AECOP do Juízo local cível de Lisboa
Sumário:
A representação perante terceiros de uma associação sem fins lucrativos cabe, em primeiro lugar, a quem os estatutos determinarem (art. 163/1 do CC). Pelo que, se não se alegar e provar que a representação se fez nos termos que constam do estatuto, a associação não fica vinculada, sem prejuízo da aplicação de outros institutos e figuras jurídicas se se alegarem e provarem os respectivos pressupostos.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
T-SA (= autora), requereu uma injunção contra O-Associação sem fins lucrativos (= ré), pedindo que esta fosse notificada para lhe pagar 7196,80€, acrescida de juros de mora, alegando para o efeito que, no exercício da sua actividade comercial, lhe forneceu tapeçarias, que esta lhe tinha encomendado e adquirido, sendo o crédito titulado pelas facturas respectivas, vencidas e não pagas.
A ré deduziu oposição, excepcionando a sua ilegitimidade com base na impugnação de todos os factos alegados pela autora, concluindo pela sua absolvição da instância ou do pedido. A ré dizia, no meio da sua oposição, que “a autora devia identificar a(s) pessoa(s) que procedeu(eram) à alegada encomenda e recepção das tapeçarias, por forma a poder(em) ser chamada(s) à demanda e, bem assim, juntar aos autos as ordens das alegadas encomendas, as guias de remessa das mesmas, identificar em que local [e] a quem as tapeçarias foram entregues a descrever as tapeçarias em apreço”. Apresentou, com a oposição, uma cópia da escritura de constituição da ré, com os respectivos estatutos, bem como uma cópia de uma acta da AG da ré.
Remetida a injunção ao tribunal e convertida em acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias superior à alçada da 1.ª instância, foi proferido o seguinte despacho: notifique a autora para responder aos esclarecimentos pedidos pela ré, dispondo, após, a ré, de 10 dias para exercício do contraditório; ao mesmo tempo, foi designada data para julgamento.
Na sequência, a autora, dizendo ter sido notificada do despacho bem como da contestação da ré, veio prestar os esclarecimentos pedidos pela ré e exercer o seu direito ao contraditório, apresentando uma descrição da forma como as coisas se teriam passado, num articulado com 22 artigos com matéria de facto, concluindo pela improcedência da excepção da ilegitimidade.
Depois a ré, dizendo-se “notificada da resposta à oposição apresentada pela autora”, veio, “ao abrigo do princípio do contraditório”, apresentar um novo articulado, “pronunciando-se sobre as alegações e documentos constantes da aludida resposta.”
Realizado o julgamento foi proferida sentença condenando a ré a pagar à autora 3096,36€, acrescida de juros vincendos [desde a data de vencimento] à taxa de juro aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais até integral pagamento, e absolvendo-a do demais peticionado.
A ré recorre desta sentença – para que seja revogada [e substituída por outra] que a absolva de [todo] o pedido -, terminando as alegações com 31 conclusões que reproduzem no essencial o corpo das alegações em ostensiva violação do disposto no art. 639/1 do CPC, conclusões em que argui a nulidade da sentença recorrida, impugna a decisão da matéria de facto e considera que os factos provados não permitem a sua condenação.
A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa decidir: se a sentença é nula; se os factos devem ser outros; se a ré não podia ser condenada nem sequer em parte do pedido.
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Da nulidade da sentença
Quanto a isto diz a ré, em síntese, que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre a excepção de ilegitimidade deduzida pela ré, incorrendo em nulidade (arts. 30, 608/2 e 615/1-d do CPC).
A autora defende que não se verifica a nulidade, porque o tribunal se teria pronunciado, expressamente, sobre a excepção da ilegitimidade da ré, quando disse, na fundamentação de direito da sentença, que “… quanto ao facto alegado de a intermediária não pertencer aos órgãos sociais da ré, aquela actuava no interesse desta, sendo esta responsável pelos auxiliares que utiliza nas suas actividades…”, bem como ao dar como provado o facto do ponto 2 e ao fundamentar a sua convicção quanto a este facto, dizendo o que disse a propósito dele com base no depoimento da testemunha que invoca. Por outro lado, a autora invoca ainda o depoimento/declarações de outra pessoa, como se verá abaixo, para defender a improcedência da excepção.
Decidindo:
A excepção de ilegitimidade, levantada pela ré, confunde um pressuposto processual com a questão da improcedência da acção. Se a ré não tiver praticado os factos que a autora lhe imputa, a acção naufraga, por falta dessa prova, mas a ré não deixou de ser parte legítima, já que era parte na relação material tal como configurada pela autora na petição inicial (art. 30/3 do CPC). Basta, por outro lado, imaginar que a ré não deduzia oposição ao requerimento de injunção, caso em que seria conferida força executiva àquele requerimento (art. 14/1 do regime anexo ao DL 268/98, de 01/09). Logo, é evidente que tinha interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa “procedência” advinha (art. 30/2 do CPC).
Ora, compreende-se que a sentença, perante a evidência de que a questão era de fundo e não de forma, se tivesse esquecido de resolver expressamente a excepção deduzida, embora o tenha feito de forma formal e tabelar, sem qualquer fundamentação. E embora se pudesse defender que o que existe é uma falta de fundamentação, a verdade é que a decisão tabelar, de declarar que as partes são legítimas, sem qualquer referência à excepção deduzida pela ré, leva a considerar que se trata realmente de não conhecimento de uma questão, em vez de falta de fundamentação da decisão.
E a sentença esqueceu-se, realmente de conhecer daquela questão, não tendo, pois, a autora, razão, quando defende o contrário, com base naquilo que a sentença disse para fundamentar a procedência da acção.
Como a sentença tinha de se pronunciar, formal e concretamente, sobre a excepção de ilegitimidade, não o podendo fazer do modo tabelar como o fez, sem referência à questão colocada pela ré e sem fundamentar a decisão, reconhece-se então que se verifica a nulidade invocada (arts. 608 e 615/1-d do CPC), o que agora se declara e supre, ao abrigo do art. 665/1 do CPC, declarando improcedente a excepção de ilegitimidade passiva deduzida pela ré, com a fundamentação supra aduzida.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Para resolver as outras questões que importa decidir, interessa ter presente que no tribunal recorrido se deram como provados os seguintes factos [adiante serão acrescentados, com base na parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, os pontos 6 e 7, sendo que esta numeração faltava na decisão recorrida]:
1. A autora é uma sociedade cujo objecto consiste na comercialização e industrialização, importação e exportação de alcatifas, carpetes e tapeçarias e demais revestimentos para o chão, tectos e paredes, bem como a prestação de serviços com o mencionado objecto.
2. Em 21/06/2010 esta sociedade através de S e de M, acordou na cedência de duas tapeçarias de propriedade da autora: carpete persia sarooq e carpete india hatchilou.
3. As tapeçarias foram cedidas à ré para uso nas suas instalações, pelo período de 24 meses, com opção de compra no fim do referido prazo.
4. A carpete india extraviou-se das instalações e a carpete persia foi entregue nas instalações da autora, pela ré.
5. A autora emitiu as facturas n.º 364/1212120516, emitida em 29/05/2013, vencida em 30/05/2013 no montante de 3338,28€ e n.º 364/12120559, emitida em 05/07/2013, vencida em 06/07/2013, no montante de 3808,52€, no montante global de 7196,80€.
8. Interpelada pela autora, a ré não procedeu ao pagamento das facturas.
O tribunal recorrido acrescentou ainda: nada mais resultou provado.
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A ré tem as seguintes conclusões relativas à impugnação de matéria de facto, que a seguir, no essencial, se transcrevem na íntegra, embora com numeração própria, de modo a que fique comprovado o que se dirá sobre elas logo após cada uma delas e também de modo a evitar-se repetições:
1. Da prova produzida – a parca prova documental junta aos autos e a testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento – ficou indubitavelmente demonstrado que a cedência das tapeçarias foi solicitada por S; tal facto ficou sobretudo demonstrado, pelo depoimento da testemunha J, que esclarecidamente assumiu que era habitual a cedência de tapeçarias à cliente S, com vista à sua eventual compra e enquanto estratégia comercial da autora.
Quanto a isto, diga-se que o art. 640/1-b do CPC dispõe que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: […] os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
E o art. 640/2-b do CPC acrescenta: no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso […].
Ora, como resulta da leitura desta conclusão, a ré faz uma invocação genérica da prova documental e testemunhal produzida, isto é, de toda a prova produzida no processo, sem qualquer precisão dos meios de prova em concreto. E em relação à prova testemunhal que em concreto invocou, não indicou sequer quando e onde é que foi produzido esse depoimento, nem muito menos as passagens da gravação em que se funda o seu recurso. Sendo que não dizia que era deste meio de prova que resultava o facto, mas sim do conjunto genérico da prova produzida.
Há assim a completa omissão – quer na conclusão quer no corpo das alegações que, como já decorre do que foi dito acima, nada acrescenta àquela – do cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640/1-b e 2-b do CPC sob pena de rejeição, pelo que cumpre rejeitar, nesta parte (esta conclusão), a impugnação.
2. Conforme também o demonstrado através do contrato de constituição de associação e da acta número dois extraída do livro de actas da ré, e do depoimento das testemunhas M e P, S em momento algum fez parte dos órgãos de direcção da ré, não obrigando a ré por quaisquer actos por si praticados;
Quanto a esta conclusão, pelo que já foi dito acima, as referências às testemunhas, nos termos utilizados, são inócuas. Quanto aos dois documentos invocados em concreto, trata-se, o primeiro, de um documento autêntico e o segundo de um documento particular que não foram postos em causa. Eles provam (arts. 362, 363/2, 369 a 372, quanto ao primeiro, e 362, 363/2, 373/1, 374/1 e 376 quanto ao segundo, todos do CC) dados de facto que permitirão discutir, a nível de direito, quem é que tinha poderes para vincular a sociedade à data dos factos e isto foi alegado pelas partes nos autos, pelo que tem interesse consigná-los. Assim, não pode deixar de se considerar que a decisão recorrida errou ao dizer que mais nenhuns factos se provaram, o que se corrigirá agora, consignando-se o que consta daqueles documentos na medida em que possa ser aproveitada para a decisão das questões postas. De resto, tudo isto já seria considerado oficiosamente ao abrigo dos arts. 607/4 e 663/2, ambos do CPC.
3. Pelo que forçoso será concluir que a ré nunca encomendou qualquer tapeçaria, seja a que título for, não tendo a autora demonstrado o contrário;
Quanto a isto, a ré limita-se a pretender tirar uma conclusão do que antes afirmou a título de impugnação; a nível de impugnação da decisão facto, isto não tem nenhum relevo; a nível de direito, trata-se apenas de algo que a ré vai repetindo e que será oportunamente considerado a esse nível.
4. Para prova de tal cedência com opção de compra, a autora apresenta uma carta datada de 21/06/2010, sem que tenha demonstrado o efectivo envio, na medida em que tal carta, a existir, não foi enviada registada e/ou com qualquer aviso de recepção.
Quanto a isto, a ré faz referência a uma carta que poderá ter servido de base à convicção do tribunal para dar como provado parte do facto do ponto 2; a ré põe em causa que essa carta possa servir para prova desse facto, mas o tribunal não diz ter-se baseado só nela para o dar como provado e a ré nada diz quanto às outras provas invocadas pelo tribunal; ora, a circunstância de a carta não servir, só por si, para prova daquele facto, não demonstra, nem sequer sugere, que o tribunal tenha incorrido em erro de julgamento desse facto.
5. Assim é forçoso concluir que, tendo sido a Srª S a receber as tapeçarias a título de empréstimo pela autora e a colocá-las posteriormente nas instalações da ré, esta era completamente alheia a tal convenção, desconhecendo absolutamente a proveniência das aludidas tapeçarias.
Quanto aos factos que constam desta conclusão, a ré não invoca qualquer elemento de prova, pelo que se impõe, face às normas já invocadas, a rejeição desta impugnação. É que embora eles também se apresentam como uma conclusão de facto decorrente necessariamente do que antes a ré tentou que ficasse provado, a verdade é que, nem decorreriam necessariamente deles, nem eles ficaram provados. Quanto ao direito, trata–se apenas de nova repetição.
6. Como se extrai do depoimento da testemunha M, sendo a ré uma associação sem fins lucrativos, foram os respectivos associados, de forma benemérita, a mobilar as instalações da ré;
Quanto aos factos que constam desta conclusão, a ré não dá cumprimento aos ónus já referidos acima, pelo que se impõe a rejeição desta impugnação. E, já agora, Ma não pode ter sido testemunha (já que foi a signatária da procuração da ré ao seu mandatário judicial) nem está assim referenciada na acta.
7. A ré sempre se convenceu que as tapeçarias colocadas nas suas instalações pela Sr.ª S esta lhe pertenciam e decorriam de um mero acto benemérito daquela para embelezar o espaço da associação;
8. Face ao exposto, nunca a ré [pode] ser condenada ao pagamento de bens (tapetes) que nunca adquiriu por qualquer via ou contrato e que apenas aceitou que fossem colocados nas suas instalações, uma vez que tinha formado a convicção que as tapeçarias eram propriedade da Sr.ª S, que por vontade sua as tinha colocado nas instalações da ré;
Quanto aos factos que constam destas conclusões (tudo o que consta de 7 e parte sublinhada do que consta de 8, de forma parcial e triplamente repetida) a ré nem sequer indica quaisquer elementos de prova, pelo que se rejeita a impugnação. Quanto à parte de direito trata-se apenas de mais umas das inúmeras repetições.
9. […] partindo da premissa que [S] o fez no seu próprio interesse e no domínio da sua esfera privada […]
Quanto aos factos que constam desta conclusão a ré nem sequer indica quaisquer elementos de prova, pelo que se rejeita a impugnação.
10. Conforme decorre do depoimento das testemunhas M e P, quando a ré foi alertada para a cedência das tapeçarias, disponibilizou-se, de imediato e nas pessoas dos seus representantes, a devolvê-las, tendo procedido à imediata devolução da tapeçaria persia, desconhecendo o paradeiro da tapeçaria india e não tendo logrado localizá-la nas suas instalações.
Quanto aos factos que constam desta conclusão, a ré não dá cumprimento aos ónus já referidos acima, pelo que se impõe a rejeição desta impugnação.
Assim, da impugnação da decisão da matéria de facto, aproveita-se apenas o que respeita aos factos que se podem extrair dos dois documentos referidos na conclusão 2.
Quais sejam [dá-se-lhes a numeração que faltava na decisão recorrida]:
Da escritura notarial e documento complementar à mesma decorre que:
6. A 25/01/2010, M, casada, residente na Rua X, e J, casado, residente na morada da primeira, disseram constituem uma associação de direito privado que é a autora, com duração por tempo indeterminado e sem fins lucrativos que se regerá pelos estatutos constantes do documento que fica a fazer parte integrante desta escritura. Do documento complementar, estatutos, constam, entre outros: art. 13.º: são órgãos da associação […] a direcção e o conselho fiscal. Art. 15.º Os membros dos órgãos da associação são eleitos por períodos de 4 anos, devendo proceder-se à sua eleição no mês de Outubro do ano a que disser respeito […]. Art. 20.º: A representação e gestão da associação são asseguradas por uma direcção composta por cinco membros, sendo um presidente, um vice-presidente, um tesoureiro e dois vogais, havendo dois suplentes. […] Art. 23.º, Representação perante terceiros: A associação obriga-se pela assinatura de dois membros da direcção, uma das quais deverá ser do presidente, do vice-presidente ou do tesoureiro. Art. 28.º O ano social corresponde ao ano académico.
Do documento acta n.º 2 resulta o seguinte:
7. A 19/08/2010, reuniu-se a Assembleia Geral da autora entre o mais para eleição dos corpos gerentes para o quadriénio 2010/2013. Aberta a sessão […] tomou a palavra o presidente da direcção: JP […] Entrando no ponto 2 da ordem de trabalhos, foi dada a palavra a FO […] que apresentou o regulamento geral proposto pela direcção eleita. Entrando no ponto 3 da ordem dos trabalhos foi apresentada a lista única para os órgãos sociais […] a qual foi deliberado aprovar por unanimidade e eleger os seguintes órgãos sociais: […] Direcção: presidente: JP […]; vice-presidente: JS […]; tesoureiro: JM […]; vogal: J; vogal: M; Conselho Fiscal: […] suplentes […] S. […]
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Das contra-alegações da autora
O art. 636 do CPC, sob a epígrafe de ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, dispõe, no seu n.º 2, que “pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.”
O art. 638/8 do CPC, dispõe que “sendo requerida pelo recorrido a ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636, pode o recorrente responder à matéria da ampliação, nos 15 dias posteriores à notificação do requerimento.”
E o art. 640/3 do CPC dispõe: O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.
Decorre destas normas que o recorrido, nas contra-alegações, terá que ter o trabalho de fazer ao menos algo parecido com um requerimento de ampliação de recurso, de forma perceptível para o tribunal e para a contra-parte e depois, na impugnação da decisão da matéria de facto, terá de cumprir os ónus que o art. 640 do CPC impõe ao recorrente, nos termos já referidos acima.
Posto isto, diga-se que também o recorrido, ou seja, a autora, apresenta umas alegações com inúmeros §§ com factos que vão para além do que constam dos facos provados na decisão recorrida, sem nunca dizer que está a impugnar a decisão da matéria de facto, ao não ter dado como provados tais factos, e sem nunca ter feito qualquer alusão à ampliação do objecto do recurso.
Assim, a dada altura diz que:
Outros negócios foram realizados com sucesso, de boa-fé, sempre com a intervenção de M, na qualidade de membro da direcção da ré, sem que a mesma tenha informado do contrário.
A autora não invoca, como se vê, qualquer elemento de prova neste sentido, pelo que é irrelevante aquilo que diz a propósito, como resulta daquilo que se disse acima sobre os ónus do art. 640/1-b e 2-b, do CPC.
Depois a autora diz:
Outrossim, como confessa nas suas declarações, M, era à data dos factos (2010-2013) vogal da direcção da ré, ao contrário do sustentado nas alegações de recurso. E acrescenta que este facto é igualmente comprovado, atento o teor da acta número dois, do livro de actas da ré, junta aos autos, cargo de direcção que aquela declarante continua a exercer até à presente data, como se pode comprovar pela assinatura aposta na procuração anexa aos autos. Por fim, diz-se que se retira igualmente do teor daquela acta que, a intermediária das relações comerciais entre a autora e a ré, S, era suplente do conselho fiscal da ré.
A referência àquilo que foi dito por M, sem observância dos ónus do art. 640/1-b e 2-b do CPC, já referido acima, é inútil. Já é aproveitável, no entanto, a referência à acta. Mas ela já foi utilizada acima.
A autora acrescenta ainda que:
Pese embora inicialmente tendo negado a existência do negócio, M, no seu depoimento, confessou ter conhecimento da cedência das tapeçarias e ter participado efectivamente no negócio.
Agora a M já presta um depoimento (a autora não diz se de parte se testemunhal), sem que a autora tente, sequer esclarecer a questão. E de novo sem que a autora observe os ónus impostos pelo art. 640/1-b e 2-b do CPC. Pelo que é irrelevante o que a autora diz a este propósito.
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Em suma, do que foi dito pelas partes sobre a decisão da matéria de facto, ou sobre os factos, aproveita-se apenas aquilo que resulta da escritura/documento complementar e da acta, o que este TRL já poderia/deveria fazer ao abrigo dos arts. 663/2 e 607/4, todos do CPC, mesmo que nada tivesse sido dito pela ré ou pela autora.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença fundamentou assim, nesta parte, a sua decisão, em síntese deste tribunal da relação (com apenas alguns cortes para evitar repetições):
Resulta dos factos provados que entre autora e ré se estabeleceram relações comerciais, no desenvolvimento das quais aquela disponibilizou a esta carpetes, para seu uso, com opção de compra no final do período de 24 meses.
Este conjunto de relações analisa-se manifestamente num ou mais contratos de compra e venda, por se poderem dar como certas a existência de proposta e aceitação.
Nos termos legais, o contrato de compra e venda define-se como sendo: «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço», artigo 874 do Código Civil.
Nos termos do art. 879 CC, a compra e venda tem como efeitos essenciais: a) a transmissão da propriedade ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; c) a obrigação de pagar o preço.
Da noção legal e dos efeitos essenciais infere-se o carácter sinalagmático do contrato, pois as prestações das partes funcionam em termos de correspectividade, são recíprocas e interdependentes, designadamente as de entrega da coisa e a de pagamento do preço.
A transmissão da propriedade da coisa dá-se, por via de regra, por mero efeito do contrato (art. 408/1 do CC), sendo de produção imediata, designando-se o contrato de compra e venda como um contrato real quoad effectum.
Mas a transferência do direito pode estar relacionada com outros factores, por força dos quais a transferência do direito real é diferida para momento posterior.
Ora, neste caso, enquadra-se na modalidade de venda a contento, prevista no art. 923 do CC, que não corresponde a um verdadeiro contrato de compra e venda, pois, na realidade, não se trata de uma verdadeira venda, porque não há contrato.
Como determina o artigo citado, existe uma simples proposta contratual, que o comprador aceitará ou não; o negócio jurídico só estará concluído depois de a proposta ter sido aceita.
Nesta modalidade de venda presume-se a existência de aceitação se o comprador, nos prazos contratuais ou legais, nada disser – art. 923/2 do CC.
Neste contrato ou contratos, a autora cumpriu a obrigação a que se encontrava adstrita: fornecimento dos produtos a cujo comércio se dedica (art. 879-b do CC), enquanto a ré não satisfez a correspectiva contraprestação: o preço (art. 879-c do CC), relativamente à tapeçaria que se extraviou (india), pelo que é responsável pelo pagamento do preço; sendo que, relativamente à tapeçaria persia, foi devolvida, interpretando-se este comportamento como não aceitação da proposta de compra.
Daqui resultou para a autora o direito de lhe exigir judicialmente a quantia que peticiona de 3096,36€, por força do preceituado no art. 817 do CC.
Em razão do exposto, a acção tem necessariamente de proceder parcialmente, pois, quanto ao facto alegado de a intermediária não pertencer aos órgãos sociais da ré, aquela actuava no interesse desta, sendo esta responsável pelos auxiliares que utiliza nas suas actividades.
[…]”
A ré diz que isto está errado pelo seguinte (cortam-se apenas algumas, nestas conclusões, das muitas repetições do que já consta acima):
- Em momento algum a ré encomendou, adquiriu ou demonstrou qualquer intenção expressa ou tácita de aquisição à autora de quaisquer tapeçarias, que tenham dado origem às facturas que carreou nos autos, ou sequer mandatou alguém ou algum empregado seu para o fazer.
- O facto de o tribunal a quo entender que “esta intermediária, actuava no interesse da ré, sendo por isso responsável pelos auxiliares que utiliza nas suas actividades”, não pode merecer qualquer acolhimento, uma vez que a ré só pode ser responsabilizada pelos actos praticados pelos seus trabalhadores no exercício das respectivas funções, segundo o que dispõe o código do trabalho.
- Não tendo sido aquela uma intermediária do negócio, mas sim a única contraparte do alegado contrato celebrado com a ré, e partindo da premissa que o fez no seu próprio interesse e no domínio da sua esfera privada, é forçoso concluir que a ré não pode ser responsabilizada pela actuação daquela, uma vez que não se trata aqui de actos praticados no exercício das suas funções.
- Julgando provados os factos [considerados como tais pela decisão recorrida], o que a ré refuta in totum, não se afigura estarmos aqui perante o instituto da compra e venda, previsto nos arts. 879 e segs. do CC, nem tão-pouco da modalidade de venda a contento.
- In casu não houve qualquer transmissão de propriedade, muito menos para a ré, pois se as condições convencionadas e alegadas pela autora previam que findos os 24 meses a contar da data da entrega das tapeçarias, estas fossem devolvidos caso não fosse exercida a opção de compra, nunca o quoad effectum, corolário do contrato de compra e venda, se podia ter verificado.
- Nestes termos, não tendo existido em momento algum a transmissão da propriedade para a ré, não impendeu sobre esta a obrigação da contraprestação do pagamento do preço.
Responde a autora que a sentença decidiu bem, desenvolvendo apenas o seguinte: no caso concreto ocorreu a transmissão da propriedade, porque a ré no prazo de 24 meses (prazo contratual estipulado) nada disse, tendo-se assim, por aceite a proposta de venda.
Decidindo
Apesar da descrição dos factos provados ser algo confusa, dela resulta que a autora acordou [com a ré], em 21/06/2010, através de S e de M, na cedência de duas tapeçarias da autora à ré para uso [pela ré] nas instalações da ré, pelo período de 24 meses, com opção de compra, pela ré, no fim do referido prazo.
Acordar com uma ré pessoa colectiva através de duas pessoas físicas é uma afirmação conclusiva que estava na dependência da prova de factos que permitissem essa conclusão, ou seja, factos que demonstrassem a existência de poderes representativos da ré por parte daquelas pessoas.
Ora, nos factos provados nada consta quanto a isso e na sentença até se sugere o contrário, porque uma daquelas pessoas – aquela que a ré diz ser intermediária e não pertencer aos órgãos sociais da ré – é qualificada como auxiliar da ré.
Seja como for, a questão é saber se aquelas pessoas tinham poderes para actuar em nome da ré e, sendo esta uma questão de direito, ela nunca poderia ficar resolvida com base numa afirmação conclusiva contida na decisão da matéria de facto.
Posto isto,
As associações sem fins lucrativos regem-se pelas normas dos arts. 157 e segs do CC, como resulta do art. 157. No art. 163 do CC dispõe-se que a representação da pessoa colectiva [no caso, da associação], em juízo e fora dele, cabe a quem os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem for por ela designado.
No caso existem estatutos (ponto 6 dos factos provados), dos quais resulta (art. 23 – representação perante terceiros) que a associação se obriga pela assinatura de dois membros da direcção, uma das quais deverá ser do presidente, do vice-presidente ou do tesoureiro. Ou seja, estamos perante uma cláusula estatutária que impõe a actuação conjunta de um certo número de directores para que a associação fique vinculada (parafraseou-se, nesta última, parte, a nota 2 da anotação de Alexandre de Soveral Martins a um acórdão do TRL publicada na RLJ n.º 4000, de Set/Out2016, págs. 60 a 70…).
Assim, para que se pudesse dizer que a ré ficou obrigada pela actuação daquelas duas pessoas físicas, era necessária que constasse dos factos provados que elas, em 21/06/2010, eram, as duas, membros da direcção, sendo uma delas presidente, ou vice-presidente ou tesoureira.
Como diz Alexandre Soveral Martins, em anotação ao art. 260 do CSC em comentário, Almedina, 2012, vol. IV, pág. 144, nota 2: “para que as sociedades fiquem vinculadas, necessário é que quem actua em nome delas seja seu representante. Quem pretende sustentar em juízo a vinculação de uma sociedade comercial pela actuação de determinado sujeito deverá indicar a identidade de quem agiu em nome da sociedade e o facto de que resulta a qualidade de representante.” (isto é aplicável naturalmente ao caso dos autos, apesar de estes tratarem de uma associação – também pessoa colectiva no caso – e não de uma sociedade).
Ora, não só nada nos autos nos diz quem é que eram os membros da direcção da ré naquela data, já que a acta n.º 2 (ponto 7 dos factos provados) apenas se reporta ao período de Agosto de 2010 em diante, como, por outro lado, a autora nunca afirmou que as duas pessoas físicas em causa eram membros da direcção e que uma delas fosse presidente, vice-presidente ou tesoureira.
Ou seja, os factos provados não permitem de modo algum concluir que a ré se obrigou devido à actuação daquelas duas pessoas físicas.
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Não constando dos autos a acta n.º 1 da ré, da qual muito provavelmente decorreria que uma daquelas pessoas físicas (M, uma das duas pessoas que constituíram a ré e que dois meses mais tarde foi eleita vogal da direcção para o período de 2010/2013) era membro da direcção da ré na data de 21/06/2010, poderia a autora (se viesse a ser junto aos autos tal documento e ele comprovasse que assim era) vir dizer que sendo aquela pessoa membro de um órgão com funções de representação da ré, isto é, uma sua directora, bastava a mesma para obrigar a ré, independentemente do que os estatutos estipulassem, trazendo para aqui uma discussão que se tem feito a propósito dos gerentes das sociedades por quotas e dos administradores das sociedades anónimas. Ou seja, diria a autora que o que consta dos estatutos não poderia ser oposto àqueles que contratassem com representantes orgânicos da ré.
O argumento seria aqui particularmente falho de sentido, porquanto a lei (art. 163/1 do CC) dispõe expressamente que a representação cabe a quem os estatutos determinarem, pelo que é aos estatutos que a autora teria de recorrer para saber quem é que, perante si, poderia vincular a ré. Por outro lado, o art. 163/2 do CC, só prevê hipóteses da inoponibilidade da designação de representantes por parte da administração, não de inoponibilidade de disposições estatutárias que regulam o modo de exercício de poderes de representação pelos órgãos da associação, o que seria, no caso, um contra-senso. Por fim, Alexandre de Soveral Martins já demonstrou que a questão, mesmo quanto ao modo de exercício dos poderes de representação dos gerentes e administradores de sociedades por quotas e anónimas, não deve ser resolvida nesse sentido (veja-se a anotação deste autor já citada acima, publicada na RLJ, com as necessárias referências doutrinárias e jurisprudenciais num e noutro sentido; por último, noutro contexto mas no mesmo sentido, veja-se também a anotação de Filipe Cassiano dos Santos e Manuel Couceiro Nogueira Serens, a um acórdão sobre a falta de poderes do representante…, na RLJ 146/4004, Maio-Junho de 2017, págs. 340/357).
Em suma: a autora, para celebrar contratos com a ré teria que ter recorrido aos estatutos da ré para ver quem é que a poderia obrigar perante si. Consultados os mesmos, veria que precisava da actuação de dois membros da direcção, devendo um deles ser o presidente, o vice-presidente ou o tesoureiro. E, apresentando-se-lhe pela frente apenas um membro da direcção, não devia ter celebrado o contrato, pois que a ré não ficava vinculada.
De novo parafraseando Alexandre de Soveral Martins, o art. 163/1 do CC, não dispensa o terceiro de verificar quantos representantes têm de intervir, nem quem o tem de fazer. “E isto não parece ser demasiado pesado para o terceiro que também está obrigado a saber quem é que foi designado” director da associação “e se aquele que surge a dizer que é” director da associação o é efectivamente (pág. 64 da anotação na RLJ).
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É certo que situações parecidas, desenvolvidas, podem dar origem à aplicação de institutos e figuras jurídicas diversíssimos, como a representação tácita, a representação aparente, a representação tolerada, o gerente/administrador/director de facto, a responsabilidade civil a título da tutela da confiança, o abuso de direito, a actuação do mandatário comercial (arts. 231 e 232 do Código Comercial) do proposto (gerentes, auxiliares e caixeiros: arts. 248 a 262 do CCom), ou dos trabalhadores das empresas no exercício das suas funções (art. 115/3 do Código de Trabalho), da ratificação dos contratos (uma das fundamentações possíveis para o caso do ac. do TRL de 26/02/2015 anotado por Alexandre de Soveral Martins, citado acima), o enriquecimento sem causa, etc., mas para isso há que alegar os factos e prová-los e impugnar decisões de matéria de facto que não narrem tudo o que de relevante se provou no processo (Alexandre de Soveral Martins, anotação na RLJ citada; Oliveira Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada, Contrato celebrado por agente de pessoa colectiva, Representação, responsabilidade e enriquecimento sem causa, Revista de Direito e Economia, 1990/93, págs. 43 a 77, e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A preposição, Representação comercial, Almedina, Abril de 2017).
Perante os poucos factos dados como provados – e mesmo perante aqueles que a autora invoca nas contra-alegações do recurso, quase nenhuns face a tudo o que não ficou provado, tendo em conta tudo o que era alegado no articulado “aperfeiçoado” – e o que se disse acima, aceitar-se-á, sem dificuldade, crê-se, que nenhum destes institutos ou figuras se pode aplicar no caso dos autos, e muito menos a celebração do contrato pelos representantes de direito da ré. “[C]ertamente ninguém dirá que A vincula a sociedade por quotas só porque diz que é seu gerente.” (Alexandre de Soveral Martins, anotação citada, pág. 67).
Não se provando sequer a celebração do contrato com a ré, esta não pode ser condenada no preço dos bens em causa, pelo que se impõe a revogação da sentença e a absolvição da ré.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e em sua substituição, absolve-se agora a ré do pedido.
Custas da acção e do recurso pela autora.
Lisboa, 14/09/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto