Apenso J de uma insolvência do Juízo de Comércio do Barreiro

 

           Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            Neste apenso J, os autores, A e B, propuseram, em 24/02/2017, contra (1) a Massa Insolvente de C, (2) D-Lda, (3) E, (4) F-Lda, e (5) todos os credores da massa insolvente, a presente acção, nos termos do art. 146 do CIRE, pedindo que seja reconhecido que os autores são os proprietários do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de T sob o número xxxx/2004, da freguesia de Y, inscrito na matriz sob o artigo xxxx e em consequência seja o mesmo separado da massa insolvente.

            Alegaram para o efeito que são eles os donos do prédio, por o terem adquirido em 02/04/2004 através de uma escritura pública de justificação; construíram o prédio em terreno que era propriedade sua, mas o mesmo estava omisso, razão pela qual recorreram àquela escritura; e embora nessa mesma escritura pública tenham declarado vender, por 185.000€ já recebidos, o prédio ao agora insolvente, quem outorgou na escritura como outro outorgante foi um advogado actuando como gestor de negócios do agora insolvente e este nunca chegou a ratificar a gestão de negócios, pelo que o acto é ineficaz em relação ao agora insolvente; é que a ratificação que foi feita, é falsa, tal como o termo de autenticação da mesma, e, por isso, também ineficaz em relação a este. Na escritura de justificação consta que adquiriram o prédio por doação verbal de terceiros, no ano de 1960 e que desde então sempre o possuíram com as características necessárias à usucapião do direito de propriedade sobre o mesmo.

            A petição inicial foi liminarmente indeferida pelo tribunal recorrido, tendo em conta o seguinte:

            1. No processo principal supra identificado, C foi declarado insolvente por sentença de 25/09/2006, publicada no Diário da República de 12/10/2006

           2. No dia 12/10/2006 foi apreendido para a massa insolvente o prédio em causa (apenso C).

          3. No apenso G, em acção intentada [inscrita no registo predial desde 06/06/2009] pela massa insolvente contra E e F-Lda, em 03/05/2013 foi proferida sentença, transitada em julgado, que declarou a ineficácia relativamente à massa insolvente da venda daquele prédio, feita pelo insolvente a E, outorgada em 26/04/2007, e a venda do mesmo prédio feita por E a F-Lda, outorgada em 26/04/2007 [as partes entre parenteses rectos foram intercaladas por este TRL, com base nos documentos autênticos/decisões judiciais invocadas no despacho recorrido]

           4. No apenso H, em acção declarativa intentada [em 18/06/2013] pelos ora autores contra os ora réus (com excepção dos credores da massa insolvente), invocando a mesma causa de pedir dos presentes autos e pedindo para serem declarados proprietários do prédio e a declaração de nulidade das transmissões feitas aos réus, bem como o cancelamento dos registos daí resultantes, em 20/04/2015 foi proferido despacho [ou melhor, saneador-sentença], transitado em julgado, que julgou verificado o erro na forma do processo por ao caso ser aplicável o processo especial previsto no art. 141 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, entendeu que os actos já praticados não podiam ser aproveitados para a forma processual correcta porque já havia decorrido o prazo de 30 dias (do art. 141 do CIRE) para a reclamação e que não era aplicável o art. 146 do CIRE por os bens não terem sido apreendidos tardiamente, absolvendo os réus da instância com estes dois fundamentos [as partes entre parenteses rectos foram intercaladas por este TRL, com base nos documentos autênticos/decisões judiciais invocadas no despacho recorrido]

         5. Por acção entrada em juízo em 15/07/2015, que veio a constituir o apenso I, proposta pelos ora autores contra os ora réus, aqueles peticionaram a separação da massa insolvente do prédio. A acção foi indeferida liminarmente por despacho de 08/09/2015, do qual foi interposto recurso, tendo a apelação sido julgada improcedente, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 05/05/2016; interposto recurso deste ac. do TRL, o STJ, por ac. de 08/11/2016, negou provimento ao mesmo [este ponto resume 3 pontos de factos constantes da decisão recorrida, síntese feita por este TRL]

e as seguintes considerações:

         As partes, a causa de pedir e o pedido desta acção são os mesmos que da acção do apenso I, pelo que apreciar o pedido deste apenso seria colocar o tribunal perante a possibilidade de revogar uma decisão judicial já transitada em julgado e, simultaneamente, permitir que os autores intentassem sucessivamente acções até lograrem obter decisão favorável; ou seja, o prosseguimento dos autos colocaria o tribunal na situação que o legislador pretendeu acautelar prevendo o instituto do caso julgado, que é de conhecimento oficioso e obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, importando o indeferimento liminar (arts. 580, 581, 576, n.ºs 1 e 2, 577-i, 578 e 590/1, do Código de Processo Civil).

            E o despacho acrescenta:

         Ainda que assim não se considerasse, uma vez que a apreensão do imóvel ocorreu antes do decurso do prazo para as reclamações de créditos, o meio próprio de que os autores dispunham para exercer o direito à separação/restituição dos bens apreendidos no processo de insolvência era a reclamação a dirigir ao Sr. administrador da insolvência no prazo fixado na sentença para as reclamações de créditos, pelo que, não havendo assim procedido, quando a presente acção entrou em juízo já se havia precludido o direito de separação/restituição dos bens.

                                                      *

            Os autores recorrem deste despacho – para que seja substituído por outro que determine que a acção prossiga – dizendo que não se verifica o caso julgado nem o seu direito precludiu.

            A Massa Insolvente contra-alegou, no sentido da improcedência do recurso.

                                                      *

            Questão que importa decidir: se a petição não devia ter sido liminarmente indeferida, quer com base no caso julgado quer com base na caducidade.

                                                                 *

                                           Do caso julgado

              Dizem os autores quanto a isto:

  1. […N]a petição os autores requere[ram] a separação de um bem imóvel da massa insolvente, invocando a inexistência jurídica do negócio de aquisição a favor do insolvente e reclamando a propriedade do bem imóvel.

         […]

  1. Não se verifica a excepção de caso julgado, na medida em que a causa de pedir no presente processo e no apenso I não é a mesma: enquanto nos presentes autos se invoca a inexistência jurídica, por não ter havido declaração de compra por parte do insolvente, no apenso I requeria-se a simulação da declaração de aquisição de vários negócios jurídicos.
  2. Não se pode confundir o pedido de simulação de um negócio com o pedido de inexistência do mesmo, porquanto, o facto jurídico que está na base de ambos os pedidos é distinto.
  3. Apesar de em ambos os processos se reclamar um direito de propriedade, neste tipo de processos, como entendia Alberto dos Reis e de acordo com o ac. do STJ de 15/01/2004, o direito de propriedade na acção real por excelência aparece, não como causa de pedir mas como objecto da acção, sendo a causa de pedir o fundamento ou facto jurídico que serve de base ao pedido.
  4. Acresce que no âmbito do apenso I, a questão de mérito nem tão pouco foi apreciada pelo tribunal a quo, não podendo dizer-se que já foi julgada.
  5. E nesse apenso o STJ já se pronunciou, considerando não haver caso julgado.
  6. Não existe, portanto, identidade da causa de pedir, nem o tribunal a quo fundamenta devidamente que haja, limitando-se a afirmar que sim, não havendo caso julgado, inexistindo uma situação de litispendência, não havendo qualquer excepção nos presentes autos.
  7. A decisão proferida pelo tribunal a quo viola a norma do art. 581 do CPC, na medida em que, não havendo identidade da causa de pedir entre dois processos, não se verifica efeito de caso de julgado.

                 A Massa contra-alegou defendendo a improcedência do recurso, lembrando, entre o mais, que o ac. do STJ transitou em julgado, não tendo os autores invocado qualquer inconstitucionalidade, razão pela qual formou-se caso julgado, excepção que não poderá deixar de ser declarada, sob pena dos autores poderem estar constantemente a intentar acções de restituição e separação de bens, ainda que com argumentos e fundamentos distintos, o que constituiria um ataque grave aos princípios da certeza e segurança jurídica e que, contrariamente ao que os autores afirmam nesta nova PI, os bens imóveis em causa foram vendidos ao insolvente, tendo inclusive sido afirmado noutro processo judicial (proc. nº 1856/03.0TBLSB, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de O) isso mesmo, atestando que as vendas que agora pretendiam pôr em causa foram efectuadas e queridas por si. Escrituras que no apenso I não foram postas em causa, nem sequer foi invocada algum tipo de irregularidade, mas que num ápice passaram a ser falsas e (alegadamente) juridicamente inexistentes.

            Decidindo:

            Aquilo que está em causa, nesta parte, é saber se a causa de pedir é a mesma nas duas acções, a do apenso I e a deste apenso J.

            A decisão recorrida diz que sim, remetendo implicitamente para as petições iniciais respectivas.

            Quanto a esta acção (apenso J) a alegação dos factos já foi resumida acima, no relatório deste acórdão.

            Quanto à petição inicial do apenso I tratou-se do seguinte (os §§ que se seguem complementam o ponto 5 dos factos tidos em conta pela decisão recorrida):

         Os autores intentaram a acção expressamente ao abrigo do art. 146 do CIRE e aí dizem que são donos do prédio, bem como de um outro, rústico, por os mesmos terem vindo à sua posse há mais de 20 e até 30 anos, por compra, tendo sido apenas registado o rústico já que a construção estava em curso à data, construção essa levada a cabo pelos autores, tendo sido eles quem, desde que adquiriram esses prédios até ao dia de hoje, o têm possuído com as características necessárias à usucapião do direito de propriedade; devido a problemas que tiveram com uma sociedade de que foram sócios, designadamente por dívidas que foram contraídas na sequência de avais prestados, no início da década de 2000, começaram a ter os credores a tentarem penhorar-lhes os bens, pelo que, em 2001, colocaram o prédio rústico em nome da ré D-Lda, sociedade essa controlada pelo autor que dispõe de poderes de representação da mesma, agindo como seu único dono; a venda foi efectuada sem que os autores ou a sociedade tivessem querido vender ou comprar; ou seja, foi simularam a venda, não tendo sido efectuado pagamento de qualquer preço; mais tarde, devido a um assunto referente a um alegado mútuo contraído pelos filhos dos autores, a D-Lda foi accionada judicialmente, pelo que os autores, sabendo que nenhuma razão existia à pessoa que os accionava, tentaram acautelar o prédio através de acordo com o agora insolvente (amigo de longa data dos filhos dos autores), que consistia em eles colocarem, primeiro, os dois prédios em seu (deles, autores) nome e depois simulariam a venda ao agora insolvente, continuando os autores a ser os donos dos mesmos e na posse deles, o que fizeram (quanto ao urbano depois de o terem conseguido registar em seu nome invocando a usucapião, conforme doc. 58 que identificam como a escritura de justificação de 02/04/2004); entretanto, os autores tiveram conhecimento que o agora insolvente começou a ter problemas, pelo que, depois de efectuarem um registo dos seus prédios em nome de outra sociedade, colocaram-na depois em nome do réu E, e depois em nome da ré F-Lda, mas tudo através de negócios simulados, sem pagamento de qualquer preço e para proteger o seu património; terminam pedindo, no que agora importa, que sejam declarados os únicos e legítimos proprietários dos prédios; que todas aquelas vendas foram simuladas e nulas; e que, em consequência, seja ordenada a separação da massa dos dois prédios.

            Assim, pode-se agora concluir que a acção intentada pelos autores, quer no apenso I quer neste apenso J, é uma acção para a restituição/ /separação de bens da massa, ao abrigo do art. 146/2 do CIRE. A pretensão que importa, para o caso, é pois a de restituição/separação de bens. Em ambos as acções – dos apensos J e I – tal pretensão tem por base o facto de os autores serem os proprietários do prédio. Estamos pois perante uma acção real, em que os autores querem a restituição/separação da massa com base no direito de propriedade. Assim, a causa de pedir desta acção é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade (art. 580/4 do CPC – Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. III, 3ª ed, reimpressão de 1981, Coimbra Editora, págs. 122-123). Esse facto jurídico – o único que os autores podem invocar realmente nas duas acções, por mais que eles invoquem outros factos que não têm relevo jurídico, por não concretizados: venda, doação e construção – é a usucapião, invocada expressamente na escritura de justificação pública de 2004 e que lhes permitiu o registo do prédio.

            Assim, claramente, a causa de pedir é a mesma nas duas acções. As referências à gestão de negócios e falta de ratificação no caso da acção deste apenso J e da simulação/nulidade das vendas no caso da acção do apenso I, são apenas, no que importa, a defesa antecipada dos autores à excepção que sabiam que a massa insolvente ia deduzir na contestação. Ou seja, são a impugnação antecipada dos factos que serviam de base à excepção deduzida na contestação. Não são a causa de pedir a restituição/ /separação.  

            Pelo que, sendo também os mesmos os pedidos e as partes – o que aliás não é posto em causa pelos autores -, teríamos assim a tripla identidade exigida pelo art. 580 do CPC para a procedência da excepção do caso julgado, ao contrário do que os autores defendem no recurso.

            No entanto, os autores dizem que aquilo que foi decidido no apenso I foi a absolvição da instância dos réus; não teria, por isso, havia uma decisão de mérito; e por isso não há caso julgado.

            Veja-se melhor (os §§ que se seguem servem de complemento ao ponto 5 dos factos tidos em conta pela decisão recorrida):

         A petição inicial da acção do apenso I foi liminarmente indeferida (art. 590/1 do CPC) com o seguinte fundamento: os autores tinham o prazo de 30 dias (fixado na declaração de insolvência) para requerer a separação de bens (art. 141 do CIRE); ao caso não se aplica o art. 146/2 do CIRE porque este rege para os casos de apreensão tardia de bens (como decorre da necessária conjugação com o disposto nos arts. 141 e 144 do CIRE – neste sentido Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2ª ed., Quid Juris, pág. 585) e no caso o prédio foi apreendido no mesmo dia da publicação da declaração de insolvência (12/10/2006); ou seja, quando a acção do apenso I entrou em juízo, já havia precludido o direito de separação/restituição; assim sendo, por ter dado entrada após o período concedido pelo legislador, a acção seria manifestamente improcedente; está em causa uma situação de caducidade de conhecimento oficioso, nos termos do art. 333/1 do CC (neste sentido, ac. do STJ de 29/11/2011, agravo 3587/01).

         O TRL, por acórdão de 05/05/2016, sem se pronunciar sobre o fundamento aduzido pela 1ª instância (que considerou prejudicado pelo que decidiu), considerou que a acção do apenso H não fez o caso julgado material a que se refere o art. 619 do CPC porque este contempla as situações das sentenças e dos despachos saneadores que decidam do mérito da causa, e a decisão do apenso H é uma decisão processual não de mérito; mas como essa decisão se pronunciou também expressamente sobre o prazo legalmente imposto para a propositura da acção, considerando que o mesmo estava ultrapassado, fez caso julgado formal, ou seja, tem força obrigatória dentro do processo, não sendo possível cumprir-se qualquer decisão posterior que com ela seja contraditória e incide sobre a mesma questão processual (art. 625/2 do CPC). Assim, considerou que procedia a excepção de caso julgado, mantendo o despacho recorrido na parte que absolveu os réus da instância [sic], embora com fundamento diferente (proc. 2702-06.9TBALM-I.L1-6).

         O STJ, por sua vez, por acórdão de 08/11/2016, proc. 2702/06.9TBALM-L.L1.S1, considerou que não havia caso julgado formal porque não pode sustentar-se que duas demandas processadas por apenso a um mesmo processo de insolvência sejam a mesma relação processual: entre elas ocorre total autonomia, como reflexo da autonomia que não pode deixar de reconhecer-se entre ambos os mencionados processos; o que há é a caducidade do direito, como tinha decidido a 1.ª instância, estava pressuposto na decisão do TRL e decorria do regime do CIRE para a formulação do pedido de separação de bens da massa insolvente, um regime bifurcado como dimana da conjugação do preceituado nos arts. 141/1-c, 144/1 e 146/1, todos do CIRE:

         – se os bens em causa foram apreendidos dentro do prazo fixado, na sentença que decreta a insolvência, para a reclamação de créditos, o mencionado pedido de separação deve ser formalizado através de correspondente reclamação efectuada dentro do sobredito prazo;

         – se tais bens foram apreendidos, depois de findo o prazo fixado para as reclamações, o respectivo pedido de separação deverá constar da acção a instaurar com tal desígnio, nos termos estatuídos no art.º 146.º do CIRE.

         No caso dos autos, continua o STJ, é gritante e manifesto que a instauração da presente acção pretendeu acolher-se à sombra do preceituado no citado art. 146/1 do CIRE, sendo certo que, nas decisões das instâncias, foi expressamente detectada e ponderada a extemporaneidade daquela instauração (o que, igualmente já havia ocorrido no sobredito apenso H, reportadamente à acção, aí, em apreço).

         E prossegue: fora, pois, de qualquer dúvida que, tendo os prédios objecto dos autos sido apreendidos para a massa insolvente, na própria data da publicação da sentença que decretou a insolvência – 15/10/2005 [é lapso: quis-se escrever 2006] – o pedido de separação dos mesmos da massa insolvente deveria ter sido formalizado através da reclamação mencionada no art. 141/1-c do CIRE, no prazo de 30 dias fixado na sentença para a reclamação de créditos. 

         No entanto, tal pedido só veio a ocorrer em 15/07/2015, data da instauração da presente acção, o que inexoravelmente inquina esta de extemporaneidade.

         Ora, a caducidade, tendo a natureza de excepção peremptória, imporia a absolvição do pedido. No entanto, como o ac. do TRL decretou a absolvição da instância dos réus e os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso (art. 635/5 do CPC), quedou-se pela simples negação da revista, porquanto a absolvição do pedido traduziria uma reformatio in pejus do ac. do TRL. E frisou que o fazia com a aduzida fundamentação.

            Em suma, no apenso I está decidida a absolvição da instância dos réus com base na caducidade do direito de requerer a separação de bens.

            Esta decisão já faz julgado?

            Não vale dizer, como o fazem os autores, que o STJ já decidiu que não há caso julgado: O STJ estava a pronunciar-se, evidentemente, sobre a decisão do apenso H e não sobre os efeitos que a sua própria decisão, proferida no apenso I, produziu.

            Posto isto, veja-se:

            Miguel Teixeira de Sousa diz (Estudos sobre o novo processo civil, Lex 1997, 2ª ed., págs 569/570) que:

         “As decisões proferidas numa acção pendente podem ser decisões de forma, se incidem sobre aspectos processuais, ou decisões de mérito, se apreciam, no todo ou em algum dos seus elementos, a procedência ou impro­cedência da acção. Esta distinção reflecte-se no respectivo valor de caso jul­gado: em regra, as decisões de forma adquirem apenas o valor de caso julgado formal (art. 672; cfr., v. g., STJ – 28/6/1994, CJ/S 94/2, 159); pelo contrário, as decisões de mérito são, em princípio, as únicas que são susceptíveis de adquirir a eficácia de caso julgado material (art. 671, n° 1).

         Isto significa que tanto as decisões de forma, como as decisões de mérito, são, quando transitadas, vinculativas no próprio processo em que foram profe­ridas, mas que só as decisões de mérito podem ser obrigatórias num outro processo. Esta diferente eficácia dessas decisões (decorrente do respectivo caso julgado) explica-se pelo seu próprio objecto: como as decisões de forma recaem sobre aspectos processuais (como, por exemplo, a apreciação de um pressuposto processual ou a admissibilidade de um meio de prova), a sua eficácia res­tringe-se ao processo onde foram proferidas; pelo contrário, as decisões de mérito confirmam ou constituem situações jurídicas, que podem ser relevantes para a apreciação ou constituição de outras situações (numa hipótese de relação de prejudicialidade) e não podem ser contrariadas ou negadas noutro processo.”

            A propósito do art. 672 do CPC antes da reforma de 2013, dizia Lebre de Freitas:

        “[O] despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é assim apenas o que se pronuncia sobre os elementos subjectivos e objectivos da instância […] e a regularidade da sua constituição […], mas também todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito.” (pág. 716, do CPC anotado com Montalvão Machado e Rui Pinto, vol. 2.º, 2ª ed., Coimbra Editora, 2008).

            E mais à frente:

         “Quanto à absolvição da instância, tem sido questionado se alguma eficácia extraprocessual lhe deve ser reconhecida, de modo a impedir que, em outro processo com o mesmo objecto, seja de novo apreciada a excepção dilatória julgada procedente no primeiro, quando nele a falta do pressuposto se mantém. Ver o n.º 2 da anotação ao art. 289 […]” (pág. 717).

            Na pág. 560, anotação 2 ao art. 289 do CPC, diz Lebre de Freitas (junto com João Redinha e Rui Pinto, Coimbra Editora, 2ª ed, 2008) depois de expor o regime dos efeitos das absolvições da instância:

        “Mas, segundo uma orientação doutrinária de peso, a repetição da causa com a falta do mesmo pressuposto que origina a absolvição da instância não deve ser admitida (Rosenberg-Shwab, Zivilprozessrecht, München, Beck, 1986, p.977), pelo menos quando esteja em causa um pressuposto que envolva interesses materiais, como é o caso da legitimidade (Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório, II, Almedina, 1982, p. 16).”

            Anselmo de Castro (págs. 14 a 16 da obra citada) diz:

         “Não há dúvida que os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro no processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo [caso dos despachos de mero expediente]. É o que dispõe o art. 672. Esta força obrigatória, dentro do respectivo processo, da decisão que recaia apenas sobre a relação jurídica processual, recebe a designação técnica de caso julgado formal.

         O caso julgado formal, que se constitui, como acabamos de ver, mediante sentença de mera forma, vem a traduzir-se no fenómeno da preclusão: a sentença, uma vez transitada, obstará a que a questão por ela resolvida seja novamente suscitada no mesmo processo, mas não impedirá que, em nova acção sobre o mesmo objecto (uma vez que sobre este, por definição, não chegou a recair sentença, não havendo, pois, lugar a caso julgado material), se profira decisão que lhe seja contrária. Num processo novo o juiz pode, portanto, decidir diferentemente e sem que as partes possam excepcionar com o caso julgado.

         Esta é a opinião dominante [cf. Alberto dos Reis, Anotado, III, págs. 96 e 97 e Anotado, V, págs. 157 e 158] e seguramente aquela que informou a nossa legislação processual de 1939, inspirada sob este aspecto em Chiovenda, não a tendo o código actual alterado.

         A razão justificativa que a doutrina costuma aduzir para corroborar a ideia de que em relação à generalidade dos pressu­postos não se forme caso julgado material, é a seguinte: «não tendo a sentença anterior recaído sobre o objecto essencial do litígio, não tendo atribuído a qualquer das partes os bens ou as vantagens substanciais a que aspirava, não há razão forte para dar estabilidade, fora do processo, à decisão proferida» [Alberto dos Reis, Anotado, III, pág. 97 e Anotado, V, págs. 157 e 158].

         Outros, pelo contrário, sustentam que a imutabilidade do caso julgado formal se alarga para fora do processo, pois que, se se absolveu da instância por certo fundamento e este se repete em novo processo, é lícito neste opor a excepção dilatória de caso julgado [Assim prof. Castro Mendes, Manual, pág. 458]. Nesta opinião só haveria que ressalvar, as decisões sobre competência, visto resultar, quer dos princípios gerais, quer de certo modo dos textos legais, que não está o juiz impedido no novo processo de se pronunciar quanto à competência divergentemente da decisão anterior.

         Como resolver?

         Importa desde logo tomar em conta o ambiente em que foi elaborado o Cód. de Proc. Civil de 1939, que no ponto em questão não sofreu qualquer mudança, o qual impõe optar-se pela solução propugnada por Alberto dos Reis, pois é a que corresponde ao ambiente em que foi forjado e surgiu tal código.

         E, por outro lado, que não estando em causa interesses materiais nada contra-indica que a lei seja interpretada no sentido de afastar o caso julgado material, e o juiz possa em nova acção pronunciar divergentemente [a situação não será natural para com o mesmo juiz, mas já o será perante outro juiz].

         Haverá que abrir, apenas uma limitação para pressupostos em que confluam a forma com o fundo da causa, como a legi­timidade e o interesse em agir. Então, co-envolvendo já a decisão interesses materiais não repugna reconhecer-se-lhe força de caso julgado material.

         Será o caso, por exemplo, de serem julgadas partes ilegí­timas o autor ou o réu, que deverão haver-se como impedidos pelo caso julgado de renovarem a acção, sem mudança ou superveniência da causa petendi, ou de a acção terminar por falta de interesse processual, sem que esse interesse surja poste­riormente.”

            Assim, a razão de ser da eficácia meramente formal do caso julgado das decisões de absolvição da instância tem a ver com o facto de se tratarem de decisões de forma, que incidem unicamente sobre aspectos processuais, e não decisões sobre questões de mérito. Pelo que não vale para decisões que envolvam interesses materiais, que recaiam sobre o objecto essencial do litígio, negando a uma parte o direito que ela se arroga, por ele ter caducado.

            Ora, perante a situação criada pelas decisões do TRL e do STJ não há dúvida de que estamos perante uma absolvição da instância peculiar que tem por fundamento uma caducidade do direito, ou seja, claramente, uma questão de mérito e não processual, uma decisão que envolve interesses materiais e não processuais.

            No caso, por isso, aquela decisão do STJ não pode deixar de impedir a propositura de uma nova acção exactamente igual à anterior, agora em 2017, uns meses depois do STJ ter dito que se verificava a caducidade, isto é, que a acção de 2015 era gritantemente extemporânea.

            Aqui, pois, há que reconhecer força de caso julgado material à decisão do STJ de Nov/2016 que decidiu de mérito, embora mantendo a forma de absolvição da instância.

            É uma decisão que nega um direito à parte, que não se pronuncia sobre a relação processual mas sim sobre a questão de mérito, isto é, que entende que se verifica a excepção da caducidade do direito, depois de ponderar os interesses materiais das partes.

            Veja-se, aliás, a posição de Alberto dos Reis (CPC anotado, vol. II, 3.ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 393 ≈ pág. 157 do vol. V do CPC anotado, em comentário ao então art. 672 do CPC ≈, no que importa, ao art. 620 do CPC depois da reforma de 2013), particularmente relevante porque Alberto dos Reis representa, como se viu, a posição tradicional, quanto à hipótese de o autor não reagir a um indeferimento liminar baseado no facto de a acção ter sido proposta fora de tempo ou quando, por outro motivo, for evidente que a pretensão do autor não pode proceder, ou seja, nalguma das hipóteses previstas no art. 481-3º do CPC39 (que cabem na hipótese de indeferimento liminar prevista no art. 590/1 do CPC depois da reforma de 2013 que foi usada pelo despacho de indeferimento liminar proferido do apenso I):

         “c) O autor fica inactivo. Se o autor nem apresentar nova peti­ção nem interpuser recurso de agravo, o que se passa?

         – Passa-se isto: o despacho do juiz adquire, quanto ao autor, foros de caso julgado, formal ou material, conforme as circunstâncias. O processo termina em qualquer hipótese. Quanto a saber que pro­jecção terá o despacho para além do processo, isto é, a respeito de nova acção que o autor proponha contra o réu, há que atender à causa do indeferimento.

         Se o indeferimento se baseou no n.º 1, no n.º 2, ou no § 1°, o caso julgado tem carácter formal; na nova acção o tribunal não está vinculado ao conteúdo do despacho anterior. Se o indeferimento teve por base o n.º 3, estamos perante caso julgado material, a que se aplicará o disposto nos arts. 671 e 673.

         Por outras palavras: o despacho liminar, transitado em julgado, vale o mesmo que valeria julgamento idêntico proferido no despacho saneador ou na sentença final.

         Pode fazer-se o seguinte reparo: mal se compreende que no caso do n.º 3 o despacho inicial produza efeito tão enérgico e perigoso contra o autor, quando é certo que o § 2.º se recusou a atribuir efeito semelhante contra o réu, dado o caso de o agravo obter provimento.

         O reparo não procede. Estamos perante a hipótese de o autor não reagir contra o despacho; a sua atitude é a de conformidade com a doutrina contida nele; aceitou-a; não pode queixar-se.”

            Pensa-se que o resultado prático seria o mesmo se se seguisse a posição de Miguel Teixeira de Sousa que, embora sem falar em caso julgado material ou numa excepção de caso julgado, admite a eficácia externa extensível do caso julgado formal a processos posteriores de uma decisão de forma proferida num processo antecedente, vinculando o juiz à identidade de julgamento de certo objecto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre o mesmo objecto desde que haja identidade de individualização da acção (O objecto da sentença e o caso julgado material, BMJ 325, págs. 155 a 159), como no caso não se poderia deixar de entender haver.

             Assim, há que confirmar a decisão recorrida, que julgou verificado o caso julgado.

         E com isto fica prejudicada a apreciação do outro fundamento invocado pela decisão recorrida, bem como os argumentos invocados pelos autores para o pôr em causa e os utilizados pela massa para defender a decisão recorrida.

                                                           *

            Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.       

            Custas pelos autores.

            Lisboa, 13/07/2017

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto