Procedimento Cautelar do Juízo Central Cível de Ponta Delgada – Juiz 2

              Sumário:

I. Não se pode requerer, num procedimento cautelar comum, a providência de que os requeridos sejam condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que lesem o direito condicional de arrendamento da requerente, por tal não se traduzir numa providência concreta (art. 362/1 do CPC).

II. Não se pode requerer uma providência cautelar comum, quando aquilo que se quer é a suspensão de obras que se dizem pôr em risco o estado do prédio como ele era à data em que foi dado de arrendamento condicional à requerente (arts. 362/3 e 397/1 do CPC).

III. O proprietário do prédio dado de arrendamento sob condição suspensiva apenas não pode praticar no seu prédio actos que comprometam a integridade do direito da contraparte (art. 272 do CC), o que não é o caso de simples obras de terraplanagem tendo em conta o fim do contrato de arrendamento condicional celebrado. Fora destes limites, é discutível se o arrendatário sob condição suspensiva pode embargar obras novas.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

             

              G-SA, intentou um procedimento cautelar comum contra A-Unipessoal, Lda, e A, requerendo que estes sejam condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que lesem o direito de arrendamento da requerente, designadamente a cessarem os trabalhos de terraplanagens e outros que têm levado a cabo no prédio dado de arrendamento à requerente.

              Para tanto, alega, em suma, que assinou, em 02/01/2014, com a sociedade requerida (= requerida) um contrato em que lhe cedeu a exploração de um estabelecimento comercial num prédio que é propriedade do requerido A (= requerido) com quem, por seu turno, celebrou, naquele mesmo dia, um contrato de arrendamento tendo-o como objecto e que destinava à exploração comercial de um posto de abastecimento de combustíveis e de loja de conveniência; após a assinatura de tais contratos, a requerente entrou em negociações com a requerida tendo em vista a construção conjunta da unidade objecto da cessão de exploração e repartição entre elas do respectivo investimento. A construção do posto foi adjudicada em Junho de 2016, e o contrato de empreitada assinado em 20/07/2016. Sem qualquer explicação ou previsão, em 14/02/2017 a requerida resolveu os contratos escudada na circunstância da obra não se ter iniciado.

              Depois desta parte I dedicada aos factos, a requerente inicia uma outra, II, dedicada ao direito onde, para o fim dela, tem um título dedicado ao perigo na demora em que diz: preparava-se para dar início às obras quando foi confrontada com a existência de obras de terraplanagem no referido terreno; como tal início das obras não foi ordenado pela requerente, e por ter sido após a comunicação de resolução dos contratos supra descritos, só pode ter sido pela requerida ou pelo requerido ou alguém a mando destes; certo é que a requerente vê assim a sua posse perturbada, não podendo entrar no prédio nem efectuar as obras que havia planeado; é de presumir que a requerida pretende construir um posto de abastecimento no terreno arrendado à requerente, para o que já iniciou os trabalhos, que estão a ser realizados em terreno arrendado à requerente, colidindo com o direito desta; não podendo a requerente esperar pelo período normal de uma acção declarativa, sob pena de não poder exercer a posse que ainda detém legitimamente por via do contrato de arrendamento; pois uma vez construído um posto de abastecimento a comercializar outra marca ou sob outra insígnia, torna irremediável o direito que a requerente pretende fazer valer na acção principal, e que é a condenação do requerido (e da requerida) ao cumprimento do contrato de arrendamento; Com efeito, a requerente celebrou o referido contrato de arredamento no pressuposto do seu cumprimento bilateral, e só o cumprimento deste evitará a produção de danos irreparáveis na sua esfera, com impacto na sua estratégia e plano de negócios a médio e longo prazo (que passa a descrever).

              Os requeridos deduziram oposição à providência, entre o mais dizendo que: atento o conceito extremamente vago e impreciso de “quaisquer actos que lesem o direito de arrendamento”, não poderá o tribunal decretar a providência, sob pena dos requeridos verem coarctado o seu efectivo direito ao contraditório; a requerida nada tem a ver com o contrato de arrendamento, pelo que é parte ilegítima neste providência; conforme se retira da alegação da requerente, o seu alegado receio advém do facto de se ter confrontado com a existência de obras de terraplanagem no prédio em causa no momento em que se preparava para dar início às obras de construção do posto de abastecimento – que, apesar de não indicar tal data, terá sido em 05/03/2017, data em que a requerente alegou que iria iniciar a obra. A jurisprudência tem entendido que, ao instaurar uma providência cautelar, terá o requerente que, em cumprimento do princípio da legalidade, verificar se existe procedimento tipificado que abarque a realidade e o direito que pretende ver salvaguardados e, só no caso de inexistir tal tipificação, poderá avançar para o procedimento comum (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 3898/2007-2, disponível em www.dgsi.pt); é este, efectivamente, o entendimento que se retira do disposto no nº 3 do art. 362 do CPC; a verdade é que existe um procedimento cautelar especificado para o caso, tal como apresentado pela requerente: o embargo de obra nova, art. 397/1 do CPC; logo, nunca a sua pretensão poderá ser decidida através de uma providência cautelar comum; aqui chegados, e aplicando a teoria do aproveitamento dos actos processuais, poderia o tribunal convolar a presente providência cautelar não especificada na providência correta – o embargo de obra nova; porém, para que tal suceda, têm de estar preenchidos os pressupostos objectivos de que depende tal providência cautelar especificada, em concreto o prazo – 30 dias a contar do conhecimento do facto; como a providência cautelar deu entrada em juízo no dia 07/08/2017, 155 dias após aquela data de 05/03/2017, a convolação não é possível, uma vez que a mesma caducou; conforme consta da cláusula 7ª do contrato junto, o contrato é celebrado pelo prazo de 30 anos mas com início apenas na data da obtenção da licença de utilização da loja referida na cláusula 2ª, o que significa que entre a requerente e o requerido não existe qualquer contrato de arrendamento, mas apenas uma promessa de arrendamento condicionada à construção e consequente aprovação e obtenção da licença de utilização a emitir pela competente entidade administrativa; por este motivo é que a requerente, desde a data em que celebrou o contrato com o requerido e a presente data, nunca pagou qualquer renda; não existindo retribuição, não existe arrendamento; e, não existindo arrendamento, não tem a requerente qualquer direito sobre o prédio, apenas o podendo vir a ter se a condição se vier a verificar – isto se se concluir que as resoluções contratuais foram ilícitas, o que não se aceita; o decretamento da providência ia acarretar para o requerido um prejuízo maior do que aquele que com ela se pretende acautelar, cuja gravidade, aliás, a requerente não concretiza, tal como não faz prova da dificuldade na reparação da lesão.

              De seguida, sem produção de prova, a providência foi indeferida, com o fundamento de ser manifestamente improcedente, e, em consequência, absolveram-se os requeridos do pedido.

              A requerente recorre desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que decrete a providência requerida com base em factos que também pretende que sejam aditados aos indiciariamente provados.

              Os requeridos não contra-alegaram.

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              Questões que importa decidir: se a providência não devia ter sido indeferida, se devem ser aditados factos aos dados como indiciariamente provados e se, com base neles, deve ser decretada a providência.

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              Foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos:

1. Em 02/01/2014 foi celebrado um contrato de cessão de exploração no qual a requerente cedeu à requerida a exploração de um estabelecimento comercial constituído por um posto simples de abastecimento e uma loja, sito na ER…, pelo período de 5 anos.

2. Nesse mesmo dia foi assinado um contrato de arrendamento de duração limitada para fins não habitacionais entre a requerente e o requerido (também gerente da requerida), no qual o segundo arrendou à primeira um prédio rústico com a área total de 3960m, sito na ER…, descrito na Conservatória do Registo Predial de X, sob o nº xxx, inscrito na respectiva matriz urbana sob o nº. xxx, secção xx, destinado à exploração comercial de um posto de abastecimento de combustíveis e de loja de conveniência, pelo prazo de 30 anos.

3. Neste contrato de arrendamento consta da sua cláusula 7ª, entre o mais, que o contrato é celebrado pelo prazo de 30 anos mas com início apenas na data da obtenção da licença de utilização da loja referida na clª 2ª (loja de conveniência e/ou de assistência ao cliente, tabacaria, snack-bar, lavagem automática de automóveis, oficina de reparação, estação de serviço, minimercado, e outras usuais em instalações dessa natureza).

4. Posteriormente, requerente e requerida celebraram um aditamento ao contrato de cessão de exploração celebrado, onde procederam à descrição dos investimentos de cada parte.

5. Também a 11/12/2015 a requerente e o requerido celebraram um aditamento ao contrato de arrendamento, no qual alteraram a duração da vigência para 20 anos.

6. A requerente transmitiu à requerida que, após contacto com o empreiteiro, estavam reunidas as condições para iniciar as obras de construção do posto de abastecimento no dia 05/03/2017 e, quando se preparava para dar início a tais obras foi confrontada com a existência de obras de terraplanagem no referido terreno.

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              A fundamentação da sentença recorrida foi, em síntese, a seguinte:

         A requerente estriba o seu pedido no contrato de arrendamento e, como claramente resulta do pedido que formula, pede uma providência apenas acessível ao proprietário ou a quem possa exercer o direito equivalente ao daquele, como é o caso do arrendatário,

         Efectivamente a requerente pretende com esta providência defender a posse que entende deter do prédio em razão do contrato de arrendamento que defende estar em vigor.

         Por força do art. 362/3 do CPC, ao instaurar uma providência cautelar, terá o requerente que, em cumprimento do princípio da legalidade, verificar se existe procedimento tipificado que abarque a realidade e o direito que pretende ver salvaguardados e, só no caso de inexistir tal tipificação, poderá avançar para o procedimento comum.

         Sucede que existe (pelo menos) um procedimento cautelar especificado para o caso, tal como apresentado pela requerente, que é o embargo de obra nova (outro que se poderia cogitar seria o da restituição provisória da posse).

         Esclarece o art. 397/1 do CPC que aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse (como é o caso dos autos), em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.

         Sucede que a presente providência deu entrada no tribunal em 07/08/2017, muito para lá do prazo que a lei permitia para tanto, que é de 30 dias a contar do conhecimento do facto, e esse é conhecido da requerente desde a terraplanagem que verificou em 05/03/2017, altura em que alegadamente quis começar as obras.

         Pelo que, não é possível a convolação dos presentes autos em embargo de obra nova (ou outra também nominada, como a restituição provisória da posse), razão que basta para o indeferimento da providência.

         Contudo outras causas existem que a isso levam.

         Se olharmos para os contratos logo vemos que apenas teriam o seu início:

         (i – o de cessão da exploração) na data da obtenção da licença de utilização da loja de conveniência e/ ou de assistência ao cliente;

         (ii – o de arrendamento) na data de início da exploração do estabelecimento comercial.

         É cristalino que não está emitida qualquer licença de utilização, pois não foi erigida uma única pedra por conta da obra, nem se iniciou a exploração do estabelecimento comercial (que não está construído).

         E o contrato de arrendamento apenas tinha início na data da obtenção da licença de utilização da loja.

         Assim não existe qualquer contrato de arrendamento, mas tão só uma promessa de arrendamento condicionada à construção e consequente aprovação e obtenção da licença de utilização a emitir pela competente entidade administrativa.

         É que para haver contrato de arrendamento é necessário que exista por parte do arrendatário a obrigação de pagamento de renda, que a requerente, desde a data em que celebrou o contrato com o requerido, nunca pagou.

         Logo, não havendo contrato de arrendamento, mas apenas uma promessa, não adquiriu a requerente o direito a defender a posse de algo que nunca recebeu como arrendatária, o que apenas sucederia depois de tal contrato entrar em vigor.

         Nem se diga que se estriba noutra circunstância de facto, nomeadamente nos direitos advenientes de outro contrato (de empreitada ou cessão da exploração) porque não o refere; e além disso, os contratos foram resolvidos. Essa resolução pode ser ilegítima, mas isso apenas constitui o inadimplente no pagamento da indemnização devida (art. 798 do CC), não sendo por este meio que a requerente garantirá o ressarcimento de eventual prejuízo, prejuízo que é muito inferior ao prejuízo que adviria aos requeridos com a presente providência.

         Face ao exposto, esta providência não pode ter vencimento.

              A requerente contrapõe a isto razões que sintetiza nas seguintes conclusões:

1. A causa de pedir e o pedido formulado pela requerente prendem-se com a ilicitude da resolução dos contratos e com a necessidade do seu cumprimento por parte dos requeridos, que se deverão abster de praticar quaisquer actos que lesem o direito ao arrendamento da requerente.

2. Cumprimento esse que só poderá verificar-se se o terreno dado em arrendamento mantiver as características que tinha à data da celebração do respectivo contrato, sob pena de, quando vier a ser considerada ilícita a resolução dos contratos aqui em causa, o direito ao arrendamento da requerente já não poder ser exercido e ter ficado irremediavelmente inutilizado.

3. A requerente não pretendeu conseguir o efeito correspondente ao de embargo de uma obra nova, nem tão pouco de defesa da posse do terreno, não existindo outro meio processual ao dispor da requerente que não um procedimento cautelar não especificado.

4. O tribunal a quo procedeu a uma incorrecta qualificação do contrato sub judice, pois, ao arrepio de qualquer elemento de facto e de direito, qualificou o contrato como “contrato-promessa de arrendamento” quando estamos perante um verdadeiro contrato de arrendamento sujeito a uma condição suspensiva.

5. O contrato celebrado entre as partes é um contrato de arrendamento, com todos os elementos típicos deste, inclusivamente, a fixação de uma renda mensal.

6. Não existe, no clausulado do contrato ou nalgum dos muitos documentos juntos por ambas as partes, qualquer formulação coerente com a vontade de efectuar uma promessa, nem qualquer outro elemento que evidencie ou sequer indicie que as partes tenham celebrado, ou sequer tenham querido celebrar, um contrato promessa de arrendamento, existindo sim, com base na mais singela interpretação, um verdadeiro contrato de arrendamento em que a produção de alguns dos seus efeitos ficou sujeita à verificação de um evento futuro e incerto.

7. Pelo que não subsiste qualquer dúvida quanto à errada qualificação do contrato em causa nem, acima de tudo, quanto à errada consequência daí retirada pelo tribunal a quo, no sentido de a requerente não ser titular de qualquer direito atendível.

8. Para além dos factos considerados indiciariamente provados pelo tribunal a quo, outros há com relevância para a causa e que igualmente constavam documentados nos autos e nos quais a requerente se estribou para fundamentar a causa de pedir deste procedimento. Em concreto, deveriam igualmente dar-se por indiciariamente assentes os seguintes factos não impugnados pelos requeridos: (i) factos constantes do artigo 28 do requerimento inicial e doc. 8 junto ao mesmo; (ii) factos constantes do artigo 33 do requerimento inicial e doc. 11 junto ao mesmo; e (iii) factos constantes do artigo 28 do requerimento inicial e doc. 8 junto ao mesmo.

9. Destes factos decorre que inexistiu qualquer incumprimento contratual da requerente que justificasse a actuação da requerida no sentido de pretender resolver os contratos validamente celebrados.

10. Em acréscimo, sendo a resolução do contrato inválida e ineficaz, o mesmo continua a produzir efeitos, urgindo a necessidade de acautelar que o direito de arrendamento aqui em causa não fica irremediavelmente comprometido pela actuação dos requeridos.

11. O tribunal a quo olvida o regime do cumprimento das obrigações, que obedece principalmente a três princípios gerais que têm referência na lei: os princípios da pontualidade, da integralidade e da boa-fé.

12. De acordo com o princípio da pontualidade, consagrado no art. 406/1 do Código Civil, o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. Deste princípio resulta a proibição de qualquer alteração à prestação devida, pelo que o devedor (no caso, os requeridos) tem o dever de prestar a coisa ou o facto exactamente nos mesmos termos em que vinculou.

13. Para além disso, e decorrente desse princípio, é evidente que, nos casos em que a prestação devida ainda é passível de ser cumprida, o credor tem, em caso de não realização da prestação, uma garantia judiciária da obrigação, consistindo na possibilidade de exigir judicialmente o seu cumprimento, nos termos previstos nos artigos 817 e seguintes do CC. Esta exigência legal de cumprimento efectua-se normalmente através de uma acção de condenação onde se exige a prestação de coisa ou de um facto.

14. Por fim, apesar do tribunal a quo reconhecer que a requerente poderá vir a ter direito ao pagamento de uma indemnização, esquece que o princípio da reconstituição natural constitui a regra geral enquanto mecanismo de reparação no direito português.

15. Como o princípio geral da obrigação de indemnizar determina que deve ser reconstituída a situação que existiria (art. 562 do CC), não se verificando nenhuma das hipóteses previstas no art. 566/1 (p. ex., impossibilidade de cumprimento), com a declaração de ilicitude resulta a subsistência do vínculo, que nunca se poderá considerar cessado.

16. A vingar a tese do tribunal a quo, qualquer declaração de resolução, por mais abusiva e ilegítima que fosse, daria apenas lugar – na melhor das hipóteses – a um direito indemnizatório, transformando o princípio do cumprimento dos contratos numa mera operação de aritmética, de modo a oportunisticamente apurar se a resolução ilícita compensa ou não face ao eventual quantum indemnizatório.

17. Direito indemnizatório esse que dificilmente seria exercido neste caso, uma vez que a entidade que procedeu à alegada resolução – e como tal, praticou o facto ilícito – não fazia parte da relação contratual.

18. O tribunal a quo decidiu o objecto do litígio de forma manifestamente errada, desconsiderando que o cumprimento da obrigação é, ainda, possível, tendo a requerente inequívoco interesse na manutenção do contrato de arrendamento, privilegiando-se assim o princípio estrutural do pontual cumprimento dos contratos.

19. E desconsiderando que apenas com o decretamento do presente procedimento se assegura o núcleo essencial do direito da requerente, e se acautela o efeito útil de uma decisão que venha a determinar a obrigação de cumprimento dos contratos sub judice.

                                                                       *

              Decidindo:

             Dispõe o art. 362/1 do CPC que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.” Acrescenta o n.º 3 que “não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte.”

         Destas normas decorre que tem de haver um risco de lesão concreto que se pretende acautelar e tem de se requerer uma providência concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.

            Assim sendo, nunca se pode requerer aquilo que a requerente requereu, isto é: que os requeridos sejam condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que lesem o direito de arrendamento da requerente. Pois que não se está a requerer uma providência concreta adequada a evitar um risco de lesão concreto. Como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2º, Almedina, 2017, pág. 25, “o requerente deve, ao formular o pedido, individualizar a providência concreta que pretende, em conformidade com o princípio do dispositivo”.

              No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Procedimento cautelar comum, Almedina, 1998, pág. 73, em nota, lembra o ac. do TRE de 04/06/1985, publicado no BMJ. 350, pág. 406, “segundo o qual não cumpria os requisitos legais o requerimento onde se pedia ‘a intimação do requerido para que se abstenha da prática de qualquer acto ou operação” [o acórdão, significativo, dizia mais precisamente o seguinte: “I. Só pode considerar-se como ‘pedido’ em procedimento cautelar aquela pretensão susceptível de realização efectiva, na prática (manu militari se necessário). II. Solicitar a intimação do requerido para que se abstenha da prática de ‘qualquer acto ou operação’ não pode integrar pedido, devendo ser, in limine, indeferido”] e acrescenta: “tratava-se, como é evidente, de um pedido vago que, a ser deferido, faria perigar a segurança jurídica inerente a qualquer decisão judicial em sede de definição do caso julgado ou da execução.”

          Estar-se-ia, por isso, perante um requerimento inicial inepto, por falta de um pedido de providência concreta e sem causa num risco de lesão concretamente invocado (art. 186/2-a do CPC).

            No entanto, a requerente acrescentou algo mais ao requerimento: quer que os requeridos sejam condenados a cessarem os trabalhos de terraplanagens e outros que têm levado a cabo no prédio dado de arrendamento à requerente. O que está de acordo com aquilo que alegou a propósito do perigo na demora: são as obras de terraplanagem iniciados – que a requerente imputa aos requeridos – no prédio em causa que estão a causar um prejuízo à requerente, perturbando a sua posse [que afirma ter, sendo no entanto manifesto, face ao por ela alegado, que não tem], impedindo-a de entrar e fazer obras no prédio arrendado à requerente e ameaçando torná-lo irremediável para o cumprimento do contrato de arrendamento.

              Ora, isto, como dizem os requeridos e a sentença recorrida, é objecto próprio de um embargo de obra nova (art. 397/1 do CPC): a requerente quer a suspensão de obras que estão a ser feitas num prédio de que diz ser arrendatária e que levam, segundo diz, ao impedimento do exercício da posse com base nesse direito de arrendamento.

           Pretensão que a requerente ‘disfarçou’ com um requerimento de providência genericamente formulado e com a alegação de factos fora do local próprio.

           E não interessa que a requerente diga que “não pretendeu conseguir o efeito correspondente ao de embargo de uma obra nova”, ou que “a causa de pedir e o pedido formulado pela requerente prendem-se com a ilicitude da resolução dos contratos e com a necessidade do seu cumprimento por parte dos requeridos”, pois que o que importa é que o único risco concreto de lesão invocado tem a ver com a realização de obras de terraplanagem que a requerente quer suspender, para que o terreno dado em arrendamento mantenha as características que tinha à data da celebração do respectivo contrato.

           Temos assim, sob a capa de um procedimento cautelar comum, um embargo de obra nova.

             Ora, tal como dizem os requeridos e a sentença recorrida, não se pode intentar um procedimento cautelar comum, “quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por” um embargo de obra nova (362/3 do CPC).

            Neste sentido, por exemplo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que dizem (obra citada, vol. 2, pág. 7): “O procedimento cautelar comum continua, em princípio, a não poder servir de albergue a situações não tuteladas por um procedimento especificado por não estarem reunidos todos os pressupostos da concessão da providência criada para especificadamente prevenir a lesão de determinado direito; […] é o caso do embargo de obra nova requerid[o] após o prazo […] do art. 397/1 do CPC”  e lembram o ac. do TRC de 26/01/1999, proc. 1672/98: I. Só pode requerer-se uma providência cautelar não especificada quando nenhuma das providências nominadas, em abstracto, se adequar ao caso concreto. II. Se a única providência que se ajusta à situação concreta em litígio é qualquer uma das nominadas, não pode o interessado, a pretexto de que não ocorrem todos os seus requisitos, utilizar com a mesma finalidade outro procedimento cautelar, especificado ou não. III. Assim, a circunstância de ter expirado o prazo de trinta dias previsto no art. 412, nº 1 do CPC, não legitima, por si só, o recurso ao procedimento cautelar comum.” (só sumário, igual ao publicado no BMJ. 483, pág. 283).

                                                                 *

       Tal implica o indeferimento da providência? Ou o procedimento pode ser aproveitado, como “sugerido” pelos requeridos?

              A requerente quer a suspensão das obras de terraplanagem e a tal adequa-se o embargo e não o procedimento cautelar comum. Assim há erro da requerente na forma de procedimento utilizado, a que se aplica o art. 193 do CPC (sobre tudo isto, veja-se Lebre de Freitas, CPC anotado, vols. 2.º, Almedina, 2017, 3.ª edição, págs. 84/85 e 26, e vol. 1.º, Coimbra Editora, 2014, 3.ª edição, págs. 374 a 378).

              Aplicando-se o art, 193/3 do CPC, como parece resultar do exemplo dado pelos autores citados, bastaria determinar que se seguissem os termos processuais adequados. Aplicando-se o art. 193/1, por dizer respeito a todo o procedimento e não só a um meio nele previsto, anular-se-iam os actos que não pudessem ser aproveitados, devendo praticar-se, depois, os actos que fossem estritamente necessários para que o processo se aproximasse, quanto possível, da forma estabelecido na lei.

              Os requeridos e a sentença recorrida entendem que não se pode proceder a esta convolação, porque os embargos já estão caducados. E é esta situação que normalmente se verifica quando se intenta um procedimento cautelar comum quando ao caso cabe um embargo de obra nova.

              No entanto, os requeridos fazem-no com base em especulação nas alegações da requerente. Mas a requerente não diz a data em que teve conhecimento do acto e, ao contrário do que os requeridos e a decisão recorrida entendem, é aos requeridos que cabe alegar e provar os factos necessários à conclusão da caducidade da providência (art. 343/2 do CC – neste sentido, por exemplo, os autores citados, vol. 2, pág. 170: “a sua inobservância constitui excepção só arguível pelo requerido e que ele tem o ónus de provar”, com citação de vária jurisprudência no mesmo sentido) e eles não o fizeram.

              Assim sendo, a caducidade não seria um obstáculo à convolação.

                                                                 *

         Os requeridos e a sentença recorrida entendem que, de qualquer modo, a requerente não tem o direito a que se arroga. O arrendamento ainda não existiria, haveria apenas uma promessa de arrendamento. A requerente entende, pelo contrário, que o que existe é um contrato de arrendamento sujeito a condição suspensiva. 

          É esta a posição correcta. O condicionamento do início do arrendamento à verificação de um facto futuro e incerto, não impede que se possa falar já de um contrato de arrendamento válido e existente e de um direito condicionado ao arrendamento (art. 270 do CC). Tal como não o impede, por isso, o facto de a requerente ainda não estar a pagar rendas, embora estas estejam fixadas. A obrigação do pagamento da renda é um dos efeitos do contrato que ficam suspensos e só se produzem se o evento futuro e incerto se vier a verificar.

              No entanto, havendo um arrendatário em expectativa, ou um arrendatário sob condição suspensiva, ou um arrendamento condicionado, o que não existe é um arrendatário definitivo.

              Ora, assim sendo, a posição dos requeridos e da sentença recorrida, embora por outra via, tem suporte doutrinário. Moitinho de Almeida, por exemplo, no seu estudo [para que remetem, nesta parte, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada] sobre o Embargo ou nunciação de obra nova, 2ª edição actualizada, Coimbra Editora, 1986, pág. 44, adere à posição de Ugo Rocco (autor italiano) de que “o proprietário sobre condição suspensiva não tem, por falta de interesse em demandar, legitimidade para requerer a providência [de embargo de obra nova], porque, em tal caso, não pode considerar-se proprietário, o que apenas poderá ocorrer após a verificação de um determinado evento, futuro e incerto” o que, por analogia ou por maioria de razão, se podia dizer também do arrendatário sob condição suspensiva.

              Isto porque o proprietário que arrendou o seu prédio sob condição suspensiva não deixa de ser proprietário efectivo, embora de um direito de propriedade que está onerado com um arrendamento sob condição suspensiva. Continuando ele na disponibilidade do bem, mantém poderes de administração ordinária da coisa e pode praticar actos de frutificação dela. O que ele não pode fazer é agir, na pendência da condição, de má fé, por forma a que comprometa a integridade do direito da outra parte. Ou seja, não poderá transformar ou modificar a coisa de modo a alterar o destino económico dela ou o seu uso, nem fazer variar as características dela. Tudo como decorre do disposto nos arts. 272 e 277/2, ambos do CC (teve-se em conta, a obra de Ana Isabel Afonso, A condição, reflexão crítica em torno de subtipos de compra e venda, UCE, Porto, 2014, págs. 252 a 257 e 277 a 283; ou nas págs. 667 a 669 e 680 do Comentário ao CC, parte geral, UCE, 2014).

        Vistas as coisas do lado do arrendatário condicional suspensivo – no caso, a requerente – este não se pode opor à prática de actos de que não resulte o comprometimento do seu direito condicional, enquanto não se iniciar o contrato de arrendamento com a verificação da condição suspensiva.

              Ora, obras de terraplanagem de um prédio, sem mais, não se podem considerar – tendo em conta o fim do contrato de arrendamento em causa nos autos – actos de administração extraordinária, mas sim actos de mera administração ordinária que o requerido pode praticar e que a requerente não pode impedir. E não há mais nada alegado, pois que o mais que a requerente acrescenta é simples presunção sem qualquer alegação de factos que lhe sirvam de base suficiente (: é de presumir que a requerida pretende construir um posto de abastecimento no terreno arrendado à requerente”).

              Fora destes limites, poderia discutir-se se a requerente, como arrendatária sob condição suspensiva, teria direito ao embargo de obra nova (ou seja, direito de embargar obras que se pudessem considerar como de administração extraordinária, ou melhor, como actos que pusessem em causa a integridade do seu direito), com base no disposto no art. 273 do CC, tal como se pode defender que o credor sob condição suspensiva tem o direito de requerer o arresto de bens do devedor (na defesa da possibilidade do arresto, veja-se Ana Isabel Afonso, págs. 277 a 289 da 1ª e 669 a 671 da 2ª). Mas como não se saiu daqueles limites, a questão não tem interesse e por isso não se desenvolve.

              E, assim sendo, acompanha-se a sentença recorrida no sentido de que não haveria fundamento para que fosse decretado o embargo de obra nova, embora com a fundamentação diversa da invocada pela sentença, qual seja [a deste acórdão:], o de que as obras que a requerente invoca não comprometem a integridade do seu direito (de arrendatária sob condição suspensiva): art. 272 do CC.

              E, assim sendo, não tem qualquer interesse convolar o procedimento cautelar comum em embargo de obra nova. 

                                                                 *

              Perante o que se disse acima, não interessam os factos que a requerente pretende aditar: a resolução dos contratos pela requerida e a não aceitação dessa resolução pela requerente, pois que não seriam eles que levariam a conclusões diversas das que as que antecedem, visto o risco de lesão concretamente em causa e a providência concreta pedida.

           E pela mesma razão ficam prejudicados os outros argumentos invocados pela requerente; a providência não podia ser decretada porque o que a requerente queria não era uma providência cautelar comum, mas um embargo de obra nova e não há interesse na convolação porque o embargo não poderia ser concedido já que as obras de terraplanagem que estão a ser feitas não ultrapassam os actos que o proprietário pode praticar apesar de ter celebrado com a requerente um contrato de arrendamento sob condição suspensiva.

         Entretanto, diga-se que se fosse determinada a convolação do procedimento cautelar comum em embargo de obra nova, sempre se teria que conceder de novo o direito aos requeridos de deduzir nova oposição, pois que, como resulta do que antecede, o requerimento da providência não era claro na sua pretensão e na sua base factual (para além do mais, os factos relativos ao perigo de demora vieram articulados na parte de direito do requerimento) e o direito de defesa dos requeridos podia ter sido prejudicado com isso.

                                                                 *
              Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

              Custas pela requerente.

              Lisboa, 15/02/2018

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto