Acção ordinária do Juízo Central Cível de Loures

            Sumário:

I – As normas dos arts. 530/5 do CPC e 13/7 do Regulamento das Custas Processuais destinam-se a beneficiar os autores coligados, levando-os a pagar menos taxa de justiça do que pagariam se não se tivessem coligado, e não a castigá-los ou a prejudicá-los, fazendo-os pagar muito mais do que pagariam se não se tivessem coligado. A taxa de justiça que cada autor coligado tem de pagar reporta-se ao valor que a sua acção teria se a tivesse deduzido em separado e é de metade do valor da taxa normal.

II – Os réus não têm legitimidade para estar a discutir se a propriedade das fracções que ocupam não é da sociedade autora, em nome de quem está registada a propriedade das fracções, mas sim de uma testemunha, que teria utilizado a sociedade autora para evitar o pagamento de impostos (em fraude à lei: art. 38/2 da LGT). 

III – Para a formação da convicção sobre determinados factos, pode-se aceitar como prova simples testemunhos, mesmo que de factos que só podem ser provados por documentos, desde que esses factos não sejam factos essenciais ao objecto do processo.

IV – O promitente-comprador a quem foi permitida a ocupação de um apartamento (de um edifício ainda não constituído em propriedade horizontal) de que ainda só pagou 10% do preço dele, não tem posse em termos de direito de propriedade, pelo que não pode adquirir, por usucapião, a propriedade do apartamento.

V – O direito à ocupação de um apartamento por força de um acordo relativo à entrega do mesmo, celebrado ao mesmo tempo que o contrato-promessa, caduca com a venda do edifício numa execução fiscal (arts. 824/2 do CPC e 260 do CPPT).

               

            Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            AA, com sede na Quinta de X, Lote 23, piso 0, freguesia X, concelho de X, intentou a presente acção contra RR e outros 16 réus, todos dados como residentes nas fracções autónomas daquele edifício, pedindo a condenação dos réus a reconhecerem o direito de propriedade da autora, a desocuparem as fracções autónomas, a entregá-las à autora devolutas de pessoas e de bens e a indemnizarem-na pelos prejuízos que a ocupação lhe causou e irá causar até à entrega das fracções, que liquidou no montante de 250€ por mês e por fracção, desde 21/12/1999 até à entrega.

            Para tanto, alegou, em síntese, que adquiriu o edifício por escritura de compra e venda de 21/12/1999, por negociação particular, nuns autos de execução fiscal em que era executada BB-Lda. O edifício veio entretanto a ser constituído em regime de propriedade horizontal. Os réus encontram-se a ocupar as fracções sem qualquer título que legitime tal ocupação, não obstante as notificações judiciais avulsas de que foram alvo com vista a desocuparem o imóvel; tal importa um prejuízo mensal no valor pedido, equivalente à respectiva utilização.

            Vários réus contestaram, alegando (sempre muito em síntese) que: tinham celebrado contratos-promessa de compra e venda com a anterior proprietária do edifício, a BB-Lda, entre 1986 a 1987, pagando como sinal, entre 200.000$ e 350.000$ (quase sempre 10% do preço prometido), ou adquirido, entre 1986 a 1997, a posição contratual de alguns dos promitentes-compradores; com a celebração daqueles contratos-promessa ocorreu a tradição dos apartamentos, mediante a entrega das chaves que foi então feita aos promitentes-compradores; mas os apartamentos que foram prometidos vender, não existiam enquanto tal, não tendo a BB procedido à constituição do prédio em propriedade horizontal, e, por outro lado, a prometida venda deveria ser feita livre de quaisquer ónus ou encargos, mas existia uma hipoteca sobre o prédio, a favor da CGD, que só foi cancelada em 19/12/2001, data em que o prédio, alegadamente, já havia sido comprado pela autora; assim, nunca a prometida escritura se pôde realizar por factos imputáveis à promitente vendedora.

            Deduziram pedido reconvencional, invocando, sob a menção ‘da inversão do título da posse e usucapião’ que uns meses após passarem a ocupar os apartamentos passaram a actuar como se fossem proprietários deles; desde essa data têm utilizado e fruído os apartamentos, com o conhecimento da promitente vendedora, vizinhos e demais pessoas, sem obstrução ou embaraço seja de quem for; requisitaram e têm em seu nome contratos relativos ao fornecimento de água, luz, telefone, TV Cabo e seguros de incêndio do edifício e respectivos apartamentos; aparecendo perante alguns até, nomeadamente junto da Câmara Municipal de X, como um verdadeiro condomínio; a autora é uma sociedade por quotas constituída pelos sócios F1 e F2, os quais são filhos de P, que era o sócio gerente da BB e quem subscreveu os contratos-promessa relativos aos andares e era também o sócio da CC-Lda., que terá sido a primeira proprietária do prédio e quem o vendeu à BB; assim, a autora sempre soube da situação dos apartamentos, nunca, até à data da contestação, tendo levantado qualquer oposição; bem como conhecia os contratos-promessa celebrados e a posição dos réus face ao incumprimento da promitente vendedora; a posse do réus deve considerar-se titulada, pacífica, pública e de boa-fé, e, tendo a mesma perdurado por mais de 15 anos, deve considerar-se que os réus adquiriram o direito de propriedade de cada uma das fracções que habitam e de compropriedade das partes comuns do prédio em causa, o que pedem que seja reconhecido, pedindo ainda o cancelamento do registo de propriedade.

            Para o caso da improcedência de tal pedido, dizem que ao longo dos anos que têm habitado nos andares fizeram diversas benfeitorias necessárias, tendo cada um deles, em média, despendido quantia superior a 5000€, pelo que têm direito a serem indemnizados por essas benfeitorias necessárias, devendo ainda ser reconhecido o seu direito a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, ou satisfeito o valor delas, nos termos da mesma disposição legal.

            Deduziram ainda pedido alternativo, dizendo que, para o caso de se entender que não ocorreu inversão do título da posse ou que não se verificaram os pressupostos da usucapião, sempre a posição dos réus decorrentes do contrato-promessa teria de ser considerada, designadamente, no que concerne ao direito de retenção; considerando, ainda, que a autora sabia da existência desses contratos, deve entender-se que, tendo sucedido ao promitente vendedor para ela se transmitiram os direitos e obrigações decorrentes do contrato, tendo os réus direitos de preferência sobre as fracções; sabendo da existência dos contratos-promessa, tendo sucedido à promitente vendedora e estando a autora em condições de poder cumprir a sua posição, deveria ter notificado os réus para esse efeito, consubstanciando a sua conduta um abuso de direito.

            Como os actuais ocupantes de outros apartamentos não eram os indicados pela autora, mas sim outras pessoas que, como alguns dos réus, vieram a adquirir a posição contratual de alguns dos promitentes compradores, aqueles réus deduziram ainda incidente de intervenção principal provocada destas pessoas, o que foi admitido.

            Estes novos réus vieram a contestar e reconvencionar nos mesmos termos que os primeiros.

            Uma ré contestou em separado, excepcionando também com a existência de um contrato-promessa celebrado em 1987 com a anterior proprietária do edifício, de que pagou cerca de 10% do preço prometido, tendo-lhe por isso sido entregue por aquela as chaves do apartamento para o ocupar, o que passou a fazer como se fosse proprietária do mesmo, só não se tendo realizado a escritura pública porque a promitente vendedora nunca conseguiu a legalização do prédio com a consequente constituição da propriedade horizontal “ou porque tendo prédio hipotecado à CGD, seria mais fácil deixar correr as coisas”; invoca assim a usucapião do apartamento; também deduziu pedido reconvencional, nos termos do qual alegou ter beneficiado o apartamento com obras de reparação de paredes e pinturas, por motivo de infiltração de águas pluviais, tendo gasto para o efeito a 1496,39€; invoca também o conhecimento de toda a situação pela autora, dadas as relações familiares existentes entre os sócios das sociedades. Os 300.000$ (1496,39€), entregues pela ré à promitente vendedora, terão o valor que resultar da capitalização com os juros acumulados ao longo destes mais de 15 anos; quantia que a autora terá de restituir para a hipótese de vir a proceder o pedido, acrescida da quantia das beneficiações que a ré efectuou na dita fracção; requer a intervenção principal provocada da BB (para o efeito da restituição do sinal); pede que o tribunal reconheça que a ré é dona e possuidora da fracção Q; e ainda que ordene o cancelamento do registo de tal fracção; se assim se não entender, pede que a autora e a chamada a intervir, sejam condenadas a pagar solidariamente as quantias peticionadas.

            A autora replicou e os réus treplicaram.

            O incidente de intervenção principal provocada com vista ao chamamento da BB foi indeferido.

            Houve entretanto réus que faleceram e os seus sucessores foram habilitados no lugar deles; outros réus chegaram a acordo com a autora relativo ao objecto da acção; outros entregaram entretanto as fracções; a autora foi declarada a insolvente (a 16/06/2014) tendo continuado com a administração da empresa e foi aprovado um plano de insolvência (proc. 748/14.2TYLSB, no Juízo do Comércio de Lisboa).

            Depois da audiência final, foi proferida sentença (com posterior correcção) com o seguinte teor (transcreve-se apenas, das condenações, aquelas que dizem respeito aos réus recorrentes):

         – condenam-se os réus a reconhecer o direito da autora, como proprietária do prédio constituído pelas fracções autónomas de A a Z e AA  a AE;

        – condena-se o R1, a restituir, de imediato, à autora, a fracção autónoma respectiva livres de pessoas e bens;

        – condenam-se a pagar à autora, a título de indemnização pela ocupação abusiva, os réus:

           – R2 e R3, 39.916,60€ cada um.

      – R1, o valor de 250€ mensais, desde a data da respectiva citação, até à efectiva entrega da fracção ocupada;

           – R4 e R5, 40.275€, cada um.

           – R6, 36.775€.

            – R7, 38.575€.

           – absolve-se a autora dos pedidos reconvencionais deduzidos pelos réus.

            Os réus que foram identificados expressamente nesta síntese da condenação (desconsiderando outros que entretanto chegaram a acordo com a autora) recorreram desta sentença, arguindo a nulidade do processo e a ilegitimidade substantiva da autora, pondo em causa a decisão da matéria de facto em relação a alguns dos pontos de facto, e o não se ter considerado que eles eram possuidores das fracções e as adquiriram por usucapião, bem como que a autora não teve nenhum prejuízo com a ocupação pelo que nenhuma indemnização é devida a esse título.

            A autora contra-alegou, no sentido da improcedência do recurso e levantou a questão prévia da falta de pagamento da taxa de justiça pelos recorrentes.

            O réu R8 veio entretanto arguir a nulidade da sua citação para a acção, reclamação que o tribunal recorrido não decidiu ainda; como não há fundamento legal para que a decisão deste recurso fique à espera da decisão da reclamação, dá-se desde já seguimento ao mesmo.

                                                      *

            Questões que importa decidir: a questão prévia da falta de pagamento da taxa de justiça pelos recorrentes; a nulidade do processo; a ilegitimidade substantiva da autora; a impugnação da decisão de alguns pontos da matéria de facto e seu reflexo na decisão sobre matéria de direito; se os recorrentes eram possuidores das fracções e se adquiriam por usucapião a propriedade das mesmas.

                                                      (I)

            Questão prévia – da taxa de justiça a pagar pelo recurso pelos réus coligados

            Invocando o disposto nos arts. 530, n.ºs 1, 4 e 5, e 642/2, ambos do CPC, 6, n.ºs 1 e 2, e 7/2, ambos do RCP e os acórdãos do TRL de 15/07/2015, proc. 2899/14.4TTLSB.L1-A-4, de 24/03/2011, proc. 891/09.0TBLNH.L1-2, e de 03/11/2011, proc. 825/09.1TBLNH-A.L1-6, a autora entende que cada um dos réus recorrentes devia ter pago uma taxa de justiça pela interposição do recurso, pois que os réus estão coligados entre si. Como só pagaram uma taxa de justiça, deveriam ser notificados pela secção para o fazer no prazo de 10 dias, liquidando as respectivas multas de igual montante, sob pena do desentranhamento da peça processual apresentada.

            Como a acção tem o valor de 53.420,70€ e a autora não distingue, cada um dos réus, segundo ela, devia pagar 357€ pela interposição do recurso, e como eles eram 11 réus, deviam pagar o total de 3927€, enquanto ela, a autora, só tinha que pagar 357€.

            A desproporção é tão evidente e chocante que logo deveria ter chamado a atenção para o erro da questão prévia levantada.

            Para além disso, também a redacção do art. 530/5 do CPC devia ter chamado a atenção para esse erro.

            Com efeito, o art. 530/5 do CPC diz: Nos casos de coligação, cada autor, reconvinte, exequente ou requerente é responsável pelo pagamento da respectiva taxa de justiça, sendo o valor desta o fixado nos termos do Regulamento das Custas Processuais.

            Ou seja, fala-se em autor, reconvinte, exequente e requerente, não se fala em réus, nem em executado, nem em requeridos, nem em recorrentes nem recorridos, ao contrário, por exemplo, do que acontece, no art. 530/1 do CPC, pelo que, a norma não se aplica, na acção, aos réus coligados, e não se aplica nos recursos.

            Tanto bastava para afastar a procedência da questão prévia.

            Mas pode-se esclarecer, ainda, o seguinte:

            O art. 13/7 do RCP diz:

         A taxa de justiça é fixada nos termos da tabela I-B para: 

a) As partes coligadas; 

b) O interveniente que faça seus os articulados da parte a que se associe;

c) Os assistentes em processo civil, administrativo e tributário.

            A tabela I-B do RCP é de metade do valor da tabela I-A.

           Quer isto dizer que as partes coligadas (autores ou réus reconvintes) pagam metade da taxa normal.

            Ou seja, trata-se de uma norma que prevê uma redução da taxa de justiça a pagar, um benefício para o coligado, não um agravamento.

            E compreende-se: assim como os intervenientes que façam seus os articulados da parte a que se associem, ou os assistentes em processo de outro, assim os coligados dão menos trabalho ao tribunal e justifica-se que paguem menos.

            Benefício que aliás não é muito e que teria de existir por uma questão de lógica. É que, a entenderem-se as normas de outro modo, tal levaria a um absurdo.

            Veja-se:

            Cinco credores de B, cada um com um crédito de 100.000€, diferentes entre si mas com a mesma causa de pedir, intentam cinco acções, cada um por 100.000€, tendo cada um que pagar 1020€ de taxa de justiça (tabela I-A). Ou seja, terão de pagar um total de 5100€ de taxa de justiça pelas cinco acções separadas.

            Se eles se resolverem coligar entre si, ao abrigo do art. 36/1 do CPC, cada um deles pagará apenas 510€ de taxa de justiça (tabela I-B do RCP) pelo valor correspondente ao seu crédito, como se fossem – e são – cinco acções distintas cumuladas entre si. No total pagariam 2550€.

            Se este benefício não existisse, a taxa de justiça a pagar por cada um deles seria de 1020€, pelo que, por uma acção de 500.000€ pagariam um total de 5100€ quando um autor de uma acção de 500.000€ só teria de pagar 4386€. Pelo que a redução também tinha que existir, sob pena de criar outro absurdo.

            Mas se se entendesse que cada um deles deveria pagar ½ da taxa de justiça normal pelo valor global da acção (100.000€ x 5 = 500.000€), como já se tem visto defender e decorre da posição assumida pela autora na questão prévia, eles teriam de pagar, cada um, 2193€ de taxa de justiça. O que dava o valor de 10.965€. Enquanto, como se viu, se tivessem intentado 5 acções diferentes apenas pagariam um total de 5100€ de taxa de justiça.

            Esta desproporção de valores é tão grande e tão chocante que, só por si, demonstra que estas normas nunca poderiam ser assim interpretadas. Castigar-se-iam os autores por terem tentado poupar trabalho a toda a gente, acumulando 5 acções numa só, fazendo-os pagar mais de 2 vezes a taxa de justiça normal.

            Portanto, as normas dos artigos em causa destinam-se, quase que por necessidade lógica, a reduzir a taxa de justiça a pagar pelos autores coligados. E, mais genericamente, a reduzir a taxa a pagar por aqueles que assumem uma posição activa numa acção ou num incidente e não, como já se disse acima, à parte passiva e, menos ainda, num recurso.

            Em suma, os réus, que realmente estão coligados entre si porque isso lhes foi imposto pela autora, são recorrentes e só tinham que pagar uma taxa de justiça, e não 11 taxas de justiça, porque a norma do art. 530/5 do CPC não se lhes aplica.

            Mas, se se aplicasse, ter-se-ia que ver qual o valor de cada acção cumulada que lhes diria respeito individualmente (para o que a autora teria que ter individualizado cada acção em si) e depois só teriam de pagar ½ da ½ da taxa de justiça normal por esse valor, o que necessariamente daria um valor inferior ao valor que pagaram.

(II)

Da nulidade do processo

            [omitiu-se]

            Decidindo:

            Da inexistência de decisão recorrível.

            1.º – A ter-se cometido a nulidade em causa – a desconsideração de um articulado “superveniente” – os réus tinham tido conhecimento dela pelo menos desde que, na audiência final, foi dada a palavra para alegações aos mandatários das partes.

            Tendo a nulidade ocorrido na audiência final – a consideração do articulado teria que ter ocorrido nesse momento, pelo que a omissão dessa consideração verificou-se nessa audiência -, os réus deviam-na ter arguido desde logo (art. 199/1, 1ª parte, do CPC) e perante o tribunal recorrido.

            Do despacho que recaísse sobre ela, é que os réus podiam recorrer.

            Não tendo arguido a nulidade e não dando origem a um despacho que se pronunciasse sobre ela, não há matéria de que os réus possam recorrer.

            E o recurso não pode ser convolado para a arguição de nulidade, nem que mais não fosse porque o termo para ela ocorreu na audiência final, como já referido.

                                                      *

            Da inexistência de articulado superveniente.

            De qualquer maneira diga-se o seguinte:

            2.º – O articulado dos réus de 09/06/2016 é uma pronúncia sobre apresentação de documentos, misturada com a dedução de uma excepção dilatória (veja-se que os réus diziam que “a autora é parte ilegítima na presente acção”). Ou seja, um articulado apresentado ao abrigo dos arts. 427 e 443 e 573/2, todos do CPC.

            Esta pronúncia e dedução da excepção não podem ser interpretadas como um articulado superveniente de alegação de factos novos (art. 588 do CPC) com reflexos na legitimidade substancial da autora, que a parte tivesse sujeito à apreciação do juiz (art. 588/4 do CPC) para que este o rejeitasse ou admitisse, introduzindo novos temas de prova para serem objecto de instrução em julgamento. Não foi isto o que os réus quiseram realmente em termos prático-jurídicos, tanto que, não tendo o articulado levado à introdução de novos temas de prova, nada disseram, deixando encerrar a audiência, sem arguir a nulidade dessa omissão.

                                                      *

            Da inexistência de uma excepção de ilegitimidade substantiva

            Por fim,

            3.º – Aquilo que se pode tirar da argumentação dos réus é, em síntese, o seguinte: do decurso do depoimento de duas testemunhas da autora decorreriam factos que imporiam a conclusão de que a autora não é proprietária das fracções, mas um mero testa-de-ferro de uma daquelas testemunhas; a autora teria sido utilizada para aparecer perante o fisco como a proprietária do edifício, de modo a que não fossem pagos determinados impostos. Ora, se a autora não é proprietária, concluir-se-ia, não pode reivindicar as fracções do edifício, nem a indemnização pelos prejuízos causados com a sua ocupação pelos réus.

            Aceitando-se, a benefício da discussão, que os factos são estes, os mesmos não teriam interesse para a discussão da causa pelo seguinte: a existência de um testa-de-ferro, proprietário registado, no lugar do verdadeiro proprietário das fracções em causa, para evitar o pagamento de impostos (o que é uma fraude à lei: art. 38/2 da Lei geral tributária – a questão é desenvolvida, também em termos genéricos, por Carlos Ferreira de Almeida, em Contratos, V, Almedina, Set2017, págs. 190/197), não é uma situação que prejudique os réus e que, por isso, eles possam invocar para evitar a obrigação de restituir as fracções se não tiverem título para a ocupação que fazem delas ou para evitar a condenação na indemnização por essa ocupação.

            Não sendo eles os proprietários – se não o forem realmente (questão a apreciar mais à frente) – e estando a autora registada como proprietária das fracções em resultado de uma fraude montada pela referida testemunha, aos réus nunca poderão vir a ser exigidas, pela testemunha, responsabilidades por terem restituído as fracções e pago a indemnização à autora, se a condenação for confirmada neste recurso.

            Pelo que, por não serem titulares de qualquer relação prática, económica ou jurídica que possa ser prejudicada, directa ou indirectamente, pela fraude em causa (era desta titularidade que derivaria a sua legitimidade para arguir qualquer nulidade: art. 286 do CC: neste sentido, a doutrina e jurisprudência referidas no ac. do TRP de 21/01/2016, proc. 310/10.9TVPRT.P1, publicado em https://outrosacordaostrp.com e a obra citada de Carlos Ferreira de Almeida, págs. 230 a 234, para a arguição da nulidade, sendo que o mesmo deve valer, por identidade de razão, para arguir a ineficácia em sentido restrito decorrente da fraude à lei) não podem vir invocar a ineficácia dela decorrente para evitarem ter de restituir as fracções ou pagar as indemnizações pela ocupação abusiva. Pois que isso, em vez de evitar um prejuízo, lhes traria um injustificado benefício.

            Dito de outro modo: seria um absurdo que se considerasse procedente a pretensão de os réus não serem obrigados a restituir as fracções àquela que é a proprietária registada delas (como tal presumida proprietária perante qualquer terceiro, por força do art. 7 do CRP) ou a pagar-lhe indemnizações pela ocupação ilegítima, dizendo que não o tinham de fazer porque o verdadeiro proprietário era a testemunha que se escondia detrás da autora.

            Pois que o que interessa, no que lhes diz respeito, é que, seja a testemunha ou a autora a proprietária das fracções, eles réus não são proprietários delas e não as podem estar a ocupar (se assim se concluir no fim da acção).

            Tal como seria um absurdo, mais tarde, admitir que os réus se imiscuíssem na discussão de quem – se a autora se a testemunha – é proprietária das fracções. Ou viessem a intervir numa acção entre a autora e a testemunha, ao lado de uma delas, para fazer valer a titularidade daquela que apoiassem.

(III)

Da alegada ilegitimidade substantiva da autora:

            [omitiu-se]

            Decidindo:

            Esta questão está prejudicada pela anterior. Não tendo os factos alegados sido objecto de prova por não terem sido introduzidos no processo, os mesmos não podem ser agora introduzidos neste recurso.

            Pelo que, a questão da procedência da acção tem que ser decidida com base apenas nos factos dados como provados e não nos factos que constariam do articulado de 09/06/2016, não interessando saber se estes últimos poderiam ou não estar provados pelos elementos de prova produzidos quanto a outros factos.

            É também isto que, na parte que interessa, diz a autora em resposta àquela argumentação dos recorrentes.

            De qualquer modo esclareça-se ainda o seguinte: a legitimidade material de uma parte não é, em si, uma excepção, mas um simples termo usado “para designar o complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque” (Castro Mendes, Direito processual civil, II, AAFDL, 1980, pág. 174). Pode, por isso, basear-se em factos que consubstanciam uma excepção (já que, segundo o art. 571/2 do CPC, existe defesa por excepção quando se alegam factos que obstam à apreciação do mérito da acção ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido), mas a questão não tem autonomia da questão da procedência ou improcedência da acção.

            Não há, pois, uma excepção de ilegitimidade material como objecto possível de uma acção, como pretendem os recorrentes, mas sim matéria de excepção que pode ter relevo ou não para a questão de mérito.

            Não tendo os factos que os réus queriam introduzir sido admitidos no processo, a questão de mérito continua a ser a mesma, mas a ser decidida só com outros factos e não também com aqueles. 

(IV)

Da impugnação da decisão da matéria de facto

            Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos (põem-se os primeiros 6 pontos por ordem cronológica, com alteração formal da redacção de alguns deles por uma questão de simplificação; os pontos 42 e 43 foram agora acrescentados face ao decidido mais à frente):

  1. O prédio urbano sito na Quinta X, lote 23-norte, está descrito na Conservatória do Registo Predial de X sob o n.º 00000 desde 27/04/2000, correspondente ao prédio 000 de fls. 174 B 82.
  2. Por ap. 34/19/01/1981 foi registada a favor da CGD uma hipoteca voluntária sob o prédio constituída pela WW-Lda.
  3. Por ap. 68/21/02/1983 foi registada a aquisição do prédio por BB por compra à CC.
  4. Por ap. 16/31/08/1984 foi registada a constituição de hipoteca a favor da CGD para garantia do empréstimo de 50.000.000$.
  5. Por ap. 18/2000/12/19 foi registada a aquisição do prédio a favor da autora por escritura de compra e venda de 21/12/1999, em venda por negociação particular nos autos de execução fiscal n.º 286/90, em que era exequente a CGD e executada a BB e na descrição foi averbado, nessa data, que o prédio encontra-se ainda em construção.
  6. Por ap. 32/2001/07/16 foi averbado à descrição que a construção encontra-se concluída e foi registado o título de constituição da propriedade horizontal do prédio (escritura de 29/06/2001), com as seguintes fracções autónomas: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Z, AA, AB, AC, AD e AE.

      6-A. A autora é proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras seguintes: J, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, X, Z, AA, AB, AC, AD e AE [este ponto passa a ter a seguinte redacção por força do decidido mais à frente neste acórdão]: Depois do registo da constituição da propriedade horizontal não consta qualquer outra inscrição de aquisição sobre tal prédio.

  1. Os réus residem nas fracções autónomas designadas pelas seguintes letras: [omitiu-se]
  2. A autora requereu a notificação judicial avulsa dos seguintes réus: [omitiu-se]
  3. A utilização das fracções autónomas referidas em 7 importa um valor mensal de, pelo menos, 250€ cada. [a rasura resulta do decidido mais à frente neste acórdão].
  4. Por escrito particular, datado de 08/10/1997, designado por contrato de cessão de posição contratual […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente ao 3F.
  5. Por escrito particular, datado de 20/112001, designado por declaração […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente ao 4A.
  6. A fracção autónoma correspondente ao 4I foi atribuída, a 15/11/2001, na qualidade de casa de morada de família, a […], no âmbito do processo em que se divorciou de […].
  7. Por escrito particular datado de 15/05/1987, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de primeiro outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de segundo outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente ao à letra D, pelo valor de 3.200.000$, sendo que a primeira outorgante recebeu nesta data a importância de 200.000$.
  8. Por escrito particular datado de 28/02/1987, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de primeiro outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de segunda outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente ao à letra I, pelo valor de 3.300.000$, sendo que a primeira outorgante recebeu nesta data a importância de 300.000$.
  9. Por escrito particular datado de 03/08/1987, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de primeiro outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de segundos outorgantes, declararam prometer comprar, a fracção autónoma correspondente ao à letra G, pelo valor de 3.450.000$, sendo que a primeira outorgante recebeu nesta data a importância de 150.000$, tendo sido acordado que a 2ª outorgante entregará 150.000$ a título de reforço de sinal no dia 03/10/1987.
  10. Por escrito particular datado de 28/02/86, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de 1º outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de 2ª outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente à letra J, pelo valor de 3.200.000$, sendo que a 1ª outorgante recebeu nesta data a importância de 200.000$, tendo sido acordado que a segunda Outorgante entregará 50.000$ a título de reforço de sinal em Abril de 1986.
  11. Por escrito particular, datado de 08/10/1997, designado por contrato de cessão de posição contratual […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente à fracção J.
  12. Por escrito particular datado de 09/02/1987, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de 1º outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de 2º outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente à letra D, pelo valor de 3.300.000$, sendo que a 1ª outorgante recebeu nesta data a importância de 250.000$, tendo sido acordado que a 2ª outorgante entregará 50.000$ a título de reforço de sinal.
  13. Por escrito particular, 23/07/1999, designado por declaração, […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente à fracção D.
  14. Por escrito particular, datado de 07/05/1986, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de 1º outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de 2º outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente à letra E, pelo valor de 3.200.000$, sendo que 1º outorgante recebeu nesta data a importância de 300.000$.
  15. Por escrito particular, datado de 13/11/1995, designado por declaração, […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente à fracção E.
  16. Por escrito particular, datado de 12/08/1986, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de 1º outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de 2º outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente à letra H, pelo valor de 3.200.000$, sendo que a 1º outorgante recebeu nesta data a importância de 200.000$.
  17. Por escrito particular, datado de 11/09/1995, designado por declaração, […] transmitiu a […] a fracção autónoma correspondente à fracção H.
  18. A hipoteca referida no ponto 3 foi cancelada em 2001/12/19.
  19. Após a assinatura dos acordos e declarações referidas nos pontos 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23, as pessoas aí referidas foram autorizados a residir nas fracções autónomas, mediante a entrega de chave.
  20. O que fizeram tendo utilizado e fruído das mesmas, com o conhecimento da BB, vizinhos e demais pessoas, sem obstrução ou embaraço seja de quem for.
  21. Alguns dos réus têm em seu nome contratos relativos ao fornecimento de água, luz, telefone, TV Cabo e seguros de incêndio do prédio e respectivos andares.
  22. A Câmara Municipal de X dirigiu a comunicação de uma vistoria técnica ao administrador do condomínio do prédio.
  23. Alguns dos réus pintaram as fracções autónomas e isolaram-nas contra a chuva.
  24. (…) Colocaram torneiras e louças nas cozinhas e casas de banho.
  25. (…) Fizeram instalações eléctricas.
  26. (…) Procederam a diversas obras ao nível da canalização, janelas e vidros.
  27. Por escrito particular, datado de 28/02/1987, designado por contrato-promessa de compra e venda e recibo de sinal a BB, na qualidade de 1º outorgante, declarou prometer vender, e […], na qualidade de 2º outorgante, declarou prometer comprar, a fracção autónoma correspondente à letra H, pelo valor de 3.300.000$, sendo que a 1º outorgante recebeu nesta data a importância de 300.000$.
  28. A escritura pública nunca foi celebrada, porque a BB não constituiu o prédio em propriedade horizontal.
  29. Procedeu à elaboração do contrato de fornecimento de água, pagando a mesma.
  30. Os réus/chamados não interpelaram a BB para celebrar os contratos prometidos.
  31. Por escrito de 12/02/86, foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda entre BB (p vendedora) e […] (p. comprador), da fracção A (piso 3), do prédio em questão, pelo preço de 3.000.000$, tendo a promitente vendedora recebido a quantia de sinal de 150.000$, sendo o restante a pagar no acto da escritura a realizar no prazo de 180 dias.
  32. Por escrito de 10/04/87, foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda entre BB (p. vendedora) e […], da fracção J (piso 4), do prédio em questão, pelo preço de 3.550.000$, tendo a promitente vendedora recebido a quantia de sinal de 50.000$, com reforço a receber de 250.000$, sendo o restante a pagar no acto da escritura a realizar no prazo de 180 dias.
  33. Por escrito de 31/03/1995, […] declara ceder a sua posição contratual a […] pelo preço de 700.000$
  34. Os documentos escritos referidos nos pontos 10, 11, 13 a 23, 33 e 37 a 39 da matéria de facto provada, mostram-se assinados pelos punhos dos seus signatários.
  35. Em sede do processo de execução fiscal n.º 3573199007000308, em que é executada a BB na sequência de notificação por parte da autoridade tributária e aduaneira: – os réus […] em 20/01/2016 entregaram as chaves das fracções autónomas que constituem o imóvel referido em 1; os herdeiros de […] em 21/01/2016 entregaram a chave da fracção autónoma respectiva do imóvel; os réus […] em 03/03/2016 entregaram as chaves das fracções autónomas que constituem o imóvel referido em 1.
  36. A autora sempre soube da situação dos andares.
  37. A autora conhecia os contratos-promessa celebrados pelos réus.

                                                     (V)

            Os recorrentes impugnam a decisão de dar como provado o que consta do ponto 9: a utilização das fracções autónomas referidas em 7 importa um valor mensal de, pelo menos, 250€ cada.

         [omitiu-se…]

            Decidindo:

            – uma das duas testemunhas invocadas (SG) é um empresário da construção civil e não alguém ligado ao arrendamento de apartamentos; é uma pessoa das relações pessoais da testemunha JMVA (que, como se verá, diz ser o comprador do edifício e quem lhe encomendou as obras de que fala); é perguntado sobre o valor da renda e respondeu logo 300/350€/mês; não diz minimamente como é que chegou a este valor, não o explica, não dá exemplos de casos semelhantes; depois esclarece que aquele valor é partindo do princípio que o estado das fracções era normal; diz, no entanto, que, à data, nunca entrou em qualquer fracção, não viu absolutamente nada, não sabe como é que estava o interior; mas, quanto ao exterior, diz que o edifício estava num estado tal de degradação que precisava urgentemente de uma intervenção, com ferros a começar a oxidar, rebocos a rebentarem, telas de impermeabilização desfeitas; diz que foi a sua empresa que fez estas obras, mas só no exterior (num total de cerca de 50.000€) e que elas têm um prazo de duração de 10 anos; não fez quaisquer obras no interior das fracções; diz que o valor de venda das fracções era de 50.000€ ou 60.000€; diz que o edifício tinha, à data, cerca de 10 anos [mas à data (fins de 2001) tinha pelo menos 16 anos].

            – a outra testemunha invocada (MA) foi quem tratou da normalização do edifício para que as fracções pudessem ser vendidas, podendo-se considerar que esta acção é uma das fases dessa normalização, inserindo-se o depoimento da testemunha como um dos actos destinado a essa normalização; foi contactado pelo representante da autora, JMVA; responde que sim quando é perguntado sobre se as tipologias eram praticamente idênticas e esclarece que quase tudo eram T2. Diz que o preço de venda era praticamente igual, com alguma autonomia para negociarmos (10%…). 60.000€ (= 12.000 contos) era o valor base. Diz que foram feitas obras também nas partes internas, dentro das fracções (em casos pontuais). O mandatário da autora pergunta-lhe então sobre o valor locatício e a testemunha refere o valor de 14.000 ou 15.000 contos e até mais (ou seja, já estamos em 70, 75.000€ ou mais para o valor de venda das fracções, quando atrás tinha referido 12.000 contos e não justificou minimamente a mudança). Esclareceu que se está a tratar de casas com 60 e tal m2. O mandatário da autora volta-lhe a pedir o valor locatício. A testemunha insiste em falar do valor da venda. A Srª juíza tem que lhe lembrar que se trata do valor locatício… A testemunha lá diz 400€… (= 80 contos), à data. Depois diz 350€. 70 ou 80 contos por mês para incluir as casas que pudessem estar em mau estado. 80 contos para fracções em bom estado. Não entrou em todas as casas.

            Posto isto,

            Os contratos-promessa existentes nos autos foram celebrados entre Fev86 e Agosto de 1987 (e junto com eles os réus foram autorizados a ocupar as fracções, pelo que o edifício já existia), indo os preços de 3.200.000$ a 3.450.000$, numa média de 3.250.000$ (factos 13, 14, 15, 16, 18, 20, 22, 33, 37 e 38). Ou seja, perto de 16.250€.

            Tendo em conta a inflação entre Fev86 e Dez2001, de 179%, aquele valor passou a ser de 45.337,50€, ou seja, 9067,50 contos, em 2001. [fez-se o cálculo utilizando o sítio: http://fxtop.com/pt/calculadora-de-inflacao.php?A=100&C1=PTE&INDICE=PTCPI2013&DD1=01&MM1=02&YYYY1=1986&DD2=16&MM2=12&YYYY2=2001&btnOK=Calcular+equivalente].

            Ou seja, não muito longe dos 50.000€ (= 10.000 contos) de que fala a primeira testemunha, mas muito longe dos 60.000€ (= 12.000 contos de que ela também fala, tal como a segunda, e mais longe ainda dos 14.000, ou 15.000 contos ou mais de que a segunda testemunha fala logo a seguir sem minimamente justificar a alteração.

            Mesmo o valor de 9067 contos por fracção (de 60m2), para um edifício com mais de 16 anos (resulta do facto de as chaves terem sido entregues com a celebração dos contratos-promessa, sendo vários de inícios de 1986; na inquirição do perito, o advogado da autora diz que o edifício tinha 20 e tal anos à data da ida ao local do perito, 2008), naquele estado de degradação exterior de que fala a primeira testemunha, que necessariamente se reflecte no interior (o contrário é que seria estranho – do que foi dito pelo perito que prestou esclarecimentos quanto ao relatório pericial de fls. 964 a 968, também resulta esse mau estado quanto ao interior e mais: o edifício estava a ceder a nível de fundações) é já especulativo, longe da realidade.

            Em suma, quanto ao valor de venda, tendo em conta o que antecede, não se aceita o valor de 50.000€ (= 10.000 contos) dado pela primeira testemunha, e muito menos os valores absurdos dados pela segunda testemunha que variam entre os 12.000 contos e mais de 15.000 contos.

            O valor real será, quando muito, de 9067 contos.

            Ora, o valor de arrendamento normal de um imóvel não anda longe daquele que resulta do cálculo da amortização do investimento feito na compra do imóvel em 20 anos, ou seja, uma taxa de 5% ao ano. Isto é, um imóvel de 45.000€, se for arrendado por 187,50€/mês, ao fim de 20 anos terá rentabilizado o necessário para pagar o investimento feito (187,50€ x 12 meses x 20 anos = 45.000€).

            Pelo que, o valor razoável de arrendamento das fracções (a valerem cerca de 45.000€) seria de 187,50€/mês. O valor de 250€ por mês, que consta do ponto 6 dos factos provados, corresponde, por isso, a um valor do imóvel de 60.000€.

            Ora, esse valor (12.000 contos) é, como já referido, inaceitável.

            Não é aceitável pensar que um imóvel (uma fracção com 60m2) que valia, em Fev1986, 3000 contos, tivesse passado a valer em Dez2001, 60.000€ (12.000 contos), muito acima do valor da inflação, apesar de estar mais velho 16 anos e estar num estado tal de degradação que precisava de intervenção urgente, tendo só sido feita intervenção exterior (a 2ª testemunha fala também de intervenções interiores, mas sem prova nenhuma de que de facto elas tenham sido feitas).

            Tudo isto é suficiente para se dizer que não é aceitável o valor de 250€ mês que consta do ponto 9.                     

            Tendo ainda em consideração:

            – o estado dos apartamentos, desde sempre a precisar de obras, como resulta das transcrições dos depoimentos feitas em baixo a propósito do ponto não provado sob 3 (bem como do que foi dito pelo perito; note-se aliás que o imóvel ainda não estava concluído em 2000 e no entanto os apartamentos foram entregues para ocupação em 1986/1987);

            – que não foi feito o mínimo de prova documental dos valores que à data se praticavam para apartamentos do mesmo tipo (que não se sabe qual é), prova que seria fácil de fazer – jornais com anúncios de arrendamentos de apartamentos por esses preços ou contratos de arrendamento do mesmo tipo de apartamentos -, pelo que o não ter sido feita aponta para a não coincidência dela com o que foi dito pelas testemunhas;

            – que se as testemunhas tivessem realmente credibilidade, teriam sido aceites os valores que elas invocavam, e não um valor bastante abaixo;

            Considerando isto tudo, pois, não se aceita que se possa falar de um valor mínimo de 250€/mês para qualquer uma das fracções em causa nestes autos. Um valor que é aleatório e que, por isso, pode ser certo para algumas das fracções, ou até ser mais baixo do que o real para outras, mas que se pode revelar muito mais elevado do que o real em relação a outras (ou melhor, para a maior parte das outras); note-se aliás que, como resulta do título constitutivo da propriedade horizontal, um dos apartamentos ocupados não é nenhuma fracção autónoma, mas uma parte comum, a casa de porteira, composta por uma casa assoalhada, uma casa de banho e uma cozinha. Ora, como cada “fracção” está ocupada por réus diferentes, não haveria qualquer hipótese de se considerar que de algum modo a injustiça de se dar a uma delas um valor de arrendamento muito mais alto do que o real, seria compensado por uma outra ficar com um valor muito mais baixo do que o real.

            Assim, deve ser eliminado, do ponto 9, o valor concreto da renda, sem substituição por nenhum outro, visto que os cálculos que se fizeram acima foi para ver se os valores indicados eram ou não razoáveis, não sendo suficientes para dar como provado qualquer outro, por força do que aí se diz.

(VI)

Ponto de facto não provado 4 (= 21)

       O tribunal recorrido não deu como provado a seguinte afirmação de facto feito pelos réus:

  1. A autora sempre soube da situação dos andares, nunca, até essa data, tendo levantado qualquer oposição [a expressão ‘até esta data’ refere-se à data da contestação].

            O tribunal fundamentou assim a decisão:

        No que concerne aos factos constantes dos pontos não provados sob 4, 5 e 6 não lograram os réus demonstrá-los, como lhes incumbia, sendo que resultou do depoimento da testemunha MA, bem como, do depoimento de alguns anteriores moradores, que foram realizadas várias reuniões, entre estes e um representante da autora, com vista a resolver a questão das ocupações das fracções pelos réus. Por sua vez, não foi junto qualquer assento de nascimento com vista a demonstrar que foram os filhos do sócio gerente da BB que subscreveram os contratos-promessa em questão, de modo a sustentar que a autora conhecia os contrato-promessa celebrados pelos réus.

            Os recorrentes entendem que estas afirmações deviam ter sido dadas como provadas pelo seguinte:

         Com efeito, dos depoimentos prestados por testemunhas da própria autora, nomeadamente de JAPVA, JMVA e MA, resulta claramente que a autora tinha conhecimento dessa situação, ainda antes da aquisição do imóvel.

         Veja-se o afirmado pela testemunha JAPVA, a instâncias do mandatário da autora (depoimento gravado em suporte digital, C.D., no dia 26.04.2016, entre os minutos 07:34 e 08:10):

         Mandatário da AA: A AA… tinha conhecimento que as fracções todas, parte das fracções, algumas estavam ocupadas e eventualmente sem… sem nenhuma espécie de… de título que legitimasse essa… essa ocupação?

         Testemunha: Sôtor, penso que a AA… estavam ocupados… sete…

         Mandatário da AA: O que é que a AA lhe disse a si?

         Testemunha: O que a AA nos disse foi que havia… havia ocupados… imóveis ocupados, portanto… com ocupantes, mas, eh… que o prédio também seria vendido livre de ónus ou encargos pelo que as pessoas iriam sair ou fazer acordos.

         Para além de que, conforme afirmou a mesma testemunha, a autora ocupava uma arrecadação do imóvel muito antes do prédio ter sido objecto de execução (depoimento gravado em suporte digital, C.D., no dia 26.04.2016, entre os minutos 40:39 e 43:20):

         Mandatária dos RR: Portanto eu estou a tentar perceber uma coisa. Portanto… a AA, tinha então um… um armazém, portanto, uma garagem, aqui neste imóvel do… do… dos X.

         Testemunha: Exactamente.

         Mandatária dos RR: E em que título é que… se souber, a que título é que a AA, portanto, no fundo, se encontrava nesse… nesse imóvel? Tinha um contrato promessa, tinham feito a aquisição do imóvel?

         Testemunha: Sôtora, não tinha, não tinha nenhum contrato. Estava, estava a ocupar porque efectivamente o prédio foi tanto… foi sendo ocupado por várias… por várias vendas… havia, na altura, a BB, foi construída por uma pessoa que… que era… era e é, o meu sogro, portanto…, e na altura havia o interesse efectivamente da AA ficar com uma das fracções para armazém porque o… dedicava-se ao comércio… de materiais de construção, cozinhas, e… e tinha uma fábrica inclusiv… cozinhas. Portanto, haveria o interesse de ficar… com uma das fracções. As coisas terão corrido mal… o prédio terá sido… ido a venda por, por dívidas da BB, a AA continuou… nesse… nesse espaço, a ocupar esse espaço… durante todo esse tempo. Daí que houvesse interesse, efectivamente da parte da AA de… continuar e de adquirir o prédio. Depois…

         Mandatária dos RR: Portando a BB que era do… do seu sogro, certo?          Cedeu portanto esse espaço à AA? Uma cedência, um empréstimo.

         Testemunha: Sôtora, se foi cedência, se foi empréstimo…

         Mandatária dos RR: Não sabe.

         Testemunha: …eu não sei porque eu na altura… não tinha, portanto… a AA existe desde 1986.

         Mandatária dos RR: E portanto é… a AA, portanto os sócios também já disse aqui ao tribunal, seriam um cunhado e a… irmã?

         Testemunha: Minha esposa, exactamente.

         Mandatária dos RR: A esposa.

         Testemunha: E a esposa.

         Mandatária dos RR: A esposa. Eu há bocado fiquei na dúvida se seria… se seria a irmã. Portanto era o seu cunhado e a sua esposa e a BB era do sogro.

         Testemunha: Exactamente.

         Mandatária dos RR: Ok. Muito bem. Se a AA estava portanto a ocupar este… este espaço, sabia que o prédio estava, portanto, ocupado. Haviam casas que estavam ocupadas por… por outras pessoas. E havendo esta relação de proximidade, pergunto-lhe se tinham ou não conhecimento destes contratos promessa que tinham sido feitos entre a BB e, pelo menos algum mas não diria todos, mas pelo menos algumas das pessoas que estavam a ocupar o… o prédio.

         Testemunha: Sôtora… como eu já disse… e eventualmente a AA podia saber se estavam ocupados ou não… nós também soubemos… na altura, no leilão até porque estiveram pessoas presentes… que estavam lá a ocupar e acabámos por fazer acordos com algumas das pessoas.

         Resulta, portanto, do depoimento supra transcrito que a autora ocupava uma arrecadação do imóvel há vários anos.

         Para além de que, como afirma expressamente a testemunha, os sócios da AA eram filhos dos sócios da BB, anterior proprietária do imóvel. Pelo que tinha, forçosamente, conhecimento directo de que as fracções do imóvel estavam ocupadas pelos recorrentes.

         Este facto foi igualmente confirmado pela testemunha JMVA que, tal como já foi referido, representou a autora na escritura de compra e venda (cfr. doc. junto aos autos) (depoimento gravado em suporte digital, C.D., no dia 26.04.2016, entre os minutos 27:33 e 28:27):

         Mandatária dos RR.: Mas… o que eu agora queria aqui analisar, foi portanto, esta… esta primeira reunião que disse que… que teve com as pessoas que estavam… no… no prédio e portanto para promover esta reunião eu pergunto-lhe quando é que teve conhecimento que existiam pessoas que estavam a residir no prédio, a ocupar estas fracções. Quando é que tem esse conhecimento?

         Testemunha: Quando tive esse co… conhecimento… antes de o adquirir.

         Mandatária dos RR.: Teve conhecimento que estavam lá pessoas…

         Testemunha: Que estavam lá pessoas…

         Mandatária dos RR.: …antes de adquirir…

         Testemunha: … an… antes porque no leilão… no leilão, precisamente, o… a leiloeira disse-me que o prédio estava pre… era vendido sem ónus ou encargos. Que estavam lá pessoas mas não tinham qualquer direito e que sairiam logo que eu o adquirisse.

         A autora tinha conhecimento desta situação.

         Aliás, do que se retira dos próprios depoimentos prestados é que o conhecimento da situação dos imóveis não relevava para o efeito.

         Resulta que a autora tinha a convicção de, sendo o prédio vendido em hasta pública sem ónus ou encargos, os ocupantes teriam forçosamente de chegar a acordo ou de desocupar as casas.

         Pelo que, do seu ponto de vista, conhecer da situação dos imóveis seria irrelevante.

         Também a testemunha da autora MA, consultor imobiliário, confirmou este conhecimento quando disse ao Tribunal que (depoimento gravado em suporte digital, C.D., no dia 19.04.2016, entre as 32:42 e 33:26):

         Mandatária dos RR.: Senhor MA, portanto, tomando aqui então… Em 99 é procurado pela AA, segundo percebi, para tratar de documentação de modo a poderem vender as fracções ao… do prédio que iriam, portanto, constituir em propriedade horizontal. É isto com..

         (…)

         Mandatária dos RR.: Nessa altura a AA sabia que… que o prédio estava ocupado por estas pessoas que… com os quais disse que teve reuniões? Era do conhecimento da AA em 99 este facto?

         Testemunha: Sim.

         Com base no supra exposto, não restam quaisquer dívidas que a autora sempre soube da situação dos andares.

         Pelo que devem estes factos ser incluídos na matéria dada como provada.

             A autora entende que os factos em causa não estão provados, pelo seguinte:

         No que respeita a estes factos, alegam os recorrentes que a autora tinha conhecimento que as fracções estavam ocupadas, ainda antes de ter adquirido o imóvel, baseando-se para tanto, nos depoimentos das testemunhas da autora, JAPVA, JMVA e MA.

         Ora, o que resulta dos depoimentos das testemunhas JAPVA (sessão da audiência de julgamento de 26.04.2016, das 09:45:04h às 10:47:40 h) e JMVA (sessão da audiência de julgamento de 26.04.2016, das 10:47:41 h às 11:20:50 h) é que a autora adquiriu o prédio em venda por negociação particular nos autos de execução fiscal n.º 286/90, em que era exequente a CGD e executada a BB, aquisição livre de ónus e encargos.

         Referiram efectivamente tais testemunhas no decurso dos seus depoimentos ter a autora tido conhecimento que algumas das fracções estariam ocupadas, tendo-lhes sido transmitido que após a venda, as pessoas ou sairiam ou fariam negócio com a adquirente, já que tal prédio se destinava à revenda, por não disporem de titulo que legitimasse tal ocupação.

         O que se veio a confirmar em vários casos, como também referiram, dado que foram feitas vendas a vários ocupantes, mas também a terceiros (não ocupantes) e outorgados contratos-promessa com outras pessoas.

         Ou seja, a autora teve conhecimento de algumas ocupações, mas que as mesmas eram ilegítimas, tanto assim é, que as pessoas que ocupavam as fracções e que se mantiveram na sua ocupação, souberam da venda do imóvel que foi largamente publicitada, tendo o prédio aliás estado para vender, sem sucesso, durante vários anos, mas apesar disso nunca reclamaram qualquer direito no processo de execução fiscal, nem nunca abordaram a adquirente após a compra, com esse propósito.

         Mais, referiram ainda tais testemunhas que após a aquisição, a autora diligenciou por todas as formas ao seu alcance no sentido da desocupação das fracções ocupadas, inclusivamente, accionando os mecanismos próprios no âmbito do processo de execução fiscal, como aliás comprovou nos autos através dos autos de entrega coerciva elaborados pelo serviço de finanças que juntou.

         E intentando a presente acção, a qual foi precedida de notificações judiciais avulsas aos recorrentes.

         Sendo pois falso, que a autora tivesse conhecimento das ocupações e que após a aquisição do imóvel não tivesse manifestado qualquer oposição à permanência da ocupação das fracções pelos recorrentes, e por aqueles que os precederam na referida ocupação.

            Decidindo:

            Note-se que está só em questão o saber se a autora sempre soube da situação dos andares, nunca, até essa data [data da contestação], tendo levantado qualquer oposição.

            Ou seja, trata-se só de saber se antes da aquisição do edifício a autora sabia da situação dos andares – que eles estavam ocupados por pessoas que diziam ter contratos-promessa sobre eles e autorização para os ocupar – e se depois disso e até à data desta acção, não deduziu qualquer oposição a isso.       

            Ora, quanto ao conhecimento é por demais evidente que existia.

            A CC era a proprietária do prédio em 1983 e o seu sócio e gerente era P. Esta sociedade vendeu o edifício à BB em 1983, de que também era sócio e gerente o P. A autora (AA), constituída em 18/02/1986 pelos sócios e gerentes conjuntos, F1, casado, e F2, então solteira e maior (fls. 229/230), tinha como únicos sócios e gerentes os dois filhos do P. E assim continuava a ser em 10/12/1999, data do contrato-promessa junto pela autora no requerimento de 27/05/2016, mas entretanto já a filha era casada com JAPVA, que é filho de JMVA (casado com ERPRSPA) que foi o verdadeiro comprador [como decorre inequivocamente do depoimento das duas testemunhas invocadas na parte III deste acórdão que se refere à ilegitimidade substantiva, conforme passagens aí transcritas] do edifício (pelo qual logo pagou mais de 100.000.000$ – na cl.ª 3ª do contrato-promessa diz-se que promete vender, pelo preço de 105.894.736$, tendo a promitente vendedora logo dado quitação do valor de 100.600.000$), para além de, por isso, genro do referido P, o sócio-gerente da CC e da BB e pai dos sócios gerentes da autora. Para além disso, este verdadeiro comprador do edifício, era, tal como a mulher e o filho (casado com a filha do P), representante da autora, com poderes irrevogáveis dela para vender as fracções do edifício [a procuração diz, em síntese: os filhos do P, únicos sócios e gerentes da autora, constituem bastante procuradores da sociedade autora, JMVA e mulher Edite Rosa, e JAPVA, e concedem-lhes poderes para, em conjunto ou separadamente, constituir no regime de propriedade horizontal o prédio, podendo também vender a quem quiserem, pelos preços e condições que entenderem, podendo eles ser os compradores, em conjunto ou individualmente, as fracções autónomas, recebendo os preços e desde dar quitação, constituir sobre elas hipotecas ou outros encargos, outorgando e assinando as competentes escrituras, bem como contratos de promessa de compra e venda, etc. Esta procuração é passada no interesse dos mandatários, sendo por isso, e em conformidade com o disposto no art. 265/3 do CC, irrevogável, não se extinguindo nem caducando, sequer, em caso de extinção e liquidação da sociedade sua representada – fls. 2318 a 2310 da versão do processo electrónico disponível neste TRL, sendo um dos documentos juntos com o requerimento de 27/05/2016]. Mais, na clª 2ª do contrato-promessa (celebrado antes da compra pela autora, como sublinham os réus), diz-se que o prédio era prometido vender nas condições em que o mesmo se encontra e que são do conhecimento dos promitentes vendedores.

            Ora, tendo em conta a importância do negócio, o facto de todos serem maiores de idade (e já o eram em 1986) – não se trata pois de um pai que utiliza o nome dos filhos menores na constituição de uma sociedade -, e as relações familiares e negociais entre eles (a relação de mandato representativo entre o verdadeiro comprador do edifício, a sua mulher e filho, e a autora, de que os filhos do P são únicos gerentes e sócios e casados com um dos filhos daquele e nora do outro), é inconcebível a hipótese contrária de os filhos do P (únicos sócios-gerentes da autora, repete-se) não terem conhecimento da existência dos contratos-promessa feitos por este (como gerente da BB) e da autorização que este tinha dado aos réus para ocuparem as fracções prometidas vender. De resto, como se referiu, há o cuidado de, no contrato-promessa, se dizer que a situação em que estava o prédio era conhecida, conhecida de todos (promitente vendedora e promitentes compradores) evidentemente. Mais ainda, a autora, como é referido pelos réus, ocupava um espaço no prédio, e sendo ela constituída pelos filhos do dono do mesmo, é de novo inconcebível que eles não tivessem conhecimento de toda a situação.

            Aliás, decorre do depoimento das testemunhas da autora supra referidas que assim é, embora façam reservas e ressalvas [por exemplo, Silva Guarda: as fracções eram dele, ele é que comprou]. Ainda no mesmo sentido, aponta aquilo que, a propósito da parte III deste acórdão, os réus transcrevem dos depoimentos das testemunhas JMVA e JAPVA. Nem a autora, nas contra-alegações, diz o contrário. O que ela põe em causa é a legitimidade para ocupação e a falta de oposição da autora a tal situação, oposição de que se tratará a seguir.

            Quanto à falta de documento legal para prova de que os únicos sócios-gerentes da autora eram filhos de P, a decisão recorrida não tem razão. Não é necessário prova documental dessa relação na fundamentação da convicção quanto à verdade de outras afirmações de facto. Há factos que só podem ser provados por documentos mas esta afirmação só vale em acções em que esses factos são essenciais para a conclusão da existência do direito que está em causa.

            Assim, por exemplo, tem-se aceite que as partes podem admitir determinadas situações ou qualidades jurídicas, isto é, que se dê como provado, por admitido pelas partes, que A é casado com B, ou que A é proprietário de X. Isto desde que essas qualidades jurídicas não sejam precisamente o objecto do processo. Como diz, por exemplo, Oliveira Ascensão, “se o litígio não recai sobre a propriedade e o réu não a contesta, nada mais será necessário. O autor actua como proprietário, ainda que implicitamente. Se o réu o aceita, há a admissão desse qualidade.” E depois de desenvolver estas afirmações, com apoio legal e doutrinal, Oliveira Ascensão conclui: “A admissão de um direito invocado como questão prévia é assim uma figura normal na ordem jurídica portuguesa” (Acção de reivindicação, em Estudos em memória de Castro Mendes, Lex, 1995, págs. 34/36).

            Oliveira Ascensão invoca no mesmo sentido a posição assumida por Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 537/538, em nota 3: “A meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contraparte contra ela. Importa, nestes casos, saber se a parte quis reconhecer o facto constitutivo do direito – e, nesse caso haverá verdadeira confissão do facto – ou reconheceu apenas a existência do direito, sem se referir ao facto constitutivo – e, quando assim seja, haverá apenas que aplicar o disposto no art. 458 do CC”, com base na qual acrescenta que “daqui resulta que os direitos podem ser objecto de admissão e que esta dispensa a prova dos factos constitutivos e que nenhuma razão há para excluir esta regra quando está em causa uma questão prévia.”

            Esta posição, como diz Oliveira Ascensão, é perfilhada por Lebre de Freitas embora a acabe por reconduzir à confissão de factos, numa passagem que agora se pode ver no CPC anotado junto com Isabel Alexandre, admitindo a eficácia do acto de reconhecimento dum direito prejudicial da parte contrária no mero plano dos factos – como confissão (art. 352 CC) ou como presunção (art. 458 CC), consoante nele seja ou não feita menção aos factos constitutivos desse direito (vol. I, Coimbra Editora, Set2014, págs. 19/20).

            Ora, se tudo isto é assim para afirmações de facto que sejam, elas mesmo, objecto de prova – isto é, que passem a constar dos factos provados – por maioria de razão tem de ser assim para afirmações de facto que são simples fundamento da convicção quanto a outros factos.

            Tendo as testemunhas JAPVA e JMVA reconhecido as qualidades de cunhado, filho, nora, genro, que acima se anotaram, etc., sem que ninguém o tenha posto em causa e também para isso apontando os apelidos das pessoas em causa, e tudo isto num sentido que não é favorável às partes que as indicaram como testemunhas, tais relações/qualidades devem ser aceites como verdadeiras para prova de outras afirmações de facto.

         Já quanto à oposição da autora a tal ocupação ela verifica-se desde sempre, isto é, desde que tal é relevante, ou seja, desde que adquiriu o edifício, pois que toda a actuação da autora, como contada pela testemunha MA, foi no sentido de normalizar a situação, conseguindo a desocupação das fracções pelos réus ou que estes as comprassem. E, nesta parte, aliás de acordo com a lógica das coisas, não há razão para não aproveitar o depoimento da testemunha. É evidente que a autora, tendo comprado (formalmente) o edifício, não podia deixar de entender que os réus não estavam lá como se fossem verdadeiros proprietários e quis, desde sempre, tirá-los de lá. Não se pode, por isso, dar como provado que a autora, até à data da contestação nunca levantou qualquer oposição.

  Assim, deve ser aditada matéria do ponto 4 aos factos provados, mas apenas com este conteúdo (e com este número):

  1. A autora sempre soube da situação dos andares.

                                                    (VII)

                            Pontos de facto não provado 5 (= 22)

            O tribunal recorrido não deu como provado a seguinte afirmação de facto feito pelos réus:

  1. A autora conhecia os contratos-promessa celebrados pelos réus.

           

            [omitiu-se]

              Decidindo:

            A decisão tem de ser a mesma da do ponto anterior. É inconcebível que se possa aceitar a hipótese de a autora não saber que havia pessoas a ocupar as fracções do edifício que comprou que invocavam e exibiam contratos-promessa celebrados com a sociedade de que o pai dos sócios-gerentes da autora era sócio-gerente.               

            E isso pelas razões que já acima (na discussão do ponto 4) foram referidas.

            Assim deve ser aditado o seguinte ponto de facto:

  1. A autora conhecia os contratos-promessa celebrados pelos réus.

                                                   (VIII)

                            Ponto de facto não provado 3 (= 20)

            O tribunal recorrido não deu como provado a seguinte afirmação de facto feito pelos réus:

  1. Os réus ocupam/sempre ocuparam as fracções na convicção de que eram/são seus donos.

              [omitiu-se]

              Decidindo:

            Aqui é evidente é a falta de razão dos recorrentes.

            Se alguém promete comprar um apartamento de um edifício de terceiro, essa pessoa não pode deixar de saber que só quando comprar o apartamento é que será proprietário dele; até lá, o apartamento é daquele terceiro, ou seja, é de quem o promete vir a vender mas ainda não vendeu.

            Situações há em que a esta descrição das coisas acrescem outros factos, como, por exemplo, o de o apartamento ter sido logo entregue ao promitente comprador e este ter pago logo todo o preço prometido pela compra, só não se tendo celebrado logo o contrato de compra e venda por impossibilidades imputáveis a outrem.

            Não é isto que se passa no caso dos autos: o máximo que cada um dos réus pagou foi só 10% do preço que seria devido no contrato de compra e venda.

            Quem ainda só pagou 10% do preço que será devido por um apartamento quando for celebrado o contrato definitivo prometido, não pensa nunca que já é proprietário dele. Ele está à espera de celebrar o contrato de compra para só então passar a ser o seu proprietário.

            Se até lá ficou combinado com o proprietário da coisa que o promitente comprador podia ia habitar o apartamento objecto do contrato, e este vai para lá viver, ele pode passar a considerar o apartamento como o seu centro de vida, isto é, como a sua residência, onde pretende viver com o mínimo de conforto e dignidade, o que o pode levar a fazer obras necessárias, quer no apartamento, quer no edifício, se ninguém as fizer por ele (tanto mais quanto os apartamentos ainda não estiverem acabados). Mas isso não o pode levar a considerar que já é dono do apartamento, de que sabe só ter pago ainda 10% e ainda precisar de celebrar o contrato de compra. É um apartamento que ele considera ser a sua casa, no sentido de residência, mas não uma casa de que seja dono. E de que tem a expectativa de vir a adquirir, mas sabe que ainda não adquiriu. Ou seja, está, neste aspecto, na mesma posição de um arrendatário: vive numa casa que é a sua residência sem ser dono dela.

            Tudo aquilo que as testemunhas invocadas pelos réus disseram tem naturalmente este sentido: os réus fizeram obras nos apartamentos e celebraram contratos de água, luz e gás, e fizeram mesmo obras nas partes do edifício que não pertencem aos apartamentos, tudo porque tal era necessário para uma vida digna e confortável na casa que era a sua residência, não porque os apartamentos fossem seus. Tal como o teriam feito arrendatários nas mesmas circunstâncias que vão arranjando as coisas porque tal é necessário (quando o senhorio não o faz por eles) e não porque os locais arrendados sejam deles. 

            É assim escusado, para efeitos deste ponto de facto, tudo aquilo que foi transcrito dos depoimentos em causa (as transcrições foram mantidas para outros efeitos, que foram sendo assinalados).

            A referência ao ponto 34 dos factos provados (: “a escritura pública nunca foi celebrada, porque a BB não constituiu o prédio em propriedade horizontal”), não tem relevo para a questão, porque isto não poderia mudar a convicção com que os réus foram habitar para os apartamentos em causa (já que a escritura da compra e venda, obviamente, não seria celebrada na mesma data dos contratos-promessa e a entrega das chaves ocorreu por ocasião destes).

            De resto, porque não está na lógica das coisas, os recorrentes nem sequer tinham alegado, com coerência, que estavam na posse dos aparta-mentos, como se fossem seus donos, desde a data da celebração dos con-tratos, mas, sim, uns meses após isso (e, dentro dessa lógica, depois de terem invertido do título de posse, como epigrafaram essa parte da contes-tação, embora nada tenham dito sobre essa inversão em termos de facto).

(IX)

Ponto 6-A dos factos provados

            O tribunal recorrido deu como provado que a autora era proprietária das fracção autónomas em causa nesta acção.

            Para considerar este facto como provado, o tribunal recorrido diz que atendeu à certidão da Conservatória do Registo Predial de X, junta aos autos.

            Os recorrentes entendem que este ponto devia ter outra redacção, qual seja, uma que excluísse da lista das fracções de que a autora é proprietária aquelas que estão ocupadas pelos recorrentes.

            A fundamentação da pretensão é a seguinte:

            Sucede que os recorrentes adquiriram o imóvel em causa por usucapião, conforme se irá demonstrar em sede própria.

            Ora, o registo cede perante a aquisição por usucapião.

            Conforme decidiu o ac. do STJ de 11/09/2012 (processo 4436/03.7TBALM.L1.S1):

            “Portanto, e em conclusão, mesmo que se considere a posse exercida pelos réus de má fé […], é absolutamente certo que pelo menos em outubro de 1997 – art. 1296 – se tornaram donos do imóvel arrendado à autora, de nada valendo a esta ter inscrito em novembro de 2002 a aquisição que fez a C, Lda […], já que o registo cede perante a aquisição por usucapião; como é geralmente aceite por toda a doutrina e jurisprudência, a usucapião inutiliza por si as situações registrais existentes, não sendo prejudicada pelas vicissitudes de que neste aspecto o imóvel tenha sido objeto. […] No nosso direito, só excepcionalmente o registo predial assume carácter constitutivo (é o cas da hipoteca). A presunção decorrente do registo não prevalece sobre a decorrente de posse anterior.” (sublinhado nosso)

            Efectivamente, conforme afirma Oliveira Ascensão (cf. Direito Reais, 5ª Edição, p. 382): “É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.

            Ao abrigo do disposto nos artigos 1288 e 1317 do Código Civil, só este entendimento faria sentido.

            Com efeito, nos termos dos artigos supra mencionados, a usucapião actua retroactivamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse.

            Nestes termos, a usucapião, uma vez invocada, determina a aquisição originária do direito correspondente à posse exercida, verificados os requisitos legalmente exigidos. Pelo que deve sempre prevalecer sobre o registo.

            A autora contra-alega com os seguintes fundamentos:

         Como resulta do disposto no art. 7 do Código do Registo Predial que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence aos titulares inscritos, nos precisos termos em que o registo o define”.

         Estamos neste caso perante uma presunção juris tantum, a qual pode, no entanto, ser ilidida mediante prova em contrário (art. 350 do CC), sendo que, e como decorre do disposto no art. 350/1 do CC, quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto que a ela conduz,

         E acrescentando-se ainda que, quem queira ilidir tal presunção terá que alegar e provar os factos demonstrativos de que a titularidade da propriedade inscrita não corresponde à verdade – cfr. ac. do TRP de 02/04/1987, CJ, Ano XII, tomo 2, pág. 227.

         O que in casu, os recorrentes não fizeram, não tendo logrado ilidir tal presunção, dado que não lograram fazer prova da aquisição da propriedade das fracções por usucapião – cfr. factos não provados n.ºs 3, 4, 20, 21 e 22.

            Decidindo:

            Como se vê pelas argumentações das partes, o que se está aqui a discutir é direito e não factos.

            Na matéria de facto apenas devem constar factos, isto é, no caso, aquilo que consta do registo, ou seja, a inscrição da propriedade, no registo, em nome da autora. Este facto é base da presunção legal do art. 7 do CRP, referida também no art. 1268 do CC. Esta presunção legal é usada na fundamentação de direito da sentença, com base no facto da inscrição a favor da autora, se não tiver sido ilidida por outros factos provados. É pois o resultado de uma discussão jurídica, saber se a presunção pode ser tirada por não ter sido ilidida. É uma conclusão que não pode ser tirada já a nível de facto.

            Por sua vez e no reverso, é também na fundamentação de direito que se discutirá se se provaram factos que permitam a conclusão de que os réus adquiriram a propriedade das fracções por força de uma posse por período de tempo suficiente para a sua usucapião, afastando a presunção legal decorrente do registo.

            Em suma, nos pontos de facto não deve ser tirada nem a conclusão de que a autora é proprietária das fracções por estar registada a aquisição delas pela autora – como fez a decisão da matéria de facto e a autora defende -, nem deve constar que ela só é proprietária daquelas fracções que ainda não foram adquiridas por usucapião, como querem os réus.

            O ponto de facto, por isso, deve ser alterado em conformidade, isto é, passando a dele constar apenas os factos respeitantes ao registo que interessam ao caso, que é o seguinte: Depois do registo da constituição da propriedade horizontal não consta qualquer outra inscrição de aquisição sobre tal prédio.

(X)

Do recurso sobre matéria de direito

Da falta de posse para efeitos da usucapião da propriedade

            A sentença recorrida diz, em síntese, que a acção dos autos é uma acção de reivindicação (art. 1311 do CC) em que a autora tinha que provar ser a proprietária delas, o que fez através da presunção decorrente do registo delas a seu favor (art. 7 do CRP), não ilidida pelos réus (como lhes incumbia, por força do art. 344/1 do CC, pela prova de factos extintivos do direito), e que os réus estavam a ocupar as fracções, como estavam de facto, sem que os réus tenham demonstrado, como também lhes incumbia, terem título bastante para o efeito, pelo que julgou a acção procedente (tudo com a pertinente invocação de doutrina no mesmo sentido).

            Tudo isto em relação aos réus que ainda estariam a ocupar as fracções, não em relação àqueles que constam do ponto 41 dos factos provados por já as terem entregues, nem em relação aos réus que antes da propositura da acção já não as estavam a ocupar.

            E tudo isto está certo, fazendo-se apenas a seguinte precisão: a autora deve ser considerada proprietária das fracções porque no ponto 5 dos factos provados consta a inscrição a seu favor da propriedade do prédio e depois disso o prédio foi constituído em propriedade horizontal e não existe qualquer registo posterior da aquisição de qualquer fracção a favor de outrem (pontos 6 e 6-A dos factos provados). Funciona pois a presunção da propriedade pelo registo (art. 7 do CRP).

            Depois a sentença passa a apreciar a aquisição da propriedade das fracções autónomas por usucapião (art. 1287 do CC), invocada na reconvenção pelos réus, e diz que a usucapião não se pode ter verificado porque os réus nunca tiveram a posse das fracções (art. 1251 do CC).

            Nesta parte concorda-se com sentença quanto à inexistência de uma posse boa para usucapião da propriedade, mas não com a ordem seguida para apreciação da questão, pelo seguinte: se os réus tivessem conseguido provar factos que conduzissem à usucapião das fracções pela sua posse delas pelo tempo necessário para o efeito – o que se verá a seguir não ter acontecido -, tal levaria a considerar que eram eles os proprietários, o que teria o efeito de ilidir a presunção decorrente do registo das fracções a favor da autora. Portanto, a usucapião da propriedade das fracções, pelos réus, teria que ser discutida aquando da apreciação do funcionamento da presunção legal decorrente do registo. Se se pudesse concluir pela usucapião, a autora não podia ser dada como proprietária e logo por aí a acção tinha de improceder. A ordem seguida pela sentença, julgando a acção procedente e depois passando a apreciar a reconvenção como se não estivesse já decidido que os réus não tinham adquirido a propriedade das fracções por usucapião, poderia levar à procedência também da reconvenção, o que entraria em conflito com a procedência da acção.

            Voltando à apreciação da reconvenção, a sentença diz que os réus nunca tiveram a posse das fracções porque esta é caracterizada por dois elementos, o corpus e o animus e, embora o art. 1252/2 do CC estabeleça uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que tem a detenção da coisa – o que é o caso dos réus face ao ponto 25 dos factos provados -, a verdade é que os réus apenas entregaram, no máximo, 10% do preço acordado para a compra e venda (pontos de facto provados sob 10 a 23, 33, 37 e 38) e a escritura da compra e venda não se chegou a realizar porquanto a anterior proprietária do edifício não logrou obter a constituição da propriedade horizontal (ponto 34 dos factos provados), pelo que os réus nunca podem ter tido o animus, ou seja, a intenção de exercer um direito real sobre a coisa como seu titular.

            Os réus, por isso, são meros detentores das fracções, possuidores delas em nome alheio. Efectivamente, continua a sentença, o contrato-promessa não é susceptível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, por um contrato atípico ou inominado, porventura análogo ao comodato, que goza de autonomia relativamente ao contrato promessa, adquire, em princípio, o corpus possessório, mas não assume o animus possidendi, ficando na situação de mero detentor ou possuidor precário – ver art. 1253 do CC. Mesmo quem entende que pode haver posse neste caso, considera que essa posse não é boa para usucapião. E a sentença depois invoca vários acórdãos e doutrina que sustentam o que antecede: principalmente o ac. do TRL de 12/05/2011 [a sentença não identifica suficientemente o ac. em causa, mas é o do proc. 64/1996.L1-2]; Vaz Serra, RLJ 115, pág. 206; ac. do STJ de 03/03/2005 (proc. 05B002); António Menezes Cordeiro, A posse, perspectivas dogmáticas actuais, [Almedina, 1997], págs. 77-78; Antunes Varela, RLJ, ano 128, pág. 146, e ano 124, págs. 343 e segs.; e acs. do STJ de 27/05/2004 [04B1445)] e de 11/05/2006 [06B404)]).

            Concorda-se, no essencial, com tudo isto, mas sem dar relevo à discussão da existência ou não do animus da posse. Pois que mesmo aqueles que não consideram o animus como um elemento autónomo da posse, chegariam à mesma conclusão prática, isto é, de que os réus não têm uma posse em termos de direito de propriedade pelo que nunca poderiam adquirir esta por usucapião. E isto porque, por força do art. 1253-c do CC, o próprio título (ou causa) do direito dos réus, possuidores de facto das fracções desvaloriza essa posse, tornando-a uma posse em nome alheio (no que se refere ao direito de propriedade) ou detenção. Sendo esse título um contrato atípico da entrega das fracções para ocupação pelos réus, enquanto não se vier a celebrar o contrato-definitivo de compra e venda, só então pagando os réus os 90% restantes do preço, esse título, dizia-se, pela própria lógica das coisas, concede apenas uma posse em nome do proprietário das fracções e não uma posse como se se fosse proprietário delas. É pois o título que logo desqualifica a posse (em termos do direito de propriedade) em detenção ou posse precária, pelo preenchimento da previsão do art. 1253-c do CC.

            Faz-se esta ressalva, porque sendo actualmente muitos os professores de direitos reais a defenderem a perspectiva objectivista da posse, não seria muito curial uma decisão do caso que, por defender uma posição teórica diferente, adoptasse uma solução que não pudesse ser seguida por todos eles.

            Ora, aquilo que foi dito no parágrafo anterior, com construção deste acórdão, será, ao que se crê, correspondente à posição daqueles professores. Assim, por exemplo, é aquilo que se pensa retirar da lição de Oliveira Ascensão, obra citada, págs. 84 a 93. Aliás, a sentença recorrida já aponta nesse sentido ao referir a posição de Menezes Cordeiro (embora este autor seja actualmente um defensor de uma tese mista) de que há posse (que, no caso, não seria boa para usucapião). Já a posição de José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, págs. 529 a 563 parece apontar noutro sentido, ao dizer que o promitente comprador a quem foi entregue a coisa é possuidor, sem distinguir; mas há que atentar que diz isso em relação à posse em termos do direito de crédito, não em termos do direito de propriedade. Assim, por exemplo (pág. 560): “Em todas estas situações existe corpus possessório; esse alguém tem o controlo material sobre uma coisa corpórea, podendo, se quiser, actuar sobre ela. O controlo material processa-se nos termos de um direito, que é exteriorizado por aquele que actua sobre a coisa. Nos exemplos apontados em cima [o que importa para o caso é o do promitente comprador a quem foi entregue a coisa], esse direito é um direito de crédito […].” E mais à frente (pág. 562): “Assim, o promitente adquirente que recebeu a coisa por tradição do promitente transmitente, tem posse nos termos do seu direito de crédito […].” E a remessa que este autor faz (na nota 1636) para a posição de Menezes Cordeiro e para vários acórdãos (na nota 1637: ac. do STJ de 17/04/2007, 07A480, de 15/12/2006, proc. 06A3914, de 11/05/2006, proc. 06B404, de 25/01/2005, proc. 04A4411, de 08/05/2003, proc. 03B901), aponta no mesmo sentido, pois que, como já se viu, Menezes Cordeiro entende que a posse, nestes casos, não é uma posse em termos de direito de propriedade, nem boa para usucapião, e os acórdãos referidos, à excepção do último (mas esta excepção justifica-se com o teor dos factos provados nesse caso concreto), só admitem o contrário em casos em que, para além de ter havido entrega da coisa, foi pago todo ou quase todo o preço. Ou seja, há posse em termos de direito de propriedade, do promitente comprador, só nos casos em que a traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo, o que normalmente só se verificará nos casos em que o preço esteja todo ou quase todo pago. Ele é então investido num controlo material semelhante ao do proprietário. Ou seja, pode-se defender que os réus têm posse, o que teria outros efeitos (por exemplo, para a questão das benfeitorias) que, neste recurso não têm interesse (porque os réus não interpuseram recurso da absolvição da autora do pedido reconvencional no que diz respeito a elas), mas essa posse é em termos de direito de crédito, não uma posse que pudesse conduzir à usucapião da propriedade. Os réus, mesmo para os autores que têm uma perspectiva objectivista da posse, não têm posse em termos de direito de propriedade (e por isso, por exemplo, não poderiam embargar de terceiros, numa execução em que a autora fosse executada: ver Lebre de Freitas, A acção executiva, 6ª edição, 2013, págs. 320 a 333, especialmente nota 24, págs. 325/327, e ac. do TRL de 14/06/2012, proc. 5962/07, excepto se tivessem intentado uma execução específica do contrato-promessa e registado a acção).

             E neste sentido, embora a sentença comece pela afirmação da necessidade do corpus e do animus, logo a seguir o que faz é recorrer aos termos em que os réus receberam a entrega das fracções, isto é, ao título no sentido que lhe dá o Prof. Oliveira Ascensão (5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 320/321): “Título de uma situação jurídica é o facto simples ou complexo que molda o direito na sua realidade concreta. […] Este é o título do direito, no seu sentido técnico (muito diverso do sentido do documento, que também se usa com frequência). A diversidade de título explica que direitos do mesmo tipo tenham em concreto âmbito e solidez distintos. […] Também o direito real se rege pelo título, como não pode deixar de ser, e é aliás genericamente reconhecido.”

            Não há pois posse (em termos de direito de propriedade) em nome próprio, pelos réus, das fracções em causa (seja qual for a posição que se siga quanto aos elementos da posse), não tendo razão os réus quando dizem o contrário, com base em factos que não se provaram.

            Ou seja, a discussão de direito, neste ponto, reflecte apenas a discussão a nível dos factos, onde os réus defenderam que sempre actuaram com animus de proprietário, só não tendo celebrado o contrato definitivo por ter não ser possível a celebração de escritura pública, por falta de licença de habitação e de propriedade horizontal. Mas sem convencerem minimamente, pelo que já foi referido acima.

(XI)

Da inversão do título de posse

            A sentença recorrida ainda discute a possibilidade de ter ocorrido uma inversão do título de posse, mas como os réus não alegaram nenhuns factos para o efeito, teve que concluir que ela não se verificou. Aliás, no recurso os réus afastam esta hipótese, porque consideram que tiveram a posse – em termos de direito de propriedade – desde a entrega das chaves (com incoerência com a sua posição inicial, em que tinham defendido ter existido inversão do título da posse o que por sua vez é incoerente com a tese que também defendiam, de que a posse existiu desde a celebração dos contratos-promessa).

 (XII)

 Do direito de retenção

            Como se disse acima, os autores que seguem a perspectiva objectivista da posse, considerariam que os réus teriam posse das fracções. Só que seria uma posse em termos de um direito de crédito. Posse que os réus poderiam defender através, por exemplo, do direito de retenção (se os contratos-promessa tivessem sido resolvidos depois de incumprido pela autora).

            É também isto que todos os acórdãos invocados pelos réus na contestação defendem, com uma excepção.

            Assim:

            O ac. do STJ de 18/11/1982, BMJ 321, pág. 387, pronuncia-se sobre a posse do promitente comprador mas para efeitos de direito de retenção por eventual futuro incumprimento do contrato-promessa pelo promitente vendedor (esp. pág. 393).

            O ac. do STJ de 21/11/1985, BMJ. 342, pág. 347, faz o mesmo.

            Tal como o ac. do STJ de 25/02/1986, BMJ 354, pág. 549.

            O ac. do STJ de 07/03/1991, BMJ. 405, pág. 456 (464) (= 078155 na base de dados do IGFEJ), reconhece a posse para efeitos de direito de retenção pelo crédito resultante do incumprimento do contrato.

            O ac. do TRC de 04/06/1991, BMJ. 408, pág. 658, reproduz a síntese do anterior, na parte que importa, pelo que terá apenas a ver com a posse para efeitos de direito de retenção. Não se pode dizer mais sobre ele porque é só um sumário.

            O ac. do STJ de 19/11/1996, BMJ. 461, pág. 457 (= 96A362), é a excepção porque, embora também fale na posse para efeitos de direito de retenção, fala na posse em termos de propriedade. Só que, aqui, tinha sido “pago a quase totalidade do preço” (menos 200.000$ para obras que faltavam).

            Ou seja, pode-se aceitar (conforme as posições teóricas que se perfilharem) que os réus tinham posse, mas para efeitos de direito de retenção (e para outros efeitos, como já foi referido, mas que não interessam para o recurso), não para efeitos de aquisição, por usucapião, do direito de propriedade das fracções.

(XIII)

Da extinção do direito dos recorrentes

            Só que com venda do edifício, o direito de ocupação das fracções, derivado do contrato atípico referido, caducou, não sendo oponível ao adquirente do edifício na execução fiscal (por aplicação dos arts. 824/2 do CC por maioria de razão e 260 do Código do procedimento e do processo tributário). E caducaria também, por força da mesma norma, o eventual direito de retenção que pudesse vir a existir depois de verificado o incumprimento definitivo e resolvido o contrato.

            Neste sentido, por exemplo, Calvão da Silva, Sinal e contrato-promessa, 11ª edição, Almedina, 2006, págs. 175 a 182, páginas estas que lembram ainda que haveria que tirar as devidas consequências do facto de as fracções ainda não existirem sequer à data em que ele foi comprado pela autora, pelo que a posse de que se falou acima, não seria bem uma posse das fracções, mas de todo o edifício na proporção da permilagem de cada apartamento ocupado pelos réus, o que não se desenvolve porque já se chegou à conclusão de que os réus não tinham uma posse boa para usucapião da propriedade e por isso já não interessar (para além de, aquelas páginas também lembrarem os direitos que os réus podem ter pelo eventual facto de não terem tido conhecimento da execução fiscal em que se procedeu à penhora e venda do imóvel). 

            E diz-se isto tudo para se poder concluir que os recorrentes, depois da compra do edifício pela autora, em processo de execução, deixaram de ter título para a ocupação dos apartamentos (mais tarde transformados em fracções), pelo que, realmente, se trata de uma ocupação ilícita a partir de tal data.

(XIV)

Da indemnização pela ocupação ilegítima

            Os recorrentes nada dizem quanto à indemnização em que foram condenados na parte do recurso sobre matéria de direito.

            Mas discutiram a decisão da matéria de facto que permitiu a quantificação da condenação de tal indemnização e o facto em causa (parte final do ponto 9) foi eliminado na parte que importa.

            Perante isto, a indemnização já não pode ser calculada de imediato, pelo que a sentença nessa parte deve ser revogada e a liquidação da indemnização terá de ser relegada para momento posterior (art. 609/2 do CC).

            Esta revogação só diz respeito aos réus recorrentes, não se repercutindo nos outros (art. 634 do CPC, a contrario).

            Entretanto nota-se que a quantificação da indemnização feita na decisão recorrida potencia o erro da decisão da matéria de facto, pois que faz o cálculo com base nos mesmos 250€ mensais, valor que se reporta á data da propositura da acção (2002); ora, a indemnização é calcula para um período que, por exemplo em relação a um dos recorrentes, vai até à entrega da fracção, e já estamos em 2017, com base nesse mesmo valor.

(XV)

 Do abuso de direito

            Também nesta parte (em que a sentença apreciou a questão do abuso de direito, para afastar a prova do mesmo), os recorrentes nada dizem na parte do recurso sobre matéria de direito.

            Mas foram acrescentados aos factos provados dois factos (nos pontos 42 e 43) cuja falta de prova tinha sido invocada pela sentença recorrida para concluir pela inexistência do abuso de direito.

            No entanto, o ter-se dado como provado que a autora sabia da situação dos apartamentos aquando da compra do edifício, tal como dos contratos-promessa que os réus invocavam, não permite, só por si, concluir que a autora age em abuso de direito, por, apesar de ter esse conhecimento, ter exigido a restituição das fracções aos réus. Como se chegou acima à conclusão de que os direitos que os réus tinham caducaram com a venda do edifício na execução fiscal, a autora tem direito à restituição das fracções e, perante a inexistência de outros factos, nada permite concluir que a autora está em abuso de direito ao reivindicar as fracções.

            Aquilo que poderia estar em causa era outra situação. Provavelmente os recorrentes suspeitam que a autora e a BB se conluiaram de modo a que o edifício fosse vendido em execução fiscal para que os direitos que os recorrentes tinham (decorrentes dos acordos quanto à entrega dos apartamentos para a sua ocupação com a entrega das chaves, obtidos aquando do contrato-promessa) caducassem e os apartamentos, depois de transformados em fracções autónomas, pudessem ser vendidos a terceiros sem estarem onerados com os direitos dos recorrentes.

            Mas os factos provados (que não tocam nesta questão) não permitem esta conclusão.

                                                       *

            Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença apenas relativamente aos valores em que se concretizaram as indemnizações e apenas relativamente aos recorrentes. O valor da indemnização será aquele que se vier a liquidar depois deste acórdão, tendo por base o valor da renda que poderia ser obtida pela cedência dos apartamentos respectivos ao longo do período considerado na sentença recorrida em relação a cada um dos recorrentes, que nunca poderá ser superior ao valor pedido de 250€/mês.

            No mais julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

            Custas em partes iguais por autora e réus (recalculando-se esta percentagem na decisão final da liquidação se a mesma ocorrer).

                                                      *

            Porque a testemunha JMVA assumiu que tinha sido ele a comprar o edifício (identificado em 1 dos factos provados) e só o tinha feito através da autora para evitar o pagamento da sisa (em fraude à lei, como já referido acima), como resulta das várias passagens transcritas do seu depoimento e do depoimento do seu filho, extraia certidão da sentença recorrida, das alegações e contra-alegações do recurso, do CD com gravação da prova produzida e deste acórdão, e envie–a à autoridade tributária para os efeitos que foram tidos por convenientes.

            Lisboa, 09/11/2017

            Pedro Martins

            1.º Adjunto

            2.º Adjunto