Processo do Juízo Central Cível de Loures – 4ª Secção
Sumário:
I. No âmbito das infracções às regras de cautela, destinadas a proteger interesses alheios (segunda modalidade da ilicitude do art. 483/1 do CC), o acto ilícito – violação objectiva dessas regras – faz presumir (natural ou judicialmente) a culpa do infractor; isto a não se entender que há mesmo uma inversão do ónus da prova (cabendo então ao infractor provar factos de onde se possa excluir a sua culpa).
II. E tal tem efeitos em sede de causalidade, bastando-se o legislador, para realizar a imputação dos danos ao agente, com aquele juízo de violação normativa.
III. “A responsabilidade por culpa presumida, consagrada na primeira parte do n.º 3 do art. 503 do CC, pressupõe a alegação e a prova de factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500/1, do mesmo diploma legal”
IV. Um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5%, compatível com o exercício da actividade profissional habitual mas exigindo esforços suplementares para a desenvolver, é causa de danos patrimoniais futuros, indemnizáveis nos termos dos arts 562 e segs do CC, maxime dos arts 564 e 566.
V. Quando o lesado for um estudante, a indemnização da perda de capacidade de ganho deve ser calculada partindo-se do princípio de que ele viria a auferir pelo menos o valor equivalente ao salário médio nacional.
VI. Um lesado que sofreu várias fracturas, esteve internado por 14 dias, foi submetido a diversas intervenções e tratamentos médicos e outros por cerca de 4 meses, teve um período global de cerca de 2 anos e 2 meses de gravidade decrescente de incapacidade, 9 meses deles com incapacidade absoluta, incapacidade com necessidade de ajuda de terceira pessoa e incapacidade com necessidade de esforços acrescidos, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5%, teve dores quantificáveis em 4 numa escala de gravidade crescente até 7, ficou com dificuldades de erecção no relacionamento sexual, teve repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, perdeu um ano escolar e continua a necessitar, pontualmente, de tomar medicação anti-álgica, deve ser indemnizado com 50.000€ (calculados em Set/2017).
VII. Se a seguradora não coloca, como deve (art. 42 do DL 291/2007), à disposição do proprietário do veículo danificado um veículo de substituição, deve ser condenada, se for considerada responsável, numa indemnização – a título de dano patrimonial – pelo não cumprimento daquela obrigação durante todo o período da paralisação.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
A, B e C intentarem duas acções (que foram apensadas) contra S- Companhia de Seguros, SA (que incorporou, por fusão, a R-Companhia de Seguros, SA), pedindo que esta seja condenada a pagar aos autores A e B 6889,87€, e ao autor C 373.825,17€, ambas as quantias com acrescidas de juros à taxa legal de 4% a contar da citação até efectivo pagamento; e ainda todas as despesas com consultas médicas, tratamentos, intervenções cirúrgicas e cuidados médicos futuros que o autor C necessitar para tratamento e recuperação das lesões sofridas em consequência do acidente, nas partes que não forem comparticipadas pelo Estado.
Alegam para tanto que os pedidos correspondem aos valores de danos sofridos em consequência de um acidente de viação que foi provocado por culpa de um segurado da ré.
A ré contestou impugnando a descrição do acidente efectuada pelos autores, imputando a responsabilidade pela produção do mesmo ao autor C.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando as acções improcedentes.
Os autores recorrem desta sentença, para que seja alterada a decisão da matéria de facto e para que se julgue provada a culpa do segurado da ré no acidente e quase todos os danos invocados, com a consequente condenação da ré em parte dos pedidos (do autor C desce de quase 374.000€ para 103.000€).
A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
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Questões a decidir: se a matéria de facto deve ser alterada e se se prova a culpa do segurado da ré no acidente e os danos invocados e se a ré deve ser condenada pelo menos em parte dos pedidos.
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No tribunal recorrido deram-se como provados os seguintes factos com interesse para a questão da culpa do acidente:
[…]
I
Da impugnação desta parte da matéria de facto
[…]
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Em suma, em consequência do que se foi decidindo quanto à decisão da matéria de facto, os factos provados que interessam à atribuição da culpa do acidente, ficam a ser os seguintes (evitando-se, ainda, várias repetições, integrando-se os factos vindos da PI e da contestação e colocando-se os factos com numeração própria):
1. No dia 28/12/2008, pelas 11h, na Estrada Florestal de V, concelho de C, ocorreu um embate entre o motociclo, moto quatro, de matrícula (= BC) e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (= JE).
2. À data do acidente, o BC era conduzido pelo autor C, e era e continua a ser propriedade dos pais do autor, também autores.
3. O JE era conduzido e era propriedade de D.
4. No momento imediatamente anterior ao acidente, o BC circulava por aquela estrada florestal no sentido P => aterro sanitário, enquanto o JE circulava em sentido inverso, trazendo acoplado um reboque para transporte de cães, que é mais estreito que JE.
5. No local onde o acidente ocorreu, a estrada tem uma largura de 5,30m e é em terra batida; no dia em que ocorreu o acidente o tempo estava bom e não chovia.
6. No sentido aterro sanitário => P a estrada desenvolve-se em recta em mais de 300m de extensão, com duas ligeiras curvas, uma para a esquerda e outra para a direita.
7. Curvas que permitem a visibilidade aos condutores que nela circulam.
8. A anteceder o local do acidente existe uma lomba, cujo grau de inclinação retira a visibilidade aos condutores que circulam em ambos os sentidos de trânsito.
9. Os condutores dos veículos que circulam naquela estrada, antes da lomba, não conseguem avistar o trânsito que circula para além da lomba, quer no mesmo sentido, quer em sentido contrário.
10. Em momento anterior ao embate, o condutor do JE tinha colocado os cães a correr num eucaliptal paralelo ao lado direito da estrada atento o seu sentido de marcha, de forma a treiná-los, estando atento a esse treino.
11. O condutor do JE circulava a ocupar parcialmente a hemi faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava no sentido P => aterro sanitário, por onde circulava o BC.
12. Quando o autor, condutor do BC, acabou de descrever a lomba, deparou-se com o JE.
13. O autor desviou o BC para a berma/combro do lado direito, atento o seu sentido de marcha, deixando impressas no combro as marcas dos pneus dianteiro e traseiro do lado direito do BC (assinaladas no croqui com a letra J) e não se pôde desviar mais para a direita devido à existência desse combro (que no croqui é assinalado com a letra I).
14. O BC passou pelo JE, cruzando ambas as laterais esquerdas dos veículos, sem qualquer colisão entre ambos.
15. O embate deu-se entre a parte lateral esquerda do reboque do JE e parte lateral esquerda do BC.
16. Em consequência do embate, o autor foi projectado, tendo ficado prostrado no chão, na hemi faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido de marcha P => aterro sanitário.
17. O local do embate situa-se na hemi faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido de marcha do BC.
18. Quando os militares da GNR, que tomaram conta da ocorrência, chegaram ao local, o autor já não se encontrava no local, tendo sido transportado para o Centro Hospitalar de X, onde foi atendido no serviço de urgência.
19. Quando a ambulância chegou ao local, foi dada indicação à pessoa que ali se encontrava para retirar o BC do local para permitir a assistência e o transporte do autor – o que aquela fez.
20. O JE e o BC foram retirados do local para permitir a assistência ao condutor do BC.
21. Foi o condutor do JE que indicou aos militares da GNR que tomaram conta da ocorrência o local assinalado com a letra E no croquis, como sendo o local de embate – isto é, como tendo ocorrido na hemi faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido de marcha P => aterro sanitário, a cerca de 1,90 m da berma do lado direito.
22. O condutor do JE conhecia as características da via por onde transitava.
23. O BC destina-se ao desenvolvimento da actividade agrícola dos autores e na ocasião era conduzido pelo autor C, com o conhecimento dos autores [Ae B].
II
Do recurso sobre matéria de direito quanto à culpa do acidente
A sentença recorrida faz a seguinte construção (com alguma síntese deste tribunal de recurso), no que é seguida para ré nas contra-alegações de recurso:
Dos factos provados resulta que, por um lado, o condutor do JE, veículo segurado, ocupava parte da faixa de rodagem destinada à circulação em sentido contrário, o que fazia em velocidade muito reduzida, e, por outro lado, o autor C circulava a mais de 60 km/h e estava a aproximar-se de uma lomba que impedia toda a visibilidade para o trajecto que depois dela existia.
Assim, temos que o condutor do veículo segurado violou o disposto no art. 13/1 do CE e o autor C violou o disposto nos mencionados arts 24/1 e 25/1-f do CE.
Não estamos perante um caso de repartição de culpas, porque a violação estradal que foi a determinante para o acidente foi sem dúvida a praticada pelo autor C. Este não podia, de forma alguma, conduzir à velocidade a que seguia, estando a aproximar-se de uma lomba que impedia toda a visibilidade. Acresce que não se provou que o veículo JE impedia o BC de circular na sua hemi faixa, tendo-se provado, aliás, que os veículos se cruzaram sem qualquer embate, o qual ocorreu com o reboque. Se o autor C conduzisse, como deveria, com velocidade especialmente moderada (ou seja, ainda mais reduzida do que simplesmente moderada, visto que se dirigia para a lomba), o acidente não se teria, de todo, verificado.
Há ainda que ter em conta que estamos perante uma estrada florestal, de terra batida, onde é extremamente comum (sendo que é mesmo o que geralmente se faz) efectuar a circulação mais próximo do eixo da via, pois é raríssimo o cruzamento de veículos. Atente-se por exemplo na fotografia de fl. 257. Alguém conduziria naquele local próximo da berma? É óbvio que não, até porque não seria seguro fazê-lo. Conduz-se no eixo da via e se aparecer outro veículo, aí sim, cada um se desvia para o seu lado direito de modo a permitir o cruzamento, sempre a velocidade reduzida.
Daqui resulta que o condutor do JE conduzia como em geral se conduz naquelas vias. Aliás, apesar de tal não ter sido alegado, das circunstâncias do acidente e da forma como usualmente se conduzem as chamadas “moto-4”, muito provavelmente o próprio autor C conduzia o BC no eixo da via (provou-se que ele se desviou para a direita) [para além de que é também muito comum aproveitarem as lombas para “voar” com a mota, imprimindo para isso maior velocidade ao veículo]. Daí que haja especial necessidade de, neste género de vias, ter muito cuidado na aproximação a locais sem visibilidade, como era o caso. O risco de colisão acaba por ser baixo pelo simples facto de aquelas vias terem muito pouco movimento e daí que se arrisque uma condução mais “desportiva”, mesmo em local com reduzida ou até mesmo nenhuma visibilidade. No entanto, quando existem “azares”, como foi o caso, há que ponderar a situação de forma a concluir quem agiu de forma imprópria, tendo em conta todas as circunstâncias da situação. E, fazendo essa ponderação, a velocidade a que seguia o BC foi, sem dúvida, a violação estradal causadora do acidente.
De tudo o exposto conclui-se pois que a responsabilidade pela produção do acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta do autor C e não à conduta do condutor do veículo segurado, o que desde logo determina a improcedência total da acção, sendo irrelevante apurar da culpa, dos danos e do nexo de imputação.
Contra isto dizem os autores (em síntese deste tribunal e tendo-se em conta que a posição dos autores já resulta da discussão da decisão da matéria de facto, aliás misturada com a discussão sobre a matéria de direito):
A sentença não tem razão em considerar que o autor vinha em excesso de velocidade; o embate deu-se na mão de trânsito do autor e com o veículo segurado a ocupar essa mão, pelo que se presume a culpa do segurado da ré; a sentença não tem razão para considerar irrelevante esta violação estradal praticada pelo condutor do JE.
A ré responde que (sempre em síntese deste acórdão):
Estando provado que o BC circulava a mais de 60 km/h, que não lhe permitia parar no espaço livre e visível à sua frente, e que o BC passou pelo JE, cruzando ambas as laterais esquerdas dos veículos sem qualquer colisão entre eles, tanto basta para concluir pela culpa do autor C e por isso justifica-se a sua (da ré) não condenação. É que os danos foram produzidos causalmente pela conduta do autor e não pela do condutor do JE. Foi aquele o facto/condição sem a qual o dano não se verificaria.
Decidindo:
A sentença recorrida atribui a culpa do acidente ao autor C por este vir a uma velocidade superior a 60 km/h que não lhe permitia parar no espaço livre e visível à sua frente. Mas a velocidade do BC foi afastada dos factos provados, o que afasta a base da construção da sentença.
Por outro lado, a sentença recorrida entende que o facto de o JE circular a ocupar parte da metade da faixa destinada ao trânsito em sentido contrário, é irrelevante, porque é isso o que é normal acontecer em estradas florestais com pouco trânsito.
Isto apesar de reconhecer que a existência de uma lomba que impede a visibilidade para o trânsito que vem do outro lado – situação que se verificava para ambos os veículos – cria uma situação de especial necessidade de muito cuidado na aproximação à mesma.
Ora, a aproximação a uma lomba que impede a visibilidade do trânsito que venha em sentido contrário, devido a essa especial necessidade de cuidado, não pode ser feita a ocupar a mão de trânsito contrária, como o fazia o condutor segurado.
Por outro lado, mesmo que “seja extremamente comum (sendo que é mesmo o que geralmente se faz) efectuar a circulação mais próximo do eixo da via” – o que não se sabe se é verdade, não sendo pois um facto notório e não consta dos factos provados -, tal não justificaria ou desculparia a conduta do JE, para mais na aproximação à lomba que impede a visibilidade do trânsito em sentido contrário.
E na parte da fundamentação de direito, a sentença recorrida não pode ir buscar factos que não constam dos factos provados, como (i) a referência à “fotografia de fl. 257”, (ii) o facto de não ser naquele local “segura a condução próximo da berma”, (iii) o autor C conduzir o BC no eixo da via [e o facto do qual a sentença conclui este não permite essa conclusão: se o JE ocupava parte – não se sabe quanto – dos 2,90 da metade da estrada destinada ao BC, o facto de este se ter tido que desviar não quer dizer que viesse pelo eixo da via], (iv) e ser muito comum [as moto-4] aproveitarem as lombas para “voar” com a mota, imprimindo para isso maior velocidade ao veículo”.
Não é também correcta a conclusão que a sentença tira de que “não se provou que o veículo JE impedia o BC de circular na sua hemi faixa” pois que, pelo contrário, se provou que o BC se teve que desviar para a berma, passando em parte a circular pelo combro e mesmo assim o embate veio a dar-se; e deu-se precisamente na mão de trânsito do BC, pelo que se o atrelado do JE aí não estivesse não se teria dado o embate; o que tudo representa necessariamente um impedimento à circulação do BC pela sua mão de trânsito. E sendo isto assim, é irrelevante que os veículos se tenham cruzado sem embater, pois que o que interessa é que o BC e o atrelado do JE vieram a embater e o embate se deu na mão de trânsito do BC, embora não se saiba como.
Posto isto: o embate deu-se entre dois veículos, entendido o JE como incluindo o atrelado que trazia consigo; ao condutor do BC não pode ser imputada a violação de qualquer regra estradal. Ao condutor do JE, pelo contrário, pode ser imputada uma violação particularmente grave ao art. 13/1 do CE; pois que conduzia, numa estrada com 5,80m de largura, a ocupar, sem que nada o justificasse, parte da mão de trânsito contrária, para mais quando se estava a aproximar de uma lomba que impedia a visibilidade do trânsito que viesse em sentido contrário e estava atento ao treino dos seus cães que corriam atrás do carro, treino que estava a fazer com o JE. É difícil de imaginar uma violação mais grave do que esta à regra estradal em causa (art. 13/1 do CE na redacção em vigor à data), tanto mais que a ela ainda se pode juntar, como sugere o autor agora no recurso, a violação do art. 11/2 do CE: Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança, ou seja, acrescenta-se, no caso, o treino dos cães).
Ora, há muito que se entende que, dando-se um embate entre dois veículos quando um deles está em transgressão de uma norma de cuidado rodoviário destinada precisamente a evitar riscos como os verificados (no caso, destinada a evitar embates com veículos que circulem pela mão de trânsito ocupada), a culpa se presume do condutor deste, tal como se presume que os danos que se venham a verificar foram provocados por tal actuação ilícita e culposa.
É que no âmbito das infracções às regras de cautela, destinadas a proteger interesses alheios, o acto ilícito – violação objectiva dessas regras de cautela – é, por isso mesmo, presumivelmente culposo (presunção natural ou judicial).
Tudo isto decorre da posição seguida pela jurisprudência e doutrina maioritária e correcta, que esclarece:
“Surgem, no entanto, dúvidas é quando se discute se deverá ter-se como provada a culpa quando o lesado apenas consegue demonstrar uma situação objectiva de culpa, no campo da negligência presumida […]
…Significa isto que, em princípio, procede com culpa o autor que em contravenção aos preceitos estradais causa danos, cabendo àquele o ónus da contra-prova, ou seja, a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do juiz (acórdão da Relação de Lisboa, de 26/3/92, CJ.92.2.152/156).
Muitos outros acórdãos se têm pronunciado no mesmo sentido:
“Quando houver inobservância de leis ou regulamentos, a negligência consubstancia-se nessa inobservância, dispensando-se a prova em concreto, desde que o acidente seja um daqueles que a lei pretende evitar quando impôs a disciplina traduzida na norma violada” – Ac. da RL de 31/10/1990, CJ.90.4.100.
“A violação da regra estradal… faz presumir, para o infractor, negligência na condução” – ac. da RL de 17/6/86, CJ.86.3.124.
“Presume-se, em matéria contravencional, a culpa do condutor, salvo prova em contrário” – ac. do STJ de 14/10/1982, BMJ.320/422.
“O que é coisa diferente da presunção legal da culpa, nos termos do art. 493 do CC […]
Por isso, é por força do art. 483 do CC que o réu está obrigado a indemnizar a título de culpa, os prejuízos causados no acidente que provocou, sem necessidade de invocação do disposto no art. 493 do mesmo Código” – ac. da RP de 29/6/1978, CJ.78.3.896.
Tudo com o aval da doutrina:
“…Está pois bem acompanhado o nosso Supremo Tribunal de Justiça (ac. de 21/2/1961, BMJ.104º, 417/421), ao falar de ‘…negligência presumida, qualificação que se traduz por inobservância de leis ou regulamentos, o que per se dispensa a prova em concreto da falta de diligência” – Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Colecção Teses, 1989, pág. 267 (o autor cita também os acs do STJ de 14/10/1982 – já referido -; de 6/1/1987, BMJ 363º, págs. 488/491, com inclusão de outra jurisprudência, e de 21 e 28/1/88, TJ.nº. 40, Abril de 1988, respectivamente págs. 22 e 23).
E ainda do mesmo autor:
“Verificada a violação da disposição de protecção [aquelas que contêm delitos de perigo abstracto (v.g. limites de velocidade) – pág. 610], deve presumir-se a existência de culpa, solução para que se vêm inclinando os nossos tribunais” – pág. 612.
Também o acórdão do STJ de 7/11/2000, publicado na CJ.STJ.2000.III.105, acompanha a doutrina segundo a qual a ocorrência, em termos objectivos, de uma situação que constitui contravenção a uma norma do CE deve implicar presunção juris tantum de negligência.
Com relevo para o caso dos autos, os autores também invocam o ac. do TRG de 14/04/2011, proc. 4136/08.1TBBCL.G1:
I. A circulação estradal com invasão, ainda que parcial, da metade da faixa de rodagem destinada ao trânsito de quem circula em sentido contrário é sempre idónea e adequada a provocar o embate entre duas viaturas que circulem em sentidos opostos.
II. Assim, provado apenas que um de dois veículos que circulavam em sentidos opostos o fazia ocupando parte da hemifaixa de rodagem de sentido contrário ao seu, a culpa pela produção do acidente ocorrido entre eles terá de ser exclusivamente imputada ao condutor daquele, a menos que prove que se verificou uma situação de força maior justificativa de tal condução.
E o ac. do STJ de 23/02/2016, proc. 74/12.1SRLSB.L1.S1:
[…]
II – A jurisprudência maioritária considera que, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (art. 351 do CC) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto.
[…]”
Isto a não se considerar que, mais que uma presunção de culpa, se verifica antes uma inversão do ónus da prova.
Assim, por exemplo, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa:
“Podemos afirmar que, no caso da segunda modalidade de ilicitude [do art. 483/1 do CC], existe uma confluência simbiótica entre culpa e ilicitude. Se o sujeito provar que não lhe era exigível e concreto o cumprimento da norma, continua a haver ilicitude identificada com a violação que, em abstracto, atentos certos interesses, o legislador considerou pertinente sancionar. Mas, se o próprio legislador considerou pertinente a adopção de um dado comportamento cauteloso, pela proscrição do seu oposto (v.g., o caso em que se proíbe circular a uma velocidade superior a x), raros serão os casos em que, mesmo que atento o circunstancialismo concreto, se pode dizer que não houve culpa. Poder-se-á, portanto, falar de uma inversão do ónus da prova.” (Lições de responsabilidade civil, Principia, Março de 2017, págs. 177-178).
Esta autora invoca, mais ou menos no mesmo sentido, Adelaide Menezes Leitão:
“A conduta imposta por uma determinada norma de protecção refere-se ao cuidado externo. É mediante a elaboração de uma norma de prevenção do perigo abstracto que o legislador acaba por concretizar determinada conduta. No que respeita à violação de uma norma de protecção, basta aferir na negligência um cuidado anteriormente exigível. A violação do cuidado externo já se encontra suficientemente concretizada. Passa a presumir-se a violação do cuidado interno” e, com isso, estamos “a evoluir de uma situação de prova prima facie para uma inversão do ónus da prova.” (Normas de protecção, pág. 675).
Por último, estes actos ilícitos e culposos estão presumivelmente ligados aos danos provados, pois que a regra de cautela violada, se destina (e enquanto se destina) a prevenir a produção desses mesmos danos: sempre que se verifique um embate no âmbito de previsão de uma norma (estradal) que foi efectivamente violada, não pode deixar de haver nexo de causalidade entre a infracção e as consequências do embate” – ac. da Relação de Lisboa de 6/1/1987, CJ.87.1.91.
Ou, dizendo com Adelaide Menezes Leitão (obra citada, pág. 695 e 251 s), citada por Ana Barbosa (pág. 179, nota 408):
“se ‘a ilicitude “corresponde à violação de uma norma, estando preenchida mesmo que o dano venha a ser provocado directamente por um facto posterior de terceiro, por evento natural ou fortuito, ou até por facto de lesado’, tal tem efeitos em sede de causalidade, bastando-se o legislador, ‘para realizar a imputação do dano ao agente, com um juízo de violação normativa.’”
Ou, com Antunes Varela, aqui através de Ana Barbosa:
“os danos resultantes de um facto fortuito ou de um facto de terceiro devem ser imputados ao lesante quando haja violação de uma norma de protecção, na medida em que a culpa se refere àquele ponto de sindicância da ilicitude.” (obra citada, pág. 180, nota 408).
Tanto basta para que se deva concluir pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (art. 483 do CC) a cargo do condutor do JE e, por força do seguro celebrado com a ré, a cargo, agora, desta.
III
Note-se que o facto do ponto 21 é irrelevante para provar a existência de uma relação de comissão, base de uma presunção de culpa que a ré quereria que fosse utilizada contra o autor C (art. 503/3 do CC).
Isto é, para se poder utilizar a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é necessário que se diga que o condutor do veículo, está, perante o proprietário, numa relação de comissão, como aliás resulta daquilo que a jurisprudência tem dito sobre a questão:
“O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500/1 do CC, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo” (acórdão do pleno do STJ de uniformização de jurisprudência, de 30/04/96, publicado na 2ª série do Diário da República de 24/6/96 e no BMJ 456/19 e segs, ou nas bases de dados do IGFEJ sob 087236)
Esclarecedor do sentido deste acórdão é a proposta de AUJ formulada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto: “A responsabilidade por culpa presumida, consagrada na primeira parte do n.º 3 do art. 503 do CC, pressupõe a alegação e a prova de factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500/1, do mesmo diploma legal” (parecer também publicado no BMJ, nas págs. 5/14, e a seguir ao acórdão na base de dados do IGFEJ; no mesmo sentido, veja-se ainda, por último, o ac. do TRL de 09/07/2015, 530/13.4TBFUN.L1-2).
Ou seja, a relação de comissão pressupõe a alegação de factos que, provados, permitam concluir pela mesma, sendo esta uma relação de alguém que actua por conta de outrem, sob a sua direcção, estando dele dependente, o que não é o caso apenas por o veículo ter sido emprestado ao condutor.
*
Quanto ao restante, ficaram provados os seguintes factos (os pontos 57, 120, 123 e 124 são substituídos por força do decidido mais à frente):
[…]
IV
Da impugnação desta parte da decisão da matéria de facto
[…]
V
Dos montantes indemnizatórios
O tribunal não fixou os danos a indemnizar por ter considerado que a culpa do acidente era toda do autor C e por isso não havia lugar a indemnizações a suportar pela seguradora.
Tendo este tribunal de recurso chegado agora a conclusão contrária, há que fazer essa fixação agora em substituição do tribunal recorrido (art. 665/2 do CPC), estando já as questões a este respeito suficientemente debatidas entre as partes nos articulados da acção.
*
Sem qualquer argumentação nesta parte, o autor C tem uma parte final do recurso em que refere que a ré deve indemnizá-lo, pagando-lhe, com juros desde a citação:
– 4600,59€, para ressarcimento dos danos materiais considerados provados nos factos 51 [lapso: está a referir-se a 52], 58, 59, 117, 135, 141, 142, 144, 146, 148 e 149;
– 10.000€ a título de indemnização de quantum doloris, considerado provado no facto 109;
– 30.000€ a título de indemnização do dano biológico de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos, a partir da data de consolidação, em 11/03/2011 considerado provado no facto 123.
– 20.000€ a título de indemnização dos danos patrimoniais emergentes da repercussão permanente na actividade profissional, que se consubstanciam numa redução de proventos da actividade profissional do autor e num aumento da despesa na contratação de trabalhadores para a execução das tarefas agrícolas para as quais o autor tem as limitações referidas nos factos considerados provados e de lhes pagar a retribuição correspondente, considerado provado no facto 124;
– 20.000€ a título de indemnização dos danos não patrimoniais emergentes da repercussão permanente na actividade profissional, que determinam um esforço físico acrescido para o exercício da actividade profissional, considerado provado no facto 124;
– 10.000€ a título de indemnização dos danos não patrimoniais por, em consequência directa e necessária das lesões e sequelas emergentes do acidente ter passado a ter dificuldades de erecção e deixar de conseguir manter um relacionamento sexual com a sua companheira, considerado provado nos factos 89 e 92.
– 10.000€ a título de indemnização dos danos não patrimoniais emergentes da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, resultantes de à data do acidente, o autor jogar futebol, fazer paintball e BTT e por, em consequência directa e necessária das lesões e sequelas emergentes do acidente o deixar de poder fazer, considerados provados nos factos 126, 127 e 128,
– as despesas com consultas médicas, tratamentos, intervenções cirúrgicas e cuidados médicos futuros que o autor vier necessitar para tratamento e recuperação das lesões sofridas em consequência do acidente, nas partes que não forem comparticipadas pelo Estado.
E os autores Ae B têm uma parte final em que referem que a ré deve indemnizá-los, pagando-lhes, com juros desde a citação:
– 4389,87 € pela reparação do BC;
-1000€ pelos danos morais atinentes a anseios, preocupações, tensões, arrelias, frustrações, perdas de tempo e privações, devidas às alterações de vida forçadas pela ausência daquele bem.
*
Das indemnizações
Danos do autor C
Perdas
Como princípio geral, dispõe o art. 562 do CC, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563 do CC). E o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art. 564/1 do CC).
Tendo isto em vista e o ponto 146 dos factos provados (em consequência do acidente, o autor perdeu os 997,14€ que tinha gasto num curso) e a existência de um seguro que transferiu a eventual responsabilidade civil do condutor do JE para a ré, esta deve indemnizar o autor por esta perda.
Gastos
Em consequência das lesões provocadas pelo acidente, o autor teve necessidade de efectuar os gastos do ponto 52 (194.48€), 58 (70€), 59 (300€), 117 (650,34€), 135 (400€ x 3), 141 e 144 (valores indeterminados), 142 (14,25€), 148 (486,13€) e 149 (175,25€); num total de 3090,45€ mais o que for determinado para 141 e 144.
O art. 566/3 do CC dispõe que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”
Para os gastos do ponto 141 acha-se equitativo o valor de 85 km (distância do B, B, a S – as distâncias entre localidades do país são factos notórios que qualquer consulta a um mapa permite concretizar) x 2 (ida e volta) x 5 viagens x 0,36€ por km [tendo em conta os valores da Portaria 1553-D/2008, de 31/12, DL 137/2010, de 28/12] = 306€, e, para os do ponto 144, o valor de 77 (distância do B, B, a T) x 2 x 1 x 0,36/km = 55,44€ (não se contam as portagens por não haver prova da utilização da AE).
Assim: 3090,45€ + 306€ + 55,44€ = 3451,89€.
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Outros gastos
O autor, durante os 9 meses em que não pôde executar a actividade agrícola, desde a data do acidente até 30/09/2009, teve de pagar quantias não apuradas a um trabalhador agrícola para o substituir nas actividades desempenhadas (ponto 140 dos factos provados). É certo que o autor não o autonomizou este dano na parte das alegações em que se referiu aos valores indemnizatórios. Mas é um gasto que foi alegado e está provado e que, por isso, também tem de ser indemnizado (lembre-se que este tribunal está agora a agir em substituição do tribunal recorrido, como se estivesse a elaborar a decisão final depois do julgamento de facto).
Tendo em conta que o autor não provou o pagamento de qualquer valor do trabalhador contratado, considera-se, ao abrigo do art. 566/3 do CC, que esse valor não deve ser nem sequer o do salário mínimo nacional (de 557€/mês = DL 86-B/2016, de 29/12), pois que se tivesse sido pago, teria certamente havido prova desse pagamento, pelo que o valor deve ser de apenas 2/3 do SMN por mês, ou seja, é de 9 x 371,33€ = 3341,97€.
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Perda de capacidade de ganho
Os factos dos pontos 123 e 124 significam uma perda de capacidade de ganho de rendimentos por parte do autor: apesar de ter ficado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos [em 100] e tal não impedir o autor de trabalhar naquilo que antes fazia e não se provar uma consequente perda de rendimentos, a verdade é que tal implica que o autor tenha de fazer esforços suplementares no exercício daquela actividade habitual.
Isto é medido, em termos correntes, equiparando aquela perda de 5 pontos (= 5%) em termos gerais, a uma perda de capacidade de ganho de rendimentos de igual percentagem.
Ou seja, é como se o autor fosse perder (para o futuro – trata-se pois de um dano futuro), por ano, 5% dos rendimentos que poderia obter se não fosse o acidente, que têm de ser indemnizados com recurso à equidade (art. 564/2 do CC: Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis).
Neste sentido, embora com algumas divergências de fundamentação, vejam-se:
Ac. do STJ de 19/11/2009 – 585/09.6YFLSB:.
“A afectação da capacidade para o trabalho constitui um dano patrimonial que importa reparar, independentemente de se traduzir ou não em perda efectiva ou imediata de salários
Ac. do STJ de 07/02/2002 – 3985/01:.
Na verdade, ‘nos casos em que a percentagem de IPP se não traduz, na prática, numa efectiva perda de ganhos ou de capacidade de ganho proporcional ao montante dos vencimentos previsivelmente a auferir no futuro, a repercussão negativa da IPP centra-se apenas numa diminuição de condição física, resistência, e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral, e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das suas diversas tarefas. É neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais do respectivo múnus que deve radicar-se o arbitramento da indemnização por danos patrimoniais futuros’
– de 19/04/2012 (3046/09.0TBFIG.S1):
“Sendo a força de trabalho um bem patrimonial, uma vez que propicia rendimentos, a incapacidade parcial geral deve ser entendida, em si mesma, como um dano patrimonial, com direito do lesado a indemnização por danos patrimoniais futuros, desde que previsíveis. Quer acarrete uma diminuição efectiva do ganho laboral, quer implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais.”
– ac. do STJ de 16/11/2010 (1612/05.1TJVNF.P1.S1):
I – A notória deformidade física de que o lesado ficou a padecer com IPP reconhecida de 5% não deixa de constituir dano biológico susceptível de indemnização por dano futuro (arts. 564.º e 566.º do CC).
II – Tal deformidade física, posto que não se traduza numa perda de rendimentos profissionais ou não imponha um acréscimo de estrito esforço físico, não deve deixar de ser objecto de indemnização na medida em que traduz uma efectiva e sentida inferiorização da imagem, a impor doravante um esforço acrescido para o desempenho profissional positivo, esforço que o lesado antes não careceria de realizar, designadamente nas actividades profissionais – e são elas muitas – em que a imagem e presença físicas são factores importantes, se não mesmo decisivos, quer para a admissibilidade laboral quer para o próprio reconhecimento da prestação laboral.
[…]
– ac. do STJ de 20/10/2011 (428/07.5TBFAF.G1.S1):
“Uma incapacidade permanente geral, compatível com o exercício da actividade profissional habitual mas exigindo esforços suplementares para a desenvolver, é causa de danos patrimoniais futuros, indemnizáveis nos termos dos arts 562 e segs do CC, maxime dos arts 564 e 566.
– ac. do STJ de 07/06/2011 (160/2002.P1.S1):
“II – Porém, a incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de um dano patrimonial, já que a força do trabalho do homem, porque lhe propicia fonte de rendimentos, é um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão.
III – Assim, para ser atribuída indemnização pelo dano patrimonial futuro (IPP) não é necessário que a incapacidade determine perda ou diminuição de rendimentos.
IV – Essa incapacidade reflecte-se na impossibilidade de uma vida normal, com reflexos em toda a capacidade, podendo configurar-se como uma incapacidade permanente que deve ser indemnizada.”
– ac. do STJ de 20/05/2010 (103/2002.L1.S1):
[…]
II. A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo lesado – consubstanciado em relevante limitação funcional (10% de IPP genérica) – deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente reflectida no nível salarial auferido, quer da relevante e substancial restrição às possibilidades de mudança ou reconversão de emprego e do leque de oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional actual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e rendimento auferido.”
Quer isto dizer que não faz sentido, como pretende o autor, obter uma indemnização a título de dano patrimonial pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos e uma outra para cobrir a repercussão permanente desse défice na actividade profissional do autor (e muito menos “para cobrir despesas na contratação de trabalhadores para a execução das tarefas agrícolas para as quais o autor tem as limitações referidas”, que nem sequer se provou). Esta repercussão é a face patrimonial daquele défice. Só há lugar, pois, a uma indemnização de um dano que se ficciona ser igual à perda de capacidade de ganho anual de 5%. Isto sem prejuízo da consideração de tal défice numa indemnização por danos não patrimoniais, como se verá abaixo.
Quanto ao cálculo:
Não se sabe minimamente quanto é que o autor ganhava por ano na sua actividade de empresário agrícola – fora o tempo de estudo universitário -, mas acha-se razoável (trata-se de um julgamento de equidade) considerar que o autor, sendo estudante universitário, conseguiria, de futuro, ganhar pelo menos o salário médio nacional x 14 meses.
Isto, por maioria de razão, tendo em conta aquilo que a jurisprudência tendo dito mesmo em relação a estudantes de formação média; por exemplo, os acs do STJ de 30/09/2010, proc. 935/06.7TBPTL.G1.S1, do STJ de 02/10/2007, CJSTJ2007.III.68, do TRC de 16/11/2010, proc. 15/07.8TBFAG.C1, do STJ de 16/03/2011, proc. 1879/03.0TBACB.C1.S1, do STJ de 17/01/2012, proc. 291/07.6TBLRA.C1.S1, e do TRP de 30/06/2016, proc. 1524/13.5TBFLG, (este publicado em https://outrosacordaostrp.com: II – Quando o lesado for um estudante, a indemnização daquela perda deve ser calculada partindo-se do princípio de que ele entraria no mercado de trabalho a partir dos 21 anos, depois da frequência pelo menos de um curso profissional de nível médio, e que, por isso, auferiria, a partir daí e para sempre, pelo menos o valor equivalente ao salário médio nacional). No mesmo sentido, ainda, o já referido ac. do TRL de 14/09/2017, citado acima.
Considerando que esse salário médio nacional é de 905€ por mês (valor aplicado naquele acórdão), vezes os tais 14 meses, o valor anual é de 12.670€, pelo que uma perda de 5% é igual a 633,50€ ao ano.
Para obter o valor indemnizatório desta perda anual futura, pode-se utilizar a seguinte forma de cálculo – base de um posterior juízo de equidade -, fórmula também utilizada pela lei (por exemplo na Portaria 377/2008, de 26/06, embora com outra aparência e com factores concretizados de forma diferente), que é a seguinte:
C = [(1 + i)N – 1 / (1 + i)N x i] x P
em que
C = capital;
P = prestação a pagar no 1º ano;
n = o nº. de anos de esperança de vida; e
i = taxa de juro, sendo esta, por sua vez, calculada, assim:
i = (1 + r / 1 + k) – 1
em que:
r = taxa de juro nominal líquida.
k = taxa anual de crescimento de P (inflação + ganhos da produtividade + promoções profissionais).
Isto para que a variável i não seja a taxa de juro nominal líquida da aplicação financeira, mas sim a taxa de juros real líquida.
[Quanto ao cálculo do i:
r = taxa de juro nominal líquida, é actualmente, quando muito, de 1,5%.
k = taxa anual de crescimento de P (inflação de 0,5% + ganhos da produtividade de 0,375% + promoções profissionais de 0,375%) = 1,25%
Assim:
i = (1 + r / 1 + k) – 1
= 0,247%.
Quanto a N, o autor nasceu a 14/07/1978, pelo que, partindo-se de uma esperança média de vida de 77,4 anos (grosso modo, a esperança média de vida de um homem em Portugal), o autor, em Março de 2011 (data da consolidação), tinha uma esperança de vida de cerca de 44 anos].
Ora, com base nesta fórmula, o valor obtido seria o de:
C = [(1 + 0,247%)44 – 1 / (1+0,247%)44 x 0,247%] x 633,50€
C = 26.381,91€
E, obtido este resultado, segundo esta fórmula, não há que fazer a redução de 1/3, como o disse, por exemplo, o ac. do STJ de 14/04/2015, proferido no processo 723/10.6TBCHV.P1, não publicado mas com sumário em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2015.pdf, que censura essa dedução no caso do cálculo da indemnização ser fixado como acima, com base na consideração de que este “valor não representa já a soma de todos os rendimentos que o lesado iria previsivelmente auferir ao longo do período considerado, caso em que se justificaria essa redução (como no cálculo sugerido por Sousa Dinis [na CJ.STJ.IX.1.5] […S]eria contraditório [com o critério de cálculo seguido] operar a aludida redução: com esta, o capital obtido deixaria de cumprir o referido objectivo [de produzir um rendimento que se extinga no fim do previsível período de vida da vítima e que garanta as prestações periódicas correspondentes], não garantindo as aludidas prestações (ou de todas estas prestações, esgotando-se antes do termo do período considerado)”.
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Danos não patrimoniais
Segundo o art. 496/1 do CC, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E o n.º 4 acrescenta: O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º […]. O art. 494 fala no grau de culpabilidade do agente, na situação económica deste e do lesado e nas demais circunstâncias do caso.
O autor ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 5%. Trata-se, como é evidente, de um dano sofrido pelo autor que tem outras consequências (não patrimoniais) para além da repercussão patrimonial já referida.
O autor também sofreu dores, durante o período de incapacidade temporária, quantificáveis no grau 4 (numa escala de 7 graus [de gravidade crescente]).
Ficou ainda com dificuldades de erecção em manter um relacionamento sexual com a sua companheira (tendo no entanto tido entretanto – pouco mais de 2 anos e 2 meses depois do acidente – uma filha).
E teve ainda aquilo a que se pode chamar de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer (pontos de facto 126, 127 e 128).
Estes quatro danos não dão origem a quatro valores indemnizatórios autónomos, como quer o autor; são, sim, quatro factores a entrar em linha de conta para o cálculo da indemnização global por danos não patrimoniais. E são apenas quatro factores entre muitos outros que o autor referiu em termos de facto, mas não em termos indemnizatórios, o que não impede a sua consideração, antes pelo contrário, já que o que se trata é de calcular o valor de danos não patrimoniais, segundo regras de direito, de conhecimento do juiz.
Entre os outros factores a ter em conta está, por exemplo, o período total de incapacidade absoluta e parcial desde o dia do acidente – 28/12/2008 – e a data da consolidação das lesões – 11/03/2011. Foram cerca de 2 anos e 2 meses de períodos de gravidade decrescente de incapacidade: os primeiros cerca de 15 dias de incapacidade absoluta, depois cerca de 2 meses e 10 dias de incapacidade com necessidade de ajuda de terceira pessoa e depois mais cerca de 6 meses de incapacidade com necessidade de esforços acrescidos. Este período de falta de capacidade e de autonomia, de graus variáveis – principalmente grave nos primeiros 9 meses -, é também um dano não patrimonial.
Ainda: sofreu várias fracturas, esteve internado por 14 dias, foi submetido a diversas intervenções e tratamentos médicos e outros durante mais de 4 meses, perdeu um ano escolar e tomou medicação anti-álgica e continua a precisar dela em algumas ocasiões.
Tudo isto é valorado, na data actual, em 50.000€, tendo em conta valores atribuídos em casos semelhantes, como, por exemplo, no ac. deste mesmo colectivo de juízes, proferido a 14/09/2017, no proc. 427/13.8TBCDV que, para um caso um pouco menos grave confirmou o valor de 35.000€ atribuído pelo tribunal recorrido, e invocou o ac. do STJ de 07/04/2016, proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1, que fixou, para um caso de mais ou menos da mesma gravidade que o destes autos, uma compensação, a título de danos não patrimoniais, também desse valor de 50.000€:
“IV – Resultando dos factos provados que a recorrente, na sequência do acidente de viação, ocorrido em 08/10/2011, que a vitimou: (i) esteve internada durante três semanas, tendo mantido o repouso após a alta hospitalar; (ii) passou a ter incontinência urinária; (iii) as suas lesões estabilizaram em 13/04/2012; (iv) o quantum doloris foi fixado em 4 numa escala de 1 a 7; (v) o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 8%; (vi) as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares; (vii) o dano estético foi fixado em 3 numa escala de 1 a 7; (viii) a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixada em 1 numa escala de 1 a 7; (ix) sofreu angústia de poder vir a falecer e tornou-se uma pessoa triste, introvertida, deprimida, angustiada, sofredora, insegura, nervosa, desgostosa da vida e inibida e diminuída física e esteticamente, quando antes era uma pessoa dinâmica, expedita, diligente, trabalhadora, alegre e confiante.”
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Tratamentos e medicamentos futuros
Por fim, dá-se como provado que o autor beneficiaria da realização de fisioterapia e hidroterapia em face das sequelas do acidente de que padece e necessita pontualmente de medicação antiálgica (pontos de facto 166, 57 e 120).
No entanto, não se considera que tal deva ser acautelado na decisão condenatória (ao abrigo do art. 564/2, 1.ª parte, do CC), pois que não se sabe que tipo de benefício estará em causa, designadamente se ele seria minimamente significativo, e da completa indeterminação daquilo que está em causa (não se sabe quantas sessões deveriam ser realizadas, a partir de quando, com que duração, etc.). O mesmo se diga quanto à medicação antiálgica, de necessidade pontual.
Não tem sentido condenar a ré a pagar ao autor, de vez em quanto, uma embalagem de aspirinas, ou as sessões de fisioterapia e hidroterapia que se viessem mostrar benéficas para o autor, porque seria uma condenação absolutamente indeterminável.
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Danos do casal A e B
Da reparação do BC
Segundo o art. 566/1 do CC, a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
O princípio é, pois, o da reconstituição natural, ou seja, a reparação do bem danificado.
Os autores mandaram fazer essa reparação, às suas custas. A ré teve oportunidade de a fazer e não o fez, pelo que não lhe seria legítimo pôr, agora, em causa os valores da reparação (que aliás é pouco superior ao valor do orçamento por ela obtido) ou o direito dos autores a obter a quantia necessária para se reembolsarem do pagamento.
Não há dados, por outro lado, para dizer que a reparação é excessivamente onerosa, pois que não se sabe qual o valor de substituição do veículo para o comparar com o valor da reparação.
Assim, os autores têm direito ao valor gasto com a reparação, isto é, 4389,87 € (que já incluem IVA).
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Danos derivados da privação
A impossibilidade da utilização de veículos automóveis em conse-quência de um acidente de viação dá origem à obrigação da atribuição de um veículo de substituição (art. 42 do DL 291/2007, de 21/08) que, se não for cumprida, deve ser indemnizada – como segunda privação do uso por todo o período que estiver em causa – pela entrega de uma quantia em dinheiro (art. 566/1 do CC). O assunto é desenvolvido no ac. do TRP de 08/10/2015, proc. 1597/12.8TBOAZ.P1, publicado em https://outrosacordaostrp.com
Tendo-se isto em conta e também que ficou provado que o BC era utilizado na actividade agrícola que os autores desenvolvem (ponto 54 dos factos), e que, logicamente, até ele ser reparado, não pôde ser utilizado pelos autores, sendo a ré responsável pela reparação (como agora se conclui), deve então ela ser condenada a pagar a indemnização decorrente do incumprimento dessa obrigação.
Os autores A e B diziam ter sofrido 2000€ de prejuízos patrimoniais derivados da impossibilidade de uso do BE e ter sofrido danos não patrimoniais no valor de 500€ por essa mesma privação.
Agora, deixaram de falar de danos patrimoniais derivados da impossibilidade do uso do BC e passaram a falar só danos morais e referem só o valor de 1000€.
Como o BC não pôde ser utilizado durante mais de 2 anos, por a ré não ter feita a reparação, e a obrigação de colocação de um veículo de substituição teria certamente um valor superior aos 1000€ agora referidos pelos autores entende-se que esse valor deve ser concedido, embora não a título de danos morais, mas sim de danos patrimoniais.
Não a título de danos morais diz-se, porque não se aceita que possam ser compensados danos morais derivados dessa perda de possibilidade de bens. Grosso modo, o direito não entende que haja gravidade suficiente no desgosto sofrido pela perda de possibilidade de utilização de um bem (art. 496/1 do CC).
Ou seja, não são todos os desgostos, todas as dores e sofrimentos que têm a gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, mas só alguns desses desgostos particularmente graves. Assim, por exemplo, Calvão da Silva: “O pretium doloris e outros danos imateriais resultantes de danos em coisas!!! […] não são ressarcíveis pelo art. 496 do CC pois não têm gravidade que mereça a tutela do direito” – cita, a seguir, Malaurie/Aynes, que se referem a decisões francesas concedentes da reparação do sofrimento derivado da perda de animal estimado, um cavalo de corrida e um cão, como sendo “ultrajes à miséria dos homens” e acrescenta que mesmo que não se diga isto, a verdade é que há um abismo entre a afeição pelas pessoas queridas e a afeição pelos animais. Por outro lado, seria abrir uma porta por onde passariam os maiores absurdos (Responsabilidade Civil do Produtor, colecção Teses, Almedina, 1990, pág. 701, nota 1).
Veja-se, entretanto, a recente discussão da questão no ac. do TRP de 19/02/2015 e a anotação ao mesmo por Filipe de Albuquerque Matos, A compensação do dano não patrimonial do proprietário por morte de animal de estimação, publicada na RLJ 144/3993, Julho-Agosto de 2015.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição, condena-se agora a ré a pagar:
Ao autor C, a indemnização de 34.172,91€ a título de danos patrimoniais, e 50.000€ a título de danos não patrimoniais.
E aos outros autores, a indemnização de 5389,87€.
Às quantias em causa acrescem juros de 4% ao ano, vencidos desde a citação, excepto quanto aos 50.000€ que vence juros só desde a data desta sentença, e vincendos até integral pagamento.
Custas da acção e do recurso pelos autores e pela ré na proporção do decaimento.
Lisboa, 28/09/2017
Pedro Martins
1.º Adjunto
2.º Adjunto