Reclamação de créditos do Juízo de execução de Oeiras

              Sumário:

I – Um penhor de conta bancária não é um privilégio creditório geral, pelo que não lhe pode ser aplicada a regra do art. 788/4 do CPC.

II – Um penhor de conta bancária pode ser objecto de reclamação de créditos (arts. 666 e 679 do CC).    

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

            1. O Condomínio de um prédio sito em Algés, executou AG para obter o pagamento de diversas quotas de condomínio, no valor de 3544,24€, mais juros e despesas, no total de 3790,42€.

          2. O exequente não diz que o único executado seja casado, embora na certidão predial junta conste como sendo proprietários de uma fracção, o executado e a sua cônjuge, casados no regime de comunhão de adquiridos.

      3. No âmbito dessa execução foram penhorados em 02/07/2015 os saldos de três depósitos no Banco X no total de 650,32€:

(i) 000, deposito poupança activa 10 anos, tipo conta: depósito a prazo, onerado com garantia real, 2 titulares, valor 251,96€;

(ii) 001, deposito poupança activa 10 anos, tipo conta: depósitos a prazo, onerado com garantia real, 2 titulares, valor 251,96€;

(iii) 002, conta NB negócios, depósito à ordem, não onerado com garantia real, 2 titulares, valor 146,40€.

       4. Os elementos constantes destes três primeiros parágrafos foram obtidos por este tribunal de recurso, só em 09/02/2018, através de consulta à execução de que estes autos são um apenso (depois de obtido acesso à mesma a 05/02/2018). O apenso foi remetido a este tribunal sem quaisquer elementos relativos à execução e os mesmos não foram fornecidos nem mesmo depois de solicitados.

      5. Por apenso aos autos de execução, o Banco Y, veio reclamar um crédito de 11.135,50€ contra o executado e cônjuge – que identifica também como executada, embora como resulta do que antecede ela não o seja – correspondente a dois empréstimos que o seu antecessor Banco X lhes tinha feito, ditos garantidos por um penhor de primeiro grau, sobre o saldo a crédito do depósito a prazo poupança activa, sobre o crédito de reembolso do valor do PPR Poupança activa – Plano Banco X 95 e sobre as unidades de participação do Fundo de Investimento Flexível, associados aos contratos de mútuo, dizendo que, apesar de estarem a ser cumpridos regularmente, os mesmos se venceram por ter sido penhorado na execução o bem dado em penhor. Em consequência de tal penhor, o Banco Y adquiriu, diz, o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não goze de privilégio especial ou de prioridade no pagamento. Pede que o crédito seja reconhecido e graduado no lugar que lhe competir.

        6. Antes de qualquer outra actuação, a secretaria do tribunal abriu conclusão ao juiz com a informação de que a reclamada SC não era executada nos autos.

       7. O juiz aproveitou a conclusão para indeferir liminarmente a reclamação de créditos, com base nos seguintes fundamentos:

         Compulsados os autos de execução extrai-se do teor dos mesmos que o valor da acção se cifra em 3790,42€ e mostram-se penhorados os saldos de três contas bancárias.

         Ora, dispõe o art. 788/4-b do Código de Processo Civil que não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário, quando, sendo o crédito do exequente [inferior] a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente ou depósito bancário como, aliás, sucede in casu.

         8. O reclamante vem recorrer deste despacho, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcreve na parte minimamente útil, retirando algumas das muitas repetições):

[…]

C. Com esta reclamação de crédito, o Banco Y pretendeu apenas defender a garantia real do qual é titular contra a penhora que foi efectuada pela agente de execução.

D. Efectivamente, sendo o penhor de depósito bancário equiparado ao penhor de direitos, é oponível erga omnes e prefere ao privilégio geral.

E. Ora, tendo preferência relativamente ao privilégio geral, não poderia o tribunal a quo rejeitar liminarmente a reclamação de créditos do Banco Y apenas com base no que disse.

[…]

G. Caso o artigo 788/4-b do CPC seja interpretado, como o foi no caso concreto [….] estamos perante uma violação do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa por violação do acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva.

H. O penhor é uma verdadeira garantia de cumprimento das obrigações oponível erga omnes e prefere aos credores que beneficiem apenas de privilégio mobiliário geral, como é o caso da penhora, nos termos dos artigos 666 e 749, ambos do CPC.

I. Encontrando-se neste caso em confronto um penhor previamente constituído e uma penhora posterior, não poderia o tribunal a quo vedar ao credor pignoratício a faculdade de, querendo, reclamar os seus créditos para defesa da sua garantia real.

[…]”                             

       9. O exequente e o executado foram notificados para os termos deste recurso e da reclamação de créditos, depois deste tribunal da relação o ter determinado; nenhum deles apresentou contra-alegações; os autos foram remetidos a este tribunal de recurso, depois de nova notificação ao próprio executado…, a 30/01/2018. Este tribunal de recurso também disse que o outro “executado” devia ser notificado para os termos do recurso e da reclamação de créditos, o que não foi feito. No entanto, como agora se pode constatar, não existem dois executados, ao contrário do que o reclamante dizia, pelo que a necessidade da notificação daquele não se mantém, nesta fase.

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     Questão a decidir: se a reclamação de créditos não podia ter sido indeferida liminarmente.

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          Os factos com interesse a decisão são (para além dos que constam dos §§ 1, 3 e 5 do relatório deste acórdão) os seguintes:

      1. Nesta execução, cujo valor é de 3790,42€, foram penhorados os saldos de três contas bancárias [estão discriminadas acima no 3º§ do relatório do acórdão].

        2. As cláusulas 2.14 dos contratos Plano Banco X 95 – produto financeiro complexo, um contrato por cada um dos titulares, executado e cônjuge, têm, sob a epígrafe ‘garantias’, a seguinte redacção:

Em garantia do cumprimento das obrigações assumidas neste contrato ou dele emergentes, o cliente presta a favor do Banco X, que aceita, as seguintes garantias:

A. Penhor de primeiro grau, nos mais amplos termos em direito permitidos, sobre o saldo a crédito do depósito a prazo poupança activa associado ao plano Banco X 95 supra, abrangendo, designadamente o capital, os juros e quaisquer outros montantes nela creditados a cada momento, ficando o Banco X desde já autorizado a movimentar o saldo do referido depósito a prazo para efeitos de execução do penhor.

B. Penhor de primeiro grau, nos mais amplos termos em direito permitidos, sobre o crédito ao reembolso do valor da PPR Poupança Activa – Plano Banco X 95 associado ao Plano Banco X 95 supra, de que o cliente é titular sobre a companhia de seguros Banco X Vida, ficando o Banco X desde já autorizado, na qualidade de credor pignoratício, a exigir o reembolso do valor do PPR Poupança Activa – Plano Banco X 95 para efeitos de execução do penhor.

C. Penhor de primeiro grau, nos mais amplos termos em direito permitidos, sobre as unidades de participação do Fundo de Investimento Flexível depositadas no dossier de fundos associado ao Plano Banco X 95 supra. Para esse efeito, o cliente, desde já, autoriza o Banco X a proceder ao registo do penhor das unidades de participação no dossier de fundos do cliente. O Banco X fica ainda autorizado, na qualidade de credor pignoratício, a resgatar as unidades de participação dadas em penhor para efeitos de execução da garantia.

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              Decidindo:

                                 Um penhor não é um privilégio creditório

         Não há factos que permitam dizer que os saldos penhorados das contas bancárias tenham algo a ver com os créditos ou as unidades de participação em causa nas als. (b) e (c) do ponto 2 dos factos provados.

        Assim, o que está em causa é apenas o penhor de primeiro grau consignado em (a) do ponto 2 dos factos provados.

      Por outro lado, a reclamação de créditos só diz respeito às duas primeiras contas bancárias, não à terceira.

         Posto isto,

         Um penhor (previsto na secção IV do capítulo VI do Código Civil dedicado à garantia especial das obrigações), seja ele de que tipo for, não é um privilégio creditório geral previsto na secção VI do mesmo capítulo ou no art. 788/4 do CPC.

       Quer isto dizer que o despacho recorrido não tem razão: invoca uma norma que prevê uma solução para os privilégios creditórios, quando não é esse o caso dos autos. E fá-lo sem explicar porque é que aplica essa norma, prevista para os privilégios, ao penhor. Sendo que não se conhece qualquer posição doutrinária ou jurisprudencial que considere que, para o caso, há uma lacuna a colmatar e que se justifica a aplicação analógica da solução em causa. Terá, salvo erro, havido um lapso da parte da decisão recorrida.

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Do penhor de uma conta bancária (ou de depósito bancário)

        Considerando que com a cláusula 2.14 de um dos contratos, o executado [e o cônjuge no outro contrato], para garantia das obrigações assumidas no próprio contrato, pôs à disposição do reclamante, credor bancário simultaneamente depositário (pelo que não se aplica o art. 681/2 do CC), o saldo a crédito de um depósito a prazo a 10 anos, dando-lhe o poder de o movimentar (com exclusividade, face às circunstâncias, do que decorre a satisfação do art. 669/1 do CC) para efeitos de execução do penhor, estamos de facto perante um penhor de uma conta bancária (veja-se Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina 2000, págs. 48 a 52, e Contratos Comerciais/bancários, 2013, Almedina, págs. 152/154 e 379; Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2011, págs. 287 a 290; Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, pág. 544 e nota 653 da pág. 372; Carlos Ferreira de almeida, Contratos III, 2016, 2ª edição, Almedina, págs. 179/180; Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de cumprimento, Almedina, 5ª edição, 2006, págs. 182/187; Menezes Leitão, Garantia das Obrigações, 2016, 5ª edição, Almedina, 286/287; e Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 2001, págs. 415/416).

         Sendo assim, o indeferimento liminar talvez se pudesse justificar se se seguisse a posição daqueles que consideram que o penhor de uma conta bancária não é uma garantia real (por exemplo, Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, 1998, págs. 601 a 603).

            É que só os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados podem reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos (art. 788/1 do CPC).

       No entanto, a querela doutrinária sobre a natureza real do penhor de conta bancária – por não recair sobre coisa corpórea -, como espécie de penhor de direitos e de penhor de créditos bancários (que no caso não é um penhor financeiro, previsto do DL 105/2004, de 08/05, porque os clientes do banco reclamante são pessoas singulares), não tem interesse face ao regime jurídico aplicável ao caso: por força dos arts. 666 e 679, todos do Código Civil, o reclamante credor bancário passou a ter o direito de, pelas forças de tal depósito, de que tem a disponibilidade exclusiva, se satisfazer preferencialmente face aos outros credores do executado. Mesmo que não seja uma garantia real, funcionaria “em modo real.” (das obras citadas, veja-se principalmente, Januário Gomes, Contratos…, citado, pág. 153/154 e 379).

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          Quanto a custas.

          O reclamante tem razão no recurso. O exequente, tal como o executado, não tomou qualquer posição quanto à reclamação. A mulher do executado nem sequer tem conhecimento da execução, da penhora e da reclamação. Assim, não se justifica que qualquer destas pessoas seja condenada em custas.

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        Objecto do recurso: aquilo que, por necessidade de esclarecimento dos elementos processuais, neste recurso se apurou quanto ao processado na execução – para além de muito mais, estão penhoradas na totalidade contas bancárias também da cônjuge do executado e ela não é executada, nem se mostra que tenha qualquer tipo de contacto com o processo – é, no que excede o que antecede, irrelevante neste apenso de recurso de uma decisão proferida na reclamação de créditos.

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              Pelo exposto, revoga-se o indeferimento liminar da reclamação apresentada pelo reclamante, determinando-se que o tribunal recorrido dê o adequado seguimento processual à reclamação de créditos relativamente às duas primeiras contas bancárias penhoradas (i e ii do §3 do relatório deste acórdão), sem prejuízo do demais que se mostre necessário à regularização oficiosa da execução.

              Sem custas (incluindo a taxa de justiça já paga pelo reclamante, que lhe terá de ser devolvida).

              Lisboa, 01/03/2018.

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto