Proc. do Juízo de família e de menores de Cascais
Sumário:
Uma medida cautelar urgente não pode ser aplicada sem observância do contraditório, se tiverem passados seis meses da notícia da urgência da situação em que a menor se encontra (como resulta dos arts. 3, n.ºs 2 e 3, do CPC, e 4-j, 5-c, 37, 85 e 92 da LPCJP)
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A favor da menor M foi aplicada, a 19/12/2016, ao abrigo do disposto nos arts 37 e 35/1-f da LPCJP, a medida cautelar de acolhimento residencial pelo período de seis meses. Determinou-se a passagem dos competentes mandados para entrega da menor no lar e que a decisão só fosse notificada aos progenitores quando a menor se encontrasse devidamente acolhida (fls. 186 a 191 do apenso B).
A mãe da menor veio (fls. 251 a 263), a 29/12/2016, recorrer desta decisão – já começada a executar -, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões […]:
1. O presente recurso deve ter efeito suspensivo, já que se interpõe recurso de uma decisão que, a não ser suspensa, colocará cm causa, de forma grave e irreparável, os interesses da menor.
[…]
25. O princípio do contraditório a que se refere a LPCJP, está visível, quer no art. 88/3, quer no art. 104, ex vi do art. 12 da referida lei, que aplica a estes autos o art. 3/2 do CPC.
26. Assim, está tal despacho ferido de nulidade, quer por falta de fundamentação legal, quer por violação do contraditório, de acordo com o mencionado art. 615/1-b do CPC, aplicado nos presentes autos por via do art. 12 da LPCJP.
[…]
36. Viola assim o despacho recorrido os princípios referidos porque mandou prosseguir os autos de promoção e protecção porque existe perigo para a criança, sem que tome qualquer medida que não seja a de devolver a criança à guarda da mãe como regulado nas responsabilidades parentais, o que faz à revelia da actualidade da prova e das testemunhos da pedopsiquiatra que acompanha a menor, da professora da menor, das vizinhas, da madrinha e do actual companheiro da progenitora e da própria recorrente, pelo que o despacho por violador das regras e princípios da Lei 147/99 é nulo, devendo ser revogado, não comprometendo o superior interesse desta criança [sic].
O Ministério Público contra-alegou, a 13/01/2017, dizendo o seguinte:
Do efeito do recurso
Tendo em atenção os factos que fundamentaram a aplicação à menor da medida de acolhimento residencial, a título cautelar, e que consubstanciam a situação de grave negligência a que a menor vinha sendo sujeita, e dada a fase inicial da instrução em que nos encontramos, entendemos que o interesse superior da menor impõe que a medida cautelar aplicada se mantenha em execução, sem interrupção, enquanto decorre a fase de instrução.
Daí o entendermos que, ao abrigo do disposto no art. 124 da LPP, ao presente recurso haverá de ser atribuído efeito meramente devolutivo.
Dos factos que fundamentam a aplicação da medida cautelar
Contrariamente ao que sustenta a mãe, os factos que fundamentam a aplicação da medida cautelar não resultam apenas de um relatório da CPCJ datado de 2014.
Aliás, não pode deixar de impressionar (porque de algum modo reveladora da sua personalidade) a visão redutora da progenitora, que apenas descortina nos autos um relatório da CPCJ de 2014, ignorando por completo todos os demais factos trazidos aos autos, em momento posterior, por outras entidades ali devidamente identificadas.
Assim, temos:
1 – para além do relatório que descreve todas as diligências efectuadas pela CPCJ no período que decorre entre 9/4/2014 e 2/6/2016 e os factos que nele são relatados, que permitem concluir pela situação de perigo em que a menor se encontra, e que se vai agravando e pela impossibilidade de obter a colaboração da progenitora, quer na recolha de elementos para avaliação da situação, quer para se obter o seu consentimento para eventual aplicação de medida de protecção (fls 2 a 6 e fls 163 a 165);
2 – os factos constantes no relatório escolar, datado de 1/7/2016 (fls 168 e 169);
3 – os factos relatados pela PSP, no âmbito de visita à habitação efectuada em 30/6/2016 (fls 172 e 173).
É impressionante a descrição efectuada pela entidade policial em visita efectuada em 30/6/2016 ao relatar as degradantes condições de higiene em que a menor ali se encontrava, indignas mesmo para um qualquer ser animal, quanto mais um ser humano – no caso em apreço, uma criança com 9 anos de idade.
Mas, é da conjugação de todos estes factos, trazidos aos autos pelas referidas entidades, que é permitido concluir:
a) a situação de negligência grave – a nível de saúde e educação, – a que a menor vinha sendo sujeita, por parte da sua progenitora ao longo dos últimos 2 anos;
b) a situação de perigo grave em que essa negligência se configura, incluída na previsão da al. c do n° 1 do art. 3 da LPP;
c) a manifesta incapacidade da progenitora para lhe por termo ao longo de todo esse período.
Tais factos sustentam, de forma muito clara, a convicção em que o tribunal assentou para aplicar a medida de acolhimento residencial (fls. 186 a 191). Estamos, por isso, ao contrário do que a mãe sustenta, perante uma decisão devidamente fundamentada.
Da violação dos princípios da actualidade e da proporcionalidade
Os factos assim especificados, quer pela data em que ocorrem e são trazidos aos autos, quer pela gravidade de que se revestem, face à natureza que assumem e ao facto de se virem a repercutir há, pelo menos, cerca de 2 anos, numa criança, actualmente com 9 anos de idade, num período da sua vida que decorre entre os 7 e os 9 anos de idade, mostram, de forma clara que, ao contrário do que sustenta a mãe, o tribunal fez uma adequada aplicação dos princípios da actualidade e proporcionalidade, ao determinar a aplicação da medida de acolhimento residencial, a título cautelar.
Com efeito, os autos mostram que a menor M, com 9 anos de idade, vivia em condições inadequadas a um qualquer ser humano, com todas as consequências negativas que daí lhe advinham, e mostram também que a nível do seu agregado familiar, designadamente no que se refere à progenitora, ninguém se revelava capaz de lhe prestar os cuidados de que a menor necessitava.
Dúvidas não restavam que a única medida capaz de proteger a menor implicava, necessariamente, a sua retirada do agregado familiar.
Mas, se alguma dúvida ainda pudesse subsistir então veja-se a forma “serena” revelada pela menor à entrada na instituição (fl. 216)
Da violação do princípio do contraditório
Estamos no domínio da tornada de decisões provisórias ou cautelares, previstas pelo art. 37 da LPP, em conjugação com o art. 92, da mesma lei. Assim, e à semelhança do que também se prevê no Regime dos Processos Tutelares Cíveis – art. 38 do RGPTC – o contraditório é aqui aplicado de forma específica, mais conforme à natureza, provisória, da decisão, tal como por vezes sucede com os procedimentos cautelares em matéria cível. Quer isto significar que o contraditório é postergado para um momento posterior que, no âmbito da LPP, se concretiza, precisamente, quer no momento em que se interpõe recurso da própria decisão (como ocorre neste momento, nos presentes autos), quer no momento em que se suscita a questão da revisão da medida aplicada, nos termos das disposições conjugadas dos arts 37/3 e 62, da LPP. Como resulta do ac. da Relação de Lisboa de 9/2/2010, proc. 2609/09.8TBVFX-A.L1-1: 1. Numa situação de emergência, o decretamento de uma medida provisória de promoção e protecção, não depende da prévia observância do contraditório, o qual, à semelhança do que por vezes ocorre com os procedimentos cautelares previstos no CPC, é assegurado a posteriori, ou seja, após a notificação da decisão tomada, por via de recurso ou formulação de requerimento de revisão/cessação da medida provisória tomada; 2. É nula a decisão que aplique uma medida provisória de promoção e protecção sem conter os factos em que se fundamenta.
A menor não apresentou contra-alegações.
*
Na decisão recorrida diz-se que “dos autos de regulação das responsabilidades parentais ficaram provados os seguintes factos [toda a numeração foi colocada por este tribunal de recurso]:
- M nasceu a 12/07/2006 e é filha de I e de J.
- O pai da menor nunca contribuiu para o sustento da mesma.
- Após a separação dos progenitores da menor, os contactos mantidos pelo pai eram esporádicos e sem qualidade.
- Sendo que a menor viria a queixar-se que o pai e madrasta lhe batiam e, a partir daí, a progenitora não mais deixou a filha conviver com o pai.
- A progenitora vive com a menor, com outro filho, de nome D, também ele menor, e com o seu actual companheiro V.
- A casa da progenitora dispõe de 3 quartos, sala, cozinha e WC e apresenta habitualmente pouca higiene e arrumação.
- A progenitora está desempregada há 14 anos, alegadamente por ter lesionado a sua mão num acidente, e o seu companheiro é doente oncológico não desenvolvendo, por sua vez, qualquer actividade laboral.
- O agregado da progenitora tem disposto de apoio da Conferência de S. Vicente de Paulo relativamente a bens alimentares e medicamentos, pagamentos de água, electricidade, gás e renda de casa.
- O agregado familiar da progenitora dispõe de rendimento social de inserção no valor mensal de 269,59€ atribuído ao seu companheiro e ainda 146,17€ de abono de família mais bonificação por deficiência do menor D e 42,23€ de abono de família da menor M.
- A menor frequenta o 2° ano de escolaridade denotando especiais dificuldades de aprendizagem e apesar de a escola ter proposto um plano educativo de intervenção não é expectável que a menor transite de ano.
- A menor iniciou consultas de pedopsiquiatria em Março de 2014 estando medicada mas sem diagnóstico.
- A menor apresenta uma higiene deficitária, apresentando infestação contínua de piolhos e um cheiro intenso, motivada pela falta de higiene o que condiciona o relacionamento da menor em relação aos demais que tendem a afastá-la.
- O progenitor não convive com a filha há mais de 3 anos.
- O progenitor vive sozinho numa casa de família que lhe aluga a sala, dormindo o progenitor num sofá cama.
- O progenitor é pescador e nem sempre tem trabalho.
- O progenitor faz referência à falta de condições de higiene e de cuidados da mãe da sua filha, bem como a falta de hábitos de trabalho da mesma (sentença de fls. 155 e ss dos autos principais, em especial, fls. 157 a 159).”
Na decisão recorrida, logo a seguir, diz-se que “do processo vindo da CPCJ constata-se o seguinte:
- A menor faltou à consulta de pedopsiquiatria e deixou de frequentar as actividades de apoio ao estudo no CRE das G.
- Na escola, mantém-se as dificuldades na aprendizagem tendo sido já referenciada para avaliação pela saúde.
- Existe dificuldade de comunicação entre pais e o pai não convive com a menor.
- Considera-se sobressaírem indicadores de perigo para esta criança (negligência, exposição a situações de risco e contexto familiar disfuncional).
- A menor é uma criança ansiosa e inibida e antes de falar olha sempre para a mãe.
- Foi aplicada em Dezembro de 2014 uma medida de promoção e protecção de apoio junto da mãe, o qual tem vindo a ser reiteradamente incumprida.
- A mãe mantinha um relacionamento há 4 anos com um companheiro V, doente oncológico e titular do RSI, no entanto, terminaram a relação o ano passado tendo este saído da casa da progenitora.
- Foram realizadas várias tentativas de visita domiciliária com e sem aviso, sem sucesso.
- A mãe não atende o telemóvel.
- Em Fevereiro de 2016 a respectiva equipa do RSI foi informada que o menor D não tem ido às aulas e que as várias tentativas que a escola fez ao falar com o D e com a mãe não surtiram efeito.
- O menor D mantém-se em abandono escolar.
- A progenitora faltou também à convocatória da Equipa do RSI para receber apoio para a aquisição de óculos para a menor M perdendo, assim, essa oportunidade.
- A mãe tem faltado a várias convocatórias no âmbito do acompanhamento educativo dos filhos, demonstrando pouca colaboração com os mesmos.
- A progenitora incumpriu reiteradamente o contrato de inserção tendo, em Abril de 2016, a equipa do RSI procedido a informação social que levou à cessação da prestação pecuniária.
- A menor, apesar de revelar interesse nas actividades da sala de aulas, manifesta pouca autonomia, ritmo de trabalho lento, aparecendo mal cuidada na escola com frequência com piolhos e, apesar da progenitora ser alertada, a situação mantém-se.
- A menor voltou a faltar ao acompanhamento em pedopsiquiatria e já não toma a medicação.
- A progenitora estabeleceu novo relacionamento com outro companheiro e segundo fontes da comunidade ausenta-se de casa para ir ter com o mesmo, que vive em C.
- Há pouco tempo a CE comunicou queixas de vizinhos do bairro a dizer que a menor M está sem supervisão da mãe.
- O pai, que é pescador e, por isso, trabalha de noite e dorme de dia, assume não ter condições para ter a guarda da filha.
- A menor no fim do segundo período escolar e depois no terceiro período do ano lectivo transacto deixou de ser assídua às aulas, tendo a progenitora se justificado dizendo que tem de sair de casa muito cedo e que é o irmão D a levar a menor à escola.
- A menor mais uma vez deixou de frequentar a AT e onde fazia os trabalhos de casa.
- A menor passou a ir para casa e onde fica sozinha com o irmão D a ver televisão.
- Na óptica da professora a menor estará condicionada quando dá respostas sobre a sua rotina diária mostrando “ter medo de responder” e de ter algumas respostas mecanizadas.
- A progenitora não aparece na escola e quando o faz justifica as ausências com grandes acontecimentos na sua vida privada que a impedem de ir à escola inteirar-se da situação da filha.
- A menor apresentou com frequência pediculose e um odor corporal intenso denotando-se que, provavelmente, não fazia a sua higiene corporal de forma regular e frequente.
- Porque a progenitora nunca está em casa e não atende o telemóvel a PSP efectuou arrombamento na casa da menor em 29/06/2016, pelas 7h, tendo constatado que apenas estava em casa os dois menores, D e M, sozinhos, sendo que a menor M estava a dormir no sofá da sala.
- Em tal visita domiciliária forçada a PSP constatou que o imóvel apresentava deficientes condições de habitabilidade e salubridade, designadamente o quarto visado estava cheio de roupa e lixo, imensos insectos rastejantes (baratas) a movimentarem-se naquela divisão, casa de banho com roupa suja espalhada no interior da banheira, dentro de uma máquina de lavar que denotava estar avariada, e por cima, um imenso monte de roupa suja, um outro quarto, supostamente da menor, com diversos objectos danificados, sucatas de lixo, com um odor nauseabundo e o quarto da mãe visado sendo a única divisão que se encontrava com uma maior organização e arrumação.
- No sofá onde dormia a menor foram detectadas diversas baratas a circular naquele espaço.
- A cozinha encontrava-se completamente desarrumada, suja, com pratos de comida com bolor, odor nauseabundo, dando a ideia que a mesma já estava assim há diversos dias.”
E, perante isto, a decisão recorrida disse:
Afigura-se-nos que, efectivamente, a menor M encontra-se numa situação de perigo que não se compadece, nem com a espera do relatório da ECJ, pedido em Julho de 2016, nem com a eventual esperança de se manter a menor em meio natural, dado o longo historial desta progenitora na falta sistemática de cuidados à filha, sendo que o pai não se apresenta como alternativa.
Não havendo família alargada capaz de acompanhar a menor urge retirá-la não só das condições sub-humanas em que vive diariamente, mas do total abandono a que foi votada pela progenitora que não cuida sequer das suas necessidades mais básicas.
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Os factos
Os factos que interessam à decisão das questões a decidir são os que constam acima na decisão recorrida, em duas partes, uma com base na sentença proferida na acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais, datada de 06/06/2014 (pontos 1 a 16), outra com base num relatório social que, pelas datas que vai referindo e pelas referências que faz, é posterior a Abril de 2016 (pontos 17 a 35). O processo da CPCJ foi remetido ao tribunal a 03/06/2016. Os pontos de facto 36 a 41 estão baseados numa informação escolar datada de 01/07/2016. E os pontos de factos 42 a 44 estão baseados numa sinalização de menores em risco, da PSP, constante de um e-mail de 30/06/2016.
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Do efeito do recurso
Ao recurso foi atribuído pelo tribunal recorrido o efeito meramente devolutivo, ao abrigo do art. 124/2 da LPCJP, por despacho de 06/02/2017. Em nota de pé de página explicou-se: a decisão relativamente à qual se recorre não aplica a alínea g do n.º 1 d art. 35 da LPCJP, nem se pronuncia sobre contactos entre irmãos, únicas decisões relativamente às quais o efeito legal é suspensivo, sendo certo que, dos factos já indiciados nos autos, afigura-se-nos adequada a decisão cautelar aplicada, motivo pelo qual atribuímos efeito devolutivo ao recurso.
O que é correcto e suficiente, não havendo qualquer razão para alterar o efeito atribuído ao recurso.
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[…]
Depois de ordenada a primeira remessa dos autos a este TRL, consta ainda um despacho de 09/03/2017 onde se diz: notifique o teor do relatório da ECJ de fls. 342 e ss, bem como do relatório do Lar que acolhe a menor, junto a fls. 329 e 330, a ambos os progenitores e ainda à patrona da menor para, querendo, nos termos dos arts. 85 e 84 da LPCJP, respectivamente, exercer o contraditório, devendo a progenitora contactar com a ECJ a fim de permitir a recolha de elementos junto de si por parte deste organismo. Após ao MP atento o requerimento entretanto entrado em juízo.
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Decidindo,
Tendo em conta os arts. 1918 do CC e 3/1, 3/2-a-c-f, 5-c, 37, 51/4, 91 e 92 da LPCJP e os factos indiciariamente provados sob 17 a 44, todos de meados de 2016, a situação da menor, quando o processo chegou ao tribunal, em fins de Junho de 2016, justificava, sem qualquer dúvida, a medida cautelar, necessariamente provisória, que lhe foi aplicada, pelas razões que, em síntese, a decisão recorrida refere, e que o MP desenvolve, bem, nas contra-alegações.
Isto não obstante não estar devidamente comprovada a afirmação de não haver “família alargada capaz de acompanhar a menor”, pois que o facto de, em todos os factos provados não haver uma única referência a quaisquer elementos dessa família alargada (tios, avós, primos…), embora a situação em que a menor se encontra se prolongue há tanto tempo, indicia, só por si, a correcção daquela afirmação (para efeitos de uma medida cautelar/provisória).
A mãe, recorrente, não tem minimamente razão em quase tudo o que diz contra a aplicação de tal medida, desde logo ao considerar que ela se baseava num relatório de 2014, desconsiderando, a mãe, tudo o resto, de 2016, onde a decisão recorrida se baseava.
É, por isso, inócuo o recurso quanto a tudo o que diz relativamente aos factos, tanto mais que, por outro lado, ele não observa, nem de longe, os ónus de alegação e conclusão, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 639 e 640 do CPC), não especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Mas se isto era assim em fins de Junho de 2016, quando o processo chegou ao tribunal recorrido e se, por isso, na altura, o tribunal podia, sem necessidade – ou melhor, por impossibilidade (dada a urgência) – de cumprir o contraditório, tomar logo uma medida cautelar, a verdade é que a situação se prolongou até quase ao fim de Dezembro de 2016 e até lá o tribunal ficou a aguardar, segundo resulta da promoção do MP (fls. 67 e 103), por um relatório social que nunca chegou a ser junto aos autos (e que, dado tudo o que já constava dos autos, parecia desnecessário, tanto mais se se tiver em conta o disposto no art. 83 da LPCJP: “As comissões de protecção e os tribunais devem abster-se de ordenar a repetição de diligências já efectuadas, nomeadamente relatórios sociais ou exames médicos, salvo quando o interesse superior da criança exija a sua repetição ou esta se torne necessária para assegurar o princípio do contraditório.”)
Ora, decorridos seis meses sem o tribunal fazer nada e sem nada mais ter sido junto ao processo, não se vê por que razão não podia o tribunal, então, ouvir os pais da menor e esta para se pronunciarem sobre a situação (arts. 84 e 85 da LPCJP). Até para acautelar o perigo de aplicar uma medida a uma situação que podia, dado o tempo decorrido, ter-se alterado. Se se pôde esperar seis meses e nada se acrescentou ao processo, não há maneira de dizer que a situação continuava a ser tão urgente que não permitia a audição dos pais da menor e da menor.
O princípio do contraditório só pode deixar de ser observado perante a urgência da necessidade da adopção de uma medida (como resulta dos arts. 3, n.ºs 2 e 3, do CPC, e 4-j, 5-c, 37, 85 e 92 da LPCJP) e o afastamento dele deve ser fundamentado na base da incompatibilidade material do mesmo com a urgência da situação (neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 30/06/2011, proc. 4408/08.8TMSNT-B.L1-2: Viola o princípio do contraditório e o disposto no art. 85 da LPCJP o despacho que decide a suspensão das idas da menor aos fins de semana, para junto da mãe […] sem ouvir a progenitora, quanto à qual não se equacionou a impossibilidade ou dificuldade de audição prévia – nem sendo aquelas equacionáveis – como também não uma situação de urgência incompatível com tal prévia audição. No mesmo sentido, por exemplo, entre muitos outros, o ac. do TRE de 23/02/2017, proc. 2398/07.0TBTVD-C-J.E1, do TRL de 19/05/2015, proc. 835/09.9TMLSB.L1-7, e do TRE de 05/12/2013, proc. 3501/06.3TBPTM-I.E1).
O que não era o caso no momento em que a medida cautelar foi aplicada.
E a possibilidade de se recorrer de tal decisão não supre a falta de observância do contraditório, quando este podia ter sido observado (ou nada demonstra que não o pudesse ter sido): o recurso é posterior à decisão e, por isso, não pode cumprir a função de dar à parte a possibilidade de influenciar essa decisão (no entendimento “duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em pela igualdade, poderem influenciar todos os elementos – factos, provas, questões de direito – que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 7).
Assim, por violação do princípio do contraditório, anula-se a medida cautelar aplicada e qualquer outra que pressuponha esta medida agora anulada (ou seja, por exemplo, se se tratar de uma renovação desta medida), nos termos do art. 195/2 do CPC, aplicável por força do art. 126 da LPCJP. A anulação não terá efeito sobre qualquer outra medida, cautelar ou não, que tenha sido aplicada sem dependência desta. Se a menor ainda se encontrar acolhida por força da medida agora anulada, terá de ser determinada – pelo tribunal recorrido – a retirada imediata da menor de tal regime por força da anulação da mesma.
Sem custas.
Lisboa, 11/05/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto