não pelos tribunais.”)

            Pelo que, se um devedor, depois de incumprir um PER, não pode, durante 2 anos, requerer um SIREVE, muito menos pode requerer um novo PER.

            Neste sentido, embora com aplicação analógica de outras normas, já se pronunciou o ac. do TRP de 10/02/2016, numa decisão que não está publicada no IGFEJ/TRPorto, mas que pode ser consultada em http://apaj.pt/apaj/wp-content/uploads/2015/08/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-TRP_imposs-pedir-2%C2%BA-PER.pdf:

         A devedora tinha requerido novo PER invocando impossibilidade de cumprir o plano de recuperação aprovado no âmbito de um anterior processo; o novo plano foi aprovado e homologado por sentença; desta sentença recorreu uma credora; o acórdão revoga a sentença: diz que o CIRE se mantém omisso quanto aos efeitos do incumprimento do PER; por isso, a solução deve ir buscar-se na norma aplicável aos casos análogos; há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (art. 10 do CC); ou, de acordo com os ensinamentos de Baptista Machado, “dizem-se análogos quando neles se verifica um conflito de interesses paralelo, isomorfo ou semelhante – de modo a que o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina 2014, pág. 202); considera que aqui não se está perante um caso taxativo, o que impediria a interpretação por analogia; depois diz que conforme resulta do art. 1 do CIRE, a satisfação dos credores deve ocorrer preferencialmente através de um plano de insolvência, sendo que o processo de revitalização também tem em vista a obtenção de um acordo conducente à aprovação de um plano de recuperação, nos termos do art. 17-A/1 do CIRE, competindo ao juiz, em ambos os casos, decidir pela aprovação ou rejeição, nos termos dos artigos 215 e 216 do CIRE; logo estamos perante casos análogos; sendo assim, verificando-se o incumprimento do PER pelo devedor, à semelhança do previsto no art. 218 do CIRE, o PER fica sem efeito e logo sem possibilidades de vir a ser repetido, o que, aliás, também não era admissível no domínio da legislação anterior – cfr. artigos 75 e 76/1-c do CPEREF -; [onde] apenas era possível nova concordata por créditos novos (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda CPEREF anotado, pág-199; vide, ainda, Nuno Gundar da Cruz, http://www.revistainvest.pt/pt/A-empresa-incumpriu-o-plano-de-recuperacao-E-agora—por-Nuno-Gundar-da-Cruz/A1056).

            E realmente o art. 75 do CPEREF tratava da questão, especificamente no art. 75 e a solução era neste sentido: n.º 2: Enquanto as obrigações emergentes da concordata se não mostrem integralmente cumpridas, não pode o devedor requerer nem contra ele ser requerido novo processo de recuperação da empresa, salvo o disposto no número anterior [n.º 1: Os credores por créditos posteriores à aprovação da concordata podem requerer a abertura de novo processo de recuperação da empresa e nele aprovarem nova concordata, sem prejuízo da anterior.]

            Em sentido contrário, admitindo um… terceiro PER, veja-se o ac. do TRG de 02/02/2017, proc. 5405/16.2T8VNF-A.G1, com um voto de vencido: I – É de admitir o recurso a novo processo especial de revitalização para substituição/modificação de plano de recuperação aprovado e homologado judicialmente no âmbito de um anterior PER e que entretanto se tenha vindo a revelar inviável. II – Cabe aos credores ou ao juiz, este por sua iniciativa ou a requerimento daqueles, impedir eventuais abusos por parte do devedor. III – Esse controlo judicial deve fazer-se em momento posterior ao despacho de admissão liminar a que se refere o artigo 17-C/3-a do CIRE.

            O voto de vencido diz, com toda a razão, entre o mais o seguinte, aproveitando-se o que para aqui importa:

         – um plano já homologado judicialmente não pode ser modificado, porque está a coberto de uma homologação judicial, que não pode ser alterada por se ter extinguido o poder jurisdicional (art. 613/1 do CPC); perante um novo PER, o que acontece a essa decisão judicial? Com que fundamento jurídico se “encerraria” o anterior PER, sem colidir com esse esgotamento do poder jurisdicional? Não é perspectivável a vinculação simultânea a dois PER.

         – olhando o instituto do PER no seu conjunto, as suas finalidades, os “princípios orientadores da Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 23/10, subjacentes ao PER e as constantes referências à insolvência, se se proíbe a instauração de um novo PER antes de decorridos 2 anos de um outro que não tenha sido homologado, por maioria de razão se deve considerar idêntica proibição para instaurar um novo PER, quando ainda existe um outro aprovado e em plena vigência.

         – considerando a «identidade de causa de pedir, como acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito do direito material pretendido» (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC, vol. 2º, 2ª ed., pág. 352), verifica-se a excepção de litispendência entre o antigo e o novo PER na medida em que ambos está em causa a “situação económica difícil ou insolvência eminente, mas susceptível de recuperação” (art. 17º-A CIRE), mantendo o anterior a sua vigência e eficácia.

         – A solução pugnada na tese que fez vencimento conduz ao de-fraudar das regras do processo de insolvência, importando uso indevido do processo: admitindo-se a instauração de sucessivos PER (se um 3º, porque não um 4º?), designadamente no período de vigência de um de-les, tal conduz a que o devedor coarcta aos seus credores o direito de a requerer, para além de conseguir obstar à instauração de acções para co-brança de dívidas e obter a suspensão das em curso art. 17-E/1-6 CIRE).

                                                      *

            O entendimento de que, por aplicação analógica de dadas normas – o art. 218 do CIRE, segundo o despacho recorrido, ou os arts. 17-G/6 do CIRE e 18/1-d do SIREVE, segundo este acórdão –, não é admissível um segundo PER enquanto está em vigor um primeiro (ou durante dois anos a contar do incumprimento), traduz-se numa via de solução da questão que o requerimento do PER pela requerente suscitava, pelo que logicamente não se conheceu de questão que não devia ser conhecida ou se deixou de conhecer questão que devia ter sido conhecida, pelo que não se verifica a nulidade invocada (art. 615/1-d do CPC), nem no despacho recorrido, nem neste acórdão que o confirma.

            Nem se verificaria tal nulidade se o tribunal recorrido tivesse considerado, como o sugeriu poder fazer – mas tratou-se apenas de uma sugestão -, a via da proibição do uso anormal do processo / abuso de direito (arts. 8 e 612 do CPC e 334 do CPC) para impedir o prosseguimento do processo, por considerar que a admissão do requerimento da requerente seria permitir a fraude à lei; o evitar a utilização de um processo legal funcionalizado para um determinado fim para com ele se conseguir alcançar um objectivo que a lei não quer (impedir os credores de requererem a insolvência do devedor quando esta se verifique), cabe obviamente na competência oficiosa do tribunal (tendo em conta que o requerimento tem a participação de um credor, pode-se utilizar o art. 612 do CPC: Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal  prosseguido pelas partes).

              E compreende-se a sugestão feita pelo tribunal recorrido, tendo em conta que a requerente: diz ter um capital social de 1.500.000€; não fala do valor actual estimável do seu activo no requerimento inicial; diz estar em incumprimento de 10.500.000€ aos fornecedores; acrescenta que a situação relativamente à segurança social não se encontra regularizada e se encontra a cumprir planos prestacionais que não abrangem toda a divida vencida, pelo que se encontra actualmente em dívida o valor de 1.060.593€; e ainda diz que no que concerne à situação tributária a mesma encontra-se igualmente por regularizar, pelo que se encontra em dívida o valor de 1.213.069,86€. A situação nestes termos descrita pela requerente não permite a conclusão inequívoca de que esteja numa situação de insolvência – a impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3/1 do CIRE) e a manifesta superioridade do passivo sobre o activo (art. 3/2 do CIRE) – mas indicia fortemente que é isso o que se passa.

            Ora, um tribunal não deve deixar que um devedor utilize o processo de revitalização apenas como forma de obstar à declaração da sua insolvência… “[O] PER não é um instrumento de recuperação insolvencial [nem] uma forma de adiar a insolvência de devedores de todo inviáveis, sem perspectivas de recuperação. Quando assim seja, este devedor empresarial deverá o mais rapidamente possível ser retirado do mercado, como forma de tutela dos seus actuais e futuros credores.” (L. Miguel Pestana de Vasconcelos, obra citada, págs. 48-49).

            Só que, neste caso, se se pudessem tirar já estas conclusões, a solução seria o mesmo indeferimento liminar: “Se for claro dos dados do processo que elas [ou melhor, eles, os dois requisitos do PER de que tinha acabado de falar] não estão preenchidas[dos] deverá indeferi-lo.” [Pestana de Vasconcelos, obra citada, pág. 48, que em nota invoca no mesmo sentido, Aveiro Pereira e Carvalho Fernandes e João Labareda e lembra o ac. do TRG de 20/02/2014, proc. 8/14.9TBGMR.G1: Não pode recorrer ao PER (processo especial de revitalização) o devedor que, face ao que o próprio alega, está já em estado de insolvência, devendo ser indeferido liminarmente o respectivo pedido, para, além do mais, evitar a violação do dever de apresentação (art. 18 do CIRE); no mesmo sentido vai Alexandre Soveral Martins, Um curso de direito da insolvência, 2015, Almedina, págs. 462-463, que aliás também lembra que o devedor deve ter em conta que em regra o PER não suspende o dever de apresentação à insolvência, pág. 463, citando no mesmo sentido Maria do Rosário Epifânio; e neste mesmo sentido, vai também Pestana Vasconcelos, obra citada, págs. 49-50.]

                                                      *

            Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

            Custas pela requerente.

            Lisboa, 27/04/2017

            Pedro Martins

           1.º Adjunto

           2.º Adjunto