Processo do 1º Juízo de Família e Menores de Sintra
Sumário:
I – É manifesto que a acção de impugnação da paternidade presumida não pode proceder se dos factos alegados pela autora/mãe solteira resulta que o filho foi perfilhado pelo pai solteiro, já que a presunção de paternidade se refere ao marido da mãe de filho nascido ou concebido na constância do matrimónio (arts. 1826 e 1838 do CC).
II – Nos casos de perfilhação, o que tem de ser impugnado é a paternidade estabelecida por perfilhação (art. 1859 do CC) e não uma presunção que não existe.
III – Qualquer destas acções é manifestamente improcedente, se a autora/mãe não afirma que o pai registado não é o pai do filho, mas apenas que está na dúvida sobre esse facto. A dúvida não é facto constitutivo do direito.
IV. Também por esse motivo é manifestamente improcedente o pedido de investigação da paternidade para reconhecimento desta, em que a autora/mãe não afirma que o filho é filho do 2.º réu, mas apenas que está na dúvida sobre esse facto.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A, solteira, intentou a presente acção que chamou de impugnação de paternidade, ao que diz baseada no disposto nos artigos 1826/1, 1839 e 1846/1, todos do Código Civil, com as necessárias adaptações, contra B, C e D, pedindo que:
1. Seja afastada a presunção de paternidade do 1.º réu, declarando-se o 3.º réu como filho da autora e do 2º réu;
2. Ordenado o cancelamento do nome do 1.º réu no registo de nascimento como pai do menor;
3. Ordenada a inscrição do nome do pai biológico no registo de nascimento do menor, como pai;
4. Ordenada a alteração do nome do menor.
Alega para tanto o seguinte: autora e 1.º réu tiveram um relacionamento amoroso em 2014; contudo, interromperam esse relacionamento durante alguns meses, tendo-se a autora durante esse período relacionado amorosamente com o 2.º réu; quando terminou o relacionamento com o 2.º réu, voltou a relacionar-se com o 1.º réu; em 13/01/2015 nasceu o filho, 3.º réu; na convicção de que este seria filho do 1.º réu, este e a autora procederam ao registo de nascimento [no assento consta, quer a autora, quer o 1º réu, como solteiros e como tendo sido ambos declarantes]; no entanto, com o crescimento do filho, verifica-se que não tem qualquer traço fisionómico do 1.º réu; a autora manteve relações sexuais de cópula com ambos os réus em momentos diferentes, não sabendo com qual deles esteve dentro dos 120 dias dos 300 que precederam o nascimento; assim, um deles não participou física ou fisiologicamente no acto da fecundação; aquela presunção é, no entanto, ilidível com recurso a todos os meios de prova legalmente admitidos.
Catorze dias depois foi proferida a seguinte decisão, após se fazer referências às partes e aos factos alegados (transcreve-se na parte útil):
Termina a autora pedindo se ordene a realização de testes de ADN à criança, à autora e aos dois réus porque com o crescimento da criança a autora constata que a mesma não tem qualquer traço fisionómico do primeiro réu.
Como resulta da análise da petição inicial, a causa de pedir assenta na invocação de uma dúvida sobre a paternidade da criança e o pedido resume-se à realização de prova pericial no sentido do esclarecimento daquela dúvida, retirando-se do registo a paternidade do primeiro réu, substituindo–se a mesma pelo segundo réu.
[…]
[…] toda a acção deverá ter por base a invocação de um direito, com alegação dos respectivos factos constitutivos, e um pedido no sentido da reconhecimento/realização do direito invocado.
A mera suspeita ou a dúvida sobre a paternidade não se traduz na afirmação de qualquer direito ou constitui qualquer facto constitutivo de um direito.
Por outro lado, a prova pericial, cuja realização integra o pedido, traduz–se tão só num meio de prova, entre vários, destinado à demonstração dos factos constitutivos do direito invocado na acção, de natureza meramente instrumental, sempre dependente da invocação de um direito e da alegação dos pertinentes factos constitutivos e de um pedido no sentido do reconhecimento desse direito.
A latere, cumpre dizer que existem entidades competentes para a realização de exames de sangue para determinação da paternidade de uma criança, devendo a autora recorrer a essas entidades para que tenha a certeza de que o 1.º réu não é pai do seu filho e, só então, com base em adequada causa de pedir, venha peticionar o que tiver por conveniente.
Termos em que a pretensão da autora carece de fundamento legal, devendo em consequência ser julgada improcedente a acção.
Pelo exposto, julgo improcedente a acção.
A autora recorre desta decisão, com as seguintes alegações (transcreve-se a parte útil do respectivo corpo):
A autora intentou acção de impugnação/investigação de paternidade, contra os réus, tendo-se o tribunal a quo pronunciado como transcrito supra.
Ora, parece-nos que na acção de impugnação/investigação de paternidade, o objecto do processo é a manifesta improbabilidade da paternidade.
Embora no entender do tribunal recorrido a causa de pedir assente na invocação de uma dúvida sob a paternidade da criança e o pedido se resuma à realização de prova pericial no sentido do esclarecimento daquela dúvida, sempre se dirá que não se trata de mera suspeita ou dúvida da paternidade mas sim no facto da autora ter mantido relações sexuais com ambos os réus não sabendo com qual deles esteve dentro dos 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do filho.
A verdade é que, um deles não participou física ou fisiologicamente no acto da fecundação.
No caso de ser entendido que a matéria de facto se encontra deficientemente alegada, ainda assim, parece-nos resultar da sentença recorrida que o tribunal a quo entendeu quais os factos expressos e implicitamente alegados, uma vez que alude existirem “entidades competentes para a realização de exames de sangue para determinação da paternidade de uma criança”.
Assim sendo, não estaríamos em sede de investigação da paternidade, mas afirmaríamos com toda a certeza qual dos réus seria o pai.
Assim, pelo exposto e perante a petição inicial, constitui o objecto da acção o apuramento da paternidade do filho, sendo a causa de pedir: não foi o 1º réu quem teve com a autora a relação de cópula fecundante da qual o filho nasceu, sendo os exames peticionados um meio de prova fidedigno que nos permite alcançar o mérito da causa.
Não foram apresentadas contra-alegações (tendo os réus sido citados nos termos do art. 641/7, com referência ao art. 629/3-c, ambos do CPC).
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Questão a decidir: se a acção não devia ter sido julgada improcedente.
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Quer a petição, quer a decisão recorrida, quer o recurso, assentam em vários equívocos.
Começando pela decisão recorrida, a mesma trata-se de uma sentença, já que julga a acção improcedente (art 152/2 do CPC), embora tivesse sido proferida numa conclusão que terá sido aberta para um despacho inicial.
E, apesar de ser uma sentença, a decisão recorrida foi tratada como se fosse um indeferimento liminar, como se vê pela forma como foram feitas as subsequentes citações dos réus e como foi admitido o recurso.
Terá sido, pois, um indeferimento liminar baseado na manifesta improcedência do pedido (art. 590/1 do CPC) que, por lapso, assumiu a forma de uma sentença que julgou a acção improcedente.
Para além disso, a sentença toma como pedido um ponto do articulado da autora que não constava dos pedidos da acção: estes são constituídos pelos vários números transcritos acima e deles não consta nenhum pedido de exame.
Ao menos por isto, a decisão recorrida terá de ser corrigida, passando a ter uma redacção condizente com o facto de ser um mero despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência dos pedidos.
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Continuando pelo recurso, o mesmo esquece desde logo que as conclusões são uma síntese dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão recorrida (art. 639/1 do CPC), pelo que delas, das conclusões, logicamente não podem constar outras questões para além das que resultam do corpo das alegações.
Como a autora levantou outras questões nas conclusões que não constavam do corpo das alegações, transcreveu-se este e é só das questões que este coloca que se vai cuidar.
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Passando agora à petição, ela apresenta-se, no cabeçalho, como uma petição de uma acção de impugnação da paternidade presumida, do art. 1839/1 do CC, mas depois, com os pedidos, apresenta-se como mais alguma coisa, ou seja, como uma acção complexa de impugnação da paternidade presumida junto com um pedido de investigação de paternidade para reconhecimento de paternidade (arts. 1869 e segs do CC).
Ora, desde logo, a acção nem sequer podia ser uma acção de impugnação da paternidade presumida, porque no caso não há nenhuma presunção de paternidade: o pai registado do menor não é/era marido da mãe e é só em relação a este caso que existe a presunção de paternidade que pode ser impugnada (arts. 1826 e 1838, ambos do CC – Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. II, Tomo I, Coimbra Editora, 2006, págs. 86 a 97 e 122).
Ou seja, no caso, se a mãe queria impugnar a paternidade do pai registado, teria de impugnar a paternidade estabelecida por via da perfilhação que este fez do filho (arts. 1847/1, 1853-a e 1859 do CC – autores e obra citada, págs. 149, 161, 162 e 181). Isto é, a acção não era de impugnação da paternidade presumida, mas de impugnação da paternidade estabelecida por perfilhação.
Querendo a autora/mãe impugnar uma presunção que não existia – embora ela falasse nela como se existisse, como se vê da síntese da petição que consta do relatório deste acórdão –, era desde logo evidente a improcedência da acção.
Dito de outra forma:
A acção de impugnação da paternidade presumida destina-se a afastar a paternidade estabelecida por presunção – a presunção de que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe (arts. 1826/1 e 1839 do CC).
Se a autora, ao alegar, diz claramente que o filho não foi registado com base nessa presunção, mas sim com base na perfilhação, a acção estava destinada à improcedência.
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E a acção nunca poderia ser convertida em impugnação da paternidade estabelecida por via da perfilhação, porque nesta a autora teria que alegar – e provar se necessário – que o pai registado não era pai do filho da autora (art. 1859/3 do CC), ou seja, “que o perfilhante não é o progenitor do indivíduo perfilhado” (autores e obra citada, págs. 189 e 190).
Ora, a autora está na dúvida sobre se assim é ou não. É isso que ela diz expressamente na petição. Ora, se está na dúvida se o filho não é do 1.º réu, ela não pode fazer a afirmação de que o filho não é do 1.º réu.
Numa acção judicial, quando se diz que as partes têm de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 552/1-d do CPC) é precisamente isso que se quer dizer: elas têm de fazer as precisas afirmações dos factos que, provados, conduzem à constituição do seu direito. Elas não se podem ficar por dúvidas, porque as dúvidas, por natureza, não são afirmações de facto que possam ser provadas. Nem o juiz, nestes casos, pode mandar aperfeiçoar a petição, porque isso seria impor à parte que mentisse: se ela tem dúvidas se o pai é o 1º réu, não pode ser o juiz a impor-lhe que venha dizer que o pai não é o 1.º réu.
O tribunal recorrido, não podendo, por isso, fazer um despacho de aperfeiçoamento, limitou-se a esclarecer a parte que, estando ela ainda na dúvida, e não podendo fazer a afirmação pressuposta pela natureza da causa, o que tinha de fazer era investigar extrajudicialmente os factos e depois, se adquirisse a convicção necessária, que viesse propor a acção.
Tem, por isso, o tribunal recorrido, razão ao dizer que “a mera suspeita ou a dúvida sobre a paternidade não se traduz na afirmação de qualquer direito ou constitui qualquer facto constitutivo de um direito.”
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Mas para além disto, sendo a acção algo mais que uma acção de impugnação da [perfilhação da] paternidade, isto é, sendo uma acção complexa incluindo ainda um pedido de investigação de paternidade, como aliás, agora, a autora vem dizer expressamente nas alegações do recurso, embora nunca o tenha dito na petição inicial e agora o diga apenas através da alteração da denominação que dá à acção, a verdade é que, também por aqui a acção era manifestamente improcedente e pelas mesmas razões acabadas de referir.
É que a acção de investigação da paternidade destina-se a obter o reconhecimento judicial de que X, no caso o 2º réu, é o pai do filho (arts. 1847 e 1869, ambos do CC – autores e obra citada, págs. 203 a 209 e 216 a 238).
Para isso, a autora teria que fazer expressamente essa afirmação para a poder provar, ou então fazer a afirmação dos factos que permitissem a presunção da paternidade (art. 1871/1 do CC). Ora, a autora não fez nem uma coisa nem outra; antes fez a afirmação contrária a qualquer delas, já que disse que não sabia com qual dos réus teve relações sexuais no período legal da concepção.
De resto, note-se que, nas alegações do recurso, a autora nem sequer aflora a questão: embora, como se disse, nas alegações pretenda que a acção era uma acção complexa de impugnação da paternidade e investigação da paternidade, ela também diz que a causa de pedir era só “que não foi o 1º réu quem teve com a autora a relação de cópula fecundante da qual o filho nasceu.” Ou seja, não diz nunca que a causa de pedir era também que o 2º réu era o pai do filho. Como de facto nunca disse, pelo que o pedido de reconhecimento de paternidade, nunca podia vir a proceder, por não ter causa de pedir.
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Assim, era manifesta a improcedência dos pedidos, por, para além do mais, não haver causa de pedir, ou seja, por não terem sido alegados factos constitutivos do direito invocado pela autora.
Mas, pelo exposto acima, o recurso é parcialmente procedente, porque a decisão recorrida não podia ser uma sentença, quando não passava de um indeferimento liminar, pelo que agora se corrige o lapso respectivo substituindo-se a decisão recorrida por esta que indefere liminarmente a petição inicial por manifesta improcedência dos pedidos.
Custas do recurso pela autora em 90% (sem prejuízo do que for decidido quanto ao pedido de apoio judiciário), sem custas quanto aos outros 10%.
Lisboa, 25/05/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto