Procedimento especial de despejo – Juízo local cível de Lisboa
Sumário:
No procedimento especial de despejo, o inquilino pode, na oposição, reconvencionar o pagamento de benfeitorias (ao contrário do que acontece nas acções declarativas especiais do DL 269/98 e nas injunções de valor inferior a 15.000€).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A, SA, deu início, em 22/09/2016, a um procedimento especial, no Balcão Nacional do Arrendamento, para despejo de B, Lda, subsequente a uma denúncia do contrato “para realização de obras de remodelação e restauro profundos que implicam a desocupação do locado” com opção pelo pagamento de uma indemnização.
A B deduziu oposição, com reconvenção subsidiária em que pede a condenação da autora no pagamento das benfeitorias que diz ter feito no local e que se vierem a apurar em execução de sentença, para além da indemnização que se vier a ser fixada pela desocupação.
Por despacho de 07/12/2016, o tribunal não admitiu o pedido reconvencional com fundamento no facto de a lei não prever a reconvenção neste tipo de processo especial e, sobretudo, porque o mesmo tem natureza urgente, pretendendo-se que a sua tramitação processual seja o mais célere possível, não podendo transformar-se numa acção comum.
A B recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que admita a reconvenção – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (em síntese deste tribunal de recurso):
O tribunal a quo fez incorrecta interpretação do disposto no artigo 15-H do NRAU.
Na oposição deduzida pelo arrendatário, conforme se mostra estatuído no art. 15 do NRAU deverá ser concentrada toda a defesa. Trata-se da consagração de uma ampla defesa que é concedida ao arrendatário, o que significa que este pode defender-se por impugnação e/ou por excepção.
Tem de se admitir também que nesta peça processual o arrendatário possa valer o seu direito a benfeitorias, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, mediante pedido reconvencional, obviando esta forma a uma violação à tutela jurisdicional efectiva da posição material do arrendatário – v. neste sentido Rui Pinto, Execução e Despejo, Coimbra Editora, pág. 1186.
Julgando admissível a reconvenção no PED veja-se o ac. do TRL de 06/03/2014, proc. 2389/13.2YLPRT.
No caso sub judice a realização das obras de demolição pretendidas pelo senhorio, no local arrendado que é situado, como se referiu, numa zona nobre da cidade de Lisboa, a baixa de Lisboa, zona histórica e atenta à natureza das benfeitorias levadas a cabo pelo inquilino, impossibilitará a produção de prova a posterior, pelo simples facto de tudo vir a desaparecer com as obras que o senhorio se propõe realizar, que é a demolição do prédio para um hostel, o que prejudicará e impossibilitará, de forma definitiva, a inquilina de ser reembolsada no valor das benfeitorias feitas, ainda que intentasse depois acção em separado.
O acesso aos tribunais constitui um direito fundamental, consagrado no art. 20 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e, reproduzido no artigo 2 do CPC.
O tribunal a quo desconsiderou a norma constante do art. 266/2-b do CPC que, devidamente cumprida, teria determinado a apreciação da questão da admissibilidade da reconvenção, com a necessária fundamentação.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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A questão a decidir é apenas a de saber se o pedido reconvencional devia ter sido admitido; ou seja, a de saber se um procedimento especial de despejo admite reconvenção.
O procedimento especial de despejo está previsto nos arts.15 a 15-S do no novo regime do arrendamento urbano, Lei 6/2006, de 27/02, na versão actual que lhe foi dada pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014, de 19/12.
O procedimento em causa vem minuciosamente regulado (com desenvolvimento ainda na Portaria 9/2013, de 10/01, que regulamenta vários aspectos do procedimento especial de despejo, com alterações efectuadas pelas portarias 30/2015, de 12/02, e 225/2013, de 10/07; no preâmbulo daquela diz-se que o PED foi criado de modo a permitir “a célere recolocação [do local arrendado] no mercado de arrendamento” ), incluindo os termos da notificação do requerimento ao inquilino. Em lado algum se prevê expressamente a notificação deste para a hipótese de poder reconvencionar. Prevê-se a oposição ao requerimento (art. 15-F/1), que é notificada pelo BNA ao requerente (art. 15-H/1), a que se segue, depois da remessa dos autos ao tribunal, a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das peças processuais ou de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório e depois, sem mais, o julgamento (art. 15-H).
Existem dois lugares paralelos que suscitaram a mesma discussão e que ajudam à solução da questão.
Assim, como lembra Lebre de Freitas, as questões da admissibilidade do articulado de resposta à contestação e da reconvenção, “estão ligadas, uma vez que a admissibilidade da reconvenção necessariamente postula a admissibilidade da sua contestação, que veicula o exercício, pelo autor, do direito fundamental de defesa perante o pedido contra ele deduzido pelo réu.”
Continuando a seguir Lebre de Freitas: no processo sumaríssimo, antes da revisão de 1995-1996 do CPC de 1961 a posição maioritária não admitia a reconvenção, “baseada precisamente na redacção que tinha o então art. 795-2 (” Havendo contestação, que será notificada ao autor, é marcado o dia para o julgamento, que deve efectuar-se dentro dos 10 dias seguintes”)”. Posição que foi “abalada depois” da revisão de 95-96 “com a nova redacção do então art. 795-1 (“Findos os articulados, pode o juiz…”), que levava a aplicar as disposições estabelecidas para o processo sumário, que, por sua vez, subsidiariamente recorria às do processo ordinário.”
Lebre de Freitas lembra que “sobre a discussão doutrinária havida, desde o CPC de 1939, pode ver-se: no sentido negativo da admissibilidade do articulado de resposta e da reconvenção, JOSÉ ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit., VI, p. 493, RLJ, 82, p. 11, ARTUR ANSELMO DE CASTRO, DPC declaratório cit., I, p. 171, LOPES DO REGO, Comentário; cit., I, anotação III ao art. 794, MONTALVÃO MACHADO-PAULO PIMENTA, O novo processo civil cit., ps. 275-276, e JOSÉ JOÃO BAPTISTA, Processo civil cit., p. 489; no sentido da admissibilidade de uma e outra, JOAO DE CASTRO MENDES, DPC cit., III, p. 331, JOÃO REMÉDIO MARQUES, A acção declarativa cit., ps. 465466; JOSÉ LEBRE DE FREITAS, 1ª e 2ª edições da presente obra, n.º 23.2.1. Para TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos cit., p. 366, a resposta à reconvenção teria lugar no início da audiência final, por interpretação extensiva do art. 3-4.”
No processo especial de acção declarativa do DL 269/98, após o DL 303/2007 (destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15 000€), regulado nos arts. 1 a 5 do regime anexo àquele DL), tem-se entendido que não é admissível a reconvenção, com base na consideração de que não é admissível a resposta à contestação e isso porque, o duplicado da contestação só é remetido ao autor com a notificação do despacho que designe dia para a audiência final (art. 1/4 do regime anexo).
Neste sentido, explica Lebre de Freitas, depois de lembrar o que tinha acabado de escrever sobre o processo sumaríssimo: “Numa perspectiva racional, a especial conveniência de celeridade do processo especial de que tratamos (tal como do desaparecido processo sumaríssimo), que impregna todo o seu regime, é invocável no sentido desta solução. No entanto, a esse argumento é fácil contrapor que a admissibilidade da reconvenção obedece a exigências de economia processual (Introdução, n.ºs II.10.2.5) e que o interesse do réu em deduzir, no processo da acção contra ele proposta, pedidos estreitamente conexos com os do autor não é de menosprezar. Esta contra-argumentação é mais forte quando se tenha em conta o regime da compensação no novo CPC (supra, n.º 7.7.2). Aliás, já para JOÃO DE CASTRO MENDES, DPC cit., III, p. 331, o grande argumento em prol da admissibilidade da reconvenção era a desvantagem que poderia constituir para o réu não poder deduzir a compensação, que, para o autor, tinha, como vimos (supra, n.º 7 (105)), de ser sempre deduzida por reconvenção. De qualquer modo, mesmo que a reconvenção só fosse exigível para fazer valer o excesso do crédito do réu sobre o crédito do autor, seria manifesta a conveniência de decidir sobre esse excesso no mesmo processo em que se decide sobre a sua parte compensável, algo de semelhante se podendo dizer das outras situações de conexão que, segundo o art. 266-2, justificam a reconvenção (maxime, a de coincidência da causa de pedir reconvencional com a causa de pedir da acção ou com o fundamento da excepção deduzida e a de direito a benfeitorias). A solução legal para a acção declarativa do DL 269/98 não parece ser a melhor. Outra é a solução no processo europeu para as acções de pequeno montante (infra, n.º 22.2.3).”
Neste sentido, apenas por exemplo, os acórdãos: do TRC de 18/05/2004, proc. 971/04; do TRL de 06/05/2010, proc. 372220/08.0YIPRT-A.L1-8; do TRP de 12/05/2015, proc. 143043/14.5YIPRT.P1; do TRL de 12/11/2015, proc. 138557/14.0YIPRT.L1-2; e do TRC de 07/06/2016, proc. 139381/13.2YIPRT.C1; contra, veja-se Miguel Teixeira de Sousa no post entretanto publicado, a 26/04/2017, no blog do IPPC, sob o título de AECOPs e compensação.
O mesmo vale para as injunções de valor não superior a 15.000€ (tendo por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do DL 269/98, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL 62/2013, de 10/05) requeridas no balcão nacional de injunções, com procedimento previsto nos arts. 7 e segs do regime anexo ao DL 269/98, que é, no essencial, idêntico ao PED, que venham a ser remetidas para o tribunal na sequência da oposição do requerido, já que elas seguem, após a distribuição, os termos do processo especial da acção declarativa referida. E isso também resulta da consideração de que elas só admitem o requerimento e a oposição (que podem vir a ser aperfeiçoados: art. 17/3), seguindo-se o julgamento. Não havendo lugar a articulado de resposta à oposição, entende-se que não pode haver lugar à reconvenção
Neste sentido, apenas por exemplo, os acórdãos: do TRL de 26/03/2015, proc. 152847/122YIPRT.L1; do TRC de 18/05/2004, proc. 971/04; e, por argumento a contrario: do TRG de 15/05/2014, proc. 130585/13.9YIPRT-A.G1; do TRP de 26/01/2015, proc. 8336/14.7YIPRT-A.P1; do TRE de 13/12/2015, proc. 51776/15.9YIPRT-A.E1; do TRE de 21/01/2016, proc. 74707/13.6YIPRT.E1; do TRL de 24/05/2016, proc. 101387/15.0YIPRT-A.L1-7; e do TRL de 04/12/2012, proc. 276/12.0TJLSB-A.L1-7; contra, veja-se o já referido post de Miguel Teixeira de Sousa.
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Tendo tudo isto em conta, chamam a atenção duas diferenças substanciais: primeiro, a oposição ao requerimento é notificada pelo BNA ao requerente (art. 15-H/1), ou seja, a oposição não é notificada só com a notificação para julgamento; segundo, é possível a existência de um novo articulado sempre que seja necessário garantir o contraditório (art. 15-H/2), ou seja, no PED pode haver um articulado de resposta.
Ora, podendo haver um articulado de resposta, estando esta questão conexa com a admissibilidade da reconvenção, sendo pois a ausência daquela possibilidade que determinava a inadmissibilidade da reconvenção, há que aceitar a conclusão de que, no PED é possível haver reconvenção, já que o requerente/autor pode responder à reconvenção, sendo que esta, deduzida na oposição, será logo notificada ao requerente (e não apenas com a notificação da marcação do julgamento), o que se compreenderá precisamente para lhe dar a possibilidade de responder se houver necessidade disso, como no caso de ter havido reconvenção.
E compreende-se também pelas aventadas razões de economia processual lembradas por Castro Mendes e Lebre de Freitas, sendo que, como este autor diz, a impossibilidade de reconvenção não é a melhor solução, devendo ser seguida, evidentemente, acrescenta-se aqui, apenas quando for imposta por lei, mas não no caso contrário. Sendo que, dada a natureza (sensibilidade) da matéria – relativa a arrendamentos – ainda menos se compreenderia a ausência de possibilidade de reconvenção, solução que já é criticada a nível de contratos destinados ao cumprimento de obrigações pecuniárias ou emergentes de transacções comerciais, de valor inferior a 15.000€.
Neste sentido, logo no início e já citado pela requerida, Rui Pinto: “Dado não ter corrido prévio processo judicial, deve entender-se que o direito de defesa determina que o conteúdo da oposição sejam quaisquer fundamentos que possam ser invocados no processo de declaração. […] Portanto, pode ser oposta impugnação e excepção e, bem assim, fazer-se valer o direito a benfeitorias. Se tal era admissível em sede de art. 929/1 = 860/1 do nCPC […] não [pode] deixar de ser admitido, sob pena de violação do direito à tutela efectiva da posição material do inquilino. Assim, consoante as possibilidades dadas pelo direito substantivo, tanto poderá pedir a condenação do senhorio no pagamento do valor das benfeitorias, como o reconhecimento do direito a levantá-las, por via reconvencional.” (Manual da execução e despejo, Coimbra Editora, Agosto 2013 = Novo regime processual do despejo, 2.ª edição, Coimbra Editora, Abril 2013, págs. 153-154).
Depois, em obiter dictum, o, também citado pela requerida, ac. do TRL de 06/03/2014, proc. 2389/13.2YLPRT.L1-2, com remessa para RUI PINTO, Execução e Despejo, Coimbra Editora, 1186.
Também em obter dictum, o ac. do TRP de 29/02/2016, proc. 5560/12.0TBVFR-A.P1, lembrando que no mesmo sentido vai “J.H. Delgado de Carvalho, Acção executiva para pagamento de quantia certa, 2.ª ed., Quid Juris, 2016, pág. 495 e Rui Pinto, e, em termos gerais, ou seja, em sede de processo executivo, Marco António de Aço e Borges, ainda que, se bem lemos, com dúvidas, A Demanda Reconvencional, Quid Juris, 2008, págs. 407/413.”
Pressupondo a possibilidade de reconvenção, vai também o ac. do TRP de 13/03/2017, proc. 1875/16.7YLPRT-B.P1.
O teor dos acórdãos seguintes demonstra que, normalmente, as reconvenções por benfeitorias são aceites pelos tribunais, ao menos no distrito judicial de Lisboa: ac. do TRL de 02/06/2016, 4274/15.4YLPRT.L1-8; ac. do TRL de 09/07/2015, proc. 2684/14.3YLPRT.L1-7; e ac. do TRL de 17/03/2016, proc. 2090/15.2YLPRT.L1-6.
Tudo isto apesar de se compreenderem também as razões do despacho recorrido, que invoca, embora em termos sintéticos, bons argumentos – isto é, está fundamentado, ao contrário do que sugere a recorrente – e está acompanhado pelos acórdãos do TRE de 20/11/2014, proc. 3588/13.2YLPRT.E1, e do TRP de 30/06/2014, proc. 1572/13.5YLPRT.P1.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por este que admite a reconvenção, devendo o tribunal recorrido dar-lhe a devida sequência processual.
Custas pela requerente A.
Lisboa, 27/04/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto