O acórdão a que este voto de vencido respeita está publicado aqui

I

A questão

       No caso dos autos discute-se uma questão específica, que é a de saber se um progenitor, que comprovadamente não tem quaisquer bens ou fonte de rendimentos (como decorre inequivocamente do acordo homologado: por isso, segundo o acordado, os alimentos só passavam a ser devidos judicialmente se e quando ele arranjasse trabalho), pode ser condenado a prestar alimentos aos filhos menores.

            Em tese geral, aceito a possibilidade de imputação de rendimentos presumidos aos progenitores relativamente aos quais existam nos autos, de uma forma ou de outra, elementos suficientes para dizer que se colocaram voluntariamente numa situação de não terem rendimentos com que satisfazer as prestações em que pudessem vir a ser condenados, solução que é em geral aceite e hoje pouco discutida.

          Isto com base na posição que é defendida por Maria Clara Sottomayor. Por exemplo: “O desemprego, se o alimentante se colocar voluntariamente numa situação em que é incapaz de arranjar emprego, não dispensa o alimentante de cumprir a obrigação de alimentos. Para este efeito devem ser elaboradas regras para imputar rendimentos a pais desempregados de acordo com a sua capacidade de trabalhar e ganhar dinheiro. O mesmo se passa nos casos em que o progenitor sem a guarda está a diminuir deliberadamente o seu rendimento ou a fazer despesas excessivas e relativamente aos trabalhadores por conta própria” (logo na 1ª edição da Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, 1997, Almedina, pág. 130 = 5ª ed, pág. 299/300; = pág. 339 da 6ª edição, Almedina, 2016; desenvolve a questão nas págs 341 a 343 e 414 a 424 desta edição: colocação voluntária numa situação de incapacidade de arranjar emprego (pág. 339), diminuição voluntária do rendimento (págs. 339/340), o desemprego não ser necessariamente causa de incapacidade económica (pág. 341 – o que aponta para a hipótese de o poder ser, tal como também é revelado pela referência, logo a seguir, à circunstância de o progenitor ter possibilidade de trabalhar), não declaração [naturalmente voluntária e intencional] da totalidade dos rendimentos (pág. 340), colocação dolosa em situações de impossibilidade (págs. 432)].

            E na de Remédio Marques: “os factos que justificam ou autorizam a imputação de rendimentos serão todos aqueles factos voluntários ou controláveis pelo devedor, que o colocam numa situação económica mais desvantajosa relativamente àquela que, doutro modo, poderia usufruir (v.g., colocação voluntária em situação de desemprego, emprego a tempo parcial ou subemprego, escolha de uma actividade profissional menos lucrativa” considerando a respectiva formação e/ou experiência profissional) (págs. 200/201 = 194/195 da 1ª edição, 2000) ou outras em que este autor dá relevo à voluntariedade ou não da causa da impossibilidade de prestar alimentos (Algumas notas sobre alimentos, Coimbra Editora, 2ª edição, 2007, págs. 236/237).

              A questão é saber se esta solução pode ser aplicada ao caso dos autos.

            Uma das vias argumentativas utilizadas pela maioria do colectivo foi a de que a solução vale para todos os casos excepto quando o progenitor, “por total incapacidade, permanente e involuntária, nomeadamente a decorrente de doença, é incapaz de angariar rendimentos próprios provenientes do trabalho, e não possui quaisquer outros, na sua disponibilidade.”

II

Do ónus da prova

              Isto pressupõe que o ónus da prova da impossibilidade de prestar alimentos cabe aos devedores, que é uma tese muito seguida, embora nem sempre explicitada, como é o caso na posição que fez vencimento.

            Ou seja, não seriam os credores que teriam de demonstrar os dois pressupostos do direito a alimentos: necessidade dos credores e possibilidade dos devedores (como decorre do disposto nos arts. 2004 e 342/1, ambos do Código Civil).

       Mas isso não é correcto: os pressupostos gerais do direito a alimentos são a necessidade daquele que os pede e a possibilidade de os prestar por parte daquele a quem são pedidos (art. 2004 do CC), por ter meios para isso.

            Pressupostos que cabe ao demandante provar, como factos constitutivos do seu direito (art. 342/1 do CC – por exemplo e por último, Rute Teixeira Pedro, CC anotado, Almedina, 2017, vol. II, págs. 904 e 906).

            É certo que esta posição nem sempre é seguida sem tergiversações; assim por exemplo, no ac. do STJ de 09/06/2005, proc. 05B1196 (com uma declaração de voto), diz-se que: Sendo certo que, conforme n.º 1 do art. 342, a prova das possibilidades do obrigado incumbe ao alimentando, na sua qualidade de autor (Vaz Serra, BMJ 108/107 e 108), não menos o é que quando o réu oponha a sua falta de possibilidades, é a ele que, consoante n.º 2 daquele mesmo artigo, incumbe a prova dessa excepção (L.P. Moitinho de Almeida, Os Alimentos no Código Civil de 1966, ROA, 28º, 1968, 101).”

            A afirmação deste acórdão e a de Moitinho de Almeida, parece estar baseada na síntese que é feita da posição de Vaz Serra, Obrigação de alimentos, BMJ. 108, págs. 121/122, por Eduardo dos Santos (Direito da Família, Almedina, 1999, pág. 648) que diz: “se a possibilidade de prestação de alimentos é um facto constitutivo do direito do autor, a esse incumbe prová-lo; se, pelo contrário, a impossibilidade de os prestar é um facto impeditivo do direito do autor, então cabe ao réu fazer a correspondente prova”.

            Mas dizer que o autor tem o ónus de provar a possibilidade do devedor de prestar alimentos e este tem o ónus de provar a sua impossibilidade de prestar alimentos é uma pura contradição se se pretende que a afirmação é válida para o mesmo momento. Se a impossibilidade de prestar alimentos for afirmada pelo réu no processo em que eles estão a ser pedidos, ele só está a impugnar a afirmação feita pelo autor e não a deduzir qualquer excepção. E é isto que a declaração de voto àquele acórdão vem dizer, com toda a razão: “Com a declaração de que entendemos que o alimentando é que tem o ónus de prova dos factos integrantes da possibilidade de o alimentante prestar os alimentos, sendo que a falta de possibilidades do último se traduz em impugnação motivada e não em excepção.” 

            Outra posição que veio dar origem a uma confusão quanto à questão do ónus da prova, foi a do acórdão do TRL de 26/06/2007, proc. 5797/2007, fruto de um lapso de interpretação de uma passagem da obra citada de Remédio Marques que diz [págs. 185 da 1ª edição das Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores), Coimbra Editora, 2000 = pág. 191 da 2ª edição, de 2007]: “a obrigação de alimentos pode ser judicialmente peticionada logo que o alimentando esteja numa situação de necessidade. As possibilidades do devedor[1] só relevam – para além da respectiva quantificação -, em princípio, em sede de extinção da obrigação, como facto impeditivo do direito peticionado pelo autor, ou para efeitos de alteração da obrigação alimentar já fixada”. O acórdão em nota[1] escreve: “No texto refere-se “credor”, mas parece evidente o lapsus calami.” Mas Remédio Marques estava mesmo a referir-se às possibilidades do credor, que naturalmente também se têm de ter em conta no cálculo dos alimentos (como aliás decorre do disposto no art. 2004/2 do CC, que usa precisamente aqueles termos, isto é: possibilidades do alimentando, ou seja, possibilidades do credor). Aliás, Remédio Marques tinha acabado de referir-se, algumas linhas acima, na mesma página, às possibilidades do progenitor como facto constitutivo do direito, pelo que não teria sentido estar agora a dizer o contrário. Esta posição do ac. do TRL entretanto foi seguida por vária outra jurisprudência que passou a dizer que era o demandado que tinha o ónus de provar que não tinha possibilidades de contribuir para o sustento do autor, o que está errado, como já se disse, pois que o contrário é que é correcto, ou seja, é ao autor que cabe o ónus de provar que o demandado tem possibilidade de contribuir para o seu sustento.

            Em suma, a questão do ónus da prova destes vários pontos é assim resolvida como já decorre do que antecede: aquele que pede alimentos tem o ónus de provar que tem necessidade deles e que o demandado tem meios para isso (art. 342/1 do CC); se os alimentos já tiverem sido fixados e o devedor vier a perder os meios de os prestar e/ou verificar que o credor passou a ter possibilidades de prover à sua subsistência, terá de alegar e provar estes factos (art. 342/2 do CC) se quiser a extinção ou a modificação da obrigação em que foi condenado. Neste momento, sim, as possibilidades de um e de outro funcionam como factos impeditivos. Ou seja, as possibilidades do credor só funcionam como facto impeditivo, a que se aplica o art. 342/2 do CC, se os alimentos já tiverem sido fixados e o credor vier a adquirir possibilidades de os suprir por si: o alimentante pode pedir a extinção da obrigação invocando esse facto.

            Portanto, a posição que será a de Vaz Serra diz só respeito à situação em que o devedor de alimentos, condenados a prestá-los vem alegar (num pedido de cessação ou alteração dos alimentos) que lhe (a ele, devedor de alimentos) deixou de ser possível prestá-los; e a posição de Remédio Marques tem aplicação quando o devedor de alimentos, depois da condenação, vem pedir a extinção da obrigação por ter constatado que o credor dos alimentos passou a ter possibilidades para os satisfazer por si.

            Em suma: o demandante tem sempre o ónus de provar as possibilidades do devedor, para conseguir a condenação inicial do devedor a pagar-lhos; esse ónus (relativo ao pedido de condenação inicial), mesmo que na forma negativa (impossibilidade de pagar), nunca é do devedor.

            Posto isto, sendo o demandante de alimentos que tem o ónus de provar que tem necessidade de alimentos e que o demandado tem meios para os pagar, sempre se entendeu, tal como a sentença recorrida, que não se provando um desses pressupostos – no caso, o da possibilidade de prestar pelo demandado – não devia haver condenação do pagamento de alimentos.

III

Da não aplicação do art. 2004 do CC nestas eventualidades

             A aplicação a este caso concreto da solução aceite em termos gerais também se faz, defendendo-se que “na nossa opinião não tem aplicação, nestas eventualidades, o disposto no art. 2004/1 do CC, de harmonia com o qual, e ao derredor do princípio da proporcionalidade, se deve atender às possibilidades económicas do devedor, para o efeito de fixar a obrigação de alimentos.”

               Mas, o afastamento da norma base do direito a alimentos, da qual sempre se fez decorrer os pressupostos do direito a alimentos, exigiria uma fundamentação muito mais completa do que esta, baseada numa opinião não explicitada nem justificada; o ónus da fundamentação cabe àquele que faz uma afirmação aparentemente desconforme com o direito vigente e com aquilo que a doutrina e a jurisprudência sempre entenderam.

IV

O ingresso na prisão equivale a um desemprego voluntário?

            Por fim, a aplicação desta solução genérica à situação dos autos faz-se ainda de outra forma, qual seja, dizendo que ela cabe no grupo de casos em causa, o que pressupõe que se considere que a condenação em prisão efectiva equivale à colocação voluntária numa situação de inexistência de bens ou rendimentos, uma espécie de desemprego voluntário, o que considero tão errado como equiparar um progenitor com uma incapacidade física absoluta a um progenitor que está voluntariamente sem trabalhar. Se se diz que o progenitor que fica preso cometeu um acto voluntário que o coloca voluntariamente numa situação de inexistência de rendimentos com que prestar alimentos, o mesmo se pode dizer de uma mãe que fica tetraplégica num acidente de viação de que foi culpado, ou de um pai que lhe acontece o mesmo num acidente por queda negligente do telhado onde se encontrava a trabalhar, o que considero incorrecto. Ninguém, em princípio, comete um crime para ir para a prisão para não pagar alimentos, nem ninguém se atira dum telhado para não pagar alimentos. E se se provar o contrário, a condenação já se justificaria.

            A posição de Maria Clara Sottomayor, invocada pela recorrente, não ajuda à posição desta, pois que, como se viu acima, em nenhuma passagem das páginas citadas a autora faz a equiparação dos presos aos outros casos, sendo que as situações que invoca não apontam para essa equiparação.  

            A posição de aplicação da solução genérica à situação concreta de um preso é, no entanto, defendida por Remédio Marques, como se vê, por exemplo, da passagem citada pela recorrente: “[m]esmo que os progenitores ou algum deles não tenha possibilidades económicas actuais de prover ao sustento do menor – por se encontrar, por exemplo, desempregado ou a cumprir urna pena privativa de liberdade -, deve decretar-se essa obrigação, ainda que os montantes fixados sejam reduzidos, ou no anverso, deve recusar-se a homologação […] de um acordo onde não se preveja o concreto nascimento dessa obrigação a cargo de algum dos progenitores.” (obra citada, 2ª edição, pág. 191).

            E mais à frente, no final da pág. 200 (final da nota 266) o autor diz: “já nas hipóteses de condenação em pena de prisão efectiva, há uma tendência para, apesar de tudo, imputar rendimentos durante o período de inactividade derivado da aplicação da pena – cfr. o caso de Layman v. Layman, em 1997, do Court of Appeal de Virginia, 488 S.E, 2d, 659, apud FLQ, cit. pág. 753.

            Isto revela o único ponto de apoio da posição deste autor, o que é muito pouco, principalmente em contraponto às outras passagens da obra já citadas acima [lembradas também pelo acórdão do TRL de 04/12/2008, proc. 8155/2008-6 (com um voto de vencido)].

            Aquela sentença americana, de 05/08/1997, record n.º 2462-96-3, do Virginia Court of Appeals que também pode ser consultada aqui, como única fundamentação limita-se a considerar que, para estes efeitos, a condenação em prisão corresponde a um desemprego voluntário.

            Ora, face ao que se disse acima, não se concorda com que seja possível equiparar a prisão de um progenitor na colocação voluntária na situação de incapacidade de prestar alimentos.

            E em vez de uma posição adoptada de um sistema jurídico bem afastado do nosso poder-se-ia invocar a posição contrária da jurisprudência espanhola, extraída de um sistema jurídico neste aspecto praticamente idêntico ao nosso:

            Assim, por exemplo, a sentença (= acórdão) da Audiencia Provincial (= tribunal da relação) de Madrid, sec. 24ª, S 26-6-2008, nº 742/2008, rec. 441/2008, na síntese da publicação, julga procedente o recurso, modificando as medidas adoptadas na sentença de divórcio, suspendendo a obrigação de pagamento da pensão alimentícia a favor dos filhos menores enquanto se encontrar preso num estabelecimento prisional cumprindo uma condenação penal (em tradução informal, feita por este acórdão; o original pode ser consultado no link criado; a decisão consta do seguinte, no sítio oficial, isto é, Cendoj: Se suspende la obligación de Dº Juan, de prestar alimentos a sus hijos conforme se estableció en sentencia de divorcio de 15 de abril de 2.000, en tanto se encuentre en prisión, y con efectos desde la fecha de la sentencia de instancia, restableciéndose automáticamente y sin necesidad de nueva declaración, una vez cumpla la condena, debiendo en tal momento abonar las prestaciones con las debidas actualizaciones.) Roj: SAP M 10357/2008 – ECLI: ES:APM:2008:10357) [Suspende-se a obrigação do Sr. Juan, de prestar alimentos aos seus filhos, estabelecida na sentencia de divórcio de 15/04/2000, enquanto se encontrar preso, com efeitos desde a data da sentença da 1ª instância, restabelecendo-se automaticamente, e sem necessidade de nova declaração, uma vez cumprida a condenação, devendo em tal momento entregar as prestações com as devidas actualizações]

            Diz-se no acórdão:

         TERCERO.- De conformidad con lo expuesto, el primer motivo de recurso ha de obtener favorable acogida, toda vez que en efecto se constata una variación sustancial de circunstancias que se consideraron a la hora de establecer las medidas reguladoras de los efectos de la crisis del matrimonio, que deriva de la situación de prisión que afecta al recurrente, que le impide hacer frente a las pensiones alimenticias en beneficio de los hijos comunes de los litigantes, de manera que concurre alteración en los términos previstos por el legislador y arriba expuestos para acceder a la pretensión modificatoria. [Em conformidade com o exposto, o primeiro motivo de recurso tem de obter acolhimento favorável, uma vez que se constata efectivamente uma variação substancial das circunstâncias consideradas na hora de se estabelecer as medidas reguladoras dos efeitos da crise do casamento, que deriva da situação de prisão que afecta o recorrente, que o impede de pagar as pensões alimentares em benefício dos filhos comuns dos litigantes, de maneira que existe alteração nos termos previstos pelo legislador e acima expostos para poder deduzir uma pretensão modificadora].

         Esta situación justifica la suspensión de la obligación de contribuir a repetidos alimentos, más solo hasta el momento en que se produzca la excarcelación, toda vez que el recurrente se encuentra en edad laboral y no presenta discapacidad ni minusvalía que obste el acceso a un empleo en tal momento, en el que surgirá nuevamente su obligación de abonar las pensiones alimenticias con las correspondientes actualizaciones, dando cumplimiento al derecho deber que a todo español impone el artículo 35 de la Constitución Española EDL 1978/3879. [Esta situação justifica a suspensão da obrigação de contribuir para os alimentos, mas só até ao momento da libertação, pois que o recorrente está em idade activa e não apresenta deficiência ou incapacidade que obste ao acesso a um emprego nesse momento em que surgirá de novo a sua obrigação de pagar as pensão alimentares, com as correspondentes actualizações, dando cumprimento ao direito/dever que a todo espanhol impõe o art. 35 de la Constituição Espanhola].

         No resulta de recibo mantener a ultranza la obligación que nos ocupa, cuando no se percibe salario, por el simple hecho de que no se haya producido la liquidación de la sociedad legal de gananciales que conformaron los litigantes, toda vez que los bienes pertenecientes a esta no generan al apelante ingreso alguno en el momento actual que le permitan verificar los pagos, máxime si tenemos en cuenta que el incumplimiento de dichas obligaciones familiares constituye ilícito penal, en un marco en el que rige el principio de intervención mínima [Não é aceitável manter a todo o custo a obrigação de alimentos, quando não se recebe um salário, pelo simples facto de que não se liquidou ainda a comunhão de adquiridos dos litigantes, uma vez que os bens pertencentes a esta não produzem rendimentos para o recorrente no momento actual que lhe permitam pagar os alimentos, máxime se tivermos em conta que o incumprimento das ditas obrigações familiares constitui um ilícito penal, num sistema em que vigora o princípio da intervenção mínima].

            Ou o acórdão da Audiência Provincial de Málaga 384/2005, de 29/04/2005, Roj: SAP MA 1766/2005 – ECLI: ES:APMA:2005:1766: que julga parcialmente procedente o recurso, mantendo a pensão alimentar estabelecida a favor dos filhos menores, mas suspendendo-a enquanto o recorrente permaneça preso e não constem bens ou ingressos com que os possa pagar, levantando-se a suspensão automaticamente no caso contrário.

              (sempre em tradução informal deste acórdão, que pode ser confirmada perante o original publicado no Cendoj consultável no link criado).

            O acórdão da AP de Valencia (Secc. 10.ª) núm. 771/2013 de 25 noviembre, Roj: SAP V 5374/2013 – ECLI: ES:APV:2013:5374, diz que não se provou a alteração substancial das circunstâncias do recorrente que se consideraram na anterior sentença matrimonial para estabelecer a soma de 200€ de pensão alimentar. Alegou o recorrente que se encontrava [na altura] em prisão e que isso o impediu de obter rendimentos; no entanto, é sabido a sua preferência por ter filhos a seu cargo na hora de obter trabalho na prisão, e, em todo o caso, continua a ter [agora em liberdade] uma pensão a cargo da Segurança social pela sua incapacidade permanente, que atinge a soma de 463,98€. E por isto o acórdão não concede provimento ao recurso que tinha negado a alteração pedida pelo devedor.

            No acórdão do Tribunal Supremo (sentença da 1ª secção – cível – do Tribunal Supremo, nº. 564/2014, de 14/10, Roj: STS 3877/2014 – ECLI: ES:TS:2014:3877 fixa-se a seguinte doutrina jurisprudencial: La obligación de pagar alimentos a los hijos menores no se extingue por el solo hecho de haber ingresado en prisión el progenitor que debe prestarlos si al tiempo no se acredita la falta de ingresos o de recursos para poder hacerlos efectivos [A obrigação de pagar alimentos aos filhos menores não se extingue por simples facto de ter sido preso o progenitor que deve prestá-los, se ao tempo não se provou a falta de rendimentos ou de recursos para poder fazê-los efectivos].

            A fundamentação deste acórdão foi a seguinte:

         La obligación alimenticia que se presta a los hijos no está a expensas únicamente de los ingresos sino también de los medios o recursos de uno de los cónyuges, o, como precisa el artículo 93 del Código Civil, de “las circunstancias económicas y necesidades de los hijos en cada momento”. En lo que aquí interesa supone que no es necesaria una liquidez dineraría inmediata para detraer de la misma la contribución sino que es posible la afectación de un patrimonio personal al pago de tales obligaciones para realizarlo y con su producto aplicarlo hasta donde alcance con esta finalidad, siempre con el límite impuesto en el artículo 152 2º del CC si la fortuna del obligado a darlos se hubiere reducido hasta el punto de no poder satisfacerlos sin desatender sus propias necesidades y las de su familia. Ningún alimento se puede suspender por el simple hecho de haber ingresado en prisión el progenitor alimentante, gravando a la madre de los menores con la obligación de soportarlos en exclusiva, cuando nada de esto se acredita. Entonces, y no ahora, pudo haberse interesado la modificación de la medida sometiendo a contradicción y prueba los hechos de interés a un cambio de las circunstancias, lo que no hizo [A obrigação alimentar que se presta aos filhos não está apenas dependente dos rendimentos, senão também dos meios ou dos recursos de um dos cônjuges, ou, como precisa o art. 93 do CC, das “circunstâncias económicas e necessidades dos filhos em cada momento”. Para o que aqui interessa, tal pressupõe que não é necessária una liquidez monetária imediata para tirar da mesma a contribuição, pois que também é possível a afectação de um património pessoal ao pagamento de tais obrigações, vendendo-o e aplicando o produto da venda, até onde for possível, com essa finalidade, sempre com o limite imposto pelo art. 152/2 do CC se os bens do obrigado a dar alimentos se tiver reduzido até ao ponto de não poder satisfazê-los sem desatender as suas próprias necessidades e da sua família. Nenhuns alimentos se podem suspender pelo simples facto de ter sido preso o progenitor alimentante, onerando a mãe dos menores com a obrigação de suportá-los em exclusivo, quando nada disto se provou. Então, e não agora, poderia ter deduzido a pretensão da modificação da medida, submetendo a contradição e prova os factos que têm relevo para a mudança de circunstancias, o que não fez].

            O ac. do TS de 22/12/2016, n.º 752/2016, STS 5533/2016 – ECLI: ES:TS:2016:5533, trata de um recurso contra um acórdão da AP de Santa Cruz de Tenerife, porque teria violado a doutrina jurisprudencial do acórdão acabado de citar, já que tinha suspendido a prestação alimentar em favor da filha menor porque o alimentante tinha ingressado na prisão desde 2011 e diz o seguinte:

         [R]razão pela qual [o ingresso na prisão], em princípio, e na falta de outros elementos probatórios, tem de concluir-se que carece de rendimentos e se encontra privado da possibilidade de obtê-los. Nestes casos, diz o acórdão recorrido, resulta de aplicação da recente doutrina do TS (sentença da Sala 1ª de 12-2-2015, nº 55/2015, rec. 2899/2013 e de 2-3-2015, nº 111/2015, rec. 735/2014) que contempla casos de pobreza absoluta que exigiriam desenvolver aquelas acções que resultem necessárias para assegurar o cumprimento do mandato constitucional constante do artigo 39 CE que permita prover aos filhos das presentes e futuras necessidades alimentares até que se encontre uma solução para o problema por parte de quem está em princípio obrigado a oferecê-la, como são os pais. Tal situação justifica a suspensão da obrigação até que o obrigado obtenha um regime penitenciário que lhe permita obter rendimentos com que cobrir a importância da pensão ou obtenha a liberdade».

            O ac. do TS continua assim:

         Também se invoca, no recurso, o acórdão 111/2015, de 02/03/2015, que diz o seguinte: face a uma situação de dificuldade económica haverá de examinar-se o caso concreto e ver se se violou o juízo de proporcionalidade do artigo 146 do CC (STS 16/12/2014, Rc. 2419/2013). O normal será fixar sempre em casos desta natureza um mínimo que contribua para cobrir os gastos repercutíveis mais imprescindíveis para a atenção e cuidado do menor, e só admitir com carácter muito excepcional, com critério restritivo e temporal, a suspensão da obrigação, pois face à mais pequena presunção de rendimentos, qualquer que seja a sua origem e circunstancias, se haverá de voltar à solução que se considera como normal, ainda que à custa de um grande sacrifício do progenitor alimentante.

            O recurso foi julgado improcedente porque, segundo o TS diz:

         O acórdão recorrido em nenhum caso se opôs à doutrina jurisprudencial do ac. de 2014. O acórdão recorrido não extinguiu os alimentos, deixou-os em suspenso. Não foi a situação carcerária a que originou a suspensão, mas a falta de meios para fazer o pagamento. O pagamento foi suspenso por falta de meios económicos que se declarou provada, até que o obrigado estivesse colocado numa situação em que os possa obter e o acórdão recorrido fê-lo precisamente com base na doutrina do TS que se diz infringida, ou seja, com «carácter muito excepcional, com critério restritivo e temporal.

            A Prof. Marta Ordás Alonso, da Universidade de León (La cuantificación de las prestaciones económicas en la rupturas de pareja, Bosch, Junho de 2017, págs. 299 a 301, onde se foram buscar os acórdãos que antecedem), ainda cita vários outros acórdãos sobre a questão, entre eles os dois seguintes:

         “La SAP de Zaragoza (Secc. 2.ª) núm. 289/2015 de 9 junio, por su parte, si acuerda suspender una vez constatado que el progenitor alimentante carece de ingresos en la actualidad, resultando incluso de imposible cumplimiento el abono de la escasa pensión alimenticia establecida (60 € por cada hija). Reanudândose el pago de las pensiones una vez obtenga ingresos tras recobrar la libertad, sin que proceda la acumulación de atrasos, pues suspensión implica no obligación de pago de la misma. Otro tanto acontece con la SAP de Las Palmas (Secc. 3.ª) núm. 248/2015 de 11 mayo en la medida en que el alimen­tante carece de ingresos, capital o bienes con los que poder sufragar la pensión y gastos de su hijo y asi se dan los requisitos extraordinarios exigidos por el Tribunal Supremo para suspender la obligación alimentícia.” [A sentença da audiência provincial de Zaragoza (Secc. 2.ª) núm. 289/2015 de 09/06, por sua vez, concorda suspender, uma vez constatado que o progenitor alimentante carece de rendimentos na actualidade, sendo inclusive impossível o cumprimento da entrega da escassa pensão alimentar estabelecida (60€ por cada filha). Reiniciando-se o pagamento das pensões uma vez obtidos rendimentos depois de obter a liberdade, sem acumulação de pensões em atraso, pois suspensão implica não obrigação de pagamento da mesma. Outro tanto acontece com a SAP de Las Palmas (Secc. 3.ª) núm. 248/2015 de 11/05, na medida em que o alimentante carece de rendimentos, capital ou bens, com os que possa pagar a pensão e gastos do seu filho, com o que se verificam os requisitos extraordinários exigidos pelo TS (=> STJ) para suspender a obrigação alimentar.”]

            E depois acrescenta:

         “Ahora bien, convíene detenerse en la SAP de Málaga (Secc. 6.ª) núm. 1/2016 de 12 enero. En ella se efectúa un amplísimo recorrido por todas aquellas normas en las que, de uno u otro modo, se establece que el trabajo será considerado un derecho y, simul­táneamente, un deber del interno, siendo un elemento fundamental del tratamento. Conforme a la misma, desestima el recurso y confirma la Sentencia, que, en definitiva, dispone un mínimo vital en favor del menor hijo del obligado, en atención al ingreso en prisión del mismo, pera sin que ello comporte la cesación de la obligación, cual pretende el recurrente cuando no se há acreditado que su estancia en prisión suponga un impedi­mento absoluto para acceder a un trabajo remunerado en los términos señalados por la legislación penitenciaria.” [“Ora bem, convém determo-nos na SAP de Málaga (Secc. 6.ª) núm. 1/2016 de 12 Janeiro. Nela efectua-se uma amplíssima passagem por todas as normas nas que, de um ou de outro modo, se estabelece que o trabalho será considerado um direito e, simul­taneamente, um dever do preso, sendo um elemento fundamental do tratamento. Conforme às mesmas, rejeita o recurso e confirma a sentença que estabelece um mínimo vital a favor do filho menor do obrigado, em atenção ao ingresso do mesmo na prisão, mas sem que tal comporte a cessação da prestação, como pretendia o recorrente, quando não se provou que a sua permanência na prisão seja um impedimento absoluto ao acesso a um trabalho remunerado nos termos da legislação penitenciária.”]

            De tudo isto decorre que se entende que o ingresso na prisão pode privar o devedor de rendimentos para pagar a pensão e que tal tem relevo, mas como não interessam só os rendimentos do trabalho, ou seja, como também contam os bens que o devedor tenha e outros rendimentos que não só os do trabalho e também os rendimentos que possa obter a trabalhar enquanto preso, esse simples ingresso não implica, só por si, a suspensão dos alimentos. O devedor terá de provar – porque é ele que pede a suspensão – que não tem quaisquer outros bens (que possa vender para aplicar o produto da venda no pagamento das pensões) ou outros rendimentos. Se o conseguir fazer, pode obter a suspensão do dever de os pagar, mas só enquanto está preso.

            Ora, tudo isto está de acordo com o que foi defendido pela sentença recorrida e com aquilo que já acima se foi dizendo. Recorde-se que o demandado está preso e não tem quaisquer rendimentos (o que naturalmente, no caso, face aos factos provados, se tem de presumir que inclui rendimentos de trabalho penitenciário) ou outros bens que lhe permitam esses rendimentos (como no caso dos autos em que dos factos provados – o acordo homologado – decorre que não tem).

            Quanto à jurisprudência portuguesa encontrou-se apenas um acórdão, do TRG, de 03/03/2011, proc. 153/08.0TMBRG.G1, que se refere expressamente à situação de um alimentante preso; o acórdão diz: “Nos casos em que nada se saiba quanto aos rendimentos e paradeiro do progenitor do menor obrigado a alimentos, deve ser fixada uma quantia a título de alimentos, a menos que esteja demonstrada, por incapacidade para trabalhar, a total impossibilidade de os prestar.”

           Desde logo, está errada a generalização feita neste sumário; se a situação respeitava a alguém que estava preso e que não tinha rendimentos, não tem razão de ser a referência ao desconhecimento dos rendimentos e do seu paradeiro; por outro lado, faltava ao acórdão demonstrar como é que a ressalva final do sumário não se aplicava ao progenitor que estava preso; logicamente que o progenitor estava incapacitado de trabalhar de forma remunerada que é o que importa para o caso. O acórdão tem um voto de vencido que diz precisamente isso: “Com efeito, estando provado, à data da prolação da mesma, que o pai do menor se encontra preso no EP de Paços de Ferreira em cumprimento de pena de prisão desde 2004 com termo previsto para 03/09/2010, que não lhe são conhecidos nem rendimentos nem bens, e que este apenas “conta” com o apoio de um cunhado, com quem pretende trabalhar na área da construção civil, não está demonstrada, salvo o devido respeito, a sua efectiva possibilidade de contribuir, naquele enquadramento e no momento indicado, para o sustento do filho. Uma vez que o art. 2004/1 do CC estabelece uma correlação entre as necessidades do alimentando e as possibilidades do obrigado, comprovada a necessidade do menor, deve, pelo menos, ficar demonstrada a possibilidade do pai angariar meios para o sustento deste, o que manifestamente não ocorreria aquando da decisão sob recurso.” O acórdão, para além disso, invoca o ónus da prova a cargo do progenitor, como dizendo respeito a um facto impeditivo, ao seja, com recurso ao art. 342/2 do CC, que vem do ac. do TRL de 2007, já citado, baseado num lapso de interpretação da passagem de Remédio Marques como se já se viu.

            Por isso, também esta via argumentativa falha.

              Como diz o MP, em defesa da decisão recorrida, “a situação dos autos é diferente da pressuposta naquela jurisprudência e doutrina, ou seja, quando se sabe que o obrigado pai está vivo, em idade laboral e não se encontra reformado por invalidez ou preso, apenas ausente em parte incerta ou temporariamente desempregado (mas não impedido de procurar activamente trabalho), o que implica seja ficcionado um rendimento mensal do trabalho e fixada pensão de alimentos.” Isto é, no caso dos autos, é impossível ficcionar o recebimento de rendimentos pelo progenitor quando se provou que ele está preso e não tem quaisquer rendimentos.

            A sentença recorrida está certa, por isso, quando diz que:

        Assim, não sendo possível ficcionar qualquer capacidade de trabalho ao pai, privado da liberdade em cumprimento de pena de 8 anos de prisão, não se fixará obrigação de pagamento de prestação de alimentos ao pai, de cumprimento impossível.

              Neste caso o auxílio à mãe para o sustento destas crianças terá de partir da segurança social e não do Fundo de Garantia a Alimentos Devidos a Menores, cuja intervenção pressupõe sempre a capacidade de gerar rendimentos do obrigado a alimentos e a impossibilidade verificada posteriormente de cumprimento desta obrigação, e daí que se preveja que o FGADM fique sub-rogado nos direitos do credor de alimentos, por ter cumprido a obrigação em substituição do devedor.”

V

As alternativas que estão em causa

            Posto isto, diga-se que a questão coloca-se nos seguintes termos alternativos, nos quais o menor necessitado nunca fica sem alimentos, ao contrário do que defende, num argumento ad terrorem, a posição contrária:

         – se os progenitores se colocaram voluntariamente numa situação de impossibilidade de pagamento da prestação alimentar, imputam-se-lhe rendimentos, com base em presunções de facto, e fixa-se a prestação alimentar com base neles; se o progenitor não cumprir a prestar, passa a cumpri-la o FGADM, com direito de sub-rogação contra o progenitor. A dívida deste vai aumentando com o tempo e quando obtiver algum rendimento ela ser-lhe-á cobrada. Justifica-se esta ameaça permanente de uma dívida em crescimento com base na voluntariedade da conduta do progenitor.

            – se os progenitores não se colocaram voluntariamente nessa situação de impossibilidade, não podem ser condenados por não terem possibilidades, e as necessidades dos menores são satisfeitas pela segurança social, que não poderá depois vir pedir aos progenitores o pagamento efectuado.

                Assim, a alternativa é a seguinte, em termos práticos:

               – considerar que qualquer progenitor pobre (com rendimentos insuficientes para poder prestar alimentos aos filhos) é culpado por isso e deve ser condenado a ficar potencialmente para toda a vida sob a ameaça de uma dívida crescente, pois que o FGADM paga por ele mas tem direito de sub-rogação.

            – ou considerar que quando um progenitor não tem possibilidade de prestar alimentos, o Estado, através da segurança social, se lhe deve substituir, pagando por ele, satisfazendo as necessidades dos menores.

            Dito de outro modo: a comunidade está disposta (como o demonstra o art. 63/3 da Constituição: O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho)) a suportar, a título definitivo, as necessidades alimentares de filhos de pais pobres que, sem culpa, não tenham possibilidade de os pagar; mas já não está disposta a isso em relação a pais que voluntariamente se colocam numa situação de não os poder pagar e neste caso – mas apenas nele – justifica-se que lhes venha a exigir, quando possível, aquilo que gastou com a alimentação dos seus filhos.

VI

Das alegadas desigualdades a que a solução defendida dá causa

            Não é esta solução que dá origem a desigualdades, mas antes a solução seguida pela jurisprudência contrária que, sem consideração pela especificidade das situações, ou melhor, sem ter em conta que a imputação de rendimentos, com base em presunções de facto, só deve fazer-se quando o tribunal tiver boas razões para acreditar que a condenação pode ser feita cumprir coercivamente se necessário, e não simplesmente para se poder vir a accionar o FGADM; assim, por exemplo:

(A) tem rendimentos de trabalho de 300€ mensais, insuficientes para a sua sobrevivência; como tal não é condenado a prestar alimentos.

A (B) não são conhecidos quaisquer bens ou fonte de rendimentos; aquela jurisprudência entende, sem mais, que (B) deve ser condenado a prestá-los.

(C) está preso por 8 anos – por um crime que não tem nada a ver com os alimentos – e não tem quaisquer bens nem rendimentos, como já não os tinha antes de ser preso; é condenado a prestar alimentos ao filho; a dívida dele, ao FGADM, que pagará por ele entretanto, vai crescendo ao longo de 8 anos e, no fim deles, sai da prisão com a dívida às costas para o resto da vida.

         Qual é a materialidade subjacente à situação que permite estas disparidades? Porque é que se aceita, com razão, que (A) não deve ser condenado, mas (B) e (C) que estão aparentemente em piores condições que (A) já o devam ser? Só pode ser mesmo a presunção da colocação voluntária numa situação de inexistência de bens e rendimentos, que apenas pode ser aplicada (eventualmente, se houver razões para isso) a (B) e não a (C) porque, quanto a este, está naturalmente ilidida. A não ser que se recorra à ficção, que não se aceita, de que (C) foi para a prisão para se colocar numa situação de não pagar alimentos.

            E o filho de (A) não é tratado desigualmente em relação aos filhos de (B) e de (C)? É que ele não receberá qualquer prestação do FGADM.

            E, assim, a coerência obrigaria a que a tese maioritária também defendesse que este (A) também fosse condenado a prestar alimentos, ficcionando-se que podia ter conseguido um emprego onde recebesse um ordenado mais elevado. 

            Sendo isto que, no fundo, esteve na base da corrente jurisprudencial que via na substituição do FGADM uma prestação social de cariz assistencial para proteger os menores necessitados, e por isso quantificada com base na necessidade destes, desconsiderando-se a prestação concreta fixada ao progenitor.

            Ora, hoje, esta corrente jurisprudencial está afastada pelo acórdão do STJ de 19/03/2015, de uniformização de jurisprudência, proferido no proc. 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A, considerando-se que o FGADM não pode ser condenado a pagar uma prestação de valor superior à que o progenitor foi condenado. Pelo que, se o menor tiver necessidades não cobertas pela prestação a suportar, elas terão de ser cobertas pela segurança social e não pelo FGADM e aquela não fica sub-rogado naquilo que pagou.

            Ou seja, não é o simples facto de os menores terem necessidades alimentares que pode justificar a condenação dos progenitores, para depois se poder recorrer ao FGADM, porque os progenitores só devem ser condenados quando se provar que tem possibilidades de suportar a prestação ou quanto se comprovar que se colocaram voluntariamente numa situação de não a pagar e mesmo assim com cautelas, sob pena do que se dirá mais à frente.

*

                    Dito de outro modo: se o acórdão entende que “não fixar pensão de alimentos nas situações em que o progenitor não guardião não aufere rendimentos de trabalho, nem possui outros com natureza constante ou periódica é uma negação de um direito constitucionalmente reconhecido ao filho”, tal afirmação tem de valer de igual modo para todos os casos em que o progenitor recebe rendimentos mas estes são insuficientes e também para os casos em que o progenitor recebe rendimentos e estes são suficientes para uma prestação alimentar que, no entanto, é insuficiente para as necessidades dos filhos. Em todos estes casos teria de ser fixada uma prestação alimentar de valor suficiente para satisfazer as necessidades dos filhos, sob pena de se estar a negar um direito constitucionalmente reconhecido ao filho.

            Mas com isto tudo deixámos de estar no âmbito do direito privado de alimentos, em que se discute o direito do filho a obter alimentos da mãe ou do pai, para passar a estar no direito público do filho obter uma condenação do pai para a poder executar contra o Estado. E o Estado passaria a fazer segurança social só em primeira linha, um simulacro de segurança social, pois que sempre teria o direito de vir a exigir dos pais, por pobres que sejam, tudo aquilo que pagou.

*

            Outro exemplo do desvirtuamento que a tentativa de aplicação daquela solução (da imputação de rendimentos) a todos os casos introduz no sistema, é a consideração de que, assim sendo, nunca se verifica a hipótese de haver outros obrigados em abstracto que podiam ser condenados a satisfazer a prestação, na impossibilidade de os progenitores o poderem fazer (art. 2009 do CC).

            Veja-se:

            (A) está desempregado; entende-se que o está voluntariamente, logo é condenado a pagar alimentos; se não pagar, como é muito provável que aconteça, o FGADM substitui-se-lhe. Perdeu-se de vista que se (A) não pode pagar, existem os outros obrigados previstos no art. 2009 do CC que então o devem fazer. Ou seja, esta aplicação indiscriminada da solução a todos os casos, está a substituir o Estado a todos os familiares que, de outro modo, poderiam ser obrigados a pagar alimentos. O que demonstra que a aplicação ‘totalitária’ da tese não está de acordo com a unidade do sistema jurídico. Ela está a introduzir soluções que não se compaginam com o sistema, pondo em causa normas legais que deixam de fazer sentido devido às soluções que estão a ser seguidas.

VII

Da distinção entre o direito e a quantificação

            Quanto ao argumento utilizado por alguma jurisprudência e seguido pela maioria deste colectivo, de que a tese contrária mistura existência do direito com a quantificação da prestação e que o artigo 2004 do CC só trata desta não daquela, ele está errado.

              O art. 2004 do CC sempre foi visto como o local próprio dos pressupostos do direito a alimentos; se eles não se verificam, o demandado não deve ser condenado.

                 Dizer que mesmo que não se verifiquem os pressupostos do art. 2004 do CC, os alimentos devem ser fixados e que este artigo só tem a ver com a quantificação da prestação, implica a desconsideração da norma do art. 2004 do CC, ou seja, dos pressupostos do direito a alimentos.

          Seguindo-se esta jurisprudência, não é preciso que a ex-mulher tenha possibilidades de prestar alimentos para que seja condenada a prestá-los ao ex-marido que lhos pede, nem que o tio os tenha para que seja condenado a pagá-los à sobrinha menor que lhos demanda. Na lógica deste argumento, condena-se porque a quantificação é uma coisa diferente da existência. Isto, salvo o devido respeito, não tem qualquer sentido.

               Este argumento é pois uma outra forma de dizer que o art. 2004 do CC não se aplica aos alimentos, só que agora a todos eles e não só aos dos menores. Ou de dizer que o ónus da prova cabe aos devedores, o que já se demonstrou estar errado.

VIII

Da demissão de julgar

            Alguma da jurisprudência que defende esta aplicação indiscriminada da solução da imputação de rendimentos, transposta para a posição que fez vencimento neste caso, também diz que a posição contrária é formalista, que não tem consideração pelos interesses materiais subjacentes, isto é, pelo superior interesse da criança, e que se demite de julgar, de aplicar o direito, entrando numa situação de abstenção ou falência de direito.

            Mas ter em conta os pressupostos exigidos pela lei existente é ser formalista e não os cumprir, desconsiderando-os, sem fundamentação, é aplicar a lei? Os tribunais devem aplicar a lei existente ou criar ou aplicar uma lei à medida das suas convicções? E ter em conta os superiores interesses da criança é resolver os casos concretos de acordo com estas convicções particulares? E observar a lei corresponde a não julgar?

IX

Da inexistência de alteração superveniente

            Mas para além destas razões substanciais, havia uma razão processual que deveria ter impedido a procedência da alteração.

            É que tem de haver circunstâncias supervenientes, para permitir uma alteração da regulação. E uma alteração que seja para melhor em relação àquele que a pede. Ou seja, o credor tem de invocar e provar que o devedor ficou numa situação que já lhe permite prestar alimentos, para poder pedir um alteração na decisão que tinha homologado um acordo que não os tinha fixado com base na inexistência dessa possibilidade. Como não se provou esta alteração de circunstâncias – aliás, a maioria do colectivo diz que a situação do demandado é pior do que aquela que existia (como logo se vê no sumário do acórdão) -, a alteração pedida não podia ser, como não foi (na sentença recorrida), alterada.

            Para as coisas fazerem sentido é o alimentante que ingressa na prisão que pede a alteração do decidido (para deixar de pagar, ou para que seja suspensa a obrigação de pagar).

            Decretar uma alteração da decisão sem alteração de circunstâncias (para melhor, de modo a poder ser invocada pelo alimentando), porque se considera que a decisão anterior, transitada em julgado, está errada, é decidir contra a lei, desde logo, contra o caso julgado formado na anterior decisão, não recorrida e só susceptível de ser alterada com aquela alteração (art. 619/2 do CPC).

X

Dos factos acrescentados e das considerações feitas a propósito deles

            Quanto à relevância dos factos acrescentados oficiosamente pelo acórdão aos factos provados, entre eles o de o réu ter estado a receber, durante um período de tempo, 27€ mensais pelo seu trabalho na prisão, e circunstâncias pelas quais os deixou de receber:

             Desde logo, os factos não podiam ser acrescentados: não houve recurso da matéria de facto e os factos em causa não são impostos pelos factos assentes nem pela prova produzida (art. 662/1 do CPC).

            Seja como for, admitir que o valor de 27€ pelo trabalho prestado numa prisão durante um mês possa ter relevo para a decisão, seria o mesmo que admitir como possível a posterior penhora desse valor para cumprimento da prestação de alimentos, ou seja, admitir a penhora de um valor que é mesmo inferior àquilo que se admite como penhorável quando o crédito exequendo é de alimentos (art. 738/4 do CPC).

      Quanto às circunstâncias em que esse direito foi retirado ao réu, que são aproveitadas para reforçar o juízo de censura feita ao réu, diga-se que, para além de elas não poderem ser tidas em conta, elas também não permitiriam, só por si, os juízos que são delas retirados.

            Quanto a dizer que esse recebimento prova que o réu poderia obter rendimentos mesmo enquanto preso, a possibilidade abstracta disso já tinha sido considerada no projecto vencido; mas para serem tidos em conta, eles precisavam de existir de facto, não de já terem existido, ou de poderem vir a existir em condições concretas que não se sabe quais sejam.

            De qualquer modo, não se considera que a possibilidade de um preso receber 27€ mensais pelo seu trabalho na prisão possa ser considerado relevante para a condenação na prestação de alimentos, porque isso seria retirar-lhe o mínimo dos mínimos para uma existência digna que necessariamente implica poder continuar a considerar que faz parte de uma sociedade onde as ideias de justiça e de retribuição pelo trabalho fazem parte. Retirar-lhe a possibilidade de receber 27€ pelo trabalho de um mês, durante 8 anos, seria ainda desincentivá-lo de trabalhar, contribuindo para a sua transformação num elemento inútil para a sociedade. E de novo não se faça a crítica fácil da desconsideração pelos superiores interesses dos menores, pois que, já se disse, a alternativa não seria elas ficarem sem alimentos (a prestar pelo FGADM), mas sim a de, se necessário, ficarem com alimentos a suportar pela segurança social.

                 Pedro Martins