Juízo Central Cível de Almada – Juiz 2

             

              Sumário:

            O pedido de restituição dos bens, para o caso da declaração de ineficácia do acto impugnado, é um pedido próprio da acção de impugnação pauliana.

              Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

             

              A 31/01/2014, os autores vieram intentar uma acção contra seis réus pedindo que fossem declarados ineficazes uma compra e venda e uma doação que identificam, ordenando-se a restituição material e jurídica dos bens aí alienados ao património dos réus transmitentes.

              Alegam, para tanto, em síntese, que:

         – foram avalistas de uma livrança subscrita por uma sociedade (Imobiliária, Lda, actualmente Unipessoal);

         – à data do vencimento da livrança a 1.ª ré (Construções, Lda) era sócia e gerente da Imobiliária e o 2.º e a 3.ª ré eram gerentes da 1.ª ré;

         – a livrança foi executada [não dizem directamente quem é o exequente, mas pela certidão junta vê-se que é o Banco, SA – parenteses deste ac. do TRL] contra, entre outros, os autores e os três primeiros réus [mas não é assim: a sociedade executada não era a 1ª ré mas a subscritora da livrança, ou seja, a Imobiliária – isto tendo em conta os autos de penhora juntos pela própria autora e a lógica das coisas – parenteses deste ac. do TRL];

         – estes réus, para evitarem pagar a livrança, venderam o único imóvel da 1.ª ré à 4.ª ré (nora) e ao 5.º réu (filho) e doaram à 6.ª ré (neta) o único bem imóvel de que eles (2.º réu e 3.ª ré) eram proprietários;

         – tais “negócios” mais não foram do que uma combinação entre todos os réus, que teve como único propósito frustrar o pagamento da livrança com o seu património, respondendo apenas o património dos autores;

         – e todos estes actos foram feitos entre família, isto é, mais não foram do que negócios consigo mesmo [o sublinhado e o cheio são dos autores];

         – do Direito: estabelece o artigo 610 do Código Civil, que os actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial, podem ser impugnados pelo credor, se crédito for anterior ao acto e se do acto resultar a impossibilidade de satisfação do crédito. Por sua vez, o art. 612, do CC, sujeita à impugnação os actos em que devedor e terceiro estejam de má-fé, entendendo-se esta como a consciência do prejuízo causado ao credor; com os supra descritos actos os três primeiros réus ficaram desprovidos de património que pudesse solver a sua dívida para com a exequente; o crédito do exequente nos autos de execução já acima identificados é anterior àqueles actos notariais; todos os réus estavam conscientes do prejuízo das suas condutas, o que torna evidente a má-fé de todos. Pelo que, estão reunidos todos os requisitos que a lei determina para a impugnação pauliana, a qual tem como consequência a ineficácia dos actos praticados pelos réus.

              Os réus 1 a 4 contestaram; para além do mais, a 1ª ré excepcionou a sua ilegitimidade passiva (mas com o argumento de que a dívida seria da insolvência e não da massa insolvente, não com o argumento de que a devedora não era ela mas a Imobiliária); o 2.º réu e a 3.ª ré a ilegitimidade processual activa dos autores, já que o crédito que alegam para impugnaram a venda e a doação não é dos autores mas do Banco; a 4.ª ré excepcionou a ineptidão da petição inicial, ao abrigo do art. 186/1 e 2b do CPC porque, por um lado, os autores ao alegarem que tais “negócios” mais não foram do que uma combinação entre todos os réus, negócios consigo mesmo, e pedindo que sejam declarados ineficazes os referidos negócios e a restituição dos bens, objecto dos mesmos, ao património dos 1.°, 2.° e 3.° réus, invocam aparentemente factos que integram duas causas de pedir distintas, contudo nenhuma encontra correspondência no pedido formulada pelos autores; ora, o art. 616 do CC prevê os efeitos, em relação ao credor da impugnação pauliana procedente. Assim, a impugnação pauliana procedente apenas permite ao credor, autor da mesma, a execução do bem alienado, na esfera jurídica do adquirente. Ou seja, o pedido formulado pelos autores não encontra correspondência com nenhuma das causas de pedir formulada e com estas está em plena contradição; a 4.ª ré lembra também que a 1.ª ré não é executada ao contrário do que dizem os autores, nem é, desde 2009, sócia da subscritora da livrança (nem era, por não poder ser, gerente dela, ao contrário do que os autores alegam); tendo a compra e venda sido contratada entre a 1.ª ré e a 4.ª ré e não tendo a 1.ª ré nada a ver com a livrança, não sendo por isso devedora, ambas são partes ilegítimas (porque o negócio invocado não foi celebrado entre uma devedora e adquirente da devedora); invoca também a ilegitimidade activa dos autores, por estes não terem alegado, quanto a eles, os pressupostos da impugnação pauliana.

              Foi dispensada a realização de audiência prévia e foi concedido aos autores, nos termos do arts. 3/4 e 547, ambos do CPC, o prazo de 10 dias para, querendo, responder por escrito às excepções deduzidas nas contestações apresentadas pelos réus.

              Os autores vieram pronunciar-se sobre as excepções deduzidas pugnando pela sua improcedência.

              No despacho saneador afirmou-se a competência do tribunal e passou-se a conhecer da excepção da ineptidão da petição inicial, considerando-a procedente, com a consequente nulidade de todo o processo e a absolvição dos réus da instância (art. 186/1 e 2c, 576/2 e 577/1-b e 278/1b, todos do CPC), com base no seguinte, muito em síntese:

         Para fundamento dos pedidos cumulativos formulados invocam os autores duas causas de pedir distintas, isto é, por um lado fundam as suas pretensões na impugnação pauliana (art. 610 do CC) e, por outro, na figura jurídica do negócio consigo mesmo prevista no art. 261 do CC.

         Quanto ao primeiro pedido formulado pelos autores não se coloca qualquer questão, pois a consequência da procedência da acção de impugnação gera sempre a ineficácia do acto.

         Todavia, importa apurar se é legalmente admissível a cumulação efectiva e não subsidiária das duas causas de pedir e dos pedidos formulados.

         Os autores apresentam, por um lado, como causa de pedir a figura jurídica da impugnação pauliana, pedindo que seja declarada a ineficácia da compra e venda e da doação celebradas.

         Como refere João Cura Mariano, in Impugnação Pauliana, 3ª edição revista e aumentada, Almedina, pág. 292 e 293:

          “Considerando as possíveis consequências da ineficácia relativa do acto impugnado, o pedido formulado na acção pauliana poderá assumir conteúdos diversos, para além da sempre presente declaração dessa ineficácia.

          Assim, quando se pretenda atingir o bem no património de terceiro, deve ser pedido que o tribunal reconheça a possibilidade do credor impugnante o executar ou praticar sobre ele os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (art. 616/1 do CC). Quando se vise a restituição pelo valor do bem transmitido ou do enriquecimento obtido com a sua aquisição, quando já não seja possível a execução desse bem, o pedido já será de condenação no pagamento de uma determinada quantia em dinheiro (…).”

         Continuando, refere ainda que:

          “Não determinando a procedência da impugnação pauliana uma alteração do titular do direito de propriedade sobre os bens afectados, mas apenas a sujeição a uma execução ou meios de conservação da garantia patrimonial (…)” (ob. cit. pág. 294).

         Todavia, e em cumulação efectiva e real, peticionam os autores que seja ordenada a restituição dos imóveis objecto da compra e venda e da doação ao património dos três primeiros réus.

         Quanto a este pedido a causa de pedir sustenta-se na figura jurídica do negócio consigo mesmo que tem como consequência jurídica a anulação do negócio (art. 261/1 do CC) e a restituição nos termos do art. 289 do CC).

  E depois de algumas considerações, com apoio doutrinal e jurisprudencial, sobre a incompatibilidade substancial de pedidos e de causas de pedir e consequências, diz:

         Partindo do princípio que acção de impugnação não é uma acção de anulação do negócio, a cumulação da causa de pedir desta acção de impugnação com a causa de pedir do negócio consigo, que culmina com a anulabilidade do negócio, configura um caso de incompatibilidade de causas de pedir, o que, por sua vez, importa a cumulação de pedidos também eles substancialmente incompatíveis, porquanto não é possível declarar a ineficácia dos negócios que continuam válidos e ao mesmo tempo restituir os bens aos três primeiros réus decorrente da anulabilidade do “negócio consigo mesmo”.

         Repare-se que a impugnação pauliana é um meio conservatório da garantia patrimonial e não conduz à anulabilidade do negócio.

          “[…] a procedência da pauliana não envolve a destruição do acto impugnado, porque visa apenas eliminar o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor impugnante, isso significa que uma vez reparado esse prejuízo, nenhuma razão subsiste para não manter a validade da parte restante do acto, não atingida pela impugnação pauliana” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 446).

              Os autores recorrem deste saneador, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (também em síntese):

         Os autores apenas invocam uma causa de pedir, consubstanciada no instituto da impugnação pauliana. E para que assim se conclua, basta cotejar a petição inicial na qual, elencam somente os pressupostos da impugnação pauliana.

         Com a expressão menos precisa utilizada ‘negócios consigo mesmo’ os autores apenas pretendiam enfatizar que os negócios celebrados pelos réus, o foram todos em família, entre pessoas da mesma família.

         E não está sequer um facto elencado, na PI, do qual se possa concluir que estão reunidos os pressupostos exigidos para que estejamos perante um negócio consigo mesmo, conforme estão previstos no art. 261 do CC.

         Também não existem dois pedidos incompatíveis, pois ambos devem ser formulados na impugnação pauliana. Vide, por todos, acórdão do TRL de 06/03/2008, proc. 358/2008-8

         A acção de impugnação pauliana, se caracteriza por ser uma acção constitutiva, através da qual o credor que haja sido prejudicado por actos de alienação ou de oneração praticados pelo devedor possa ver reconstituída a garantia patrimonial dos seus créditos. E uma vez julgada procedente a referida acção, tem o credor direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo o credor executar os bens alienados no património do adquirente, nos termos do artigo 616.2 do CC.

         Concluímos pois que, podem os autores, em sede de uma acção de impugnação pauliana, pedir a ineficácia dos actos praticados bem como, a restituição dos bens alienados, ao património dos alienantes devedores, sem que tal consubstancie causas de pedir distintas e/ou dois pedidos incompatíveis.

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              O recurso só foi remetido a este TRL em 27/03/2018 (em férias de Páscoa) e autuado em distribuição a 09/04/2018.

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              Questão que importa decidir: se o pedido formulado pelos autores consubstancia dois pedidos incompatíveis e com causas de pedir substancialmente incompatíveis e se, por isso, está certa a conclusão da ineptidão da petição com a consequente anulação do processo e absolvição dos réus da instância.

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              O art. 616/1 do CC dispõe que: julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. 

              Antunes Varela, no CC anotado, vol. I, 3.ª ed, Coimbra Editora, 1982, pág. 602, diz que o carácter pessoal da impugnação pauliana aparece afirmado especialmente nos n.ºs 1 e 4 deste artigo: o primeiro, ao atribuir ao credor o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse […]. E mais à frente, repete: são três os direitos conferidos pelo n.º 1: o direito à restituição na medida do interesse do credor […].

              Sendo a própria lei e doutrina relevante, a falar no direito à restituição dos bens atribuído por lei ao credor por força da procedência da impugnação pauliana, considera-se que o pedido de restituição feito numa impugnação pauliana tem nos pressupostos desta a sua causa de pedir e consubstancia um pedido próprio da mesma.

              Veja-se aliás que o acórdão do TRL, citado pelos autores, sugere mesmo que os pedidos em causa devem ser os formulados na acção de impugnação pauliana: “a acção constitutiva visa exercer um direito do qual decorre a constituição, modificação ou extinção de uma situação subjectiva, ou, conforme refere expressamente a lei adjectiva, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente – cf. art. 4/2-c do CPC. Direito esse traduzido, in casu [na impugnação pauliana], pela restituição material e jurídica dos bens alienados e declaração da ineficácia do acto de compra e venda. Quer a restituição, quer a declaração de ineficácia, terão de ser determinadas pelo tribunal, que desenvolve uma actividade tendente à formulação de uma decisão que imponha aos réus, como constituída, modificada ou extinta a situação subjectiva objecto de acção.”

              É certo que Cura Mariano, autor citado pela decisão recorrida, sugere que o pedido de restituição dos bens ao património do devedor é uma deficiente explicitação jurídica (obra citada, aqui na 2.ª edição, 2008, Almedina, pág. 293), embora não retire daí que se esteja perante um pedido que não tem causa de pedir nos pressupostos da impugnação. O que tem a ver com a precisão que, mais atrás, págs. 242-243, tinha feito à redacção da lei: “A expressão utilizada ‘direito à restituição’ não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios. Esta denominação não significa a reentrada dos bens alienados no património do devedor, num movimento retroactivo, nem sequer a entrega dos mesmos ao credor; mas tão-somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante.”

              Mas se este direito à restituição não é bem uma restituição e se a lei tem de ser entendida num sentido mais preciso, o mesmo pode acontecer a um pedido formulado que reproduza a expressão legal, devendo ser então entendido, pelo juiz, num sentido mais preciso, mas sem que daí decorra que o pedido em causa não é um pedido possível e natural da impugnação pauliana.

              Neste sentido, por exemplo, veja-se o ac. do STJ de 01/10/2015, proc. 903/11.7TBFND.C1.S1: a autora propôs uma acção impugnando a doação feita pelos primeiros dois réus ao terceiro réu, de um prédio, pedindo que fosse declarada a ineficácia da doação e que fosse ordenado ao terceiro réu “a restituição do referido bem, de modo que a autora se possa pagar à custa desses prédios”. O TRC acabou por declarar a ineficácia em relação à autora da doação, reconhecendo-lhe o direito a executar o identificado bem no património do réu adquirente. Não falou, pois, em restituição. Mas foi tudo ou foi só isso. O STJ confirmou este acórdão do TRC.

              Conclui-se, assim, que o pedido de restituição dos bens pode ser feito na acção de impugnação pauliana, não estando em contradição com a causa de pedir da declaração de ineficácia.

              Por outro lado, no caso dos autos tal pedido não é, claramente, consequência de nenhuma causa de anulação dos negócios que tivesse sido invocada pelos autores, designadamente o negócio consigo mesmo enquanto situação prevista no art. 261 do CC, de que os autores não tinham invocado os respectivos pressupostos.

              Assim, não há duas causas de pedir, nem dois pedidos, mas uma simples acção de impugnação pauliana com um pedido formulado em termos admissíveis.

              Pelo que não se verifica a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos e/ou causas de pedir substancialmente incompatíveis, devendo o processo prosseguir para apreciação das outras questões colocadas.

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              Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o saneador que deu procedência à excepção de ineptidão da petição inicial, devendo o processo prosseguir os seus termos.

              Custas de parte dos autores pela 4.ª ré. Não há outras custas.

              Lisboa, 05/07/2018                 

              Pedro Martins

              1.º Adjunto

              2.º Adjunto