Prestação de contas do Juízo Local Cível de Lisboa – J16

              Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa, os juízes abaixo assinados:

              A e outros dois vieram intentar a presente acção especial contra (i) B e (ii) Herança Indivisa de C representada pelos herdeiros D, E e F, alegando que aqueles B e C tinham sido administradores de facto da herança de G (não diz desde quando nem em que períodos, sendo que entretanto refere que um outro herdeiro foi cabeça-de-casal nomeado no inventário no período que pode estar em causa nesta acção) e o B ainda o é, pelo que deviam prestar contas dessa administração, sendo que, como aquela C tinha entretanto falecido, a obrigação de prestar contas se tinha transmitido para os seus herdeiros (os tais D, E e F).

              D, E e F, dizendo-se citados na qualidade de herdeiros da referida G, contestaram, excepcionando a ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade, e a falta de personalidade da herança indivisa de C, bem como a falta de citação da herança (o que aliás não podia ocorrer, por não ser representável); e impugnando a qualidade de herdeiros que lhes foi assacada (já que ainda não aceitaram a herança), e a obrigação de prestar contas, porque dizem que os autores alegaram que o réu B é que tinha sido administrador de facto da herança; concluem no sentido da absolvição da herança da instância ou do pedido.

           B também contestou excepcionando, a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário activo, visto que os autores estão desacompanhados de outros herdeiros que nem sequer identificaram, bem como dos herdeiros da herança indivisa de C, já que foi esta que identificaram como ré e não os seus herdeiros, que por isso terão também de ser autores; a falta de personalidade da herança indivisa de C; a sua própria falta de legitimidade, já que nunca foi cabeça-de-casal da herança da G e foi nessa qualidade, diz, que foi demandado; nem aliás foi administrador, apenas ajudou à administração e não há, com relevo jurídico, administradores de facto no caso de heranças em que o que importa é a qualidade de cabeça-de-casal, matéria que também lhe serve para impugnar a obrigação de prestar contas; conclui no sentido da sua absolvição da instância ou do pedido.

              Depois de outros articulados de outros sucessíveis chamados a intervir e da resposta dos autores às contestações, impugnando a matéria das excepções – dizem, entre o mais, que o que querem é a condenação dos réus herdeiros, como e enquanto representantes da herança [sic], e não da herança e que, como eles alegam que ainda não aceitaram a herança, vão requerer a sua notificação para o efeito; e desconhecem outros herdeiros -, foi proferido o seguinte despacho, em síntese:

I – Quanto à ilegitimidade passiva; uma coisa é a herança jacente outra é a herança indivisa; enquanto os sucessíveis não aceitarem a herança (art. 2050 e segs do CC), não se sabe quem é que serão herdeiros e, por isso, o que há é uma herança jacente, com personalidade judiciária; quando já se sabe quem são os herdeiros, há uma herança indivisa até à partilha, sem personalidade judiciário; no caso, os réus já aceitaram tacitamente a herança, como decorre da intervenção dos respectivos herdeiros nos presentes autos, por isso a herança é indivisa, não tem personalidade judiciária e, como tal, não pode ser parte na acção. No entanto, esta circunstância não deve impedir o normal prosseguimento da acção, na medida em que, aquilo que está em causa, é uma mera incorrecção na expressão utilizada [pelos autores] devendo entender-se que assiste aos herdeiros determinados D, E e F legitimidade para estar na acção, como réus, improcedendo assim a invocada ilegitimidade da herança que nem sequer poderia tecnicamente sê-lo pois que ela é destituída de personalidade. Custas do incidente pelos réus B e intervenientes H e I [que tinham acompanhado a posição dos réus quanto à ilegitimidade passiva].

II – Quanto à invocada ilegitimidade activa, foi indicada a existência de outros herdeiros que não estão na acção, por 3 dos herdeiros demandados, vindo os autores responder indicando desconhecer a sua existência, o que não pode afastar aquela indicação, pois, face à natureza da presente acção, é necessário o litisconsórcio entre todos os herdeiros que não sejam réus (art. 33 do CPC). A fim de identificar todos os herdeiros, notifique os réus que invocaram a existência de ilegitimidade activa para juntar certidão dos autos de inventário nº 109/97, do 9º juízo deste tribunal, documentando a existência de outros interessados para além dos que já se encontram nos presentes autos.

           Para além de outras reacções, que não compete a este tribunal de recurso apreciar, o réu B veio recorrer deste despacho, invocando o disposto no art. 644/2-a do CPC – para que seja revogada a condenação do réu nas custas e o prosseguimento do processo contra os pretensos herdeiros e representantes da 2ª ré, e substituído por outro que absolva representantes e “representada” -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (com alguma síntese feita por este tribunal de recurso):

i) Nem na contestação, nem em separado, deduziu qualquer incidente, pelo que não pode ser condenado em custas por qualquer incidente;

ii) Defendeu-se por impugnação e por excepção; na sua defesa por excepção, alegou a ilegitimidade dos autores, a sua própria ilegitimidade e a falta de personalidade judiciária da 2ª ré [herança]; os pretensos representantes da 2ª ré ainda não aceitaram a herança de C, nem expressa, nem tacitamente; o despacho recorrido reconhece, que a 2ª ré não tem personalidade judiciária e, portanto, não pode ser parte na presente acção; na sequência da constatação dessa excepção dilatória – artigos 576/2 e 577-c do CPC – alegada por si e de conhecimento oficioso pelo tribunal, a 2ª ré deveria ter sido absolvida da instância, bem como os seus pretensos representantes; não tendo havido essa absolvição da instância, foram violadas as disposições processuais citadas, e o despacho enferma da nulidade prevista no art. 615/1-c do CPC: os fundamentos estão em oposição com a decisão;

iii) O despacho enferma ainda de obscuridade que o torna ininteligível no que toca a conclusão de que “aquilo que está em causa é uma mera incorrecção na expressão utilizada” – o que o torna também nulo – carecendo de qualquer fundamento de direito o prosseguimento da acção contra os representantes da 2ª ré: nulidade prevista no art. 615/1-b do CPC;

iv) O despacho enferma ainda da nulidade prevista no art. 615/1-d do CPC ao pronunciar-se sobre questão – aceitação tácita da herança – de que não devia tomar conhecimento, por não terem sido sequer alegados factos que permitam essa conclusão, sem prejuízo de assim ter violado os artigos 2046, 2056 e 2057 do Código Civil.

              Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                                 *

              O juiz relator deste acórdão proferiu a 04/12/2017 decisão singular não admitindo o recurso.

            O recorrente requereu que sobre a matéria recaísse acórdão (art. 653 do CPC), sem nada acrescentar, e notificou o requerimento à parte contrária que nada veio dizer aos autos.

     Na conferência foi acordado manter a decisão singular que é a seguinte, acrescentando-se apenas a condenação em custas pela reclamação, já que, face à ausência de fundamentação da reclamação, não há outros argumentos a considerar.

                                                                 *

        Do art. 644, n.ºs 1-b e 3, do CPC, resulta, a contrario, que os des-pachos que conhecem de excepções dilatórias, julgando-as improcedentes, não admitem recurso autónomo, podendo ser impugnadas apenas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no nº. 1.

            Não se pode dar a volta a isto através da invocação, sem mais nada, do disposto no art. 644/2-h do CPC.

         Aliás, esta norma é apenas para as decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil, o que não é, manifestamente, o caso dos autos, pois que se a decisão em causa vier a ser revogada, por procedência da impugnação, tal poderia levar, se fosse necessário, à anulação de todo o processado, conseguindo-se com isso o efeito útil que a impugnação visava. O que poderia haver era uma perda de tempo e de trabalho, logo o oposto à celeridade e economia processual, o que não é suficiente para que se admita o recurso, pois que o regime processual escolhido pelo legislador serve também para proteger aqueles interesses, que seriam presumivelmente mais prejudicados com a admissão irrestrita de recursos autónomos.

              Se fosse de aceitar a posição do recorrente, então todas as decisões que julgassem improcedente as excepções dilatórias deviam ser, por lei, susceptíveis de apelação autónoma, isto é, imediata; como a lei não o prevê, tal significa a rejeição dessa posição.

              Neste sentido tem sido dito que:

         “O advérbio empregue (absolutamente) marca bem o nível de exigência imposto pelo legislador (….). Não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso decretado em momento ulterior não passará de uma ‘vitória de Pirro’, sem qualquer reflexo no resultado da acção (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2007, págs. 182/183).

       Neste sentido, ainda, por exemplo e por últimos, vejam-se os acs. do TRC de 10/12/2013, 123/13.6TBGRD-B.C1, do TRC de 29/10/2013, 737/08.6TM AVR-E.C1 (que lembra jurisprudência antiga no mesmo sentido: acs. do STJ de 04/03/1979, BMJ 285, pág. 243, de 21/07/1987, BMJ 369, pág. 489, e de 21/05/1987, BMJ 467, pág. 536, do TRC de 14/01/1993, CJ, I, pág. 10, e de 04/12/1984, CJ, V, pág. 79, e do TRP de 24/05/1984, CJ, III, pág. 246), do TRP de 28/05/2013, 3255/08.9TJVNF-B.P1 (que lembra o ac. do STJ de 21/05/1997, BMJ 467, págs. 536/540), do TRP de 18/02/2012, 295/11.4TBCHV-A.P1 (que lembra os acs. do TRL de 21/01/2009, 569/2009-4 e do TRC de 28/04/2009 210/04.ITALH-A.C1) e do TRL de 03/11/2011, 7708/10.0TBCSC-A.L1-2. E ainda o ac. do TRL de 05/03/2010, proc. 265853/08.6YIPRT-A.L1-6 e a decisão singular do TRP de 23/02/2016, 7091/15.8T8PRT-B.P1, esta publicada em https://outrosacordaostrp.com

              Leitura que é de igual modo feita no âmbito de outras matérias – de trabalho (do TRC de 17/01/2013, 889/11.8TTLRA.C1, com referência ao art. 79-A/2h do CPT, que lembra os acórdãos antigos do STJ de 09/11/1984, BMJ 341, pág. 369, do STJ de 21/07/1987, BMJ 369, pág. 489, do STJ de 10/03/1993, BMJ 430, pág. 424, do TRP de 05/06/1990, BMJ 398, pág. 585, e do TRC de 11/03/1998, BMJ 475, pág. 786, e do TC de 16/03/1993, 208/93) e de penal (ac. do TRL de 05/04/2011, 1473/08.9TASNT-A.L1-5, com referência ao art. 407/1 do CPP), por exemplo – a revelar o entendimento unânime sobre a questão, sendo certo ainda que esta interpretação da norma tem sido declarada não sofrer de qualquer vício de inconstitucionalidade (neste sentido, os acs. do Tribunal Constitucional citados por Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, na nota 3 do art. 691/2m) do CPC antes da reforma de 2013 [igual ao actual art. 644/2h)], págs. 79 a 81 do CPC anotado, vol. 3º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora).

              É certo que, fortes, evidentes e concretas razões de economia processual, podem levar à admissão de uma apelação autónoma, ao abrigo do art. 644/2-h do CPC (como, por exemplo, se for evidente que o despacho recorrido está errado e vai contra toda a jurisprudência conhecida, sendo notório que irá ser revogado) e crê-se que, em termos práticos, essas razões têm levado a uma visão menos restritiva dessa norma pelos tribunais, como aliás parece defendido por Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes (obra e local citados).

        Mas essas razões não estão sequer indiciadas no caso dos autos, muito pelo contrário, como se passa a ver.

       O processo de prestação de contas inicia-se com uma petição para o réu as apresentar ou contestar a obrigação de as prestar (art. 942/1 do CPC). O réu pode contestar a pretensão do autor, quer com base em razões processuais, quer em razões substantivas: se invoca excepções dilatórias, tal poderá levar à absolvição da instância; se invoca razões substantivas, põe em causa a obrigação de prestar contas.

              No caso, o réu recorrente invocou excepções dilatórias e razões substantivas para não ter de prestar contas.

              O despacho recorrido resolveu expressa e implicitamente apenas algumas das excepções dilatórias deduzidas pelos citados, propondo-se decidir pelo menos outra mais tarde, como se vê da síntese feita acima de tal despacho, e nada decidiu quanto às razões substantivas pelas quais os citados entendem que não têm de prestar contas.

              Ou seja, claramente, o despacho recorrido não decidiu a questão da existência ou não de prestar contas por parte dos citados. Decidiu apenas – para já sem trânsito em julgado – que os réus são partes legítimas nesta acção.

              É que, não só o despacho não disse nada quanto àquela questão, como não o poderia ter dito porque ainda está pendente pelo menos outra excepção dilatória, e também pelo seguinte: a petição baseia-se não no facto de B e C terem sido cabeças-de-casal da herança de G – ao contrário do que o recorrente dá a entender na contestação; já os outros citados entenderam, bem, que o que estava em causa era uma administração de facto -, mas sim no facto de eles terem sido administradores de facto de um bem que integra a herança. Assim sendo, estando a obrigação de prestação de contas dependentes de uma situação de facto, naturalmente não pode ser decidida sem produção de prova sobre essa situação, quer ela seja decidida sumariamente, quer não. É o que resulta do art. 942/3 do CPC.

              Ora, daquela decisão – existência ou inexistência da obrigação de prestar contas – que ainda não foi proferida, cabe recurso imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo (art. 942 do CPC). E com este recurso, o recorrente poderá então impugnar o despacho recorrido (incluindo a questão das custas), pois que a decisão que julgar a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas representa o termo de uma fase do processo de prestação de contas, funcionando pois como o recurso de uma decisão final (por isso é que sobe de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo…).

          Quer isto dizer que todo o processado cuja perda o recorrente teme não é um processado que se preveja demorado e complexo. Ou seja, não se trata de o recorrente, por exemplo, ter tido que prestar contas e depois inutilizar-se todo esse trabalho, pois que isso nunca virá a suceder sem antes poder discutir a decisão da existência dessa obrigação de prestar contas – que ainda não existe – quer o despacho que foi agora recorrido. Pelo contrário, o processado que ainda se irá seguir, poderá esclarecer muito melhor a questão que, no fundo, está em causa, ou seja, a obrigação ou não de prestar contas e, reflexamente, a matéria das excepções dilatórias deduzidas, contribuindo para um melhor resultado da impugnação do despacho que as decidiu, que venha a ser deduzida no recurso da decisão final daquela fase.

                                                                 *

    Repare-se que o recorrente já teve oportunidade de se pronunciar sobre a recorribilidade da decisão, ao defender a aplicação do art. 644/2-h do CPC. Era aí que lhe competia argumentar, querendo, no sentido da admissibilidade do recurso autónomo.

          Quanto aos recorridos, tiveram a mesma oportunidade de se pronunciar sobre essa questão quando foram notificados do recurso interposto pelo recorrente.

          Assim sendo, não há risco de decisões-surpresa: o recorrente já sabia que o tribunal se teria de debruçar sobre a questão da recorribilidade ou irrecorribilidade autónoma da decisão em causa.

           Pelo que não se justifica a aplicação do disposto no art. 655/1 do CPC, que só levaria ao atraso do processo, com prejuízo para o sossego jurídico das partes.

                                                                 *

       Pelo exposto, entende-se que a decisão recorrida não é passível de recurso autónomo, pelo que não se admite o recurso (art. 652/1-b do CPC).

             Não há mais custas a pagar por este recurso, pois que o recorrente, que é quem devia ser condenado nelas, já pagou a taxa de justiça devida e não existem outras despesas ou encargos.

              Custas da reclamação para a conferência pelo recorrente (que é apenas a taxa de justiça, já paga).

              Lisboa, 01/03/2018

              Pedro Martins

             1.º Adjunto

             2.º Adjunto